Open-access Direitos humanos, encaixes institucionais e repertórios de ação: o Centro de Derechos Humanos de las Mujeres

Human rights, institutional fits and action repertoires: the Center for Women’s Human Rights

RESUMO

Introdução:  Neste estudo de caso da organização não governamental mexicana Centro de Direitos Humanos das Mulheres, discuto interpretações teóricas de Relações Internacionais sobre vínculos entre ativismo profissional, vítimas e atores de base. Analiso se a atuação de organizações não governamentais institucionalizadas pode gerar efeitos sóciopolíticos emancipatórios ou se, ao contrário, leva à desmobilização e ao silenciamento de demandas pró-direitos.

Materiais e Métodos:  Com base em entrevistas semiestruturadas e fontes secundárias, a pesquisa apresenta a trajetória institucional, repertórios de ação e perfil das pessoas fundadoras do Centro de Direitos Humanos das Mulheres do México. A hipótese foi a de que, nas práticas das organizações não governamentais, tanto formas de atuação mais e menos institucionalizadas, como ações de colaboração ou de confronto podem conviver sem que isso implique o afastamento desses grupos de suas bases sociais.

Resultados:  Contrariamente ao que é normalmente esperado pela literatura, a organização estudada equilibra dois papéis institucionais distintos ao mesmo tempo: o ativismo militante e a defesa legal. Isso lhe permite manter conexão com a radicalidade das lutas sociais e avançar em ações institucionalizadas junto ao Estado e a instâncias da governança global.

Discussão:  A literatura precisa enfocar melhor as interações reais entre instituições, organizações não governamentais e vítimas. É necessário problematizar as interpretações que enxergam o ativismo profissional apenas como um mercado tecnocrático do Norte global. É preciso olhar para as histórias locais de mobilização dos direitos humanos.

Palavras-chave direitos humanos; movimentos de base; organizações não governamentais; mobilização social; Centro de Derechos Humanos de las Mujeres

ABSTRACT

Introduction:  In this case study of the Mexican non-governmental organization (NGO) Center for Women’s Human Rights, I discuss theorical interpretations regarding professional activism, victims, and grassroots actors. I analyze if non-governmental organizations actions can generate emancipatory sociopolitical effects, or if, on the contrary, they lead to demobilization and silencing of pro-rights demands.

Material and Methods:  Based on semi structured interviews and secondary sources, the research shows the institutional path, action repertoires and the profiles of founders of the Center for Women’s Human Rights of Mexico. The hypothesis was that, in the face of decision-making arenas, more and less institutionalized forms of action can coexist without this implying the separation of these groups from their social bases.

Results:  Contrary to literature expectations, the studied organization balances two distinct institutional roles at the same time: militant activism and legal defense. This allows it to maintain connection with radical social struggles and advance in institutionalized actions with the State and global governance bodies.

Discussion:  The literature needs to delve into the real interactions between institutions, NGOs, and victims. It is necessary to question the interpretations which understand professional activism only as a technocratic market of the global North, looking upon the local histories of human rights mobilization.

Keywords human rights; grassroots movements; non-governmental organizations; social mobilization; Centro de Derechos Humanos de las Mujeres

I. Introdução1

Na última década, a literatura de Relações Internacionais tem discutido em que medida a ação de organizações não governamentais (ONGs) e ativistas profissionais de direitos humanos é, de fato, eficaz. Para vários autores que se opõem à teleologia progressista do modelo analítico mais tradicional sobre a difusão e impacto das normas internacionais de direitos humanos (Risse & Ropp, 2013), a institucionalização das lutas sociais de grupos e movimentos em torno da linguagem dos direitos humanos, capitaneada por ONGs, leva à moderação, cooptação e até mesmo esvaziamento e despolitização das reivindicações de direitos (Baxi, 2012; Hopgood, 2013; Mutua, 2015; Estévez, 2017; Moyn, 2017).

Os direitos humanos e seus defensores seriam apenas o reflexo de um conjunto de tecnologias de gestão do sofrimento orientadas à produção de uma verdadeira economia política. Em torno dela, gravitariam inúmeros atores mais interessados na reprodução de lucrativos mercados tecnocráticos alimentados pelos horrores dos crimes de Estado do que no combate às causas por trás da repetição sem fim dos abusos e violações.

A fim de refletir sobre possíveis esvaziamentos de lutas e reivindicações por direitos humanos, levando em conta os vínculos entre ativismo profissional, vítimas e movimentos sociais, este artigo se vale de contribuições analíticas dos estudos sobre movimentos sociais e suas articulações com o Estado, a fim de interpelar os debates das Relações Internacionais. O objetivo do texto é, a partir do estudo de caso da ONG mexicana Centro de Direitos Humanos das Mulheres (CEDEHM)2, problematizar a visão dicotômica da literatura internacionalista que coloca em campos opostos e estanques os críticos e entusiastas da mobilização dos direitos humanos.

Assim, o problema que guia a pesquisa se expressa na seguinte pergunta: a busca de canais de acesso, interlocução e influência junto aos espaços da governança global e dos Estados para o encaminhamento e institucionalização de demandas de direitos humanos gera oligarquização em torno de número reduzido de ONGs com consequente desmobilização de atores sociais de base, que teriam suas pautas capturadas? Frente a essa problemática, o argumento é o de que o engajamento e criação de encaixes institucionais progressivos de ONGs de direitos humanos com o Estado, organizações internacionais e agências de financiamento de projetos não produzem necessariamente uma elitização e cooptação desses grupos, afastando-os de suas bases sociais originais e sufocando as reivindicações mais antagônicas e radicais de direitos.

Nesse sentido, a hipótese é a de que formas mais e menos institucionalizadas de ação social podem conviver simultaneamente no repertório simbólico e de práticas das ONGs e outros grupos de direitos humanos. Tal como ilustrado no estudo de caso sobre o CEDEHM, dividindo-se e equilibrando-se entre os papéis de defensor legal e de ativista militante, ONGs de direitos humanos encontram um caminho possível para acessar Estado e organizações internacionais sem perder ou fechar totalmente o circuito de ligação com a mobilização social e sua mística contestatória.

Em termos metodológicos, nesta pesquisa foram realizadas entrevistas semiestruturadas presenciais e gravadas em áudio com membros e ex-membros do CEDEHM. Todas as gravações contaram com o consentimento das pessoas entrevistadas, às quais se deixou claro o objetivo acadêmico da investigação e do uso das informações relatadas. As entrevistas foram conduzidas com base em uma lista de tópicos e questionamentos pré-fixados, mas flexíveis a depender do teor das respostas recebidas, a fim de permitir novas indagações de interesse no transcorrer da conversa3. Para viabilizar as entrevistas, fez-se uma viagem de campo à capital mexicana de Chihuahua, em outubro de 2018, como parte de um estágio mais longo de pesquisa, de seis meses, na Cidade do México. No total, as entrevistas gravadas aqui citadas perfazem 673 minutos (11,21 horas)4.

Dado que a pesquisa abarca uma amostra intencional e não probabilística, por tratar-se de pessoas que haviam participado da criação da ONG ou nela seguiam trabalhando em áreas-chave, foi usada a técnica de amostragem por cadeias de referência, conhecida como bola de neve (snowball), para mapear a rede de membros e ex-membros do CEDEHM até o ponto de saturação. Partindo de entrevistas realizadas na Cidade do México entre agosto e outubro de 2018 com outros especialistas da área de direitos humanos, e, sobretudo, com Alejandra Nuño, então consultora da ONG, chegou-se à lista de integrantes e pessoas fundadoras do CEDEHM. O contato com esses indivíduos foi feito por e-mail e pelo aplicativo de mensagens Whatsapp, antes da viagem de campo, a fim de garantir a realização das entrevistas.

Durante as entrevistas, os temas abordados envolveram a trajetória institucional da ONG, as histórias de vida de seus fundadores, e as interações de seus membros com atores de base, familiares de vítimas de violações e espaços e atores institucionalizados. Como resultado, as informações coletadas imbricaram-se com a questão de pesquisa, permitindo a reconstrução e análise tanto da gênese e funcionamento do CEDEHM quanto de suas diferentes arenas e lógicas de atuação.

Posteriormente, as informações coletadas nas entrevistas individuais foram comparadas e cruzadas, a fim de embasar a construção do argumento da pesquisa e de confrontá-lo com as categorias teóricas das duas visões predominantes sobre a temática na literatura de Relações Internacionais. Além disso, os dados das entrevistas também foram cruciais para enriquecer a análise, bem como para configurar uma narrativa coesa e teoricamente orientada que articula a sequência temporal e processual dos eventos, suas dinâmicas e desdobramentos.

Trata-se de pesquisa que, ao mapear a história e atuação do CEDEHM, configura-se como estudo de rastreamento de processos ao longo do tempo (process-tracing), especificamente voltado ao teste de teorias (Beach & Pedersen, 2013, p. 56-60). O propósito é o de, a partir das evidências do estudo de caso, apontar dimensões empíricas negligenciadas nos debates da área, as quais merecem ser mais exploradas para melhorar nossa compreensão sobre as interações entre ONGs, vítimas e arenas institucionalizadas de tomada de decisões.

A seguir, a análise sobre o CEDEHM está dividida em cinco seções. Na primeira, apresenta-se breve contextualização sobre o panorama dos desaparecimentos forçados no México e a importância do trabalho do CEDEHM, a fim de situar e justificar a escolha dessa ONG como estudo de caso. Na segunda, recuperam-se argumentos da literatura de Relações Internacionais, os quais são contrastados com considerações analíticas de estudos empíricos sobre movimentos sociais. Na terceira e quarta seções, apresenta-se o estudo de caso da ONG com o objetivo de testar a hipótese do artigo. Por fim, a última seção traz um conjunto de considerações que encerram as reflexões propostas, sinalizando a importância dessa agenda de pesquisa.

II. O CEDEHM e seu contexto local

O México é palco de uma grave crise de direitos humanos desde que, no final de 2006, foi lançada uma estratégia militarizada de combate ao narcotráfico. Os números são alarmantes: mais de 85 mil pessoas desaparecidas, quatro mil fossas clandestinas espalhadas pelo país e 52 mil corpos sem identificação. Entre 2008 e 2010, o estado de Chihuahua, na fronteira com os Estados Unidos, foi alvo de uma megaoperação que empregou milhares de soldados em tarefas de segurança pública. O saldo foi brutal: torturas, execuções extrajudiciais e desaparecimentos forçados com participação das forças castrenses.

Nesse contexto, o CEDEHM, que havia nascido como resultado de um prévio e longo trabalho de articulação direta com movimentos sociais de base, ganhou destaque nacionalmente pela sua atuação. Àquela altura do final dos anos 2000, era ainda muito recente sua transição e institucionalização para o formato de ação e funcionamento nos moldes de uma ONG focada no combate à violência de gênero. Porém, em razão da alta procura de mulheres em busca de seus familiares desaparecidos, o CEDEHM passou a abarcar também a temática dos desaparecimentos forçados, tema originalmente de fora do seu escopo de atuação.

Segundo a base de dados oficial da Comissão Mexicana de Fomento das Atividades das Organizações da Sociedade Civil (México, 2021), 3.397 ONGs de direitos humanos encontravam-se ativas em junho de 2021 no México. Dentro desse panorama, López (2017) divide as principais ONGs mexicanas de direitos humanos em quatro grupos distintos: 1) as ONGs de ativismo histórico da Cidade do México; 2) ONGs orientadas a dinâmicas institucionais estatais; 3) ONGs mais recentes especializadas em assuntos técnicos; e 4) ONGs de perfil regional e local, com histórico de trabalho comunitário e que se viram imersas em contextos de violência e alta conflitividade social.

É dentro desse quarto grupo em que o CEDEHM se insere. Desde o final dos anos 2000, localizadas nos estados do norte do México e em outras regiões mais duramente afetadas pela violência da “guerra contra o narcotráfico”, que não se estende na mesma proporção à Cidade do México, essas ONGs têm rompido o tradicional centralismo dos grupos de direitos humanos da capital do país, que demoraram a reconhecer a natureza e real extensão das graves violações desatadas pelo enfrentamento militarizado em face do crime organizado (López, 2017; Gerli, 2018, p. 137). Essas ONGs locais e regionais têm desenvolvido “estratégias inovadoras frente à violência, constituindo-se em impulsionadoras e suportes fundamentais das principais demandas no nível internacional sobre o Estado mexicano” (López, 2017, p. 21).

Nesse sentido, no caso do CEDEHM, em particular, no final de 2018, quase dez anos depois do período mais intenso de violações em Chihuahua, a ONG venceu, na Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), o primeiro litígio internacional sobre os desaparecimentos forçados e a estratégia de militarização da segurança pública no México. Além disso, há mais de uma década litiga nos tribunais nacionais. Tal perfil de atividades leva o CEDEHM a manter contatos frequentes com o Ministério Público, autoridades governamentais, agências estrangeiras de financiamento de projetos, organizações internacionais de direitos humanos e outros espaços legais e políticos altamente institucionalizados.

Dado esse panorama, o caso do CEDEHM é ilustrativo para pôr em discussão recentes debates da literatura especializada de direitos humanos no campo das Relações Internacionais, abaixo revisados. Dado seu passado de militância e a urgência que lhe foi imposta pela crise local de direitos humanos na direção da profissionalização, especialização e criação de encaixes institucionais com arenas decisórias, o caso do CEDEHM torna-se interessante para avaliar o quanto, ao longo dessa trajetória, foi mantida sua relação com as vítimas e atores de base, e em que medida pode ter ocorrido um processo de elitização e cooptação de suas pautas.

III. O debate teórico nas Relações Internacionais: contribuições analíticas da literatura sobre movimentos sociais

No interior dos enfoques otimistas das Relações Internacionais sobre a mobilização internacional e difusão das normas de direitos humanos, destaca-se a versão reformulada e atualizada do modelo espiral (Risse & Ropp, 2013). O modelo busca delinear: 1) a escala possível de comportamentos e reações estatais frente aos reclamos de direitos humanos; 2) os tipos de ações de que redes transnacionais de direitos humanos podem se valer para fazer os Estados avançarem nessa escala evolutiva; e, por fim, 3) os obstáculos e barreiras político-institucionais que podem emperrar esses avanços, a despeito dos esforços de ONGs e outros atores das redes transnacionais.

Assim, a dinâmica do modelo começa com uma análise temporal e logicamente encadeada do comportamento de Estados violadores frente a pressões transnacionais de direitos humanos, debruçando-se sobre os estágios e mecanismos por meio dos quais as normas internacionais podem vir a alterar discursos, políticas públicas e práticas domésticas de direitos humanos. Os Estados podem se mover em um continuum de cinco fases, quais sejam: repressão, negação, concessões táticas, status prescritivo e comportamento consistente com as normas (Risse & Ropp, 2013, p. 8-10).

O modelo espera que redes transnacionais bem articuladas de ONGs, organizações internacionais e governos estrangeiros consigam, após certa persistência, e de maneira gradual, porém cumulativa, ativar sinergicamente pelo menos três mecanismos de mudança de comportamento estatal (Risse & Ropp, 2013, p. 14-16). O primeiro deles envolveria a alteração das estruturas de incentivos dos governos dos países-alvos por meio de sanções e recompensas, o que aumentaria os custos de perpetuação das violações e de não reconhecimento da sua existência e gravidade. Já o segundo abarcaria a persuasão argumentativa e convencimento dessas elites recalcitrantes sobre a legitimidade e o valor intrínseco das normas de direitos humanos por meio de estratégias de naming e shaming até o ponto de uma mudança identitária genuína dos governos, capaz de fazer cessar os abusos. Finalmente, as redes poderiam ainda facilitar, frente aos Estados violadores, a prestação de auxílio para criação ou fortalecimento das capacidades institucionais necessárias para pôr fim e corrigir as violações por meio de programas de treinamento e construção de expertises governamentais.

Como resultado da ação de tais mecanismos, colocar-se-ia em marcha uma espiral de avanços positivos nas práticas dos Estados. Políticas deliberadas de violações deixariam de ser perpetradas (fase da repressão), com reconhecimento estatal dos abusos cometidos (superação da fase de negação). Em seguida, após a implementação de mudanças superficiais apenas para apaziguar as críticas (concessões táticas), os governos aceitariam a legitimidade indisputável das normas de direitos humanos (status prescritivo), coibindo e punindo posturas desviantes de agentes do Estado até o ponto em que o comportamento estatal atinja plena aderência a essa normatividade (comportamento consistente com as normas) (Risse & Ropp, 2013, p. 8).

Porém, o modelo argumenta que a esperada sucessão lógica, ascendente e progressiva não é automática. O alcance e recepção finais das pressões normativas dependerão da configuração e peso de cinco condições da política doméstica dos países: tipo de regime político (autoritário ou democrático); alcance do poder e autoridade soberana do Estado (estatalidade consolidada ou limitada); tipo de processo decisório por trás da mudança requerida das políticas públicas (centralizado ou descentralizado); e grau de vulnerabilidade material e social frente às demandas de direitos humanos (Risse & Ropp, 2013, p. 16-22). Quanto mais vulneráveis os países a pressões reputacionais e materiais externas, e mais consolidadas suas democracias, estatalidades e escalas de centralização durante a implementação de políticas, maiores seriam as chances de mudanças pró-direitos humanos.

Nesse modelo, fatores estruturais de ordem política e institucional, próprios aos contextos domésticos dos países, são as barreiras que podem bloquear os avanços civilizatórios da espiral impulsionada pelas redes transnacionais, dentro das quais ONGs profissionais de direitos humanos ocupam papel central como correias de transmissão de denúncias e informações entre os locais de ocorrência das violações e os espaços da governança global. O modelo assume, a priori, que não é necessário analisar, empiricamente, os termos, bases, fundamentos e potencialidades das ações de ONGs e outros atores que compõem as redes transnacionais e utilizam a linguagem dos direitos humanos, uma vez que se supõe que eles necessariamente contribuiriam para alavancar e empoderar o ativismo local nos países-alvo.

Não seria necessário investigar as práticas de ONGs profissionalizadas frente a vítimas, movimentos sociais e atores locais de base, pois, ainda que haja eventual oligarquização desses grupos com aumento da sua distância frente aos seus stakeholders, sua atuação em redes transnacionais continuará invariavelmente produzindo efeitos positivos no plano político-institucional. Há, portanto, uma visão teleológica e homogeneizadora, segundo a qual as ONGs de direitos humanos, em contextos político-institucionais domésticos minimamente favoráveis, sempre promoverão: mudanças benéficas na formação de agendas locais e globais; litígios em nome da exigibilidade de novos direitos perante tribunais nacionais e internacionais; e estímulos a ações coletivas e de resistência de movimentos sociais (Simmons, 2009).

Hopgood (2013), um dos autores mais emblemáticos da visão pessimista sobre a mobilização internacional dos direitos humanos, opõe-se a essas leituras e resume algumas das principais críticas sobre a estrutura global de normas, instituições, tribunais e organizações intergovernamentais e não governamentais que compõem o regime internacional de direitos humanos. Longe de expressarem uma preocupação genuína com o enfrentamento das violações de direitos humanos perpetradas ou permitidas pelos Estados, os atores dessa governança global conformariam verdadeiros mercados tecnocráticos e legalistas em que o sofrimento das massas, transformado em mercadoria, assegura projetos, financiamento, prestígio, visibilidade, projeção profissional e sobrevivência institucional para uma elite internacional (Hopgood, 2013, p. 93; p. 103-105).

Desse modo, a questão da representação de indivíduos e coletividades afetados por violações por uma relativamente seleta elite de ONGs de direitos humanos, ausente no modelo espiral, torna-se um problema central. Ganha destaque o processo alegadamente inescapável de silenciamento e esvaziamento das vozes que, ao percorrerem esse caminho para que suas demandas cheguem aos espaços da governança global, acabariam encapsuladas pelos interesses de seus supostos defensores.

Segundo essa visão, existe um “`mercado humanitário’ de organizações cujo modelo de negócios envolve cada vez mais publicidade e arrecadação de fundos para remunerar ativismo global profissional em vez de estimular ação coletiva transnacional” (Hopgood, 2013, p. 97). Como resultado, a prioridade seria não a de encampar as demandas e clamores de vítimas e movimentos sociais de base atingidos por crimes bárbaros, mas antes alimentar os autointeresses das elites internacionais bem-remuneradas de ativistas e advogados altamente profissionalizados e especializados, sobretudo do Norte desenvolvido, que dependem da perpetuação dessas estruturas da governança global dos direitos humanos.

Em outras palavras, existiria um abismo insuperável entre as ONGs dessa governança global e os atores sociais de base, compostos por grupos que, em razão da posição marginalizada e periférica que ocupam nas sociedades nacionais, são historicamente os mais atingidos por violações de direitos humanos. Além disso, assume-se de antemão que as grandes ONGs internacionais do Norte representariam o modelo dominante - se não único - de ativismo capaz de navegar pela governança global de direitos humanos, mais uma vez suprimindo vozes e gramáticas locais de dissenso das verdadeiras vítimas de abusos.

Com base nessa revisão, observa-se que, na literatura de Relações Internacionais, a discussão sobre o ativismo profissional de direitos humanos ora é negligenciada por completo em razão de premissas implícitas sobre seus efeitos necessariamente positivos, ora é enquadrada em um modelo único fatalista que perde de vista outras possíveis configurações empíricas possíveis do fenômeno. A fim de evitar e romper esses extremos dicotômicos, as contribuições analíticas dos estudos sobre movimentos sociais, organizações da sociedade civil e suas interações no plano doméstico com o Estado podem ser um ponto de partida útil para futuras agendas de pesquisa.

Em abrangente revisão das investigações empíricas sobre interações socioestatais conduzidas nas últimas duas décadas, Lavalle et al. (2019) elencam três conclusões. Tais achados e suas implicações analíticas podem ser trazidas para os debates sobre mobilização dos direitos humanos internacionalmente, pois tocam no tema de se a proximidade de movimentos sociais e organizações da sociedade civil com instituições políticas e espaços altamente institucionalizados leva necessariamente à sua desmobilização e a perdas no potencial contestatório e transformador das lutas sociais.

Segundo Lavalle et al. (2019), em suas relações com autoridades e espaços políticos, os movimentos sociais se valem, segundo as circunstâncias, de formas de ação híbridas, criativas e mutáveis. Elas tanto podem ser institucionalizadas, padronizadas e rotinizadas - orientadas, portanto, por regras e repertórios fixos - quanto não institucionalizadas, i.e., mais informais, espontâneas e instáveis. Ademais, “o uso de canais institucionalizados no repertório de ação e a formalização das organizações não leva obrigatoriamente à desmobilização do movimento” (Lavalle et al., 2019, p. 39). Por fim, o engajamento de movimentos sociais com autoridades se dá não apenas por eixos de conflitos e confrontos, mas também via interações cooperativas e colaborativas orientadas ao fortalecimento das capacidades estatais na produção e implementação de políticas públicas, sem que isso, mais uma vez, redunde em obrigatória cooptação.

Transpondo para a nossa discussão de interesse esse conjunto de achados empíricos, se os movimentos sociais que usam ações mais institucionalizadas, colaboram com o Estado e passam por processos de complexificação organizacional (especialização funcional, profissionalização e formalização) não são inevitavelmente atingidos pelos efeitos da burocratização, desmobilização e perda de radicalidade, cabe a indagação: como se configuram essas dinâmicas no campo dos direitos humanos? Nas próximas seções, a partir da análise do caso do CEDEHM, a análise buscará esmiuçar esse ponto.

IV. A criação e os antecedentes do CEDEHM: ativismo militante e defesa legal

O CEDEHM foi criado em 2005 - e passou a operar em 2006 - como um grupo de defesa dos direitos humanos, voltado ao litígio de casos e à sua conversão em causas políticas. Sua equipe de fundadores e suas práticas de mobilização dos direitos humanos possuem antecedentes importantes no campo da luta social de base e da militância política junto ao movimento El Barzón e ao grupo Justiça para Nossas Filhas (JPNH).

Esse histórico de articulação próxima e direta dos fundadores do CEDEHM com movimentos sociais impacta o perfil, atividades, práticas e estratégias do grupo. Ao transitar de um formato de ação coletiva mais informal e espontâneo para o modelo institucionalizado de uma ONG, com aderência a códigos, regras, rotinas e parâmetros normativos fixos, o coletivo de indivíduos vinculados ao CEDEHM não perdeu a ligação pessoal e emocional, herdada do passado militante, com as situações vividas por vítimas de violações e com o compromisso de reivindicar mudanças e transformações sociais, mantendo uma mística de forte indignação.

Nos cenários judiciais e institucionais de atuação da ONG, essa mística é continuamente transmutada em uma “paixão destilada”, dosando e moderando - sem, contudo, abandonar totalmente - o radicalismo e antagonismo típicos do passado do grupo5. Isso alimenta o ativismo do CEDEHM de maneiras criativas e engenhosas entre ações mais e menos institucionalizadas orientadas ora ao confronto, ora à colaboração com autoridades. Assim, criam-se continuamente exigências para que sejam combinados elementos tanto do circuito técnico-burocrático da representação jurídico-legal, próprios da figura do defensor (advocate), quanto do circuito mais político de intermediação para a reivindicação do acesso a direitos frente ao Estado e organizações internacionais, característicos do universo do ativista (Gallagher, 2017; 2019).

Segundo Gallagher, há diferenças importantes entre esses dois papéis. O ativista (activist) é conhecido por elencar e difundir denúncias, incisivamente assumindo uma postura de conflito aberto que busca sinalizar as obrigações normativas e responsabilidades estatais desrespeitadas para, em seguida, envergonhar e culpar os governos, afastando assim discursos típicos de estigmatização e criminalização das vítimas. Já o defensor (advocate) não pode ocupar essa posição de confronto sustentado e contínuo, pois seu papel é antes o de intermediar e auxiliar na criação de contatos, acordos e trocas de comunicação entre agentes do Estado e as vítimas da violência, cuidando para que ambos os grupos lhe confiram legitimidade suficiente para desempenhar essa função de mediação (brokerage).

Esse complexo jogo de alternâncias entre enfrentamento e engajamento é característico do trabalho do CEDEHM. O vetor de diálogo e negociação ocorre em espaços institucionalizados, como as organizações estatais e internacionais responsáveis por direitos humanos. Paralelamente, a via confrontativa se dá no acompanhamento das ações espontâneas e informais dos movimentos de vítimas, como quando realizam manifestações públicas de protesto e de recuperação da memória das pessoas atingidas pela violência.

Ao final, a dinâmica resultante garante que o uso da linguagem dos direitos humanos e dos seus recursos técnico-legais se politize e não se torne presa de tecnicismos e fetichismos jurídicos desvinculados das demandas e do necessário protagonismo das vítimas. Ademais, permite, para além do confrontacionismo, e com base na expertise técnica que diferencia o CEDEHM das vítimas, a possibilidade de estabelecer encaixes institucionais6 com órgãos internacionais e do Estado a fim de aumentar a porosidade estatal a pelo menos parte desses reclamos sociais, os quais, sem a ajuda do grupo, não teriam a mesma ressonância.

O processo que culminou na criação do CEDEHM com esses atributos específicos de ativista e defensor teve início entre 1993 e 1994. Após a liberalização comercial do México à produção agropecuária dos Estados Unidos e Canadá, pequenos e médios produtores rurais do estado de Chihuahua passaram a se reunir, pressionados pela competição desleal de produtos importados e pelas dificuldades de quitar dívidas bancárias. Com o tempo, produtores de outros Estados também se organizaram paulatinamente e assim surgiu o Barzón como um movimento nacional.

Com a grave crise econômica e financeira mexicana de 1994, o problema das dívidas passou a atingir as cidades. Importantes setores da população urbana que haviam tido acesso ao crédito hipotecário sofriam a ameaça de perder suas moradias pela impossibilidade de pagar as prestações bancárias em razão do forte aumento das taxas de juros. Nesse momento, os movimentos urbano e rural dessas classes médias endividadas se uniram, ampliando o escopo e foco de ação do Barzón (Grammont, 2001). Foi então nesse cenário que três pessoas-chave por trás da futura criação do CEDEHM se juntaram ao Barzón de Chihuahua: Luz Estela Castro Rodríguez, Alma Gómez e Gabino Gómez7.

Luz Estela Castro Rodríguez, mais conhecida como Lucha Castro, é advogada, teóloga e católica ecumênica influenciada pela teologia da libertação. Sua conversão ao ativismo social ocorreu depois da crise de 1994, em razão do endividamento de sua própria família. Com a morte de seu pai, e diante de perdas patrimoniais, ela, sua mãe e irmãs assumiram a empresa de perfuração de poços d’água da família, então em risco financeiro devido às cobranças exorbitantes de pagamento de empréstimos. Lucha então passou a organizar assembleias populares na garagem de sua residência, somando-se à luta de defesa das casas, capital e terras das muitas outras famílias que tinham se tornado vítimas de ordens de despejo e apreensão de bens.

Alma Gómez é filha do médico e professor Pablo Gómez Ramírez, dirigente do Grupo Popular Guerrilheiro que foi assassinado em 1965. Ela foi militante do Movimento de Ação Revolucionária (MAR) na década de 1970 e presa política por três anos. Com formação na área de educação primária, e sempre envolvida com os movimentos estudantil e campesino, tornou-se professora de escolas rurais e, na sua juventude, conselheira nacional da Federação de Estudantes Camponeses Socialistas do México. Após sua saída da prisão, nutrida pelo compromisso de justiça social e de lutar pelo direito de moradia digna para centenas de famílias pobres, uniu-se ao Comitê de Defesa Popular de Chihuahua, entre 1976 e 1988, participando da ocupação de centenas de terrenos para construção de bairros populares.

Gabino Gómez, que conheceu e se casou com Alma após a saída dela prisão, também atuou no Comitê de Defesa Popular de Chihuahua. Formado em engenharia agrônoma e atuando como pequeno produtor rural em seu ejido8, desenvolveu trajetória de defesa de pautas camponesas e de justiça social. Atuou na formação de lideranças do campo como professor na Escola Superior de Agricultura Irmãos Escobar, de Ciudad Juárez. Participou da criação da Frente Democrática Campesina, movimento social que nasceu em Chihuahua nos anos de 1980 em favor do acesso ao crédito rural e do pagamento de preços dignos para a produção agrícola. Desde então, atuou em numerosos protestos contra políticas econômicas neoliberais e seus efeitos sobre pequenos produtores agrícolas, ressaltando questões relativas à soberania alimentar, meio ambiente e direitos à terra e água.

O trabalho de luta social desenvolvido por essas três lideranças e demais integrantes do Barzón em prol das classes médias urbanas e rurais endividadas era originalmente distante de qualquer conexão com o repertório dos direitos humanos. Porém, é necessário entendê-lo, uma vez que estabeleceu orientações duradouras para práticas singulares herdadas depois pelo CEDEHM. Basicamente, o Barzón se preocupava com empoderamento e constituição das pessoas devedoras como sujeitos de direitos, abordagem ainda hoje presente no trabalho da ONG frente às vítimas de violações de direitos humanos. Três eram os pilares das atividades do Barzón: organização dos devedores, defesa jurídico-legal e resistência civil pacífica (Gómez, 2018a; Rodríguez, 2018).

Segundo Alma Gómez e Lucha Castro, a organização das pessoas devedoras ocorria com a realização de oficinas, reuniões, assembleias e convites a novos membros. Discutiam-se estratégias de ação coletiva e eram disseminadas informações sobre o problema das dívidas e suas causas estruturais, atreladas ao modelo econômico neoliberal. Naquele momento, as pessoas devedoras estavam sendo processadas judicialmente e, posteriormente, eram desalojadas e perdiam suas propriedades sem que tivessem consciência do que significava a ação judicial, seus procedimentos e as possibilidades de reação e defesa jurídica. Desse modo, “foi muito importante para a organização socializar o direito (...) a defesa jurídica, mas entendida não somente do ponto de vista dos advogados, dos especializados, mas das pessoas” (Gómez, 2018a).

Como resultado, as pessoas devedoras eram orientadas a se dirigir aos tribunais em que tramitavam seus processos. Com a cópia desses documentos, eram ensinadas a ler, interpretar e compreender as decisões judiciais em um processo de alfabetização jurídica. Posteriormente, nas oficinas, discutiam-se as várias etapas dos processos e os recursos que poderiam ser interpostos, “e as pessoas aprendiam a se defender” (Gómez, 2018a). Finalmente, em situações de desalojamento, eram ativadas redes para proteger as famílias e evitar expulsões, o que gerava forte presença popular destinada a impedir, por meio da resistência civil pacífica, a ação de despejo9.

Em 1997, ademais do Barzón, Lucha e Alma se somaram à luta contra os assassinatos e desaparecimentos de mulheres na fronteiriça Ciudad Juárez, dentro do grupo das Mulheres Barzonistas (Gómez, 2018a). Como resultado, em razão da enorme internacionalização das campanhas sobre o tema das mulheres mortas, Alma, Lucha e Gabino foram expostos a inúmeras visitas e pronunciamentos de atores das redes transnacionais de direitos humanos (Aikin, 2011, p. 164-166), ampliando suas conexões e repertório de ações perante canais internacionais altamente institucionalizados.

Nesse mesmo contexto das campanhas contra os feminicídios, em 2002, Norma Ledezma entrou em contato com Alma, Gabino e Lucha. Trabalhadora de uma maquiladora e mãe da jovem Paloma Escobar, desaparecida e assassinada em Chihuahua, ela lhes pediu que a ensinassem a fazer protestos frente à negligência das autoridades estatais. Através do coletivo Justiça para Nossas Filhas (JPNH), os três passaram a assessorá-la, ajudando ainda outras mães de jovens mortas e desaparecidas. Em dezembro de 2003, com o apoio de uma ONG estrangeira e outra nacional, enviaram o caso de Paloma para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).

Em razão dessa atuação, Lucha, Alma e Gabino foram nomeados coadjuvantes legais pelas mães para que pudessem ter acesso aos expedientes do Ministério Público (MP) e ajudar nas investigações10. Se antes, no Barzón, as questões legais eram de dívidas no âmbito civil, agora o tema se deslocava para o direito penal. Mais uma vez, houve esforços de conscientização de direitos e de ensinar as fases e trâmites investigativos para as mães do coletivo. Encontros de acompanhamento com o MP eram marcados tanto para solicitar acesso e cópias dos processos quanto para exigir avanço nos procedimentos correspondentes (Gómez, 2018a; Rodríguez, 2018).

Em resumo, no tocante à trajetória pessoal de Lucha, Alma e Gabino, para além do trabalho de organização e empoderamento popular via Barzón e da exposição à rede transnacional de direitos humanos por meio das Mulheres Barzonistas, o coletivo JPNH lhes levava a aprofundar a relação com o sistema judicial doméstico. Esse novo eixo de atuação tornava ainda mais complexo o panorama simultâneo de ações institucionalizadas e não institucionalizadas de denúncia, mas também de cooperação, em diferentes arenas dentro e fora do Estado.

Todas essas experiências foram fundamentais quando, em 2005, mescla-se o momento de surgimento formal do CEDEHM com as dinâmicas estaduais de instalação de um sistema penal acusatório inovador e inédito no país. Naquela oportunidade, gerou-se um cenário que concluiu, dentro da ONG, o processo de conexão - e convivência - da luta político-social com a estratégia de litígio ancorada na linguagem técnico-legal dos direitos humanos.

Em 2004, o então governador de Chihuahua tinha adotado uma proposta de reforma judicial para se contrapor às denúncias nacionais e internacionais sobre os feminicídios. Dado o passado de acompanhamento legal das mães via JPNH, o CEDEHM, já a essa altura prestes a se constituir formalmente, estava preparado e bem posicionado para exercer o papel de defensor (advocate) e aproveitar a janela de oportunidade política aberta com os debates sobre o formato do que viria a ser o sistema penal acusatório estadual a partir de 200611. Por conseguinte, incidiu diretamente nas discussões e estabeleceu novos encaixes institucionais para canalizar as demandas sociais de mulheres e mães até o Estado.

Uma vez que a ONG possuía diagnósticos e amplos conhecimentos sobre os problemas e deficiências nas investigações criminais dirigidas pelo MP, conseguiu ser ouvida e participar da formulação da legislação. Para contemplar os reclamos do movimento social de mulheres, inseriu então a perspectiva de gênero e a figura da acusação coadjuvante, ampliando os direitos das vítimas.

De maneira inovadora, a acusação coadjuvante instituiu o direito privado de persecução criminal, rompendo o monopólio antes exclusivo do MP. Como resultado, geraram-se novos espaços para o litígio penal doméstico e para a criação e fortalecimento das capacidades estatais. Isso porque as vítimas e seus representantes legais passaram a ter os direitos tanto de apelar da decisão do MP de não investigar ou processar um crime quanto de participar na investigação dos casos, inclusive podendo discordar da tipificação dos delitos proposta pelo MP. Logo, atores como o CEDEHM, que utilizam esse instituto legal para controlar e supervisionar a atuação do MP, contribuem para melhorar as investigações, denunciar possíveis negligências e impedir tentativas de evadir julgamentos por meio da celebração de acordos entre acusados e o MP (Michel, 2018, p. 136-168).

Como sinal do reconhecimento dessas suas importantes contribuições para a reforma, o CEDEHM recebeu o mesmo treinamento oferecido aos integrantes do sistema judicial durante a fase de transição para o novo sistema acusatório, adquirindo assim o conhecimento técnico-legal necessário para litigar domesticamente nos novos procedimentos orais (Michel, 2018, p. 156). Portanto, o histórico de encaixes institucionais com o MP não só facilitou a incidência bem-sucedida do CEDEHM na nova legislação, contribuindo assim para a ampliação das capacidades estatais. Tais vínculos ampliaram também as próprias capacidades organizacionais do grupo, dado o acesso a competências técnicas e jurídicas de alta complexidade para o seu quadro de funcionários. Em suma, evidenciava-se um processo de constituição mútua entre a ONG e o Estado.

Por muito tempo, o grupo foi a única ONG a atuar na esfera penal no México, e litigou o primeiro caso no país com a figura do acusador coadjuvante (Michel, 2018). Isso consolidou a cultura de colaboração do CEDEHM com o MP nos casos em que atua, por meio da qual o grupo tenta sempre construir uma relação de trabalho conjunto para aumentar a taxa de sucesso das investigações e dos casos, sem abandonar as estratégias de denúncia, mobilização social e difusão na mídia.

Estava finalizada assim a criação de um novo circuito de representação jurídico-legal dentro da ONG, o qual se somou ao papel de intermediação política oriundo da atuação anterior junto ao Barzón, Mulheres Barzonistas e ao JPNH. A identidade dos integrantes do CEDEHM passou a ser de defensores e ativistas dos direitos humanos ao mesmo tempo. No entanto, poucos anos depois, um desafio inesperado e estranho à temática da violência de gênero impôs-se ao grupo, exigindo novos formatos de atuação e testando sua paixão destilada: a crise dos desaparecimentos forçados.

V. A incorporação da agenda dos desaparecimentos forçados e involuntários: empoderamento, litígio e enfoque psicossocial

Desde o final de 2008, o CEDEHM oferece acompanhamento integral a familiares de pessoas desaparecidas. A ONG passou a abarcar a temática frente à gravidade da crise de direitos humanos e dos clamores de vítimas, sobretudo mulheres, que, sem qualquer apoio político ou institucional, buscavam incessantemente seus entes queridos desaparecidos em Chihuahua. Até 2019, o grupo já havia representado 248 casos de pessoas desaparecidas, os quais englobavam cerca de 500 pessoas de distintas famílias atingidas pela violência.

Mais recentemente, a organização passou a atuar em favor de pessoas deslocadas internamente e defensores de direitos humanos em situações de risco. Diferentemente da visão de uma elite protegida e tecnocrática de ativistas profissionais, há mais de 12 anos, integrantes do CEDEHM contam com medidas cautelares protetivas da CIDH devido a recorrentes ameaças e perseguições.

Internacionalmente, perante a CIDH e a Corte IDH, o CEDEHM notabilizou-se pela obtenção de medidas de urgência para as pessoas desaparecidas das famílias Alvarado e Muñoz e pela condenação do México no caso Alvarado, em 201812. Nos dois casos, a ONG aplicou o mesmo paradigma de acompanhamento integral utilizado para outras famílias vitimadas pelo crime dos desaparecimentos forçados. O enfoque se estrutura em três eixos principais: empoderamento para exigência de direitos; representação jurídico-legal; e abordagem psicossocial13.

Tal abordagem revela um alto grau de profissionalização e complexificação organizacional da ONG, mas sem que seu trabalho se restrinja ao litígio estratégico. Para Alejandra Nuño, advogada, ex-integrante e consultora externa do CEDEHM14, a experiência prévia em casos de delitos de gênero foi decisiva quando situações de desaparecimentos forçados ou involuntários chegaram à ONG. Longe de nutrir qualquer fetichismo pelo Direito, o CEDEHM entendia que “o jurídico (...) não é suficiente” (Nuño, 2018).

Segundo Ruth Fierro, diretora do CEDEHM15, o vínculo da ONG com a agenda feminista sempre carregou o compromisso de construir pautas coletivamente com as mulheres, nunca lhes impondo decisões unilaterais. Essa perspectiva, transposta para a relação com familiares de pessoas desaparecidas, liga-se com o acompanhamento integral (Fierro, 2018).

Tal modelo de atuação “com, para e pelas vítimas” (Gómez, 2018a) é o diferencial do CEDEHM, que o separa do universo dos “burocratas de direitos humanos” (Rodríguez, 2018). Segundo Lucha, os três eixos do acompanhamento integral se sustentam em “dois pés: a questão jurídica e o ativismo social. Precisam caminhar as duas coisas juntas” (Rodríguez, 2018). Repertórios de ação mais e menos institucionalizados convivem entre si, com dinâmicas de mobilização direta com atores de base e estratégias de cooperação e conflito com as autoridades.

No primeiro eixo do acompanhamento integral, relativo ao empoderamento, há um trabalho de fortalecimento para a exigência de direitos. Desenvolvem-se reuniões e oficinas de alfabetização jurídica para que, de maneira simplificada, vítimas, sobreviventes e familiares sejam apresentados ao funcionamento das estruturas legais e aos expedientes e trâmites de investigações.

Mais recentemente, atenção especial é dedicada também aos dispositivos das leis mexicanas de vítimas e sobre desaparecimentos, entre outros pontos relativos à lógica de operação do Estado e ao modo como devem ser acionados os recursos institucionais à disposição das famílias para apresentação de denúncias. Isso garante a ocorrência de um processo de conscientização, educação popular e organização que lhes permite entender claramente o andamento dos seus casos, contribuindo para que possam se envolver com papel ativo de monitoramento e cobrança e, assim, assumir o protagonismo como os principais atores da luta social por justiça, memória e verdade.

Como resultado desse empoderamento, aprimoram-se suas capacidades de sinalizar e atribuir responsabilidades, de identificar quem deve ser cobrado institucionalmente, e de localizar quais reclamos normativos básicos devem embasar os enfrentamentos contra a impunidade e em prol de respostas sobre o paradeiro de seus seres queridos. Com um enquadramento interpretativo mais claro sobre as causas subjacentes às violações, relacionadas à falida estratégia de militarização da segurança pública, as vítimas adquirem mais recursos para articular suas demandas específicas e individualizadas dentro de uma narrativa mais abrangente por meio da qual ganham maior compreensão de como os seus casos se atrelam a um conjunto mais amplo de abusos. Nesse sentido, o CEDEHM fomenta o envolvimento substantivo dos familiares, tendo como horizonte a criação de sujeitos políticos e de um movimento social mais amplo.

Em oposição à visão de que o global estrutura, coloniza e suprime inevitavelmente as reivindicações e demandas de atores e movimentos locais (Hopgood, 2013), o caso do CEDEHM mostra um bem-sucedido processo de localização e vernacularização dos direitos humanos (Merry, 2006). Há uma tradução dos princípios da governança global dos direitos humanos para o contexto social específico da realidade e da luta local do movimento de familiares de pessoas desaparecidas.

A identificação das causas dos problemas por trás das violações (militarização combinada com criminalização da pobreza); a sinalização dos responsáveis pelos abusos (Exército e/ou forças de segurança em conluio com crime organizado); e as saídas institucionais para superar esse quadro de reiterados crimes de Estado (modelo de segurança pública com comando e efetivos civis) se articulam no espaço em que as violações ocorrem, com plena correspondência com os testemunhos e reclamos dos familiares, e não por uma imposição top down de agendas globais externas às dinâmicas do contexto local. O enquadramento interpretativo usado é o da busca de uma segurança sem guerra, i.e., a ideia de que as instituições civis devem ser encarregadas da segurança pública em um cenário de desmilitarização.

Já no segundo eixo do acompanhamento integral, relativo à representação legal, o objetivo é múltiplo. Em primeiro lugar, impulsiona-se o litígio estratégico doméstico de casos específicos, mas emblemáticos. A expectativa é de que as vitórias judiciais em processos individuais, por meio do acúmulo de precedentes e jurisprudências, possam alcançar numerosos outros casos análogos e semelhantes, tendo potencial de repercussão geral em reformas e mudanças institucionais estruturais e de grande abrangência.

Em segundo lugar, a representação legal se presta ainda a promover processos de socialização e persuasão de agentes judiciais e outros funcionários estatais em uma espécie de relação pedagógica e educativa (González-Ocantos, 2016) frente às normas internacionais de direitos humanos. Trata-se de apresentar, no plano local, os conteúdos e elementos que os juízes devem absorver, dando substância ao marco jurídico nacional sobre o tema que, embora já exista e tenha incorporado a normatividade internacional, não é aplicado cabalmente. Nas palavras de Ruth, é preciso “estar mostrando o que não se fez, estar juntando as sentenças ou resoluções que não se apegam aos padrões internacionais”, ou seja, invocar o direito internacional no âmbito legal interno, em litígios concretos, para que o ordenamento doméstico mude (Fierro, 2018).

Simultaneamente, com fundos próprios, há um esforço de fortalecer, capacitar, profissionalizar e até mesmo viabilizar o funcionamento de várias agências estatais. Com projetos financiados pela MacArthur Foundation, União Europeia e Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), entre outros doadores, o CEDEHM regularmente promove treinamentos das equipes do MP e da polícia responsáveis por investigar e processar abusos de direitos humanos.

Ademais, impulsionou, entre outras ações: a criação de uma agência especializada do MP estadual voltada para desaparecimentos forçados e graves violações; a celebração de convênio das autoridades locais com a Equipe Argentina de Antropologia Forense para o tema da identificação de restos ósseos de desaparecidos; e um projeto de assistência técnica para a comissão estadual de atenção a vítimas. Ao mesmo tempo, a ONG debate, em eventos especiais, com a presença de famílias, outras organizações da sociedade civil e autoridades, diagnósticos e desafios para a implementação da legislação mexicana vigente sobre desaparecimentos.

Como resultado, aumentam os encaixes institucionais e a porosidade estatal, com incremento da capacidade de influência e de institucionalização de demandas por parte do CEDEHM. Tal como quando da discussão e implementação do sistema penal acusatório, nas interações socioestatais entre a ONG e instâncias estaduais, essa arquitetura acumulada de sucessivos e novos encaixes institucionais leva ao reconhecimento do domínio de agência16 do CEDEHM, i.e., tanto da sua esfera de competência e legitimidade para identificar problemas e soluções quanto das suas correlatas habilidades e capacidades sociais, técnicas e de agir no campo dos desaparecimentos forçados e involuntários, justamente no qual há déficit de capacidades estatais.

Finalmente, em terceiro lugar, a representação legal permite esgotar os recursos jurisdicionais domésticos e documentar os obstáculos enfrentados para a consecução da justiça, com vistas a subsidiar o posterior acionamento dos mecanismos internacionais de direitos humanos. De posse então de pronunciamentos internacionais, a expectativa é a de impactar a ação do Estado, usando recomendações e sentenças não só como novos recursos jurídico-legais no sistema judicial doméstico, mas também como ferramentas de pressão diante de outras autoridades.

Porém, a despeito desses contatos e intercâmbios com órgãos jurisdicionais domésticos e internacionais, há entraves persistentes na atuação das autoridades e uma série de limites institucionais do sistema de justiça. De modo geral, as instâncias judiciais raramente são reparadoras. Elas tendem a perpetuar situações de grande impunidade, de invisibilização das vítimas e de falta de sensibilidade de muitos dos seus operadores com o contexto das violações.

Em razão disso, para além da representação jurídico-legal e do empoderamento para exigência de direitos, o CEDEHM agrega um terceiro eixo ao repertório de ações do enfoque de acompanhamento integral às famílias de pessoas desaparecidas. Trata-se, segundo Rossina Uranga17 e Andrea Cárdenas18, da dimensão psicossocial de atenção aos familiares (Cárdenas, 2018; Uranga, 2018). Nesse trabalho, o foco é politizar - e não patologizar - o acompanhamento psicológico a partir da perspectiva da psicologia social da libertação, afiliada à tradição de pensamento crítico e de ação social da teologia da libertação19.

Diferentemente de um contexto clínico tradicional individualizado, o trabalho é coletivo20. Em vez de tratar as pessoas como doentes, apontam-se os contextos de violência, discriminação e precarização dos direitos, bem como suas subjacentes estruturas de poder. O objetivo é revelar como, diante de condições tão abusivas, os traumas e outros processos psíquicos adversos são apenas uma reação normal diante de cenários anormais de atrocidades (Cárdenas, 2018; Uranga, 2018).

As seções de acompanhamento psicossocial são planejadas a partir dos últimos acontecimentos relatados pela equipe jurídica. Esses fatos e os temas relacionados aos processos legais são então trazidos à tona para gerar reflexões. Dessa forma, os trabalhos psicológico e jurídico se entrelaçam continuamente para desenvolver estratégias comuns com uma equipe psicojurídica (Uranga, 2018).

Isso permite construir espaços para que as vítimas se fortaleçam coletivamente e se apoiem mutuamente na busca por verdade e justiça, possibilitando tecer uma memória histórica para além do que conste oficialmente nas quase sempre ineficazes investigações e eventuais ações judiciais. Esses ambientes são essenciais para que as vítimas possam expressar publicamente tanto os sentidos e emoções que atribuem aos incidentes de violência quanto os efeitos das violações sobre seus modos de vida, desprivatizando assim a dor e o sofrimento das violações e combatendo estigmas, preconceitos e campanhas de criminalização (Cárdenas, 2018).

Desse modo, perante um ambiente social majoritariamente indiferente ao tema, com o apoio do CEDEHM, as famílias de pessoas desaparecidas disputam as narrativas no espaço público com marchas, protestos, slogans, comemoração de datas importantes, instalação de silhuetas das pessoas desaparecidas, realização de murais e grafites urbanos e outras demonstrações e ações políticas e simbólicas. A ONG fomenta a ativação de circuitos de agência voltados para a reumanização dos desaparecidos, operando em conjunto com as famílias como empreendedora da memória e também como ativista de sentidos, interessada em “tentar criar uma vontade social de lembrar” (Gerli, 2018, p. 112).

Nesse cenário, o CEDEHM não alija, encapsula nem silencia as vozes e a potência antagônica dos familiares. Nos três eixos do acompanhamento integral, há uma recusa expressa de manter vítimas e familiares em um regime de sofrimento, a fim de exibi-los em atos performáticos contínuos de revitimização que possam atrair a atenção dos espaços da governança global. Pelo contrário, em contexto de traumas e profundas desestruturações familiares, a ONG contribui para converter o sofrimento em luta pública, facilitando acesso a meios de comunicação, academia e espaços institucionais dentro e fora do país.

VI. Comentários finais

A análise demonstra que, durante sua trajetória, o CEDEHM não perdeu conexão com lutas sociais reais em decorrência do seu processo de complexificação organizacional, profissionalização e formalização. A formação da ONG e de sua equipe não foi resultado do trabalho de um seleto grupo de advogados com alto e prévio perfil de treinamento técnico. Foi antes fruto dos esforços de ativistas sociais, muitas vezes estranhos ao campo do Direito, que adquiriram e acumularam expertise jurídica e psicossocial, entre outras competências, em decorrência do contato com vítimas e dos encaixes progressivos com espaços institucionalizados dentro e fora do Estado.

Por meio do uso das esferas e recursos normativos da governança global, o CEDEHM aumentou sua capacidade de interpelar o Estado. Graças às pressões das recomendações, decisões e sentenças internacionais, que se somam à legitimidade, visibilidade e apoios externos angariados pelo grupo, a ONG pode cavar mais encaixes e canais de acesso e interlocução junto às estruturas estatais, criando domínios de agência. Consequentemente, abrem-se vias para institucionalização de demandas (criação de regras, leis, protocolos, programas e parcerias) e fomento das capacidades estatais de ação e intervenção em maior conformidade com os padrões internacionais. Tais parâmetros estimulam e balizam: o atendimento e reparação das vítimas e familiares; a busca de pessoas desaparecidas; a localização e identificação de locais de inumação e eventuais restos mortais; e a punição dos responsáveis pelos crimes cometidos.

São frequentes as participações de familiares em oficinas nas dependências do CEDEHM bem como as viagens e deslocamentos de seus membros a distintas regiões do Estado para prestar apoio a famílias e dialogar com elas sobre seus casos; averiguar denúncias de sítios clandestinos de ocultação de cadáveres; e acompanhar trabalhos forenses, de investigações e reparações junto ao MP e outras dependências do Estado. Essas ações conectam a ONG continuamente à dor e às lutas das famílias, escancarando os vários contextos estruturais por trás das violações e transbordando leituras focadas apenas na dimensão jurídica das violações.

Portanto, confirmando a hipótese do artigo, o estudo de caso revela que os movimentos sociais e organizações da sociedade civil podem interagir regularmente com espaços altamente institucionalizados no plano do Estado e de organismos intergovernamentais sem que isso gere necessariamente perda potencial de mobilização em termos de reivindicação de direitos. O debate sobre relações entre sociedade e instituições, nos palcos da governança global, não pode, por conseguinte, ser ignorado ou respondido aprioristicamente, como fazem, respectivamente, o modelo espiral e boa parte dos críticos da mobilização dos direitos humanos. É preciso investigar padrões empíricos de interação entre ONGs, vítimas e movimentos, por um lado, e os atores e espaços da governança global, por outro.

Em primeiro lugar, com relação às interpretações mais críticas, o caso mostra padrões de mobilização e luta por direitos humanos com contornos e conteúdos diferentes da seletividade ocidental hipócrita denunciada por Hopgood (2013). Nesse sentido, a experiência do CEDEHM põe de manifesto que vozes do Sul têm sim ao menos relativa autonomia e agência para definir suas prioridades e enquadrá-las nos marcos da governança global. Isso aponta para a necessidade de estudarmos histórias locais de ativismo de direitos humanos, como elas se articulam com dinâmicas nacionais e transnacionais e de que maneiras esses atores locais reconstroem ativamente as normas globais.

Por outro lado, se não é possível assumir a elitização, cooptação e desconexão do campo dos direitos humanos perante as vítimas e atores de bases, é preciso reconhecer, frente ao modelo espiral (Risse & Ropp, 2013), que as interações entre ONGs, vítimas e espaços institucionalizados são diversas e intricadas. Ao homogeneizar as ONGs como benevolentes e plenamente representativas dos coletivos em nome dos quais dizem atuar, perde-se de vista a complexidade do fenômeno e se anula importante agenda de pesquisa.

Nesse sentido, o trabalho de campo evidencia o problema comum das interpretações otimista e fatalista, qual seja o de dedutivamente tentar encerrar todas essas reflexões. Suas avaliações sobre as potencialidades e limites da ação de ONGs de direitos humanos carecem de mais análises empíricas que permitam mapear e entender melhor os vários contextos e tipos possíveis de configurações das interações socioestatais encabeçadas por ONGs entre atores de base e espaços decisórios. Esse é um prerrequisito para avançarmos no entendimento das circunstâncias e condições em que encaixes institucionais e vínculos de militância social mais radical possam vir a coexistir, desequilibrar-se ou entrar em choque, com os consequentes resultados e implicações dessas dinâmicas em termos de agência e potência política transformadora, especialmente no tocante ao papel das vítimas. Como as ONGs de direitos humanos lidam com esses desafios? Quais caminhos e rotas têm utilizado e quais os eventuais trade-offs resultantes? Espera-se que este artigo estimule pesquisas futuras nessas direções.

  • 1
    Agradeço aos pareceristas anônimos da Revista de Sociologia e Política e a Carla Vreche pela leitura e comentários. Presto agradecimentos também às pessoas entrevistadas, ao Centro de Derechos Humanos de las Mujeres (Chihuahua), e, em especial, à professora Karina Ansolabehere, minha supervisora na Flacso-México durante o estágio pós-doutoral do qual este artigo foi um dos resultados.
  • 2
    O nome da organização é Centro de Derechos Humanos de las Mujeres.
  • 3
    A respeito do formato e da dinâmica das entrevistas semiestruturadas citadas nesta pesquisa, as quais se diferenciam tanto das entrevistas totalmente abertas, mais etnográficas, quanto das estruturadas, usadas nos questionários fechados de surveys, ver Rathbun, 2008.
  • 4
    As entrevistas tiveram, em média, duração de 1 hora e 36 minutos.
  • 5
    Os conceitos de mística e paixão destilada foram propostos por Tate (2007) para compreender, no caso colombiano, como grupos de esquerda antes apegados a projetos políticos de grandes mudanças sociais transitaram para o mundo da defesa legal dos direitos humanos.
  • 6
    Encaixes são “sedimentações institucionais de processos de interação socioestatal que ganham vida própria (artefatos: instrumentos, regras, leis, programas, instâncias, órgãos) e mediante as quais atores sociais são, em alguma medida, bem-sucedidos em dirigir de modo contínuo a seletividade das instituições políticas ao seu favor, ampliando sua capacidade de agir” (Lavalle et al., 2019, p. 47).
  • 7
    As trajetórias de vida dessas três pessoas fundadoras do CEDEHM têm mais destaque neste artigo em comparação às das outras entrevistadas porque, além de terem criado a ONG, possuíam militância pregressa, estabelecendo essa linha direta com atores de base que se mantém como característica definidora do trabalho do CEDEHM até hoje, mesmo depois da saída de Alma e Lucha da organização.
  • 8
    Propriedades rurais coletivas oriundas do processo de reforma agrária da década de 1930.
  • 9
    Em seus protestos, o Barzón se notabilizou por ações que envolviam a ocupação de prédios públicos governamentais, pontes internacionais com os Estados Unidos e realização de marchas a cavalo e com tratores até a Cidade do México. Ademais, ficou conhecido por protestos de grande criatividade e visibilidade, como quando, com o próprio sangue das pessoas devedoras, picharam agências bancárias.
  • 10
    Com a reforma constitucional de 1993, uma mudança no art. 20 da Constituição do México havia ampliado as garantias das vítimas e pessoas ofendidas por delitos, incluindo o direito de que coadjuvassem o Ministério Público no marco das investigações correspondentes.
  • 11
    Nesse modelo, magistrados não podem decidir recorrendo apenas a materiais e expedientes escritos recolhidos ao longo do andamento processual do caso. É obrigatória a celebração de audiências para ouvir as partes: defesa do réu, MP e, a depender do caso, o acusador coadjuvante. Nesse papel se inserem ONGs como o CEDEHM, que podem se contrapor às posições do MP e influenciar os julgamentos.
  • 12
    Tendo em comum a militarização de Chihuahua entre 2008 e 2011, os casos se referem aos desaparecimentos forçados de três primos da família Alvarado e de oito homens da família Muñoz.
  • 13
    Além disso, o CEDEHM realiza ainda protestos sociais, junto das famílias, e atividades de incidência política, ajuda humanitária e de comunicação e difusão social de casos e temáticas para aumentar a conscientização a respeito dos desaparecimentos forçados na esfera pública.
  • 14
    Mestra em direito internacional dos direitos humanos na Inglaterra, foi diretora do escritório para América Central e México do CEJIL (Center for Justice and International Law). Representou centenas de vítimas perante a CIDH, Corte IDH e instâncias domésticas. Participou ativamente do caso Alvarado e contribuiu para a aquisição de expertise jurídica internacional no CEDEHM.
  • 15
    Advogada, ingressou na ONG em março de 2011 e foi então alocada por Lucha Castro para se especializar em litígio e incidência internacionais, com vistas a criar capacidades locais para esse trabalho. Assim, escreveu a petição internacional do caso Alvarado no mesmo ano. No final de 2016, assumiu a direção da ONG, posto até então ocupado por Lucha Castro.
  • 16
    “Domínios de agência são configurações de encaixes institucionais articulados vertical e horizontalmente que favorecem a capacidade de agir de certos atores coletivos” (Lavalle et al., 2019, p. 51-52) e “conferem legitimidade de agir e poder de influência na política e no processo de decisão” (Lavalle et al., 2019, p. 54).
  • 17
    Psicóloga, foi professora de Alma e Lucha em curso de especialização sobre gênero, no qual lhes explicou o ciclo de violência doméstica, auxiliando as duas e Gabino na fundação do CEDEHM, com foco voltado para a violência de gênero. Promoveu a primeira especialização internacional de acompanhamento psicossocial do México.
  • 18
    Especializada na realização de perícias judiciais, é psicóloga encarregada da área de atendimento psicossocial de vítimas de graves violações e de crianças e adolescentes afetadas por desaparecimentos forçados. Seu trabalho tem um enfoque psicojurídico de pensar os impactos psicossociais de contextos estruturais de violência.
  • 19
    A psicologia social da libertação é de autoria de Ignacio Martín-Baró, psicólogo e sacerdote jesuíta espanhol assassinado em 1989 pelo exército salvadorenho.
  • 20
    A depender da avaliação psicológica, pode haver também acompanhamento individual de terapia, caso seja necessário.

Referências

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Apêndice - Lista de entrevistas realizadas

Cárdenas, A. (2018) (12 out). Comunicação pessoal como psicóloga e integrante do CEDEHM [entrevista presencial].

Fierro, R. (2018) (12 out). Comunicação pessoal como advogada e diretora do CEDEHM [entrevista presencial].

Gómez, A. (2018a) (10 out). Comunicação pessoal como professora normalista aposentada, fundadora e ex-integrante do CEDEHM [entrevista presencial].

Gómez, G. (2018b) (12 out). Comunicação pessoal como fundador do CEDEHM e responsável pela área de desaparecimentos forçados [entrevista presencial].

Nuño, A. (2018) (4 set). Comunicação pessoal como advogada, consultora externa e ex-integrante do CEDEHM [entrevista presencial].

Rodríguez, L.E.C. (2018) (14 out). Comunicação pessoal como advogada, fundadora e ex-diretora do CEDEHM [entrevista presencial].

Uranga, R. (2018) (13 out) Comunicação pessoal como psicóloga e auxiliadora durante a fundação do CEDEHM [entrevista presencial].

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    17 Nov 2020
  • Aceito
    22 Jun 2021
  • Recebido
    11 Nov 2021
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