EDITORIAL EDITORIAL
A Globalização da doença
Disease globalization
Luiz Jacintho da Silva
Editor Associado
Departamento de Clínica Médica. Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp
A pandemia da síndrome respiratória aguda grave, atualmente em curso em vários países e regiões, é a transformação em dura realidade do muito que se tem falado, escrito e discutido sobre doenças infecciosas emergentes.
Em novembro de 2002, um surto de doença respiratória irrompeu em Guangdong, província chinesa situada no sudoeste do país. A princípio interpretada como um surto de pneumonia atípica foi isolada a Chlamydia pneumoniae de quatro pacientes as autoridades chinesas não parecem ter atribuído maior importância ao surto até três meses depois, em fevereiro de 2003, quando casos foram identificados em Hong Kong, região vizinha, e em Hanói, no Vietnã, não muito distante de Guangdong. Nesses dois locais, e logo depois em Cingapura e em Toronto, Canadá, ficou evidente a elevada transmissibilidade da síndrome no ambiente hospitalar, onde houve a ocorrência de casos secundários e óbitos entre pessoal hospitalar, o que levou à interdição de hospitais em Cingapura, Toronto e Hong Kong.
O mundo rapidamente percebeu que estava diante de uma doença respiratória de etiologia ainda não esclarecida. A preocupação causada por essa síndrome foi tão grande que a Organização Mundial da Saúde emitiu um alerta de âmbito mundial e, pela primeira vez em sua história, recomendou que se evitasse viajar para as áreas afetadas, Guangdong e Hong Kong.
Tão rapidamente quanto a doença atingiu diferentes pontos do planeta, sua etiologia foi demonstrada no tempo recorde de cerca de um mês. Trata-se de um coronavírus até então não isolado, nem em humanos e nem em animais.
Vírus da família Coronaviridae, são RNA vírus de filamento único e senso positivo e não são causa de doença grave em humanos. Eram conhecidos dois diferentes coronavírus humanos: 229E e OC49, ambos causam um resfriado comum, podendo, eventualmente, causar doença respiratória baixa.. Epidemias causadas por coronavírus são desconhecidas, mas surtos de doença respiratória baixa, semelhantes, até certo ponto, à atual pandemia, não são totalmente desconhecidos.4 Diferentes coronavírus causam diversas doenças em animais desde a peritonite infecciosa felina, a primeira das doenças causadas por coronavírus a ser descrita já em 1912. Foi apenas em 1937 que o primeiro coronavírus foi isolado, de galinhas, e somente em meados da década de 1960 é que seu papel em doença humana foi reconhecido.3
Apesar de não ter seu RNA segmentado como os vírus da influenza, os coronavírus são sujeitos a freqüentes recombinações, razão pela qual o surgimento de um novo coronavírus não é causa para espanto. Aliás, os coronavírus há muito vêm sendo usados como modelo para a investigação de mutações que permitem o salto de espécie.1,2
Já foi demonstrado que infecção persistente pelo vírus da hepatite murina acaba determinando o surgimento de variantes capazes de infectar outras espécies. O fenômeno não é desconhecido. Pelo contrário, ocorre com freqüência com o vírus da influenza A, ocorreu em algum momento com o vírus da imunodeficiência humana e com outros RNA vírus, como o Nipah e o Hendra, ambos morbilivírus.
O que assusta na pandemia da SRAG (síndrome respiratória aguda grave) não é tanto o número de casos ou sua letalidade. Convenhamos, para surto iniciado há cinco meses em meio a uma província chinesa de mais de 80 milhões de habitantes, vizinha de uma das cidades mais densamente habitadas do mundo, Hong Kong, a ocorrência, até o momento, de 3.547 casos com 182 óbitos (letalidade de 5,1%) não é tão impressionante. Num período igual, uma pandemia de influenza, causada por uma variante nova, teria determinado milhões de casos. O que assusta é a concretização de inúmeras previsões sobre doenças emergentes.
Doenças infecciosas emergentes não são fruto de mentes paranóicas. Ocorrem e vêem ocorrendo a milhares de anos: peste bubônica, cólera Eltor, gripe espanhola, Aids. Isso para citar apenas algumas. A preocupação maior é a constatação da velocidade de sua disseminação. Em 1894, teve início em Hong Kong a terceira pandemia de peste bubônica, foram necessários cinco anos para que chegasse ao Brasil. Desta vez, bastaram alguns dias para a chegada dos primeiros casos suspeitos.
Determinantes sempre lembrados como decisivos para a ocorrência de doenças emergentes, a grande densidade populacional e a velocidade dos transportes, estão presentes. Até o momento, a SRAG já foi notificada de 25 países, em seis foi identificada transmissão autóctone, ainda que, pelo menos, somente na China, Hong Kong inclusive, e no Canadá (Toronto) há evidência de continuidade dessa transmissão.
Há o reverso da medalha. Esta já foi considerada a primeira pandemia do século 21. Talvez, mas com certeza foi a primeira pandemia da Internet. Somente pela disponibilidade da rede mundial de computadores tem sido possível acompanhar de perto a evolução da pandemia, seguir as recomendações internacionais e compartilhar informações, o que já permitiu a elaboração de uma reação de cadeia da polimerase para a detecção do novo vírus. Foi pelo fácil e rápido acesso às informações que os serviços de saúde do mundo afora puderam se preparar para a eventual chegada de pacientes, minimizando o impacto e impedindo a transmissão da SRAG. Pelo menos duas tradicionais revistas médicas se apressaram a colocar à disposição, sem custo, os primeiros estudos sobre a SRAG.
Essa deve ser considerada sim a primeira pandemia pós-moderna, a primeira pandemia de uma sociedade globalizada e baseada na informação. Marx já dizia que os problemas somente ocorrem quando estamos preparados para alcançar sua solução. Não fosse o domínio da biologia molecular e da informática, aí sim, teríamos uma pandemia de impacto muito maior e pior.
A SRAG veio mostrar a quantos queiram e possam ver que a doença está globalizada, porém está claro que a saúde ainda não está. Está mais do que em tempo de adequarmos a saúde pública à era pós-moderna. Trata-se de uma necessidade premente. Não se trata de uma fantasia ou de um sonho de uma noite de verão. As doenças mudaram, cabe adaptar a saúde pública e globalizar também a saúde.
REFERÊNCIAS
1. Baric RS, Sullivan E, Hensley L, Yount B, Chen W. Persistent infection promotes cross-species transmissibility of mouse hepatitis virus. J Virol 1999;73:638-49.
2. Baric RS, Yount B, Hensley L, Peel SA, Chen W. Episodic evolution mediates interspecies transfer of a murine coronavirus. J Virol 1997;71:1946-55.
3. Hsiang's M. Coronaviridae. Available from: http://www.stanford.edu/group/virus/1999/mhsiang/corona.html [2003 abr 20].
4. Vabret A, Mourez T, Gouarin S, Petitjean Jl, Freymuth F. An outbreak of coronavirus OC43 respiratory infection in Normandy, France. Clin Inf Dis 2003;36:985-9.
"Websites" recomendados:
Centers for Disease Control and Prevention: http://www.cdc.gov/ncidod/sars/casedefinition.htm
Centro de Vigilância Epidemiológica "Alexandre Vranjac": http://www.cve.saude.sp.gov.br
Chinese University of Hong Kong: http://www.aic.cuhk.edu.hk/web8/sudden_acute_respiratory_syndrom.htm
Fundação Nacional da Saúde: http://www.funasa.gov.br
Organização Mundial da Saúde: http://www.who.int/csr/sars/en/
ProMED Mail: http://www.promedmail.org
The Lancet: http://www.thelancet.com/
The New England Journal of Medicine: http://intl-content.nejm.org/
Recebido em 23/4/2003
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
23 Mar 2006 -
Data do Fascículo
Jun 2003