Resumos
O artigo busca realizar, a partir de uma perspectiva histórica, um balanço da situação dos países periféricos nos últimos trinta anos, abordando especificamente os impasses do desenvolvimento na atual fase da chamada globalização do capital. O trabalho baseia-se fundamentalmente em estudos de extensa bibliografia publicada recentemente. Em que medida a retomada do desenvolvimento para diversas áreas estagnadas da periferia coloca-se como uma possibilidade palpável? Em torno dessa questão, que reportamos central na atual conjuntura, buscamos tecer algumas reflexões. Pretendemos mostrar que a estagnação econômica vivida por inúmeros países não desenvolvidos decorre, em parte, de uma crise social e econômica aberta na década de 1970 e que se estende até os dias de hoje, apesar das tentativas de reestruturação da sociedade capitalista. As estratégias e as políticas de cunho neoliberal também teriam contribuído sobremaneira para essa situação à medida que reforçaram as amarras financeiras que sufocaram boa parte das economias periféricas. Sobrepondo-se a esses problemas, esses países também se defrontariam com os limites ecológicos do capitalismo. A retomada do desenvolvimento em um novo patamar, que requer crescimento econômico, justiça social e preservação da natureza, implicaria rupturas com o capitalismo.
desenvolvimento; globalização; projeto nacional; crise econômico-social
This article proposes to take an historical inventory of the situation of the countries of the periphery over the last thirty years, looking specifically at the impasses in development belonging to the current phase of so-called globalization of capital. It is based primarily on the study of an extensive literature of recent publication. We ask to what extent the return to development in the various stagnated areas of the periphery can be considered a concrete possibility and engage in a series of reflections around this issue, which we consider as fundamental for the present conjuncture. We seek to show that the economic stagnation that characterizes many non-developed countries is due in part to the social and economic crisis that began in the decade of the seventies and continues to date, efforts to restructure capitalist society notwithstanding. Strategies and policies of a neo-liberal type have also contributed significantly to this situation, to the extent that they have reinforced the financial knots that have suffocated a large portion of the peripheral economies. Adding to these problems, such countries have also been faced with the ecological limits of capitalism. Reinitiating development on another plane, involving economic growth, social justice and the preservation of nature would mean breaking with capitalism itself.
development; globalization; national project; social and economic crisis
Cet article cherche à dresser, sous la perspective historique, le bilan de la situation des pays périphériques dans les dernières trentes années. Pour cela, il aborde particulièrement les enjeux du développement dans la phase de la globalisation du capital. Ce travail s'appuie surtout sur les études de la vaste bibliographie publiée récemment. Dans quelle mesure la relance du développement concernant plusieurs secteurs stagnés de la périphérie deviendrait-elle une réelle possibilité? Autour de cette question, que nous trouvons centrale dans l'actuelle conjoncture, nous entamons quelques réflexions. Nous envisageons montrer que la stagnation économique à laquelle des nombreux pays non développés font face ne découle pas en partie d'une crise sociale et économique ouverte dans les années soixante-dix et qui s'élargit jusqu'à nos jours malgré les tentatives de restructuration de la société capitaliste. Les stratégies et les mesures politiques à caractère néo-liberal aussi auraient énormément contribué à cette situation étant donné qu'elles ont renforcé les amarres financières qui ont étranglé pour une part les économies périphériques. Outre ces difficultés, ces pays affronteraient les limites écologiques du capitalisme. La relance du développement dans un nouveau stade exigeant la croissance économique, la justice sociale et la préservation de la nature amènerait à une rupture face au capitalisme.
développement; globalisation; projet national; crise socioéconomique
DOSSIÊ "GLOBALIZAÇÃO"
A questão do desenvolvimento à luz da globalização da economia capitalista
Development and capitalist economics globalization
Le developpement à la lumiere de la globalisation de l'economie capitaliste
Francisco Luiz Corsi
Francisco Luiz Corsi é Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e Professor do Departamento de Ciências Políticas e Econômicas da Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Marília
Endereço para correspondência Endereço para correspondência Francisco Luiz Corsi flcorsi@uol.com.br
RESUMO
O artigo busca realizar, a partir de uma perspectiva histórica, um balanço da situação dos países periféricos nos últimos trinta anos, abordando especificamente os impasses do desenvolvimento na atual fase da chamada globalização do capital. O trabalho baseia-se fundamentalmente em estudos de extensa bibliografia publicada recentemente. Em que medida a retomada do desenvolvimento para diversas áreas estagnadas da periferia coloca-se como uma possibilidade palpável? Em torno dessa questão, que reportamos central na atual conjuntura, buscamos tecer algumas reflexões. Pretendemos mostrar que a estagnação econômica vivida por inúmeros países não desenvolvidos decorre, em parte, de uma crise social e econômica aberta na década de 1970 e que se estende até os dias de hoje, apesar das tentativas de reestruturação da sociedade capitalista. As estratégias e as políticas de cunho neoliberal também teriam contribuído sobremaneira para essa situação à medida que reforçaram as amarras financeiras que sufocaram boa parte das economias periféricas. Sobrepondo-se a esses problemas, esses países também se defrontariam com os limites ecológicos do capitalismo. A retomada do desenvolvimento em um novo patamar, que requer crescimento econômico, justiça social e preservação da natureza, implicaria rupturas com o capitalismo.
Palavras-chave: desenvolvimento; globalização; projeto nacional; crise econômico-social.
ABSTRACTS
This article proposes to take an historical inventory of the situation of the countries of the periphery over the last thirty years, looking specifically at the impasses in development belonging to the current phase of so-called globalization of capital. It is based primarily on the study of an extensive literature of recent publication. We ask to what extent the return to development in the various stagnated areas of the periphery can be considered a concrete possibility and engage in a series of reflections around this issue, which we consider as fundamental for the present conjuncture. We seek to show that the economic stagnation that characterizes many non-developed countries is due in part to the social and economic crisis that began in the decade of the seventies and continues to date, efforts to restructure capitalist society notwithstanding. Strategies and policies of a neo-liberal type have also contributed significantly to this situation, to the extent that they have reinforced the financial knots that have suffocated a large portion of the peripheral economies. Adding to these problems, such countries have also been faced with the ecological limits of capitalism. Reinitiating development on another plane, involving economic growth, social justice and the preservation of nature would mean breaking with capitalism itself.
Keywords: development; globalization; national project; social and economic crisis.
RÉSUMÉS
Cet article cherche à dresser, sous la perspective historique, le bilan de la situation des pays périphériques dans les dernières trentes années. Pour cela, il aborde particulièrement les enjeux du développement dans la phase de la globalisation du capital. Ce travail s'appuie surtout sur les études de la vaste bibliographie publiée récemment. Dans quelle mesure la relance du développement concernant plusieurs secteurs stagnés de la périphérie deviendrait-elle une réelle possibilité? Autour de cette question, que nous trouvons centrale dans l'actuelle conjoncture, nous entamons quelques réflexions. Nous envisageons montrer que la stagnation économique à laquelle des nombreux pays non développés font face ne découle pas en partie d'une crise sociale et économique ouverte dans les années soixante-dix et qui s'élargit jusqu'à nos jours malgré les tentatives de restructuration de la société capitaliste. Les stratégies et les mesures politiques à caractère néo-liberal aussi auraient énormément contribué à cette situation étant donné qu'elles ont renforcé les amarres financières qui ont étranglé pour une part les économies périphériques. Outre ces difficultés, ces pays affronteraient les limites écologiques du capitalisme. La relance du développement dans un nouveau stade exigeant la croissance économique, la justice sociale et la préservation de la nature amènerait à une rupture face au capitalisme.
Mots-clés: développement; globalisation; projet national; crise socioéconomique.
I. INTRODUÇÃO
A situação de miséria vivida por parcela considerável da humanidade e a estagnação econômica de vastas regiões da periferia do capitalismo têm tornado cada vez mais premente a retomada da questão do desenvolvimento. A discussão acerca desse tema perdeu terreno nas últimas décadas. Esse recuo vincula-se ao avanço do neoliberalismo, à abertura das economias nacionais, à crise da dívida externa dos países subdesenvolvidos, à busca da competitividade a todo custo e ao fracasso de vários projetos de desenvolvimento em países subdesenvolvidos.
O caso do Brasil é ilustrativo. A partir da década de 1980, a questão do desenvolvimento, que tinha ocupado um lugar central no debate econômico desde o período Vargas, perdeu espaço ante os problemas da crescente inflação e da crise fiscal do Estado, que passaram a galvanizar as atenções da mídia, da academia e da política. O avanço da ideologia neoliberal em escala mundial, que acabou atingindo o Brasil, também corroborou, e muito, para essa reversão de prioridades. Preocupar-se com o problema do desenvolvimento, até pouco tempo atrás, significava contrapor-se aos temas hegemônicos. Embora as questões relativas à estabilidade, à desregulamentação das economias nacionais etc. continuem ocupando um enorme espaço nos debates, a problemática do desenvolvimento, em virtude da severa crise social e econômica, vem novamente ganhando importância, não apenas no Brasil. Até mesmo os setores mais conservadores passaram a preocupar-se com o problema, como ficou evidente no último Fórum Econômico Mundial, realizado em Nova York. Entretanto, a retomada dessa discussão tem que romper com os termos estabelecidos por esses setores. Isso implica assumir uma postura crítica. Dessa forma, pretendemos, a partir de uma investigação de caráter histórico, fazer um balanço da situação dos países periféricos abarcando os últimos trinta anos.
II. O FRACASSO DOS PROJETOS NACIONAIS, A PERDA DE DINAMISMO ECONÔMICO E A GLOBALIZAÇÃO
A necessidade de repensar o desenvolvimento funda-se, em parte, na constatação do esgotamento da maioria dos chamados projetos nacionais de desenvolvimento no contexto de mundialização da economia capitalista. A Grande Depressão e a Segunda Guerra Mundial, ao acarretarem uma relativa desarticulação da economia mundial, como nossos estudos tinham sugerido (CORSI, 2000; 2001), abriram novas possibilidades de desenvolvimento para alguns países subdesenvolvidos que já tinham alcançado certo patamar de desenvolvimento capitalista.
A reorganização da economia mundial no pós-guerra, sob a hegemonia dos EUA, não fechou essas possibilidades. As dificuldades dos EUA em levar a cabo seu projeto de reorganizar a economia mundial sob a égide do livre comércio e da livre circulação de capital forçaram-no a aceitar a permanência, por longo tempo, dos controles de câmbio e dos fluxos de capital, especialmente os de curto prazo. As dificuldades das economias destroçadas pela guerra, as lições da Grande Depressão, a correlação de forças favorável aos trabalhadores no centro e o avanço dos movimentos de descolonização, muitos deles de inspiração marxista, no contexto da Guerra Fria, abriram espaço para a economia mundial organizar-se com base em fortes economias nacionais, sendo que nos países desenvolvidos contribuíram para o florescimento do Estado de Bem-Estar Social. A grande finança internacional, enfraquecida pela Depressão, teve que se adaptar à nova situação.
Contudo, observou-se também, nesse período, a retomada do processo de internacionalização do capital. A retomada dessa tendência, nos anos 1950, marcou o fortalecimento dos grandes oligo-pólios e da grande finança, o que seria um dos fatores da crise da ordem econômica internacional de Bretton Woods, na década de 1970.
Esse processo também teve conseqüências para os países subdesenvolvidos. A forte expansão das empresas multinacionais em direção às regiões periféricas redefiniu a divisão internacional do trabalho e colocou novas questões para os projetos nacionais de desenvolvimento, que, em muitos casos, estavam em um beco sem saída, em virtude de sérios problemas de financiamento interno e externo. Para alguns países, abriu-se a possibilidade de um desenvolvimento associado ao capital estrangeiro. Nessa fase, começaram a ficar evidentes as crescentes dificuldades de projetos de desenvolvimento com autonomia nacional, embora alguns países continuassem a desenvolver-se nessa direção.
Os projetos voltados para a industrialização com soberania nacional, que proliferaram na periferia do sistema entre as décadas de 1930 e 1970, vieram em sua maioria a ruir a partir dos anos 1980. O fracasso dos projetos socialistas também pode ser visto sob essa ótica, pois eles, entre outros aspectos, representavam alternativas de desenvolvimento ao sistema capitalista. Embora tivessem obtido êxito parcial no tocante à industrialização, ao desenvolvimento tecnológico e à melhoria do nível de vida de suas populações, o fracasso desses projetos reforçaria, segundo vários autores, as enormes dificuldades de um desenvolvimento econômico, social, político e cultural fora do âmbito da sociedade capitalista global.
Acerca desse ponto, Ianni (1992, p. 46-47) assinala que "O alcance mundial do capitalismo no século XX tem sido tão forte que todos os projetos de desenvolvimento nacional, com pretensões de soberania, têm sido frustrados. Os projetos do cardenismo no México, do peronismo na Argentina e do varguismo no Brasil não se realizaram a não ser limitadamente [...]. Na época do grande capital monopolista, ou do capital financeiro, já não é mais possível o capitalismo nacional que teve êxito na época do capitalismo competitivo. Os modelos bismarkiano ou bonapartista, que haviam tido êxito na Alemanha, França, Itália e Japão do século XIX, já não são mais possíveis no século XX [...]. No século XX, em escala cada vez mais acentuada ao longo de seu transcurso, parece não haver qualquer possibilidade de desenvolvimento econômico-social, político e cultural autônomo, nacional, independente, soberano. A reprodução ampliada do capital, compreendendo a concentração e a centralização, o desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção em escala mundial, tudo isso reduz drasticamente, ou mesmo elimina, qualquer possibilidade de projetos nacionais. Isto é, qualquer projeto nacional somente pode ser proposto e realizado a partir do patamar estabelecido por uma economia política de âmbito mundial".
Contudo, não foram somente os projetos nacionais de desenvolvimento, que buscavam um desenvolvimento autônomo, que ruíram em sua maior parte. As experiências de desenvolvimento associado, particularmente aquelas baseadas no receituário neoliberal, também se mostraram catastróficas. O caso da Argentina é emblemático. Essas considerações levam-nos a indagar se o desenvolvimento para os países periféricos não seria uma mera ilusão, como sugere Arrighi (1997).
Para o referido autor, o sistema capitalista estrutura-se em três categorias quanto ao desenvolvimento (centro, periferia e semiperiferia). Ele busca mostrar, com base na distribuição do PNB (Produto Nacional Bruto) per capita, que, nos últimos 60 anos, não ocorreram alterações significativas na distribuição dos países entre essas três categorias. Verifica-se uma grande estabilidade em cada uma delas, e as exceções confirmariam a regra. Os casos mais relevantes seriam o do Japão e o da Itália, que teriam passado da semiperiferia para o núcleo do sistema, e o da Coréia, que teria passado da periferia para a semiperiferia. A cada alteração na distribuição dos países pelas categorias, as estruturas da economia mundial ficariam mais rígidas, dificultando sobremaneira novos deslocamentos. Para o conjunto dos países pobres não haveria alternativa (idem).
Essas observações sugerem não haver possibilidade de desenvolvimento para os países pobres dentro do capitalismo. Conclusões desse tipo não representam, contudo, novidade alguma. André Gunder Frank (1980), entre outros, já nos anos 1960 defendia que dentro do capitalismo os países pobres estariam condenados ao subdesenvolvimento. Sem desconsiderar suas importantes contribuições, os problemas dessas análises preocupadas com as tendências de longo prazo, como as de Arrighi (1997), residem no fato de tornarem as estruturas sociais algo muito rígido, transformando a história em um processo sem sujeito. Assim, o destino dos países periféricos seria determinado, em grande medida, pela dinâmica das estruturas da economia mundial, deixando em segundo plano as determinações sociais, políticas, econômicas e culturais, assim como as lutas sociais internas a cada país, que também são de suma importância para entendermos a situação dessa região. As exceções levantadas por Arrighi Itália, Japão e Coréia são importantes demais e mereceriam um estudo mais detido que comparasse suas trajetórias e que desse conta da intrincada articulação das dimensões internas e externas do problema do desenvolvimento.
O aumento da miséria em escala mundial, embora corrobore as conclusões de Arrighi, obriga-nos a refletir mais detidamente acerca das possibilidades históricas de desenvolvimento na atual fase do capitalismo.
Nos últimos 25 anos, justamente quando naufragaram os programas de desenvolvimento, aprofundou-se a distância que separa as regiões ricas das subdesenvolvidas. O avanço de alguns países periféricos nas décadas de 1950-1970, que parecia sugerir, à época, uma redução dessa distância, retrocedeu nas duas décadas seguintes. Para os coevos, contudo, parecia que, pelo menos para alguns países subdesenvolvidos, a possibilidade de superar o atraso e a miséria era palpável. Entretanto, confirmou-se a tendência de desenvolvimento desigual e combinado do sistema capitalista1 1 Arrighi (1997, p. 59), comparando o PNB per capita de diversas regiões do mundo com o PNB per capita do núcleo orgânico do capitalismo (países desenvolvidos), mostra a tendência de aumento das desigualdades mundiais. Em 1960, o PNB per capita da América Latina correspondia a 14,4% PNB per capita do núcleo orgânico; subiu para 19,8%, em 1980, e caiu para 10,6% em 1988. A situação da África subsaariana é pior: em 1960, o PNB per capita da região representava 5,1% do do núcleo orgânico e caiu para 2,5% em 1988. .
Fiori (1999, p. 13-14), com base em um relatório da UNCTAD (Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento) que mostra o aumento das desigualdades entre os países desenvolvidos e os em desenvolvimento, e também dentro de cada um desses blocos, afirmou: "Em 1965, a renda média per capita dos 20% dos habitantes mais ricos do planeta era 30 vezes maior que a dos 20% mais pobres (U$ 74 contra U$ 2 281), enquanto em 1980 essa diferença já havia pulado para 60 vezes (U$ 284 contra U$ 17 056). A renda per capita dos latino-americanos, por exemplo, que em 1979 correspondia a 36% da renda per capita dos países ricos, baixou para 25% em 1995. Até o fim da década de 1970, três países na América Latina mantiveram crescimento da sua renda per capita: Brasil, Colômbia e México. Mas, a partir de 1980, o crescimento destes países despencou e eles perderam as posições que haviam conquistado em termos de participação na renda mundial. No caso do Brasil, por exemplo, as taxas médias de crescimento do seu PIB (Produto Interno Bruto) per capita passaram de 6% na década de 1970 para 0,96% na década de 1980 e algo em torno de 0,6% entre 1990 e 1998 [...]. Essa evolução perversa adquiriu novas dimensões a partir de 1985, com a aceleração exponencial do processo de 'financerização' acompanhado de sucessivas crises, cada vez mais freqüentes e com efeitos cada vez mais devastadores sobre as economias da periferia capitalista mundial [...]. A simples competição intercapitalista em mercados desregulamentados e globalizados não assegura o desenvolvimento, nem muito menos a convergência entre as economias nacionais do centro e da periferia do sistema capitalista mundial".
A questão do incremento das desigualdades sociais em escala mundial é, sem dúvida, bastante complexa e não pode, de maneira simplista, ser reduzida ao incremento da desigualdade entre regiões pobres e ricas do mundo. O aumento da miséria não é apenas observado nas regiões periféricas, mas também ganhou relevância em várias regiões nos próprios países que compõem o núcleo do sistema capitalista (ALTVATER, 1995; HOBSBAWM, 1995). Muitos autores, entre eles Castoriadis (1982), consideravam, até há pouco tempo atrás, com base na experiência da chamada "Era de ouro" do capitalismo (1945-1973), que esse problema estaria superado nos países desenvolvidos, mostrando que o sistema capitalista poderia vencer a pobreza. Estavam enganados. As contradições e desigualdades, que estão presentes de forma marcante em um mundo cada vez mais integrado, também aparecem no interior de cada país e de cada cidade do mundo. Mesmo no centro do sistema. Ou seja, o contraste entre os ricos e os pobres presente em quase toda grande cidade do mundo é similar ao que se manifesta entre as regiões pobres e ricas do planeta.
"No Harlem a expectativa de vida média é inferior à de Bangladesh: ali, somente 40% da população masculina atinge 65 anos, enquanto em Bangladesch são 55%. Los Angeles é considerada simultaneamente uma pomopolis (postmodern city) e uma capital do Terceiro Mundo com todas as contradições e os conflitos correspondentes [...]. O contraste entre o rico e o pobre em quase toda a 'cidade global' se reproduz na aldeia global, entre Norte e Sul [...]. O mundo unificado é um mundo dividido" (ALTVATER, 1995, p. 24-25).
O aprofundamento da miséria, do desemprego e das desigualdades sociais vincula-se intimamente à relativa fase de estagnação vivida pelo capitalismo desde a crise de 1973. Se compararmos a média anual das variações do PNB dos sete países mais ricos do mundo, podemos verificar uma nítida tendência para o declínio da atividade econômica: 1960-1973: 4,8%; 1972-1979: 2,8%; 1979-1990: 2,5%, e 1990-1996: 1,6% (FIORI, 1999, p. 12-13). É óbvio que ocorreram exceções: o caso do bom desempenho da economia norte-americana na década de 1990 é ilustrativo. O desempenho dos países pobres acompanhou essa tendência. Nas regiões pobres, no entanto, as conseqüências sociais e econômicas foram mais danosas em virtude da frágil estrutura econômica e da inserção subordinada desses países na economia mundial. Mas isso não significa que seja, como veremos, a única razão para a estagnação econômica de vastas áreas da periferia e para o aumento do fosso entre as regiões pobres e ricas do mundo. O PIB latino-americano cresceu em média por ano 5,5% na década de 1960 e 5,6% na década seguinte. Entre 1981 e 1990, esse crescimento foi de 0,9%. Entre 1990 e 1997, o crescimento médio anual do PIB foi de 3,3% (CANO, 1999, p. 294-311). Em parte, como resultado desse quadro, observa-se relevante incremento das taxas de desemprego. Segundo Pochmann (1999, p. 39), estima-se que, de uma população economicamente ativa de 2,5 bilhões de pessoas em todo o mundo, cerca de 35% encontra-se desempregada ou subempregada.
A razão fundamental para o comportamento declinante da economia mundial nas últimas décadas parece residir, como aponta Chesnais (1998, p. 18), na queda das taxas de investimentos nas principais economias do mundo a partir de meados da década de 1970. A diminuição no ritmo da acumulação de capital significa que o sistema não consegue produzir valor e mais-valia capaz de sustentar a valorização do capital, embora as grandes empresas tenham recuperado a lucratividade a partir de meados da década de 1980. Não é de se estranhar, portanto, o contínuo inchaço dos mercados financeiros globais.
Ultrapassaria os limites do presente artigo discutir detalhadamente as razões do baixo dinamismo do capitalismo nas últimas décadas. De maneira sintética, parece que tal desempenho decorre de uma crise geral da sociedade capitalista, iniciada no final dos anos 1960 e que abriu uma fase de "crise continuada" (HOBSBAWM, 1995, p. 393-420).
De um lado, como assinalam Chesnais (1998, p. 18-19) e Brenner (1999, p. 37-47), o capitalismo entrou em uma crise de superprodução a partir do início dos anos 1970, que teria se tornado crônica2 2 Em um contexto dominado pela oligopolização dos principais setores da economia, que foram dominados por empresas gigantes sólidos blocos de capital , a destruição do capital excedente parece cada vez mais difícil, estendendo assim a duração das crises, como já tinha ficado evidente na Grande Depressão dos anos 1930. Segundo Brenner (1999, p. 37-47), a superprodução tem persistido, até hoje, devido a uma série de fatores: 1) a existência de enormes montantes de capital fixo não totalmente depreciados em vários ramos de produção. Seria irracional destruir esse capital já pago enquanto fosse possível auferir retornos razoáveis sobre o capital circulante; dessa forma, as empresas não saem dos ramos em superprodução; 2) as grandes empresas que dominam os mercados mundiais possuem vasta experiência em seus ramos e, portanto, um enorme capital intangível (conexões com fornecedores e consumidores e conhecimento tecnológico), que as levam a permanecer nos ramos em que atuam e a reinvestir pelo menos parte dos lucros nesses mesmos setores; 3) a existência de monopólios tecnológicos permite às empresas auferir temporariamente taxas de lucros elevadas, desestimulando a saída do setor; 4) a relativa estagnação (reduzidos aumentos de investimentos e salários) restringe o crescimento mais acelerado de novas linhas de produtos que poderiam atrair maiores montantes de investimentos, e 5) a Alemanha e particularmente o Japão (nas décadas de 1970 e 1980) e os países do leste asiático (1970-1997), continuaram a investir pesadamente, contando com as vantagens da associação de mão de obra barata com alta tecnologia, e abocanharam crescentes parcelas do mercado mundial, embora agravassem a crise de superprodução global. Todos esses fatores parecem dificultar sobremaneira a solução da crise de superprodução. . O forte incremento da produção e da capacidade produtiva mundial, decorrente, em parte, da entrada maciça de produtos alemães e japoneses no mercado mundial a partir do início da década de 1960, ao incrementar a concorrência intercapitalista, acabou afetando a lucratividade das empresas e gerou capacidade ociosa acima da planejada. Agravando a situação, o ímpeto do movimento sindical empurrava para cima os salários, impedindo que os capitalistas recompusessem a lucratividade por meio do arrocho salarial. A economia norte-americana foi a mais afetada. A sua perda de competitividade contribuiu sobremaneira para minar a posição do dólar, comprometendo os acordos de Bretton Woods. Dessa forma, sobrepôs-se à crise de superprodução a crise do sistema financeiro internacional.
De outro lado, entre meados dos anos 1960 e meados dos anos 1970, aprofundou-se o conflito social na Europa, com o avanço das forças de esquerda. Os EUA também foram varridos por fortes movimentos de contestação social. Florescia uma cultura anticapitalista. Surgiram vários movimentos sociais setoriais, alternativos aos burocratizados movimentos da esquerda tradicional, que lutavam pelos interesses de minorias específicas. Na periferia, os EUA foram derrotados no Vietnã e os movimentos nacionalistas e de esquerda pareciam tomar conta da região. Os produtores de petróleo, como desdobramento da Guerra do Yom Kippur, impuseram um choque nos preços do produto, eliminando um dos pilares que sustentaram a fase áurea de crescimento econômico capitalista (FIORI, 1999, p. 34-38). A União Soviética parecia, nesse contexto, ganhar terreno. Muitos contemporâneos sonhavam com o fim próximo do capitalismo, ou, pelo menos, da hegemonia norte-americana. A possibilidade de profundas transformações sociais à época era palpável.
Entretanto, as possibilidades de revolução social em pouco tempo se dissolveram no ar. A partir da crise de 1973, a correlação de forças passou a pender gradativamente para o lado dos conservadores. Embora não caiba aqui discutirmos esse ponto em detalhe, dados os limites deste artigo, é preciso, mesmo que de maneira demasiadamente esquemática, assinalar o início de uma reação capitalista naquele momento. No embate com os trabalhadores, dadas as circunstâncias sociais, políticas, culturais e econômicas do momento, os setores capitalistas acabaram levando a melhor e fizeram prevalecer os seus interesses3 3 Cabe mencionar, no entanto, que muitos movimentos setoriais, que floresceram a partir daquela época, como o movimento feminista, alcançaram expressivas vitórias. . Os grandes capitalistas, associados principalmente aos governos conservadores dos EUA, da Grã-Bretanha e da Alemanha, buscaram reorganizar o sistema para enfrentar a contestação social, o avanço do socialismo soviético e a crise econômica.
A superprodução não levou a uma crise que queimasse o excesso de capital, recompondo assim as suas condições de valorização. Contudo, a ofensiva da burguesia contra a classe trabalhadora fez-se presente como no passado, buscando recompor a taxa de exploração e, dessa forma, a rentabilidade. A reestruturação produtiva e a desregulamentação do mercado de trabalho são, em parte, aspectos dessa ofensiva dos capitalistas contra os trabalhadores. Sem dúvida que a crise econômica, a elevação do desemprego, a burocra-tização dos partidos de trabalhadores e dos sindicatos, a segmentação da classe trabalhadora, o fracasso das estratégias reformistas e a desilusão com o socialismo soviético e posteriormente a debâcle da União Soviética contribuíram para alterar a correlação de forças em favor da burguesia. Sem essa alteração teria sido impossível a implementação da reestruturação produtiva, que, somada ao baixo crescimento, acabou gerando um enorme exército industrial de reserva, essencial para dobrar os trabalhadores.
A resposta que as grandes empresas, os grandes bancos, os fundos de investimento e pensão e importantes governos deram à crise, como é amplamente conhecido, foi, de um lado, procurar, no centro do capitalismo, desmontar o Estado de Bem-Estar Social, que, juntamente com os sindicatos, era considerado pelos neoliberais como a raiz última da crise do capitalismo. O resultado foi o redirecionamento dos fundos públicos, que outrora eram direcionados para os gastos sociais, para a sustentação da valorização financeira do capital, sobretudo por meio da ampliação da dívida pública (OLIVEIRA, 1998, 223-230).
Na periferia, como veremos, buscou-se impor políticas voltadas para o pagamento das dívidas externas e, posteriormente, políticas voltadas para a abertura e desregulamentação das economias nacionais, o que contribuiu para o fim das políticas desenvolvimentistas até então em moda na região. É óbvio que o resultado desses processos não foi homogêneo, variando de país para país de acordo com as lutas sociais internas, com as estratégias adotadas pelos diferentes governos e com a situação geopolítica de cada país. Alguns, como a Coréia, conseguiram preservar uma margem de manobra maior e continuaram a implementar seus projetos de desenvolvimento. Hoje, são esses países que se encontram em melhor situação e isso se deve, em parte, às decisões e às estratégias políticas adotadas por seus governos, que conseguiram reduzir a vulnerabilidade externa.
De outro lado, os capitalistas buscaram espaços mais amplos e desregulamentados de acumulação, além de reestruturar e reorganizar a produção. A constituição de oligopólios internacionais em importantes setores, a ampliação da abertura das economias nacionais, a formação de mercados regionais, a utilização intensa de novas tecnologias, a organização de processos produtivos mais flexíveis, a redução da força de trabalho empregada, a introdução de vínculos variados e relativamente frouxos entre o trabalhador e a empresa, a realocação espacial entre alguns países de vários segmentos produtivos e a marginalização de inúmeras regiões caracterizam o atual momento. Essas mudanças se deram sob a égide do liberalismo, que ressurgiu das cinzas depois de um longo inverno, sob o rótulo de neoliberalismo.
Outro elemento essencial para entendermos a reação do grande capital à crise foi a tentativa de recompor, a partir do governo Reagan, a hegemonia norte-americana, que estava em questão nos anos 1970, depois da derrota no Vietnã, do avanço de movimentos nacionalistas e socialistas no chamado Terceiro Mundo e do avanço das forças de esquerda no próprio núcleo do sistema. A política do dólar forte, a desregulamentação dos mercados, a intensificação da Guerra Fria, que seria um dos fatores do posterior colapso da União Soviética e o ataque às "indisciplinas" de vários países subdesenvolvidos completam esse quadro (FIORI, 1999, p. 49-83).
Nesse contexto, abriu-se espaço para a preponderância de um capital financeiro rentista com a consolidação de um mercado de câmbio, de capitais e de títulos de âmbito mundial (CHESNAIS, 1996, p. 237-322). Esse capital rentista, inchado sistematicamente pelos capitais formados na produção, mas que não encontram aí condições favoráveis de valorização, é muito sensível a qualquer alteração nas variáveis reais da economia. O incremento da inflação, os desequilíbrios mais acentuados das contas externas ou das contas do governo e a queda da rentabilidade das empresas podem acarretar intensos movimentos de fuga de capitais, o que pressiona os Estados a adotar políticas ortodoxas, visando a controlar a demanda agregada e assim a evitar pressões inflacionárias e desequilíbrios externos e fiscais que poderiam levar a repentinas mudanças cambiais.
Esse processo tende a pôr em questão a capacidade de os Estados controlarem suas economias na medida em que o capital financeiro busca impor políticas de abertura das economias nacionais e políticas deflacionistas. A existência de um mercado financeiro global, sem coordenação e sem padrão monetário estável, coloca difíceis problemas para países subdesenvolvidos adotarem políticas de desenvolvimento (COUTINHO, 1996, p. 219-238). Isso não significa, porém, que os países devam adequar-se passivamente à chamada globalização nem que esse processo atinja de maneira homogênea e integradora o conjunto do planeta.
A perda de graus de liberdade na definição da política econômica por parte dos Estados depende da situação econômica, social e política de cada país. Os EUA parecem não sofrer maiores constrangimentos. Em situação diversa encontram-se os países da América Latina ou da África. Esse aspecto também depende da posição ideológica de cada governo. Muitos governos atuam como agentes da globalização, criando "vantagens comparativas", desregulando a economia e agindo como parceiros das grandes empresas multinacionais. A diversidade de respostas à nova situação da economia mundial aponta para a necessidade de estudos de caráter histórico comparativo que abordem as experiências particulares, o que permitiria aprofundarmos nossa compreensão sobre o assunto.
A utopia liberal de uma economia baseada em mercados auto-regulados continua sendo uma miragem. O capitalismo não vive sem uma forte presença estatal na economia. Observam-se mudanças nas formas dessa intervenção. Verifica-se, por exemplo, uma alteração na natureza do gasto público. Observa-se também a redução dos gastos sociais em nome do controle do déficit público e da inflação, ao mesmo tempo em que ocorre uma explosão da dívida pública, relacionada, em grande medida, à sustentação da especulação financeira. Os mercados, mesmo o exterior, continuam sendo regulados pelo Estado, embora o livre comércio tenha avançado.
A constituição de uma economia mundial cada vez mais integrada, delineada a partir da segunda metade da década de 1970, abarcou inicialmente o núcleo do sistema capitalista (Europa Ocidental, Japão e EUA) e mais alguns outros países, particularmente os "tigres asiáticos" e a China. Até o final dos anos 1980, os fluxos de capitais, a introdução de novas tecnologias, a reestruturação organizacional da produção e dos processos de trabalho concentraram-se nessas regiões (ibidem). Muitas outras permanecem à margem desses processos.
III. O PREDOMÍNIO DO CAPITAL FINANCEIRO E OS OBSTÁCULOS AO DESENVOLVIMENTO
A questão que nos preocupa é discutir mais detidamente a relação entre a mundialização do capital e o bloqueio ao desenvolvimento na maioria dos países subdesenvolvidos. É óbvio que não pretendemos esgotar o problema. Os projetos de desenvolvimento voltados para uma industrialização com autonomia nacional, que proliferaram com maior ou menor sucesso na periferia do sistema capitalista desde o final dos anos 1930, parece que tiveram, em muitos casos, sua última chance na década de 1970. As condições pareciam propícias. De um lado, a hegemonia norte-americana estava em questão depois da derrota no Vietnã e do desmoronamento do sistema monetário internacional estabelecido em Bretton Woods. De outro, os movimentos de esquerda e/ou nacionalistas pareciam avançar de modo irresistível pela periferia e os trabalhadores conquistavam cada vez mais espaço nos países mais desenvolvidos. Também florescia uma cultura de contestação da sociedade burguesa. O preço das matérias-primas vinha subindo persistentemente. Esses eventos indicavam existir, à época, uma possibilidade de romper com o subdesenvolvimento. Não se podia prever que em poucos anos o quadro mudaria substancialmente.
Muitas forças políticas sonhavam ainda poder construir sociedades modernas com autonomia através da industrialização e manter a independência nacional por meio de políticas de não-alinhamento com os blocos dominantes do Ocidente ou do Leste. E isso, naquele momento, parecia plenamente factível. Predominavam políticas de planejamento econômico visando a uma rápida industrialização tanto nos países socialistas como nos capitalistas. O governo militar brasileiro, por exemplo, lançou, em 1974, um megaprojeto de industrialização centrado na ação estatal na economia, o II PND (Plano Nacional de Desenvolvimento), com o objetivo de completar a industrialização brasileira. A Coréia também implementava um largo planejamento visando a industrializar-se. Muitos países seguiam essa receita. Ou seja, "Na África, na Ásia e na América Latina iniciava-se uma renovada iniciativa de recuperação do atraso na industrialização" (ALTVATER, 1995, p. 13).
Um dos problemas centrais residia na questão de como países pobres, ou relativamente pobres, iriam financiar um salto quantitativo e qualitativo em suas economias de tal forma que fossem capazes de superar o subdesenvolvimento, garantindo, ao mesmo tempo, a predominância do capital nacional e a definição da política econômica a partir de interesses internos, pois é justamente isso que caracteriza o desenvolvimento autônomo. Dada a existência de grande liquidez no mercado internacional, muitos acreditaram ser possível financiar o desenvolvimento com base em créditos privados externos, que seriam pagos com as receitas provenientes das exportações dos produtos primários, cujos preços então estavam em ascensão no mercado mundial. Além disso, com as transformações em curso em suas economias, passariam também a exportar produtos industrializados e diminuiriam as necessidades de financiamento externo.
A questão é obviamente mais complexa, pois, desde os anos 1950, vários países da periferia vinham industrializando-se a partir de substancial contribuição do capital estrangeiro, seja na forma de empréstimos, seja na forma de investimentos diretos. As empresas multinacionais já tinham forte presença nas economias dos países mais desenvolvidos da periferia, o que colocava de há muito em questão as possibilidades de desenvolvimentos autônomos. É o caso típico do Brasil. Ou seja: a evolução da economia mundial após os anos 1950, caracterizada, entre outros aspectos, pela expansão mundial das grandes empresas oligopolistas norte-americanas, européias e japonesas pelo mundo e pela crescente integração financeira e comercial, colocava novas questões. Para alguns autores, como Benayon (1998), o crescente volume de investimento externo direto, ao criar conexões e alianças entre o capital estrangeiro e setores das classes dominantes e ao influir na definição das políticas econômicas, limitava a possibilidade de desenvolvimento autônomo4 4 Como mostrou Francisco de Oliveira (1989, p. 76-113), o Plano de Metas, rompendo com o projeto de Vargas de enfatizar o desenvolvimento da infra-estrutura e da indústria de bens de produção, buscou implantar um padrão de acumulação de capital calcado na produção de bens de consumo duráveis, o que estava de acordo com os interesses das empresas multinacionais à época, que almejavam penetrar nos fechados mercados da periferia justamente nesse setor. De repente, problemas que se arrastavam por décadas foram resolvidos. "Essa inversão restaurou [...] um padrão de relações centro-periferia num patamar mais alto da divisão internacional do trabalho do sistema capitalista, instaurando por sua vez e aqui constitui sua singularidade uma crise recorrente de balanço de pagamentos, que se expressa na contradição entre uma industrialização voltada para o mercado interno mas financiada ou controlada pelo capital estrangeiro e a insuficiência de geração de meios de pagamento internacionais para fazer voltar à circulação internacional. Em outras palavras, esse tipo de crise é radicalmente distinto da crise tradicional dos balanços de pagamentos das economias dependentes, pois o padrão agroexportador das fases anteriores gerava, ao produzir a mercadoria exportável, os meios de pagamento do capital internacional; as crises desse padrão eram, rigorosamente, crises da circulação internacional de mercadorias. Agora, sob o novo padrão, as crises são de circulação internacional do dinheiro-capital" ( idem, p. 87). .
Uma outra característica, presente em vários projetos de desenvolvimento, residia em uma mudança de estratégia em relação ao período anterior. Buscava-se desenvolver o país enfatizando as exportações, como no caso da Coréia, que, em virtude de sua dotação de fatores de produção, tentava fazê-lo desde os anos 1960. Mas é preciso lembrar que esse país, especialmente na década de 1950, também levou a cabo uma política de ampla substituição de importações, que era mais consistente que as implementadas na América Latina, à medida que condicionava a proteção e os incentivos às metas de nacionalização e qualidade do produto estabelecidas nos planos qüinqüenais. As duas estratégias de desenvolvimento caminharam juntas. A Coréia seguiu esse caminho mantendo forte presença do Estado na economia e privilegiando o capital nacional, criando as condições para constituição de fortes empresas nacionais, os chamados chaebols, grandes conglomerados de capital.
Muitos autores, entre eles Goldenstein (1994), ressaltam que a posição da Coréia na Guerra Fria teria sido fundamental para entendermos o seu desenvolvimento, pois a ajuda financeira norte-americana e o acesso privilegiado aos mercados dos EUA e do Japão teriam sido peças importantes daquele processo. Ao ressaltarem esse ponto, acabam criticando análises que enfatizam as determinações internas na compreensão do desenvolvimento, como as realizadas por Mello (1982) e Tavares (1986) para o caso do Brasil. A crítica de Goldenstein é, sem dúvida, relevante, mas temos que tomar cuidado para não cairmos na posição oposta, que só vê as possibilidades de desenvolvimento como que determinadas fundamentalmente pelas forças externas, pois consideramos que o desenvolvimento só pode ser entendido se levarmos em conta as múltiplas e complexas condições internas e externas5 5 A ênfase de Conceição Tavares (1986, p. 102-108 et passim) nas determinações internas é clara: "Nossa proposição [...] privilegia [...] os aspectos internos do movimento de acumulação do capital, pondo ênfase no andamento cíclico característico das estruturas industriais que incorporam empresas nacionais, públicas e estrangeiras com poder desigual de acumulação". Em relação ao aparente grau de autonomia no período, afirmou: "Essa maior autonomia não se deve, ao nosso juízo, nem ao nacionalismo de Vargas, nem a uma possível 'hegemonia' da burguesia industrial nacional. Significa, sobretudo, a impossibilidade de articular o processo de acumulação interna com a entrada de capital estrangeiro novo" ( idem, p. 108). Acerca desse ponto, concordamos, em parte, com as críticas de Lídia Goldenstein (1994) a essa corrente. Essa autora, ao comentar o debate econômico dos anos 1970, particularmente as obras inspiradas em visões próximas às de Conceição Tavares, assinalou: "[...] a preocupação com a 'dinâmica interna' acabou eclipsando a 'dinâmica externa' e comprometeu as conclusões. A análise do movimento do capital internacional foi relegada a um plano secundário e a estrutura industrial dos países avançados tomada como paradigma, um modelo estático a ser alcançado. Criou-se, assim , uma ilusão sobre os limites da nossa industrialização" ( idem, p. 48). .
Façamos um paralelo com o caso brasileiro. O II PND representou para uns uma ambiciosa e para outros uma irrealista tentativa feita pelo governo Geisel visando a completar a industrialização brasileira por meio do desenvolvimento dos setores de máquinas, siderúrgico, petroquímico, informática, nuclear, alumínio, papel e celulose e do desenvolvimento da infra-estrutura de transportes, energia e comunicações. Esse ambicioso plano, que pretendia transformar o Brasil em uma potência, tinha, no entanto, pés de barro, pois não contava com o apoio de parte significativa das classes dominantes e nem das multinacionais, à medida que implicava priorizar o departamento produtor de meios de produção em detrimento do departamento de bens de consumo duráveis, como vinha acontecendo desde o Plano de Metas. Parte considerável da burguesia brasileira associada ao capital estrangeiro não via com bons olhos essa mudança, que feria os seus interesses e os de seus sócios. Além disso, dada a inexistência de um mercado financeiro e de capitais robustos ou de outros esquemas internos de financiamento consistentes, não restava alternativa senão recorrer ao capital externo para financiar o plano (FIORI, 1995, p. 57-84). A dívida externa brasileira, entre 1970 e 1980, cresceu de US$ 5,3 bilhões para US$ 53,9 bilhões. Embora parte considerável desse crescimento tenha tido um caráter meramente financeiro, parcela não desprezível financiou o II PND (CRUZ, 1984, p. 11-27; CASTRO & SOUZA, 1985, p. 11-97).
Essa saída contribuiu sobremaneira para enveredar o Brasil no caminho de um processo de endividamento externo que, anos mais tarde, juntamente com a crise fiscal do Estado e a exacerbada elevação da inflação (processos também vinculados ao endividamento externo), acabaria sufocando a economia brasileira6 6 A política de endividamento externo, particularmente a estatização da dívida externa, levada a cabo pelos dois últimos governos militares, contribuiu bastante para o crescimento explosivo da dívida interna, em virtude do seguinte: 1) implicava crescente emissão de títulos públicos para neutralizar o aumento do meio circulante decorrente do endividamento necessário para fechar o balanço de pagamentos, objetivando, com isso, não alimentar o processo inflacionário, e 2) a crescente emissão de títulos visando a cobrir os gastos decorrentes das resoluções que possibilitavam às empresas privadas protegerem-se de desvalorizações do câmbio. Essa política também contribuiu para asfixiar financeiramente as empresas estatais, obrigadas a endividarem-se no exterior para ajudar a fechar as contas externas. Esse processo, somado à política pouco criteriosa de subsídios e à política de juros altos, que exacerbava ainda mais o crescimento da dívida interna, acabou gerando uma crise fiscal do Estado. A explosão da inflação a partir do início dos anos 80 também vinculava-se ao problema da dívida externa, pois as maxidesvalorizações da moeda, observadas no período, que tanto impacto tiveram sobre a inflação, visavam a melhorar a competitividade das exportações brasileiras, ponto importante no quadro de deterioração do setor externo da economia brasileira O explosivo endividamento interno e externo corroeu o esquema interno de financiamento da acumulação, baseado sobretudo em fundos públicos, inviabilizando a forma de desenvolvimento centrada no Estado (CRUZ, 1984; OLIVEIRA, 1998). . Desta maneira, essa saída pôs fim ao modelo de desenvolvimento perseguido desde os anos 1930, ao Estado desenvolvimentista que o sustentava e talvez a possibilidade de um desenvolvimento mais extenso. A possibilidade de um desenvolvimento autônomo tinha, aparentemente, ficado para trás, nos idos do Estado Novo (CORSI, 2000, p. 51-194).
O Brasil não foi o único a seguir esse caminho. As dívidas externas de toda a periferia cresceram assustadoramente nessa década: na América Latina de US$ 16 bilhões para US$ 130 bilhões entre 1970 e 1980; na África e Oriente Próximo, de US$ 9 bilhões para US$ 97 bilhões; na Europa Oriental, de US$ 3 bilhões para US$ 47 bilhões; na Ásia, de US$ 17 bilhões para US$ 83 bilhões no mesmo período (ALTVATER, 1995, p. 13-14). A crise da dívida, que acabou configurando-se nos anos 1980, jogou boa parte da periferia na estagnação econômica, o que deteriorou ainda mais a já grave situação social dessa região, e pôs fim à maioria dos projetos de desenvolvimento.
Esse desfecho não pode ser entendido sem levarmos em conta as transformações em curso na economia capitalista no período. Em primeiro lugar, grande parte dos empréstimos contraídos pelos países subdesenvolvidos ocorreu nos chamados euromercados de dólares a juros flutuantes. Esses mercados foram os precursores do mercado financeiro global. Surgidos na década de 1960, no bojo da crise do sistema monetário internacional, eram mercados supranacionais, fora do controle das autoridades monetárias de qualquer país, que se expandiram aceleradamente depois da crise do petróleo em 1973 com os chamados petrodólares. A sua capacidade de criar liquidez tornou os créditos internacionais baratos e abundantes, o que acabou induzindo muitos governos a endividarem-se até o pescoço.
Quando no final dos anos 1970, o governo Reagan, preocupado com os enormes déficits externos norte-americanos e buscando recuperar a supremacia dos EUA, então em xeque, implementou uma política de fortalecimento do dólar por meio da majoração acentuada das taxas de juros, que subiram de um patamar de 6% ao ano para cerca de 20%, ao mesmo tempo em que levava a cabo, juntamente com o governo inglês, a desregulamentação dos mercados financeiros e de capitais, a situação dos países periféricos deteriorou-se rapidamente. Os serviços da dívida sofreram forte aumento, o que levou muitos países a endividarem-se ainda mais para pagarem as dívidas contraídas anteriormente, gerando assim um crescimento financeiro das mesmas. Esse processo levou a periferia a uma situação de insolvência generalizada. A crise da dívida iniciada no México, em 1982, rapidamente atingiu inúmeros outros países.
Entre 1980 e 1990 as dívidas da periferia cresceram assustadoramente: na América Latina, de US$ 130 bilhões para US$ 319 bilhões; na África, de US$ 97 bilhões para US$ 257 bilhões; na Ásia, de US$ 87 bilhões para US$ 264 bilhões, e no Leste europeu, de US$ 47 bilhões para US$ 140 bilhões. Paralelamente, observou-se o declínio dos preços dos produtos primários em relação aos dos produtos industrializados no mercado mundial, em virtude da crise aberta pela política de juros altos dos EUA. Queda que já vinha se delineando desde a década anterior com a crise de superprodução. Entre 1980 e 1990, os preços dos produtos manufaturados subiram 36,8%, enquanto os dos produtos minerais caíam 37,7% e os dos agrícolas 40%. Isso dificultava sobremaneira o pagamento das dívidas externas (ALTVATER, 1995, p. 14).
Boa parte dos países endividados, como o Brasil, entrou em um período de estagnação. A adoção de políticas recessivas, inspiradas ou impostas pelo FMI que só podem ser entendidas a partir da interação do quadro internacional com a situação social e política desses países levou as suas economias a girar em torno do pagamento das dívidas externas, do combate à inflação e da crise fiscal do Estado. O emprego de políticas recessivas, baseadas no corte do gasto público, no arrocho dos salários, no corte do crédito, no aperto monetário e na desvalorização da moeda, resultou em estagnação econômica e agravamento da inflação e da crise fiscal do Estado, embora melhorasse a situação das contas externas, permitindo o pagamento dos juros das dívidas. Preservavam-se, assim, os interesses dos credores estrangeiros. Dessa forma, inviabilizou-se o desenvolvimento de boa parte da periferia, que passou a ser exportadora de capitais para o centro. Segundo dados apresentados por Cano (2001, p. 23-41), a América Latina exportou, na forma de remessas de juros e amortizações da dívida externa na década de 1980, cerca de US$ 200 bilhões recursos que contribuíram para sustentar a valorização do capital financeiro no período.
Mesmo países como o Brasil, que já não eram exportadores de produtos primários e, portanto, tinham uma pauta de exportação diversificada, não conseguiram sair desse círculo de ferro. Os países do leste asiático conseguiram fugir dessa situação e acelerar o seu desenvolvimento até meados da década de 1990, quando também entraram em crise, em virtude de uma série de peculiaridades: 1) estratégias de desenvolvimento voltadas para as exportações criaram uma economia mais competitiva e avançada tecnologicamente; 2) políticas levadas a cabo em períodos anteriores conseguiram criar fortes grupos nacionais e consistentes esquemas de financiamento interno (caso da Co-réia); 3) o preço das suas exportações não caiu no período; 4) o endividamento externo não foi tão dramático; 5) essas economias conseguiram estabelecer fortes vínculos com a economia japonesa, que então crescia a altas taxas. Dessa forma, essas economias não ficaram alijadas do mercado financeiro internacional e não sofreram grandes carências de capitais para financiar seu desenvolvimento, podendo, então, acompanhar as profundas transformações em curso na economia capitalista (COUTINHO, 1999, p. 219-235).
A América Latina, como assinalou Coutinho (1996, p. 219-238), ao contrário dos países do sudeste asiático, não se integrou a essas mudanças no período. As razões disso residem no fato de a região ter mergulhado, a partir de 1982, em uma fase de estagnação, marcada por baixos índices de crescimento, graves crises inflacionárias e graves problemas de endividamento externo. A predominância de governos conservadores impediu, naquele momento, uma ruptura com o grande capital internacional. Nessas circunstâncias, os países latino-americanos, de um lado, não despertavam interesse do grande capital que, aliás, não estava disponível em virtude da crise do endividamento externo e, de outro lado, não tinham condições de implementar com um maior grau de autonomia programas de desenvolvimento para incorporar as novas tecnologias e enfrentar as mudanças em curso na economia mundial. De maneira geral, os modelos de desenvolvimento perseguidos desde pelo menos os anos 1930 pareciam esgotados.
Para a América Latina a situação começou aparentemente a mudar no início da década de 1990, quando o Japão, a Europa Ocidental e os EUA entraram em crise, o que para as duas primeiras regiões abriu um período de estagnação e baixo crescimento econômico, respectivamente. A falta de boas oportunidades de investimento, associada à queda das taxas de juros dos países centrais, gerou um volume significativo de capitais ávidos por melhores condições de valorização em outras regiões do mundo. A América Latina então voltou a chamar a atenção das grandes empresas e do capital financeiro (ibidem).
Concomitantemente a esses acontecimentos, como assinalou Fiori (1997, p. 11-23), no FMI, no Banco Mundial, no Banco Interamericano de Desenvolvimento e no mundo acadêmico travava-se um intenso debate acerca das políticas de estabilização das economias latino-americanas. Chegou-se à conclusão de que as políticas ortodoxas recomendadas pelo FMI e adotadas ao longo da década de 1980 tinham sido um fracasso, embora tivessem evitado uma onda de moratórias das dívidas externas. Tinham sido insuficientes particularmente no tocante à redução da inflação e à retomada do crescimento econômico. Essas discussões culminaram em seminários realizados em Washington, em 1989. As conclusões desses seminários, que ficaram conhecidas como o "consenso de Washington"7 7 Esse termo já vinha sendo utilizado desde o final da década de 1980 por J. Williamson para designar o programa liberal de reformas que propunha para a América Latina (FIORI, 1997, p. 11-23). Em linhas gerais, as propostas eram as seguintes: 1) estabilização macroeconômica pela adoção de planos monetários que atrelassem as moedas nacionais ao dólar e de políticas monetárias, creditícias e fiscais contracionistas. Um dos pontos centrais seria a questão do ajuste fiscal, que deveria obter-se por meio de um superávit primário. A reforma dos sistemas de previdência social e a reforma administrativa seriam fundamentais para alcançar essa meta; 2) introdução de reformas estruturais visando à abertura das economias nacionais, o que implicava reduções de tarifas e desregulamentação dos mercados financeiro e de capitais, e 3) redução da presença do Estado na economia, centrada em um vasto programa de privatização das empresas estatais. Considerava-se que só depois de implementado esse conjunto de reformas seria possível retomar o crescimento de maneira mais sustentada. Considerava-se também que, para implementar programas dessa natureza, seriam precisos governos estáveis e com larga base de sustentação política e social, pois os ônus das reformas seriam pesados para o grosso das populações dos países latino-americanos ( ibidem; os próximos parágrafos baseiam-se nessa obra). , propunham, ao lado de políticas de estabilidade econômica, um plano de reformas para os países da região.
O esgotamento do modelo de desenvolvimento baseado na ampla ação do Estado na economia e em mercados nacionais relativamente fechados seria, segundo essa visão, a causa básica dos graves problemas econômicos enfrentados pelos países latino-americanos a partir dos anos 1980. De maneira geral, esse modelo de desenvolvimento teria desembocado em um sistema produtivo ineficiente e não competitivo e no que os liberais chamavam de populismo econômico. Ou seja, os governos latino-americanos teriam criado um terreno fértil para majoração de salários acima da produtividade do trabalho, para a expansão de empresas ineficientes, para a alocação ineficiente dos recursos públicos, para a corrupção desenfreada etc. Tudo isso feria a lei sacrossanta da teoria neoclássica segundo a qual os mercados seriam a forma mais eficiente de alocar recursos e tenderiam para o equilíbrio. Portanto, os desequilíbrios econômicos seriam, em última análise, fruto de desequilíbrios do setor público.
Vários planos de estabilização implementados na América Latina seguiram essas análises e diretrizes. Assim, vários países latino-americanos continuaram presos às amarras financeiras que vinham dificultando o desenvolvimento desde a crise da dívida externa dos anos 1980. Foi o caso do México e da Argentina, que adotaram planos baseados em âncoras cambiais. Essa estratégia, que acarretava fortes déficits comerciais devido à valorização das moedas combinada com a maior abertura da economia, só foi possível graças à elevada liquidez internacional e às baixas taxas de inflação nos países centrais no início dos anos 1990. Essas condições conjunturais, que garantiam um fluxo volumoso de recursos externos, eram intrinsecamente instáveis (TAVARES, 1999, p. 17-123).
O Plano Real também inspirou-se nessa estratégia e, com algum atraso, o Brasil ajustou-se à onda neoliberal. Esse atraso vinculava-se à situação política do país na década de 1980. Uma guinada neoliberal parecia difícil naquele momento, sobretudo devido ao intenso movimento social autônomo dos trabalhadores, centrado no movimento sindical combativo dos metalúrgicos do ABC paulista, que culminou na criação do Partido dos Trabalhadores, e ao movimento pela redemocratização do país. A Constituição de 1988 refletia, pelo menos em parte, esse contexto social, que contrastava com o clima de recuo dos setores de esquerda vigente na maioria dos outros países da região. O grosso da burguesia também não parecia ainda convicta da nova estratégia de desenvolvimento. Dessa forma, as políticas de ajuste neoliberais não tinham base de sustentação social. O ponto de virada parece ter sido a derrota de Luís Inácio Lula da Silva para Fernando Collor de Melo em 1989, que abriu espaço para o governo implementar políticas neoliberais8 8 Sobre esse ponto ver Oliveira (1998, p. 157-223). Podemos destacar outros fatores que dificultavam sobremaneira a integração ao processo de globalização: 1) o intenso processo inflacionário; 2) a crise fiscal do Estado, fruto, em grande medida, do endividamento interno e externo; 3) a estagnação econômica decorrente da queda dos investimentos e da adoção de políticas recessivas; 4) a inexistência de políticas voltadas para o desenvolvimento em virtude de a política econômica estar direcionada para o combate da inflação e para o pagamento da dívida externa, e 5) a incapacidade de o governo articular internamente uma base social sólida para políticas desenvolvimentistas. As fragilidades do Brasil decorriam também, segundo Coutinho (1996, p. 219-238), de problemas estruturais mais antigos, a saber: a inexistência de um consistente esquema de financiamento interno, o que torna o avanço da acumulação de capital demasiado dependente de financiamento externo ou governamental, em um momento em que essas alternativas mostravam-se difíceis; o tamanho relativamente pequeno das empresas brasileiras diante das gigantescas empresas transnacionais, o que dificultava a concorrência com essas empresas. O problema não se reduz à defasagem tecnológica: é também uma questão de solidez financeira e de capacidade de centralizar capital nas empresas nacionais. .
A esse respeito Oliveira (1998, p. 169) assinalou que, "Ao lado do processo hiperinflacionário constante nos últimos dez anos, que elaborou uma espécie de pedagogia perversa, a contra-revolução tresloucada de Collor mandou 'pro brejo' toda esperança de mudança social progressista, vale dizer, mudança que tentasse varrer com as vastas desigualdades. Instaurou-se e a eleição do rei do kitsch já era seu indício mais forte, com o forte apelo messiânico de salvação uma espécie de conservadorismo que pode resumir em mudança social regressiva, isto é, um anseio generalizado e difuso por estabilidade, segurança, ordem e, par contre, o medo à mudança social progressista".
A queda de Fernando Collor, no entanto, não deteve a virada conservadora. Fernando Henrique Cardoso, contando com uma base social mais ampla graças à estabilização dos preços e com forte apoio das classes dominantes e do capital estrangeiro, colocou em prática um vasto programa de reformas inspiradas no ideário neoliberal. Ao optar por políticas neoliberais, FHC colocou, de forma subordinada, o Brasil na trilha da globalização.
No entanto, mais uma vez a realidade parece desmentir as expectativas otimistas dos neoliberais. Embora esse novo programa tenha sido adotado por vários países da região ao longo dos últimos dez anos, eles não conseguiram retomar o prometido desenvolvimento. Pelo contrário, esses países vivem uma situação de estagnação crônica e de crises recorrentes toda vez que a economia mundial entra em um período de instabilidade9 9 A taxa média de desemprego aberto para o setor urbano, na América Latina, passou de 5,9% da PEA (População Economicamente Ativa), em 1990, para 7,9% em 1998. Mas essas cifras não dão conta da precarização do mercado de trabalho, tendo a informalidade saltado de 40%, em 1980, para 56% em 1995. Para essa região, em 1980, o nível de po-breza correspondia a 25% da população urbana e o de indigência a 9%. Em 1994, esses números eram respectivamente 34% e 12%. Para a população rural os números são mais dramáticos: os pobres e indigentes, em 1994, correspondiam a 55% e 33% respectivamente (CANO, 1999, p. 317-318). .
Os programas de estabilização baseados em âncoras cambiais jogaram esses países em uma armadilha, pois se, de um lado, conseguiram debelar o processo inflacionário, de outro dificultaram a retomada do desenvolvimento. Isso porque implicam altas taxas de juros, necessárias para atrair um volume crescente de capitais para fecharem os também crescentes déficits em suas contas externas, decorrentes da abertura comercial associada à valorização das moedas locais, do pagamento dos serviços da dívida externa e do incremento das remessas de lucros, dividendos etc. A entrada maciça de produtos importados a preços relativamente baixos e estáveis controlou a inflação, mas causou enormes déficits na balança comercial. Os resultados de tudo isso, bastante visível no Brasil e na Argentina, foram a crescente vulnerabilidade das economias nacionais ante as oscilações da economia mundial, o incremento da dependência em relação ao capital estrangeiro e a estagnação econômica, que implica crescente desemprego e deterioração da situação social de vastas parcelas da população10 10 A dívida externa da América Latina entre 1989 e 1999 cresceu de US$ 450 bilhões para cerca de US$ 750 bilhões (CANO, 2001, p. 23-41). Em muitos países, observou-se um crescimento explosivo da dívida interna, agravando a crise fiscal. A título de exemplo podemos citar a dívida interna brasileira, que saltou de cerca de R$ 60 bilhões, em 1995, para R$ 685 bilhões em janeiro de 2002, em grande parte devido às altas taxas de juros e à desvalorização da moeda a partir de 1999. A necessidade de obter recursos para fechar o balanço de pagamentos e honrar a dívida interna fragiliza os governos diante do capital financeiro globalizado. Interessa a esse capital garantir o pagamento das dívidas e, por conseguinte, procura, respaldado pelo FMI e Banco Mundial, impor políticas que garantam a estabilidade de preços, a livre circulação de capitais e a saúde das finanças públicas, compreendida como a capacidade de gerar crescentes superávits primários. O não-cumprimento dessas metas coloca os países periféricos à mercê dos movimentos voláteis dos capitais financeiros. Mas a situação é insustentável. No caso do Brasil, embora o governo FHC tenha obtido superávit primário da ordem de 3,5% do PIB nos últimos anos, o serviço da dívida pública corresponde a cerca de 7% do PIB. Dessa forma, ao contrário do que apregoam os defensores da atual política econômica, a trajetória da dívida é ascendente. Estagnação econômica, aprofundamento da crise fiscal e deterioração da situação econômica e social das populações mais carentes é o resultado dessa política (LACERDA, 2002; SINGER, 2002). .
O núcleo de sustentação dessas políticas reside na manutenção de elevadas taxas de juros, que recompensam regiamente o capital financeiro. A elevação dos juros, sobretudo nos períodos de instabilidade da economia mundial, é necessária, de um lado, devido à necessidade de evitar fugas de capitais e atrair capitais externos para cobrir os déficits em conta corrente. De outro lado, essas altas taxas são necessárias para deprimir a atividade econômica e, assim, conter as importações e incentivar as exportações, contribuindo para amenizar os problemas do déficit nas contas externas. Mas a manutenção de taxas de juros elevadas impede o crescimento econômico, infla a dívida interna e aprofunda a crise social. A lógica dessa política impõem a recessão crônica como forma de enfrentar os desequilíbrios externos e garantir os interesses do capital financeiro. A redução significativa dos juros, ao estimular a atividade econômica, poderia exacerbar o desequilíbrio externo, o que provavelmente acarretaria dificuldades para fechar as contas externas e forte desvalorização cambial com reflexos nos preços, o que exigiria, de acordo com a lógica dos neo-liberais, a retomada de medidas contencionistas. O descontentamento social crescente não possibilitou até o momento articular um projeto alternativo, embora indícios nessa direção eclodam por toda a parte na América Latina. Dessa forma, recoloca-se a questão da viabilidade do desenvolvimento em regiões periféricas no atual contexto da economia mundial.
Os países não-desenvolvidos defrontam-se não apenas com os entraves colocados pela atual fase da economia mundial, mas também com um outro obstáculo, até agora não mencionado: os limites ecológicos do desenvolvimento.
IV. OS LIMITES ECOLÓGICOS DO DESENVOLVIMENTO CAPITALISTA
O problema dos limites ecológicos do desenvolvimento parece ser relevante não só porque a distância entre a riqueza e a pobreza parece aumentar na economia globalizada e no interior de cada economia nacional, mas também porque os recursos naturais da terra são limitados. Se isso é verdade, poderíamos dizer que o modelo de desenvolvimento capitalista seguido pelos EUA, pelo Japão e pela Europa Ocidental, calcado na industrialização e em uma sociedade de consumo de massas, não só não é universalizável como tende, mais cedo ou mais tarde, a esbarrar nos limites naturais do planeta.
Como expandir uma forma de desenvolvimento que consome um volume descomunal de energia e de outros recursos naturais não-renováveis? Teria o planeta condições de sustentar um nível de consumo relativamente elevado para o conjunto da população mundial? Se isso é impossível, as populações da periferia estariam condenadas à miséria? O modelo de desenvolvimento perseguido nos últimos 50 a 70 anos, pelos países periféricos e socialistas, de uma maneira ou de outra, ao basearem-se na industrialização, não seria uma mera ilusão? Não estaria colocado na ordem do dia a busca de outras formas de desenvolvimento, mais condizentes com os recursos naturais limitados e com a possibilidade de uma distribuição da riqueza mais eqüitativa em escala mundial? Mas isso não colocaria em xeque o capitalismo juntamente com sua sociedade de consumo de massas?
Sobre essas questões Altvater assinala (1995, p. 28): "[A] industrialização é um luxo exclusivo de parcelas da população mundial, mas não para ampla maioria dos 6,25 bilhões de habitantes na virada do milênio. É impossível simplesmente dar continuidade às estratégias de desenvolvimento e de industrialização das décadas passadas. É uma ilusão, e por isto uma desonestidade, alimentar e difundir a idéia de que todo o mundo poderia atingir um nível industrial equivalente ao da Europa Ocidental, da América do Norte e do Japão [...]. A industrialização constitui um bem oligárquico [...]. Portanto, as sociedades industriais só podem reivindicar para si as benesses da afluência enquanto o mundo ainda hoje não-industrializado assim permanecer".
De acordo com Löwy (1999, p. 102), se o conjunto da população mundial tivesse um consumo de energia igual ao consumo médio de energia dos EUA, as reservas conhecidas de petróleo durariam aproximadamente 19 anos11 11 O problema não se reduz à finitude dos recursos naturais, como petróleo, ferro, bauxita etc.; também pressionam o desenvolvimento os perigos da poluição: emissões de CO 2, CFCs e outros gases, extinção de espécies, esgotamento dos solos, poluição dos mares, diminuição da água potável etc. . O que está em questão é a própria forma capitalista de desenvolvimento. Somos céticos quanto à possibilidade de um desenvolvimento sustentado, que busque, ao mesmo tempo, evitar a destruição da natureza, garantir altas taxas de crescimento econômico e superar a miséria. Essa questão é mais premente em virtude do tamanho da população mundial, cerca de 6 bilhões de pessoas. Estima-se que em 2025 sejam cerca de 9 bilhões (HIRST & THOMPSON, 1998, p. 189). Discutir as possibilidades de desenvolvimento dos países periféricos implica discutir as próprias formas do desenvolvimento.
Durante muito tempo o desenvolvimento foi identificado, particularmente pelos economistas neoclássicos, com crescimento econômico. Outros identificavam o conceito à industrialização12 12 De maneira geral, podemos identificar na teoria econômica, no tocante à concepção de desenvolvimento, duas correntes, embora não haja necessariamente homogeneidade teórica e metodológica entre os autores que as compõem. Uma, englobando economistas de tradição neoclássica e pós-keynesiana, que concebem o desenvolvimento como crescimento econômico. Para esses um país é subdesenvolvido à medida que apresenta um crescimento econômico inferior aos desenvolvidos e cresce menos do que seria possível, dado os seus recursos em termos de terra, mão de obra e recursos naturais. Ou seja, o país é subdesenvolvido, nesse caso, porque subutiliza os recursos de que dispõe, observando-se recursos produtivos ociosos. A outra corrente considera que o desenvolvimento não pode ser identificado a crescimento porque esse crescimento pode não estar beneficiando a economia e a população como um todo, seja em virtude da transferência de excedente econômico para outros países, seja pelo fato de o excedente estar sendo apropriado por uma parcela diminuta da população. Desenvolvimento envolve, nessa versão, mudanças quantitativas e qualitativas na estrutura produtiva, na produtividade do trabalho, nas instituições e no modo de vida das pessoas, com a melhoria do nível de vida do conjunto da população. Enquadram-se nessa corrente, entre outros, economistas cepalinos e marxistas (SOUZA, 1995, p. 13-32). . Essas duas formas de entender desenvolvimento são inadequadas. Desde meados de nosso século, vários países cresceram de maneira acelerada e industrializaram-se, como o Brasil, mas nem por isso os problemas sociais (melhores condições de vida, saúde, educação, moradia, saneamento básico etc.) e os problemas relativos à distribuição da renda melhoram substancialmente. Hoje, parte considerável da população brasileira vive na miséria e o país tem uma das piores distribuições da renda do mundo, embora observemos a melhora de uma série de indicadores sociais (mortalidade infantil, expectativa de vida, escolaridade etc.).
Não basta um país ser industrializado para considerarem-no desenvolvido. Essa relação também começa a apresentar problemas porque se observa em vários países desenvolvidos um processo de desindustrialização. Ou seja, o setor industrial, no que se refere ao PIB, perdeu terreno, enquanto cresceu a importância dos setores comercial e de serviços. Isso ocorreu em virtude de muitas indústrias terem deixado alguns países desenvolvidos em busca de regiões na periferia com mão de obra mais barata, com recursos naturais mais abundantes e regulamentos mais brandos de proteção ao meio ambiente. Esse ponto consiste em um dos mais importantes da chamada mundialização do capitalismo. No entanto, devemos ver com cuidado esse problema, pois esses países continuam industrializados, concentrando em suas mãos a produção de bens de capital e de tecnologia. Industrialização parece ser uma condição necessária, mas não suficiente para identificar se um determinado país é ou não desenvolvido.
Segundo Altvater (1995, p. 21), o fato de alguns países altamente desenvolvidos estarem transformando-se em países pós-industriais torna a industrialização, "enquanto encarnação de modernização e de progresso", uma definição inadequada. Outros autores criticam de maneira mais contundente essa identificação entre industrialização e desenvolvimento, como Arrighi (1997, p. 209): "é preciso abandonar o postulado de que industrialização é o equivalente de desenvolvimento".
O desenvolvimento e o subdesenvolvimento só podem ser entendidos a partir de uma perspectiva histórica. Os modelos excessivamente genéricos e abstratos não conseguem dar conta das especificidades históricas de cada país ou região à medida que os englobam em um todo homogêneo, como se realidades sociais, econômicas e políticas bem diversas pudessem ser reduzidas a um punhado de variáveis abstratas. Desse ponto de vista, os chamados países subdesenvolvidos, que mais recentemente foram denominados de mercados emergentes, não poderiam constituir uma unidade de análise consistente e as políticas econômicas voltadas para desenvolvê-los não poderiam ser necessariamente as mesmas, como comumente apregoam as instituições financeiras internacionais.
A dificuldade de aplicação desses modelos reside, sobretudo, no fato de eles serem demasiadamente abstratos. A apreensão das condições históricas específicas de cada país subdesenvolvido seria essencial para explicar a própria situação de subdesenvolvimento. O problema do desenvolvimento, de acordo com a teoria ortodoxa, seria reduzido à questão da melhor maneira de acelerar o crescimento econômico e, portanto, o problema-chave seria o do incremento dos investimentos e das formas de financiá-los. Entretanto, o que deveria ser explicado são as condições históricas específicas que obstam o crescimento e condicionam os investimentos. Isso só poderia ser explicado a partir da realidade concreta de cada país subdesenvolvido e de sua inserção na economia mundial (PRADO JR., 1989, p. 12-48).
A crítica que a CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe) e Prado Jr. (idem), entre outros, desenvolveram à visão unilinear segundo a qual todos os países passariam invariavelmente pelas mesmas formas ou estágios de desenvolvimento e a diferença entre os países nesse aspecto seria apenas de grau e ritmo de desenvolvimento também precisa ser recuperada, pois muitos parecem tê-la esquecido. Além disso, a teoria ortodoxa reduz os indicadores de desenvolvimento a umas poucas variáveis. Assim, a Renda Nacional, o Produto Interno Bruto, o Produto Nacional Bruto e a renda per capita passariam a ser indicadores precisos do grau de desenvolvimento, deixando em segundo plano questões qualitativas.
Mais recentemente, o desenvolvimento tem sido concebido como resultante da evolução de um conjunto de variáveis. Um dos autores que tem desenvolvido essa linha é Amartya Sen (2000). A obra desse autor tem exercido grande influência sobre os trabalhos e as pesquisas realizadas pela ONU acerca do tema, particularmente sobre o índice de desenvolvimento humano e social.
Esse autor concebe o desenvolvimento como um processo de expansão da liberdade desfrutada pelos membros de uma sociedade. Ou seja, ele ressalta a importância de as pessoas terem a possibilidade de terem acesso aos meios e aos recursos que lhes propiciem condições reais de exercerem seus direitos e sua liberdade. Em suas palavras, "[O] desenvolvimento pode ser visto como um processo de expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam. O enfoque nas liberdades humanas contrasta com visões mais restritas de desenvolvimento, como as que identificam desenvolvimento com crescimento do Produto Nacional Bruto (PNB), aumento de rendas pessoais, industrialização, avanço tecnológico ou modernização social [...]. O desenvolvimento requer que se removam as principais fontes de privação de liberdade: pobreza e tirania, carência de oportunidades econômicas e destituição social sistemática, negligência dos serviços públicos e intolerân-cia ou interferência excessiva de Estados repressivos" (idem, p. 17-18).
A melhor forma de alcançar esses objetivos seria, segundo esse autor, por meio da expansão da economia de mercado, calcada na livre iniciativa. Contudo, ele não descarta a atuação estatal na economia, como forma de suplementar a iniciativa privada, visando a alcançar essas metas. Suas colocações são bastante pertinentes, pois industrialização, crescimento do PIB, crescimento da renda etc. não significam necessariamente melhora das condições de vida do conjunto da população de um país. A experiência brasileira é ilustrativa. O desenvolvimento seria fruto da evolução de um conjunto de variáveis econômicas (PIB, renda per capita etc.), sociais (acesso à educação e saúde, mortalidade infantil, expectativa de vida etc.) e políticas (respeito aos direitos humanos, participação política etc.)
Entretanto, esse autor não questiona um ponto fundamental, qual seja: a natureza do desenvolvimento capitalista. A questão do desenvolvimento não pode residir somente na elevação dos níveis de consumo, no usufruto de serviços (educação, saúde, saneamento básico etc.) e no acesso às liberdades políticas e às oportunidades econômicas e sociais, embora esses pontos sejam de suma importância. Voltamos a indagar: isso seria possível de ser alcançado expandindo-se o modo de produção e as formas de consumo capitalistas? O que fazer com o consumo desmedido da sociedade de consumo de massa?
O problema não pode ser, aparentemente, resolvido agregando o termo sustentável ao conceito de desenvolvimento. Desenvolvimento sustentável entendido como uma forma de crescimento econômico associado à integridade dos sistemas ecológicos, a justiça e à igualdade entre toda a população mundial, nos parâmetros da sociedade capitalista, parece bastante improvável, pois, como tentamos apontar acima, o capitalismo no seu movimento de expansão cria e recria, ao mesmo tempo, uniformidade e desigualdade. Um sistema regido pelo mercado, em que o móvel das empresas é a busca incessante do lucro, enfrentaria enormes dificuldades para respeitar a integridade da natureza e promover a igualdade entre os povos da terra. Parece que dentro do capitalismo não é possível expandir o desenvolvimento para o conjunto da população do planeta.
V. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao abordarmos a questão do desenvolvimento visamos apenas a tecer alguns comentários que julgamos pertinentes. A retomada da discussão acerca do desenvolvimento parece indispensável nos dias de hoje, seja em razão da situação de estagnação econômica e da deterioração das condições sociais de vastas regiões da periferia capitalista nesse contexto de globalização, seja em razão dos próprios limites ecológicos da sociedade de consumo. O grande desafio consiste em repensar o desenvolvimento levando em consideração esse conjunto de problemas.
A crescente integração da economia mundial tornou as tendências econômicas mais homogêneas, embora as desigualdades sociais e econômicas tenham aumentado. Apesar de algumas exceções importantes, em geral tanto os países desenvolvidos quanto os não-desenvolvidos entraram em uma fase de baixo crescimento nas últimas décadas e particularmente estes últimos enfrentam crescentes problemas sociais. Creditamos, pelo menos em parte, esse fenômeno à crise social e econômica que se arrasta desde a década de 1970 e que abriu as portas para o predomínio dos interesses financeiros. A derrota dos trabalhadores abriu espaço para uma larga ofensiva da burguesia, mas as suas tentativas de reestruturar o sistema até agora se mostraram bastante problemáticas: não criaram as condições para uma vigorosa retomada do crescimento em escala global, contribuíram para a estagnação de uma vasta zona do mundo e não enfrentaram de maneira consistente os problemas ecológicos. As enormes dificuldades enfrentadas pelos países subdesenvolvidos não se deveram, no entanto, apenas à tendência declinante da economia mundial, mas também ao aprofundamento dos mecanismos de dependência sobretudo financeira, que dificultaram a adoção de políticas voltadas para o desenvolvimento e aprofundaram as crises financeiras e nas contas externas, além de terem possibilitado a drenagem de parcela do excedente econômico para os países ricos.
É preciso assinalar, contudo, que esse resultado não decorreu apenas das pressões e dos limites impostos pelas estruturas da economia mundial aos países não-desenvolvidos. Decorreu também, embora talvez não tenhamos frisado o suficiente, das decisões dos governos desses países e do contexto social, econômico e político interno a cada um deles no qual se desenrolam as lutas sociais.
Dessa forma, o desenvolvimento, como tentamos indicar, tem que ser entendido em suas complexas e múltiplas articulações sociais, econômicas e políticas internas e externas. Este tipo de abordagem implica em análises históricas das experiências particulares e como elas inserem-se na economia mundial. Tentamos sugerir também a necessidade de estudos comparativos mais amplos, que levem em conta as diferentes estratégias de inserção no cenário atual do mundo globalizado.
Embora o problema do desenvolvimento econômico com preservação da natureza e superação da miséria seja um desafio para qualquer forma de sociedade, ainda mais quando a população atinge a cifra de bilhões, parece estar colocado na ordem do dia, como assinalamos acima, a questão dos limites ecológicos do desenvolvimento capitalista. A busca cega pelo lucro tem implicado a destruição sistemática da natureza. Nada indica, até o momento, que o capitalismo seja passível de reformas que consigam dominar suas tendências destrutivas da natureza. Está em questão todo um estilo de vida, uma civilização exceto se ocorrer um brutal salto tecnológico, que permita sustentar a vida de bilhões de seres humanos com base em materiais recicláveis.
Nesse contexto, um dos problemas centrais parece ser o do controle social da economia. A produção, a distribuição e o consumo devem subordinar-se aos interesses, às necessidades objetivas e subjetivas, aos valores do grosso da população. Uma economia como essa só poderia existir se fosse regida pelo valor de uso e não pelo valor de troca. Como diz Löwy (1999, p. 234), uma espécie de economia moral, "no sentido que E. P. Thompson dava a essa expressão, isto é, uma política econômica baseada em critérios não-monetários e extra-econômicos".
Recebido em 24 de março de 2002.
Aprovado em 6 de setembro de 2002.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
28 Mar 2003 -
Data do Fascículo
Nov 2002
Histórico
-
Aceito
06 Set 2002 -
Recebido
24 Mar 2002