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O que dizer da erradicação mundial da varíola?

Smallpox eradication: what next?

EDITORIAL

O que dizer da erradicação mundial da varíola?

Smallpox eradication: what next?

J. A. N. Candeias

A erradicação da varíola, além de constituir um verdadeiro triunfo da cooperação internacional na área da saúde é uma lição clara, profunda e preciosamente útil à humanidade. Dela resultou a liberação imediata de uma ponderável soma de recursos, passíveis de utilização em outros programas, motivo pelo qual é fonte de plena satisfação e regozijo. Mas não deixa de ser tema para sérias inquietações e ponderadas reflexões. E tais inquietações em nada diminuem aquela satisfação, pois representam o interesse e desejo constantes de continuar contribuindo para a melhoria das condições de existência do homem.

A aparente inexistência de outro reservatório do vírus que não fosse o homem constituiu uma sólida razão para a viabilidade do programa de erradicação da varíola. No entanto, é possível encontrar, na literatura especializada, referência a infecções em primatas não humanos, semelhantes à varíola, ainda que sem confirmação de que fossem etiologicamente relacionáveis com vírus da Família Poxviridae. Numa única situação foi possível isolar o vírus da varíola de primatas não humanos, mantidos em cativeiro, numa região atingida, no momento da observação, por uma epidemia de varíola. O vírus da varíola simiana, de que também não se conhecem reservatórios, possui propriedades comuns aos vírus variólico e vacínico. As provas de imunodifusão feitas com estes três vírus não permitem constatar quaisquer diferenças, do mesmo modo que outras provas sorológicas, o que nos coloca frente à impossibilidade de identificar anticorpos elaborados contra cada um dos vírus referidos, ou mesmo estabelecer diferenças entre estes anticorpos e os produzidos frente a vírus de relacionamento mais longínquo, pertencentes à mesma Família. O primeiro caso humano de varíola simiana foi descrito em 1970, no Zaire e depois deste, mais de uma dezena de casos foi confirmada clínica e laboratorialmente, apresentando-se sempre como quadros de gravidade muito ligeira e auto-limitados, sem ocorrência de transmissão de homem a homem. Dada a semelhança antigênica entre os vírus da varíola simiana e o vírus da varíola humana, não seria de esperar que outra fosse a evolução daqueles quadros clínicos. No entanto, suspensa a vacinação anti-variólica, quando a imunidade contra a varíola se for exaurindo, far-se-á aquela evolução clínica dentro dos mesmos padrões? Além do vírus da varíola simiana, um outro vírus isolado do rim de macacos, aparentemente, sadios — "whitepox virus", parece apresentar ainda maior semelhança com o vírus da varíola. Tais constatações e o conhecimento de que, sempre que primatas são expostos a epidemias de doenças humanas de etiologia viral, como varíola, sarampo e varicela, surgem condições para a transmissão da infecção, mais do que justificam a manutenção e desenvolvimento de constantes e cuidadosos levantamentos ecológicos, pesquisas sobre a biologia de outros agentes etiológicos da Família Poxviridae e investigações de caráter epidemiológico, clínico e laboratorial de todos os casos que clinicamente se assemelhem à varíola humana.

Numa outra ordem de idéias, a decisão tomada pela Organização Mundial da Saúde no sentido de que os estoques de vírus variólicos sejam mantidos, de momento, em seis laboratórios localizados na África do Sul, América do Norte, China, Inglaterra, Países Baixos e Rússia, laboratórios estes com os mais rígidos padrões de segurança, representa uma precaução sadia, mas não isenta de riscos. Desses riscos estão conscientes os cientistas, não sendo desprezível a preocupação de que tais estoques possam ser violados, com introdução acidental ou deliberada, no seio de uma população não imune, do vírus variólico. Afinal, é inegável que condições de interesse originadas por conflitos entre as nações podem levar à prática de qualquer ultraje, seja qual for o perigo real e grave que este venha a representar.

Erradicada a varíola, o aprendizado médico a respeito da doença tornar-se-á, por certo, deficiente e as possibilidades de que a reintrodução de um caso de varíola possa ser rapidamente caracterizada, tanto clínica como laboratorialmente, antes que novas gerações de casos surjam na comunidade, parecem diminutas, a menos que se mantenha o estado de alerta, pela não interrupção daquele aprendizado.

Cerca de 170 anos se passaram depois que Jefferson, então Presidente dos Estados Unidos da América, solicitou a Edward Jenner que envidasse esforços no sentido de que a varíola fosse erradicada e hoje apresenta-se a nossos olhos a realidade de tal evento. Mas a euforia resultante de semelhante sucesso não deve, repetimos, minorar nosso empenho de manter em eficiente estado de ação nossos mecanismos de controle, alimentados por uma deligente vigilância epidemiológica e um contínuo aperfeiçoamento dos conhecimentos sobre a doença, agente etiológico específico e outros agentes do grupo, mais ou menos relacionados. Esta atitude previdente traduz a certeza de que, neste assunto, não há lugar para modestas tentativas e que a humanidade nada terá a ganhar com o entregar-se à fatalidade das circunstâncias, deixando-se levar no roldão dos acontecimentos, sem maiores cuidados. Uns momentos de exame são bom preventivo contra as conseqüências de nos deixarmos enlear pelos aspectos do espetáculo, desatentos ao seu significado essencial.

Naturalmente, sempre haverá quem se disponha a argumentar, de modo superficial, sobre a inoportunidades de tais inquietações, com toda a magnífica segurança de possuírem a verdade final. Mas a dialética usada pela ciência é de método crítico de suas ações e não de gratuita acrobacia verbal, além do que tem esta mesma ciência plena consciência de quanto seu domínio da Natureza é suficientemente utilizável na melhoria da condição humana, para dele se distrair com polêmicas fáceis.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jan 2006
  • Data do Fascículo
    Dez 1980
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