ARTIGO ESPECIAL SPECIAL ARTICLE
Pesquisa em saúde pública
Research in public health
Oswaldo Paulo Forattini
Editor Científico
É sobejamente sabido que a atividade de pesquisa científica baseia-se precipuamente na confiabilidade. Esta, para se manter incólume e livre de suspeição no ambiente científico, deve admitir a validade dos resultados relatados por outrem e, pois, aceitar, como fonte de novos conhecimentos, o que é divulgado pela literatura especializada. Para tanto, a assim chamada comunidade científica deverá pautar-se por normas de conduta, não apenas na realização da pesquisa em si, como também na divulgação de informações e dos conhecimentos adquiridos.
Há de se considerar que a responsabilidade pela obediência a essa ética cabe a todos os que participam daquela comunidade. Isso implica considerar não somente os pesquisadores, mas também as sociedades científicas, os administradores de institutos e entidades financiadoras, os editores de publicações científicas e, em última análise, os órgãos governamentais. Todavia, é aos primeiros que cabe a maior parcela dessa responsabilidade, cumprindo-lhes manter nível elevado de conduta, tanto no planejamento como na execução do projeto de pesquisa.
Em suas origens, as normas éticas na investigação advinham da então chamada "escola científica" onde os principiantes aprendiam a conduta a ser seguida, de maneira informal, observando o comportamento dos mais experientes. Esse conceito de liderança científica predominou até meados deste século, como é o caso da figura universitária do professor catedrático. Não obstante, se bem que ainda de importância, essa maneira de conhecer a conduta na pesquisa não mais satisfaz as atuais exigências da comunidade científica e da sociedade na qual esta se insere. Eis que a maioria dos pesquisadores é freqüentemente ocupada com atividades outras as quais, além da investigação propriamente dita, exigem-lhe dedicação. Tais são, as assessorias e a administração. Isso faz com que escasseie o tempo que deveria ser empregado na pesquisa. Todavia, caso se pretenda manter qualitativamente o trabalho científico, esse tempo tem de ser encontrado. Para tanto, há que se reduzir ao mínimo compatível, a sobrecarga representada por atividades pouco eficientes e mesmo desnecessárias.
Será pois oportuno saber se, em país como o Brasil, caberia, em primeiro lugar, falar de "comunidade científica" e, em segundo lugar, investir recursos governamentais em pesquisa. E, principalmente, no tipo que é conhecido como "pesquisa básica". Em que pese os cerca de dois milhões de estudantes universitários e as freqüentes reuniões científicas, nas quais, às vezes, pode-se contar com a presença de milhares de participantes, torna-se um tanto difícil responder genericamente e de maneira afirmativa à primeira pergunta. Mormente em sociedade que ainda se vê a braços com o analfabetismo em sua população. Sociedade esta que conta com grande contingente de iletrados e semi-analfabetos, constituindo terreno fértil para a semeadura de necessidades criadas pela sociedade de consumo, ao mesmo tempo que se mostra sáfaro e estéril para a prática de princípios éticos necessários à convivência social. Quanto aos investimentos oficiais há que, forçosamente, considerá-los modestos, se comparados com os do país líder mundial da produção científica e que vem a ser os Estados Unidos da América do Norte (EUA), onde cada habitante contribui anualmente com 100,0 dólares para a pesquisa. Isso perfaz, na atualidade, o montante de cerca 25 bilhões por ano. Para 1996, o governo desse país enviou ao Congresso orçamento do porte de cerca 72 bilhões. Em que pese os prováveis cortes que deverão advir, trata-se, sem dúvidas, de investimento considerável (Mervis, 1995). Em contrapartida, tal situação gerou, naquela sociedade, pressões internas que desembocaram em elevada competitividade na conquista de financiamentos, de status científico e de prestígio e posição social. Desnecessário dizer da inconveniência desse quadro, uma vez que induz os pesquisadores ao estresse decorrente dessa luta insana. E, o que é pior, traz em si o germe da tentação de seguir atalhos e de adotar comportamentos nem sempre eticamente aceitáveis. Naquele país chegou-se a tal ponto de entidades como a "National Academy of Sciences" (NAC) liderarem a implantação de intenso programa educativo sobre normas de ética na ciência, chegando a declarar, sem rebuços, "...if we do not police ourselves, others may step in to do so" (Alberts e Shine, 1994).
No Brasil, o quadro é outro. Insere-se no panorama geral que até agora tem estereotipado o terceiro mundo, em especial modo a assim dita "América Latina". Em matéria recentemente publicada sob o sugestivo título de "Points of Light in Latin American"* * Science, 267: 807-28,1995 , como que anunciando o aparecimento de débil claridade indicadora do fim do túnel, faz-se breve introdução sobre a temática (Appenzeller, 1995), à qual segue-se reportagens e fórum que, em conjunto, mereceram abrigo na prestigiosa revista Science de 10 de fevereiro de 1995. Segundo aquela parte introdutória, a matéria assim divulgada revelou vários contrastes como, pesquisas ambiciosas feitas com recursos pobres e incertos, amplos fundos manipulados por poucos, pequenos grupos realizando pesquisas mundialmente avançada, ao lado de grandes burocracias científicas produzindo pouco. No que tange ao Brasil, em 1992 investiu-se o total de 2,3 bilhões de dólares, cujo dividendo científico não foi objeto de análise detalhada nessa matéria. De qualquer maneira, chama a atenção, de quem a lê, o fato de ali merecer o nome de pesquisa científica somente as atividades que se desenrolam no campo da astrofísica, da biologia molecular e genética, da física, da química e da clínica médica. É pois de se deduzir que estas constituem o que realmente o primeiro mundo considera como pesquisa básica ou, pelo menos, pesquisa digna de competir internacionalmente. Antes de prosseguir, convirá pois tecer algumas considerações sobre esse conceito.
Pesquisa científica- A grande complexidade atingida pela ciência atual impede que esta possa ser definida de maneira simples. Porém pode-se fazê-lo de modo genérico, dizendo que se trata de atividade mediante a qual visa-se a adquirir conhecimentos que possibilitem a compreensão dos fenômenos físicos, biológicos e sociais, incluindo os concernentes ao próprio homem, como indivíduo. Na cultura contemporânea, são tantos os campos de conhecimento que, enumerá-los, não caberia em texto como o presente. Todavia, esses campos podem ser agrupados em duas categorias, a dos obtidos pela fé e a dos conseguidos mediante a pesquisa científica. Enquanto aqueles mudam somente em decorrência de condições de excepcionalidade ou de pressões sociais, estes estão em transformação contínua, decorrente da própria evolução dos conhecimentos adquiridos (Bunge, 1985). Assim, o que caracteriza a atividade de pesquisa vem a ser a permanente busca de soluções, de idéias e de fatos e de formulação de hipóteses explicativas, bem como o encontro de conhecimentos passíveis de serem tecnológicamente utilizáveis na melhora constante da qualidade de vida do homem. Eis que este, como todo ser vivo, é sempre um solucionador de problemas que surgem com a própria vida (Popper, 1984).
Assim sendo, se o objetivo último da aquisição de conhecimentos vem a ser a qualidade de vida, a evolução cultural do homem deverá passar pelas etapas representadas esquematicamente na Figura 1. Como se pode ver, a pesquisa científica está ali situada na posição que lhe cabe, qual seja, a de atividade destinada a descobrir novos conhecimentos. Dependendo do grau de aplicabilidade destes, no desenvolvimento da técnica, tem-se admitido a subdivisão daquela em pesquisa básica (também chamada de pura ou teórica) e pesquisa aplicada. Não obstante, essa divisão, como de resto todas as até agora sugeridas, torna-se, o mais das vezes, difícil de estabelecer. E isso porque está nos fundamentos da aquisição do saber a variabilidade temporal, de acordo com o grau de informações atingido a respeito da problemática pesquisada. Na verdade, há que se admitir, toda pesquisa científica é, precipuamente, de natureza básica, desde que nela se encerre a fonte de conhecimentos potencialmente necessários para que se possa gerar a tecnologia. Esta destina-se essencialmente a inventar e, uma vez adequadamente desenvolvida, poderá ver seus inventos aplicados desembocando assim no objetivo essencial que vem a ser o da qualidade de vida do homem. Conclui-se pois que, a pesquisa aplicada pode ser encarada como etapa no desenvolvimento da pesquisa básica a qual identificou os fatos fundamentais da problemática focalizada. Estes, portanto, encontrando-se assim em condições de serem estudados de maneira específica até que os dados obtidos, sem deixarem a sua natureza básica, possam ser considerados para o desenvolvimento da tecnologia e esta, operacionalmente aplicada na solução do problema.
Postas essas ponderações, certamente elementares para a maioria dos leitores do presente texto, surge a questão de a quem caberia a competência e a responsabilidade de abrigar a pesquisa científica. Em outras palavras, caberá perguntar aonde se espera que essa atividade venha a ser levada a efeito de modo eficiente e eficaz. Nas instituições oficiais ou privadas? Nas universidades e nos institutos de pesquisa? E de maneira exclusiva? Ou então, no âmbito emprsarial? E de que forma? As respostas a todas essas indagações encontram-se subordinadas a pesos que forem dados aos resultados do processo supradescrito e que vai esquematicamente apresentado na Figura 2. Claro está que as três etapas antecedentes ao objetivo final são imprescindíveis. No entanto, as evidências têm demonstrado, não apenas de maneira histórica mas também atual, que a sociedade não lhes concede preferências equivalentes. É o que se verá a seguir.
Prioridade - A rigor e teoricamente, não caberia falar em prioridade para a pesquisa científica. Desde que se trata da procura e explicação dos fatos da natureza, todo conhecimento, em princípio, é útil e destina-se ao crescimento do acervo cultural da humanidade. Não obstante, a pesquisa científica constitui atividade que exige investimentos cada vez mais custosos e, pois, a sociedade vê-se na contingência de solicitar, e também cada vez mais, os dividendos a que julga, com razão, ter direito. Daí o poder dizer que, embora a ciência traga sempre em seu bojo o potencial de aplicabilidade, será lícito que os investimentos sociais em ciência devam obedecer a algum critério de prioridade. Este, é oportuno que se diga, deve nortear-se pela necessidade de dar solução à problemática que compromete a qualidade de vida da população. A essa orientação tem sido dado o nome de utilitarismo, no bom sentido, o qual e dentro de limites adequados, tem sua razão de ser. Em especial modo, nos países do assim chamado terceiro mundo.
Surgiu assim a tendência, que se acentua atualmente, de direcionar, em grande parte, a pesquisa científica no sentido da utilização rápida dos seus resultados. Os governos do mundo, embora característicamente discordantes entre si, são notavelmente concordes quando se trata daquela orientação. Contudo, deixam geralmente de levar em conta as dificuldades em realizá-la (Nature, 1995). Desde o fim da "guerra fria", a competição militar foi substituída pela econômica e, em decorrência, cresceu consideravelmente a preocupação de se obter benefícios imediatos dos investimentos na pesquisa científica. Daí a tendência crescente que vem se observando, por parte das entidades oficiais, em envolver a iniciativa privada. Esta vem sendo progressivamente solicitada a investir em atividades científicas, o que geralmente é conseguido desde que ela vislumbre interesse lucrativo nos possíveis resultados. O Japão e a Suiça são exemplos de países onde a maior parte da pesquisa científica é privatizada. Talvez seja por isso que, ao reflexo desse fenômeno na atividade industrial, tem sido aplicado o nome de "japonização" da ciência (Braben, 1994). De qualquer maneira, é bem verdade que o sistema empresarial e o governamental, conjuntamente, podem prover, de longe, a maior parte do apoio de que a ciência e a tecnologia necessitam. Porém, não é menos verdade que as motivações para isso são variáveis e, com freqüência, divergentes. Aquele obriga-se a gerar lucros para os seus acionistas e, portanto, o seu investimento na pesquisa deverá obedecer ao princípio de produção de bens de consumo competitivos, mais do que a motivos de ordem filantrópica. Por sua vez, o governo tem, por obrigação, responsabilidade muito maior a qual, no caso da ciência, se fundamenta em propiciar a formação de sólido e amplo acervo de conhecimentos. Passíveis, isso sim, de se integrarem na infra-estrutura cultural para a produção de resultados que vão ao encontro da melhora da qualidade de vida.
Assim pois, o chamado utilitarismo na alocação de investimentos para a pesquisa com freqüência esbarra com dificuldades dificilmente contornáveis. E, em países como o Brasil, estas tornam-se às vezes colidentes, para não dizer conflitantes com o objetivo colimado. Ao menos nos países desenvolvidos, mesmo empresas das mais bem sucedidas vêem-se a braços com a contínua necessidade de recrutar recursos humanos, adequadamente capacitados graças a bem formada carreira científica, levada a efeito sabretudo nas universidades. A conseqüência disso vem a ser a elaboração de programas de pós-graduação com o auxílio de investimentos empresariais. Evidentemente, tais iniciativas no campo educacional são direcionadas precipuamente para determinadas finalidades especializadas. Daí surgirem os inevitáveis efeitos colaterais. Talvez o principal deles seja a progressiva insuficiência de informações e conhecimentos os quais, obrigatoriamente, advêm da pesquisa básica ou aplicada, no sentido que foi dado atrás. Claro está que, se a tecnologia, mediante aperfeiçoamentos e investigações, seja no âmbito empresarial seja mesmo no universitário, vier a se hipertrofiar, a pesquisa científica tenderá a se atrofiar. Caso não haja adequado equilíbrio nos investimentos, resultará situação semelhante à da acromegalia, levando a descontinuidade cultural com prejuízo para a qualidade de vida. É por essa razão que economias poderosas como a dos EUA apresentam orçamento para o próximo exercício com vistas a recursos destinados a desenvolver a pesquisa básica, embora nela se inclua também a tecnológica (Lawler, 1994).
O que ocorre, e deve ser dito, é que tudo leva a crer que o empreendimento científico é extremamente incompreendido. Em especial modo, a pesquisa básica e mesmo a aplicada, são pouco atraentes para os jovens. Além disso, para o exercício dessa atividade há que se possuir pendores especiais, que levem mais a viver para a ciência do que da ciência. Porém, o reconhecido sucesso da pesquisa em gerar conhecimentos ao longo dos anos, sem esforço aparente, deu lugar a grande número de oportunidades passíveis de serem convenientemente exploradas. Isso levou à idéia de que a ciência pode ser tratada e manobrada à semelhança de outras atividades proveitosas, como a produção de bens de consumo, nas quais a produção e a demanda são governadas pela lei do mercado. Não é pois de se surpreender que muitos governos inclinem-se para o "nem sim nem não", alocando prioridade inferior para os investimentos na ciência, em relação aos demais. No entanto, algumas nações acreditaram em política oposta, ou seja, investindo a longo prazo na pesquisa científica, após o que passaram a desfrutar das vantagens de apreciável crescimento econômico. Terá sido apenas coincidência? (Braben, 1994).
Universidade - Face às considerações feitas até aqui, haveria de se indagar qual vem a ser o papel da universidade no desenvolvimento da ciência. Partindo-se do princípio de que todo país necessita desenvolver, de maneira autóctone, a pesquisa científica, a universidade tem função destacada nesse sentido. Ela constitui o âmbito apropriado para a elaboração daquela atividade no que tem de fundamental, e que vem a ser a procura de conhecimentos novos, passíveis de utilização "a posteriori" no desenvolvimento tecnológico.
Pode-se dizer que, precipuamente, é no ambiente universitário que a pesquisa científica, em seu caráter básico e aplicado, tem de encontrar abrigo. Em especial modo, aquela que objetiva a descoberta de fatos novos, ainda que referente a temática em parte identificada. Evidentemente, não está excluída a investigação tecnológica. Todavia, como se viu, esta geralmente encontra apoio na iniciativa privada e também na oficial, uma vez que traz benefícios ou, ao menos, resultados imediatos e não apenas potenciais. Portanto, forçoso é admitir que a procura do conhecimento, sobre a essência dos problemas, compete à universidade.
Saúde pública - Após as considerações apresentadas acima, é tempo de dar continuidade às que iniciaram o presente, texto, abordanto a temática que a seguir se pretende comentar. Inicialmente, deve-se admitir que dentre os problemas que comprometem a qualidade da vida humana estão, de maneira significante, aqueles representados pelos agravos à saúde. Estes, encarados em nível individual, são o objeto de estudo da medicina "senso latu". Quando porém, sua focalização passa a ser em nível da população, constituem o amplo campo da saúde pública. A sua identificação pressupõe o de serem incluídos em algum dos princípios ou postulados gerais cuja ocorrência única os caracteriza (Forattini, 1992).
Como se poderá facilmente compreender, as atividades no campo da saúde pública são caracteristicamente multidisciplinares, entendendo-se com isso o imprescindível concurso de variadas áreas de estudo. Depreende-se daí que a pesquisa científica deverá ser levada a efeito em múltiplos campos do conhecimento, isto é, nas mais diversas especialidades. De maneira geral, os fatores determinantes dos agravos à saúde populacional podem ser sistematizados em três categorias, a físico-química, a biológica e a social, obviamente inter-relacionadas. Esse entrelaçamento de informações levará ao entendimento do mecanismo gerador e sustentador da problemática que afeta a população. Claro está que tal entendimento cresce e varia, tanto no tempo como no espaço. Quais, pois, são os determinantes e em que ponto deverão ser focalizados pela pesquisa científica em saúde pública? Certamente, a resposta dependerá da natureza e características do problema, bem como do grau atingido pelos conhecimentos a seu respeito, ao logo do tempo. Caso se trate de problemática pouco conhecida ou mesmo emergente, a pesquisa básica deverá ser prioritária, para não dizer preponderante. Em compensação, se o quadro for tal que os conhecimentos disponíveis forem de molde a permitirem a utilização satisfatória da técnica, esta e a operacionalidade deverão prevalecer. O diagrama representado na Figura 3 pretende mostrar a evolução dos conhecimentos no sentido da solução de problemas de saúde pública. Hipoteticamente, foram indicadas quatro fases. A primeira (A) pretende representar situação onde escasseia o conhecimento sobre a essência do problema e, conseqüentemente, há necessidade de predomínio da pesquisa básica. Nas duas seguintes (B e C) há maior disponibilidade de conhecimentos e a pesquisa deverá se concentrar em aspectos que possam ser passíveis de aplicação. Na quarta fase (D) a soma de conhecimentos é tal que permite o entendimento do problema e, em decorrência, propicia a sua solução mediante a operacionalização adequada da tecnologia desenvolvida. Esse processo poderá ser perfeitamente ilustrado com os exemplos que serão apresentados a seguir.
O primeiro deles é extremamente didático e pode ser encontrado na referida matéria "Fonts of Light in Latin America". Nela, a generosa condescendência científica do Editor fez com que o Brasil fosse aquinhoado com reportagem subordinada à manchete, um tanto jornalística, de "A Deadly Parasite Spurs Up-To-the-Minute Biology" (Marshall, 1995) a qual pode ser traduzida para o nosso idioma como "Um parasita mortal espicaça biologia de última moda". Esse mortífero parasita vem a ser o protozoário Trypanosoma cruzi, cuja infecção por ele provocada no organismo humano recebe o nome técnico de tripanossomíase americana, no meio leigo conhecida como doença de Chagas. Não haveria razão particular para que esse exemplo fosse mencionado aqui, não se abalançasse o autor da matéria a incursionar no campo da saúde pública. Eis que o texto menciona a mortalidade anual por essa causa dentre os cerca de 18 milhões (sic) de parasitados. Inclusive, tece considerações sobre o elevado padrão das pesquisas que, em biologia molecular, foram apresentadas em reunião científica, delas se depreendendo os ingentes esforços dispendidos na tentativa de revelar o genoma do protozoário. Com efeito, objetiva-se "... to create a physical map of T.cruzi by breaking its genome into well-defined cloned segments and then sequencing the clones...". Tal "esforço" exigiria a bagatela de um milhão de dólares anuais, durante três anos. Diante disso, caberia perguntar se tais projetos poderão ser rotulados como de pesquisa básica em saúde pública. Certamente que não. É de se crer que visem à procura de informações que propiciem meios terapêuticos para os que já se infectaram. Porém, sob o ponto de vista preventivo e de solução do problema de saúde pública, que é representado pela endemia chagásica no Brasil, e também na América Latina, pode-se considerá-lo como enquadrado na fase D do diagrama da Figura 3. Em país como o Brasil, pobre e irregularmente provido de recursos para a pesquisa científica, é de se estranhar que se dê tal atenção a problema que, verdade seja dita, já se encontra devidamente equacionado sob o ponto de vista da saúde pública. Eis que o parasita não é o único fator no ciclo da infecção e, talvez, seja mesmo o último em importância, se comparada com a daquele cuja eliminação poderia, e certamente pode, solucionar o problema mais prontamente do que ele. Trata-se do concernente às condições socioeconômicas da população atingida. Talvez a única pesquisa básica a respeito desse problema seja aquela que vise a esclarecer o significado da transmissão congênita dessa tripanossomíase. No mais, e em verdade, tais pesquisas de alta sofisticação objetivam a utilização do protozoário parasita como célula, convenientemente manuseável, para estudos de biologia molecular e genética, pouco ou nada tendo a ver com o problema de saúde pública em si. Este, está solucionado. Tudo dependerá da alocação de recursos administrativos adequados e, portanto, da política social.
O segundo exemplo, pode-se dize-lo, é oposto àquele. Trata-se da doença, atualmente em fase pandémica, denominada de síndrome da imunodeficiência adquirida, mais conhecida pela sigla inglesa AIDS, e evidenciada há cerca de quinze anos atrás. Na tentativa de encontrar meios de controle, num primeiro tempo, os governos dos países inicialmente atingidos investiram em pesquisa básica, focalizando principalmente a identificação do agente e a patologia da afecção. Na primeira década de pesquisas, os resultados alcançados foram promissores, levando ao entendimento de muitos aspectos de doença, até então inteiramente desconhecida. Em grande parte isso deveu-se aos conhecimentos fundamentais adquiridos e à tecnologia daí decorrente. Pode-se mencionar, a identificação do agente infeccioso a novo retrovírus (HIV), o desenvolvimento de meios diagnósticos, a descoberta do complexo mecanismo de duplicação viral e dos aspectos clínicos e epidemiológicos da infecção. Em conseqüência, chegou-se à obtenção de algumas drogas terapêuticas que prolongaram a vida dos pacientes, bem como melhorou o tratamento das manifestações clínicas. Tal explosão de informações, ao longo do primeiro decênio de pesquisas básicas, levou a certo grau de otimismo, ocasionando que as investigações se concentrassem na procura de medicamentos e de vacinas. Não obstante, as coisas revelaram-se não tão simples. As limitações na capacidade de estudo dessa infecção tornaram-se cada vez mais acentuadas. E de tal maneira, que se decidiu pela prioridade do retorno às pesquisas básicas. A ausência de animais de experimentação foi parcialmente suprida pela descoberta da imunodeficiência de macacos, causada pelo vírus SIV, mas que, porém, não demonstrou ser suficiente para dela inferir aspectos da patologia em seres humanos. Assim, não se conhece ainda quais os mecanismos que o HIV utiliza para a travessia das mucosas, quais as células que abrigam as replicações iniciais desse agente, bem como os fatores moleculares e ou imunológicos que possibilitam a infecção na porta de entrada, além de muitas outras questões que ainda não lograram resposta satisfatória (Fields, 1994). Diante disso, não será difícil compreender que o problema de saúde pública, representado pela AIDS, esteja atualmente enquadrado na fase A do diagrama representado na Figura 3. E é por esse motivo que os investimentos em pesquisa básica têm a necessária prioridade, nessa etapa de estudos, que lhe visem, em última instância, a solução (Paul, 1995; Cohen, 1995).
Voltando ao que foi referido na parte inicial do presente texto, juntamente com as considerações feitas em seguida, é forçoso admitir que a pesquisa científica em saúde pública não prescinde de seu caráter básico. E este não pode, e nem deve, limitar-se àqueles cinco mencionados campos. Além deles, há de se considerar outros, e talvez com maior prioridade. Ao menos para as populações que vivem no assim chamado "terceiro mundo", a braços com a acentuada necessidade de adquirirem conhecimentos básicos a respeito de suas realidades nosológicas. Da matemática às ciências sociais descortina-se ampla gama de campos de pesquisa os quais, em última análise, interessam à saúde pública na sua participação para a melhora da qualidade de vida. Porém, há que se ter em mente que isso não diz respeito ao desenvolvimento de tecnologia. Esta, entende-se que deva ocorrer "a posteriori" e como decorrência. Mesmo assim, é de se duvidar que, no estado atual e ao menos no que respeita algumas especialidades, países como o Brasil possam deixar de importá-la. Isso pode ser exemplificado pela biotecnologia, cuja feição de utilitarismo provocou enormes investimentos no "primeiro mundo", com conseqüente elevado desenvolvimento tecnológico, o que dificilmente poderá ser acompanhado por países como o Brasil. Assim, por exemplo, pouco adiantará para nós investir em pesquisas sofisticadas e caras de identificação biogenética, como alguns preconizam (D.Zilberstajn apud De Paula, 1995), se nem ao menos conhecemos a biodiversidade em nosso território, identificável pelos meios tradicionais. Do mesmo modo, no que concerne à saúde pública, são muitos os problemas que afligem a nossa população e que necessitam ser melhor compreendidos. Pouco servirá conhecer a biologia molecular de determinado agente infeccioso e ou vetor, se não tivermos noção a respeito do potencial de instalação de ou das endemias que eles poderão desencadear. Bem assim, e na mesma linha de raciocínio, pode-se dizer dos múltiplos fatores determinantes dos agravos à saúde populacional. Verdade seja dita, os resultados obtidos pelas pesquisas nos campos da astrofísica, biologia molecular e genética, física, química e clínica médica rendem dividendos tecnológicos. E estes, obviamente, rendem dividendos econômicos. E, por sua vez, se estes vão ao encontro da qualidade de vida da humanidade, como um todo, é outra história, que não caberá abordar aqui.
Palavras finais - Para finalizar o que foi exposto até agora, uma pergunta se impõe. Se é tal a diversidade dos campos de pesquisa que interessam à saúde populacional, o que se espera que, nesse particular, se produza numa escola de saúde pública? Obviamente, e ao se tratar de âmbito universitário, a especialização deverá ocorrer. E isso na dependência dos recursos humanos e materiais disponíveis. Um aspecto porém é de se julgar como fundamental. Terá de se realizar pesquisa básica, e relativa a problemas que afetam a população em cuja sociedade se encontra inserida. E essa atividade, entendida nos vários níveis acima considerados. A instituição, como um todo ou em parte, poderá se especializar nesta ou naquela categoria de determinantes de agravos à saúde, daí advindo o seu perfil científico. Caso abdique da pesquisa e se dedique preferencialmetne ao ensino, só lhe restará o papel de veiculadora de conhecimentos obtidos alhures.
De qualquer maneira, nessa instituição a conduta na pesquisa nada terá de diferente do referido para a conduta científica em geral. Porém, no caso particular de problema de saúde pública, ela haverá de identificá-lo logo de início. Assim, o trabalho de investigação deverá deixar bem claro que se trata de contribuição para soluciná-lo, como tal. Qualquer outra atitude, ou mesmo omissão, poderá vir a gerar mal-entendidos e dúvidas que comprometerão a sua confiabilidade.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
10 Set 2003 -
Data do Fascículo
Abr 1995