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Austeridade fiscal e gastos municipais em saúde: estudo de séries temporais interrompidas

RESUMO

OBJETIVO

Analisar o impacto da política de austeridade fiscal (PAF) nas despesas em saúde dos municípios brasileiros, levando em consideração o porte populacional e a fonte dos recursos.

MÉTODOS

Utilizou-se o método de séries temporais interrompidas para analisar o efeito da PAF sobre as despesas totais, recursos transferidos pela União e recursos próprios/estaduais per capita destinados à saúde nos municípios. A série temporal analisada compreendeu o período de 2010 a 2019, com periodicidade semestral. Adotou-se o primeiro semestre de 2015 como data de início da intervenção. Os municípios foram agregados em pequenos (até 100 mil habitantes), médios (101 mil a 400 mil habitantes) e grandes (mais de 400 mil habitantes). Os dados foram obtidos no Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde.

RESULTADOS

Os resultados para a média nacional dos municípios demonstram que a PAF teve um impacto negativo sobre o nível de despesas totais e de recursos próprios/estaduais destinados à saúde no primeiro semestre de 2015, não provocando mudanças estaticamente significativas nas tendências de nenhum dos indicadores analisados no período posterior a 2015. Municípios pequenos tiveram queda nas despesas totais, enquanto os grandes, nos recursos próprios/estaduais e os médios, em ambas as variáveis. Não houve queda estatisticamente significante no volume de recursos transferidos pela União no momento imediato à implementação da PAF em nenhum dos grupos municipais analisados. No médio prazo, a PAF gerou impacto negativo apenas nos grandes municípios, que tiveram reduções significativas nas tendências de recursos próprios/estaduais e transferidos pela União destinados à saúde.

CONCLUSÃO

No geral, o impacto da PAF no financiamento da saúde dos municípios se deu de forma imediata e a partir da queda de recursos próprios/estaduais destinados à saúde. Nos municípios grandes, entretanto, o impacto foi perdurável entre 2015 e 2019, afetando, principalmente, as despesas com saúde oriundas de recursos da União.

Financiamento dos Sistemas de Saúde; Política Fiscal; Gastos Públicos com Saúde; Cidades

ABSTRACT

OBJECTIVE

To analyze the impact of the fiscal austerity policy (PAF) on health spending in Brazilian municipalities, considering population size and source of funds.

METHODS

The interrupted time series method was used to analyze the effect of the PAF on total expenditure, resources transferred by the Federal Government, and own/state per capita resources allocated to health in the municipalities. The time series analyzed covered the period from 2010 to 2019, every six months. The first semester of 2015 was adopted as the start date of the intervention. The municipalities were grouped into small (up to 100,000 inhabitants), medium (101,000 to 400,000 inhabitants), and large (over 400,000 inhabitants). The data was obtained from the Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (Information System on Public Health Budget).

RESULTS

The results for the national average of municipalities show that the PAF had a negative impact on the level of total expenditure and own/state resources allocated to health in the first half of 2015, without causing statically significant changes in the trends of any of the indicators analyzed in the period after 2015. Small municipalities saw a drop in total expenditure, while large municipalities saw a drop in own/state resources, and medium-sized municipalities saw a drop in both variables. There was no statistically significant drop in the volume of funds transferred by the Federal Government in the immediate aftermath of the implementation of the PAF in any of the municipal groups analyzed. In the medium-term, the PAF only had a negative impact on the large municipalities, which saw significant reductions in the trends of own/state resources and those transferred by the Union for health.

CONCLUSION

In general, the impact of the PAF on health financing in municipalities was immediate and based on the decrease in own/state resources allocated to health. In large municipalities, however, the impact lasted from 2015 to 2019, mainly affecting health expenditure from federal funds.

Financing Health Systems; Fiscal Policy; Public Spending on Health; Cities

INTRODUÇÃO

Em 2015 o Brasil iniciou a implementação de uma política de austeridade fiscal (PAF)11. Chernavsky E, Dweck E, Teixeira RA. Descontrole ou inflexão? A política fiscal do governo Dilma e a crise econômica. Econ Soc. 2020 Dez;29:811-34. https://doi.org/10.1590/1982-3533.2020v29n3art06
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, definida como uma redução de gastos públicos em anos subsequentes22. Reeves A, McKee M, Basu S, Stuckler D. The political economy of austerity and healthcare: cross-national analysis of expenditure changes in 27 European nations 1995-2011. Health Policy. 2014 Mar;115(1):1-8. https://doi.org/10.1016/j.healthpol.2013.11.008
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. Sua posterior constitucionalização, a partir da Emenda Constitucional no 95, de 2016, influenciou a elaboração de diversos estudos voltados aos seus efeitos nas condições de saúde da população e na provisão de serviços e capacidade de financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS)33. Rossi TRA, Lorena JE, Chaves SCL, Martelli PJL. Crise econômica, austeridade e seus efeitos sobre o financiamento e acesso a serviços públicos e privados de saúde bucal. Cienc Saude Coletiva. 2019 Nov;24(12):4427-36. https://doi.org/10.1590/1413-812320182412.25582019
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.

Os gastos públicos per capita destinados à saúde no Brasil, que apresentavam tendência crescente desde 2003, tiveram um inédito decréscimo em 201588. Piola SF, Benevides RP S, Vieira FS. Consolidação do gasto com ações e serviços públicos de saúde: trajetória e percalços no período de 2003 a 2017. Econstor. (Texto para discussão, n. 2439). 2018 [cited 2023 June 13]. Available from: https://www.econstor.eu/handle/10419/211390
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, data que marcou o início da implementação da PAF. Posteriormente, verificou-se estagnação das despesas públicas em saúde até 201999. Vieira FS. Health financing in Brazil and the goals of the 2030 Agenda: high risk of failure. Rev Saude Publica. 2020 dez;54:127. https://doi.org/10.11606/s1518-8787.2020054002414
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, quando, por conta da pandemia de covid-19, decidiu-se romper o teto de gastos e adotar uma política fiscal expansiva1010. Servo LMS, Santos MAB, Vieira FS, Benevides RPS. Financiamento do SUS e Covid-19: histórico, participações federativas e respostas à pandemia. Saude Debate. 2021 ago;44(spe 4):114-29. https://doi.org/10.1590/0103-11042020E407
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.

Cortar gastos públicos em saúde implica reduzir a qualidade e quantidade dos bens e serviços de saúde ofertados para a população brasileira66. Paes-Sousa R, Schramm JMA, Mendes LVP. Fiscal austerity and the health sector: the cost of adjustments. Cienc Saude Coletiva. 2019 mar;24(12):4375-84. https://doi.org/10.1590/1413-812320182412.23232019
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, realidade que penaliza especialmente a população mais pobre, dependente da oferta pública de serviços.

Os estudos que avaliam os efeitos da PAF no financiamento do SUS voltam-se principalmente aos gastos públicos totais e/ou federais77. Guidolin AP, David GC, Rossi PL. The financing of healthcare in Brazil: underfunding and austerity policies. In: Association for Heterodox Economics 22nd, Annual Conference, 2020.,99. Vieira FS. Health financing in Brazil and the goals of the 2030 Agenda: high risk of failure. Rev Saude Publica. 2020 dez;54:127. https://doi.org/10.11606/s1518-8787.2020054002414
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,1111. Funcia FR, Ocke-Reis CO. Efeitos da política de austeridade fiscal sobre o gasto público federal em saúde. In: Rossi P, Dweck E, Oliveira ALM, organizadores. Economia para poucos: impactos sociais da austeridade e alternativas para o Brasil São Paulo: Autonomia Literária; 2018. p. 83-97.. Acerca das despesas municipais em saúde, sabe-se apenas que, na média nacional, cresceram 124% entre 2004 e 2014, tiveram uma queda de 9% em 2015 e foram gradualmente recuperadas entre 2015 e 2019 (14%)55. Cruz WGN, Barros RD, Souza LEPF. Financiamento da saúde e dependência fiscal dos municípios brasileiros entre 2004 e 2019. Cienc Saude Coletiva. 2022 maio;27(6):2459-69. https://doi.org/10.1590/1413-81232022276.15062021
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.

É importante analisar o impacto da PAF nos gastos municipais em saúde porque o pacto constitucional em torno da descentralização situou nos municípios grande parte das atribuições do SUS, sendo a principal delas a Atenção Primária à Saúde (APS), que é modelo de gestão nacional1212. Massuda A, Malik A, Lotta G, Siqueira M, Tasca R, Rocha R. Brazil's primary health care financing: case study. Lancet Global Health Commission on Financing Primary Health Care; 2022.. Além disso, o referido crescimento das despesas públicas totais em saúde no período anterior à PAF ocorreu devido ao aumento da participação municipal no financiamento do SUS1010. Servo LMS, Santos MAB, Vieira FS, Benevides RPS. Financiamento do SUS e Covid-19: histórico, participações federativas e respostas à pandemia. Saude Debate. 2021 ago;44(spe 4):114-29. https://doi.org/10.1590/0103-11042020E407
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, dinâmica influenciada pela Emenda Constitucional no 29 de 20001313. Vieira FS, Piola SF, Benevides RPS. Vinculação orçamentária do gasto em saúde no Brasil: resultados e argumentos a seu favor. Brasília, DF: IPEA; 2019. (Texto para discussão, n. 2516)..

Deve-se considerar ainda que a origem de recursos e o volume das despesas municipais com saúde são desiguais de acordo com o porte municipal55. Cruz WGN, Barros RD, Souza LEPF. Financiamento da saúde e dependência fiscal dos municípios brasileiros entre 2004 e 2019. Cienc Saude Coletiva. 2022 maio;27(6):2459-69. https://doi.org/10.1590/1413-81232022276.15062021
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, porque as faixas populacionais encontram-se associadas à capacidade de arrecadação, de captação de recursos humanos e à infraestrutura do sistema de saúde1414. Calvo MCM, Lacerda JT, Colussi CF, Schneider IJC, Rocha TAH. Estratificação de municípios brasileiros para avaliação de desempenho em saúde. Epidemiol Serv Saude. 2016 dez;25(4):767-76. https://doi.org/10.5123/S1679-49742016000400010
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, fatores que influenciam na capacidade e composição dos gastos55. Cruz WGN, Barros RD, Souza LEPF. Financiamento da saúde e dependência fiscal dos municípios brasileiros entre 2004 e 2019. Cienc Saude Coletiva. 2022 maio;27(6):2459-69. https://doi.org/10.1590/1413-81232022276.15062021
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. Análises detalhadas nesse nível de desagregação configuram uma lacuna na literatura.

Nesse sentido, este artigo tem por objetivo analisar o impacto da PAF nas despesas em saúde dos municípios brasileiros, levando em consideração o porte populacional e a fonte dos recursos.

MÉTODOS

Desenho e Fontes

Estudo retrospectivo, quantitativo e analítico que utilizou o método de regressão de dados de séries temporais interrompidas (ITS – Interrupted Time Series)1515. Shadish WR, Cook TD, Campbell DT. Experimental and quasi-experimental designs for generalized causal inference. 2nd ed. Boston: Houghton Mifflin; 2001.. Utilizou-se como fonte o Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (SIOPS)1616. Ministério da Saúde (BR). Portal da Sáude. Consulta de Indicadores de Municípios 2023. [cited 2023 Apr 26]. Available from: http://siops.datasus.gov.br/relindicadoresmun2.php
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, além de dados populacionais provenientes do censo demográfico (2010) e projeções, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Os dados da plataforma do SIOPS não estão disponíveis em formato de banco de dados1616. Ministério da Saúde (BR). Portal da Sáude. Consulta de Indicadores de Municípios 2023. [cited 2023 Apr 26]. Available from: http://siops.datasus.gov.br/relindicadoresmun2.php
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, por esse motivo os dados utilizados nesta análise foram solicitados via Lei de Acesso à Informação. Verificou-se a existência de incompletude nos dados (média de 10% no período), especialmente no período de 2010 a 2013.

Os municípios foram agregados em três portes populacionais: pequenos (até 100.000 habitantes), médios (de 100.001 a 400.000 habitantes) e grandes (400.001 ou mais habitantes), considerando os residentes em 2019. Brasília não foi incluída na análise, pois suas fontes de recursos são distintas das municipais.

Para a caracterização de cada grupo, foram selecionados indicadores de aspectos socioeconômicos e do sistema de saúde: 1) Esperança de vida ao nascer; 2) Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM); 3) Grau de urbanização; 4) Número de médicos por 1.000 habitantes; 5) Cobertura potencial da atenção básica1717. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Cooreenação-Geral de Estratégia da Saúde de Família. Nota técnica N o 301/2022. Nota metodológica da cobertura potencial da atenção primária à saúde no SUS [cited 2023 Apr 26]. Available from: https://egestorab.saude.gov.br/image/?file=20221214_O_NT301-NotaMetodologicaCoberturaAPS_894545258772170154.pdf
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; e 6) Cobertura da saúde complementar, que expressa a porcentagem da população beneficiária de planos privados de saúde.

Os indicadores são oriundos das seguintes fontes: (1), (2) e (3) – estimativas do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) com base no censo demográfico de 2010; (4) – Sistema de Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (SCNES) e projeções populacionais do IBGE; (5) – Sistema de Informação e Gestão da Atenção Básica (e-Gestor AB); e (6) – Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

Indicadores de Desfecho

Foram estimados três indicadores relacionados ao financiamento da saúde de 2010 a 2019, com periodicidade semestral:

  1. Despesas totais com saúde: representa a despesa liquidada total com saúde (exceto aposentadorias e pensões), inclusive aquela financiada por outras esferas de governo, por habitante1818. Ministério da Saúde (BR). Departamento de Economia e Desenvolvimento em Saúde. Nota técnica n o 148, Metodologia aplicada na elaboração de indicadores com despesas de saúde por esfera, por habitante, e em proporção ao PIB. [cited 2023 Aug 03]. Available from: https://www.gov.br/saude/pt-br/acesso-a-informacao/siops/indicadores/notas-tecnicas/2015/nt-148-2015-desid-se-ms-indicadores-metodologia.pdf/view
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    .

  2. Recursos transferidos pela União: representa o total de receitas realizadas em saúde transferidas pela União, por habitante.

  3. Recursos próprios e estaduais: representa o total de despesas liquidadas com saúde (exceto aposentarias e pensões), subtraído os recursos transferidos pela União, por habitante.

O nível nacional dos indicadores de desfecho foi estimado a partir da média aritmética dos três grupos de municípios.

Todos os valores foram ajustados pela perda inflacionária a partir do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Especial (IPCA-E), fornecido pelo IBGE, considerando o valor de 1o de janeiro de 2022. Além disso, os valores foram convertidos para dólares americanos, considerando a cotação do mesmo dia (US$1,00 = R$5,63). Detectou-se a presença de seis outliers, correspondentes a mais de três desvios-padrões em relação à média, que foram corrigidos considerando as médias dos semestres equivalentes nos anos anterior e posterior.

O aumento dos gastos públicos em decorrência da pandemia da covid-19 em 2020 justifica a delimitação do período analisado até 2019.

Análise Estatística

Para analisar o impacto da PAF nas variáveis de desfecho, foi empregada uma análise de ITS por meio de modelagem autorregressiva integrada de médias móveis (ARIMA) no R Studio 4.2.1. A sintaxe utilizada foi baseada no trabalho desenvolvido por Schaffer et al.1919. Schaffer AL, Dobbins TA, Pearson SA. Interrupted time series analysis using autoregressive integrated moving average (ARIMA) models: a guide for evaluating large-scale health interventions. BMC Med Res Methodol. 2021;21(1):1-12. https://doi.org/10.1186/s12874-021-01235-8
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O ITS é metodologia quasi-experimental1515. Shadish WR, Cook TD, Campbell DT. Experimental and quasi-experimental designs for generalized causal inference. 2nd ed. Boston: Houghton Mifflin; 2001. ideal para o caso em estudo porque, ao estimar os efeitos, o modelo se ajusta às tendências preexistentes à intervenção2020. Emmerick ICM, Campos MR, Luiza VL, Chaves LA, Bertoldi AD, Ross-Degnan D. Retrospective interrupted time series examining hypertension and diabetes medicines usage following changes in patient cost sharing in the "Farmácia Popular" programme in Brazil. BMJ Open. 2017 Nov;7(11):e017308. https://doi.org/10.1136/bmjopen-2017-017308
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. Considerar tendências anteriores à PAF é essencial para avaliar o impacto imediato e na tendência dos gastos em saúde. Tal técnica é amplamente utilizada na avaliação do impacto e previsões, e considera fatores como tendência, sazonalidade e autocorrelação1919. Schaffer AL, Dobbins TA, Pearson SA. Interrupted time series analysis using autoregressive integrated moving average (ARIMA) models: a guide for evaluating large-scale health interventions. BMC Med Res Methodol. 2021;21(1):1-12. https://doi.org/10.1186/s12874-021-01235-8
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.

Com base na definição supracitada de PAF22. Reeves A, McKee M, Basu S, Stuckler D. The political economy of austerity and healthcare: cross-national analysis of expenditure changes in 27 European nations 1995-2011. Health Policy. 2014 Mar;115(1):1-8. https://doi.org/10.1016/j.healthpol.2013.11.008
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e nos resultados obtidos por Chernavsky et al.11. Chernavsky E, Dweck E, Teixeira RA. Descontrole ou inflexão? A política fiscal do governo Dilma e a crise econômica. Econ Soc. 2020 Dez;29:811-34. https://doi.org/10.1590/1982-3533.2020v29n3art06
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, determinou-se 2015 como a data da intervenção. Os efeitos da PAF foram estimados utilizando uma variável representando a mudança de nível das variáveis de desfecho imediatamente após sua implementação (nível pós-PAF) e outra representando a mudança de tendência pós-intervenção (tendência pós-PAF). Resultados significativos, com p < 0,05, foram destacados.

Os modelos foram ajustados para autocorrelação dos resíduos utilizando o teste de Durbin-Watson2121. Savin NE, White KJ. The Durbin-Watson Test for serial correlation with extreme sample sizes or many regressors. Econometrica. 1977;45(8):1989-96. https://doi.org/10.2307/1914122
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. Os melhores parâmetros foram selecionados utilizando a função auto.arima da biblioteca “astsa” para R, que leva em consideração os critérios de qualidade de informação Bayesiano (BIC) e de Akaike (AIC)2222. Maydeu-Olivares A, Garcia-Forero C. Goodness-of-fit testing. International encyclopedia of education. 2010;7(1):190-6. https://doi.org/10.1016/B978-0-08-044894-7.01333-6.
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.

A previsão contrafactual foi calculada utilizando a biblioteca “forecast” e o modelo ARIMA, considerando apenas os valores pré-intervenção. Para criar um indicador dos efeitos da PAF, de forma a estimar o impacto do modelo final em relação à previsão contrafactual, calculou-se sua diferença percentual para o primeiro semestre de 2015, ou seja, imediatamente após a implementação da PAF e no segundo período de 2019.

As tendências anteriores à PAF (2010–2014) foram estimadas por meio de regressão linear. O teste Dickey-Fuller2323. Harris RID. Testing for unit roots using the augmented Dickey-Fuller test: some issues relating to the size, power and the lag structure of the test. Economics Letters. 1992 Apr;38(4):381-6. foi realizado para aferir o nível de significância das tendências.

Questões Éticas

Por se tratar de dados de domínio público, o estudo foi dispensado de apreciação ética pelo comitê de ética em pesquisa.

RESULTADOS

A Tabela 1 mostra que as condições socioeconômicas e do sistema de saúde melhoram com o aumento do porte populacional dos municípios, exceto a cobertura potencial da atenção básica, que é maior nos municípios pequenos. Esses municípios têm baixo grau de urbanização, IDHM e esperança de vida ao nascer, além de poucos médicos e quase nenhuma saúde suplementar. Os municípios grandes têm as melhores condições socioeconômicas e o maior número de médicos e de população com planos privados de saúde, mas a menor cobertura potencial da atenção básica. Os municípios médios têm resultados intermediários e próximos à média nacional.

Tabela 1
Indicadores sociodemográficos e de saúde segundo porte populacional. Brasil, 2019.

A Tabela 2 apresenta os resultados da modelagem ITS para os desfechos, nos períodos anteriores (2010 a 2014) e posteriores (2015 a 2019) à PAF. Antes da implementação, todos os grupos de municípios apresentavam tendência de crescimento em todos os indicadores. No entanto, as tendências de aumento nos recursos próprios/estaduais nos municípios de médio e pequeno porte, assim como nas despesas totais nos municípios de médio porte, não foram significativas estatisticamente.

Tabela 2
Modelos de análise do impacto da política de austeridade fiscal (PAF) sobre o financiamento da saúde nos municípios por meio de séries temporais interrompidas, segundo porte municipal. Brasil, 2010 a 2019.

No que tange às despesas totais em saúde, logo após o início da PAF, os municípios brasileiros tiveram, em média, uma redução significativa de US$ 6,70 por habitante, com queda mais acentuada entre os municípios de pequeno porte (US$ 10,39 por habitante). Municípios de médio e grande porte tiveram um nível de perda similar, por volta de 5,4 dólares/habitante, embora o resultado só tenha se mostrado significativo para o primeiro grupo (Tabela 2 e Figura 1).

Figura 1
Despesas totais semestrais per capita em saúde nos municípios brasileiros e modelos de séries temporais interrompidas, em valores correntesa, em US$a, por porte populacional, 2010–2019.

Com relação aos recursos transferidos pela União, observa-se que a PAF não impactou significativamente nenhum grupo de municípios no 1º semestre de 2015. Para os recursos próprios/estaduais, o único grupo de municípios que não teve queda significativa foi o de pequeno porte. Municípios médios foram os mais afetados pela perda imediata desse tipo de recursos, seguidos de perto pelos de grande porte (Tabela 2 e Figuras 2 e 3).

Após a implantação da PAF, não foram observadas mudanças significativas nas tendências de despesas totais, recursos transferidos pela União e recursos próprios/estaduais para a média nacional e no grupo de municípios de médio porte. Municípios de pequeno porte, por sua vez, apresentaram tendência de aumento significativa dos recursos transferidos pela União, em média de US$ 1,00 por habitante a cada semestre. Já os municípios de grande porte foram os mais afetados no médio prazo, com uma diminuição de tendência significativa nos recursos próprios/estaduais e, principalmente, nos recursos transferidos pela União (Tabela 2).

Comparando as diferenças percentuais entre os valores preditos pelo modelo ARIMA e os cenários sem a PAF (contrafactuais), fica claro que todos os grupos de municípios teriam experimentado um aumento em despesas de saúde, nos recursos transferidos pela União e nos próprios/estaduais (Tabela 2). Exceções são observadas apenas no primeiro semestre de 2015 para os recursos transferidos pela União para municípios médios e no segundo semestre de 2019 para os recursos próprios/estaduais de municípios pequenos.

A Figura 1 apresenta visualmente o modelo ARIMA para despesas totais em saúde e contrafactos. Nenhum dos grupos municipais alcançaria o nível de despesas previstos pelo modelo contrafactual no final do período analisado. Ou seja, na ausência da intervenção, todos os grupos de municípios estariam destinando maior volume de recursos para a saúde em todo o período posterior à PAF.

A Figura 2 mostra os resultados dos modelos de ITS para os recursos transferidos pela União. No período analisado, os municípios médios quase estagnaram em volume de recursos, ficando em desvantagem em relação aos demais portes populacionais ao final da série histórica. Os municípios pequenos e a média nacional tiveram uma queda em 2015, mas depois se recuperaram e se aproximaram do contrafactual. Já nos municípios grandes, houve inversão na tendência desses recursos após a implementação da PAF, gerando um descolamento entre os valores previstos pelo modelo e o cenário esperado.

Figura 2
Recursos semestrais per capita em saúde transferidos pela União para os municípios brasileiros e modelos de séries temporais interrompidas, em valores correntesa, em US$a, por porte populacional, 2010–2019.

Quanto aos recursos próprios/estaduais destinados à saúde podemos observar que, à exceção dos municípios pequenos, os gráficos possuem comportamentos semelhantes (Figura 3). Entre municípios grandes e médios, nota-se uma queda desse tipo de recursos a partir de 2015, aparentemente acentuada nos semestres subsequentes, seguida de uma leve recuperação a partir de 2017. Por sua vez, municípios de pequeno porte já vinham sofrendo estagnação no volume de recursos próprios/estaduais antes de 2015, conforme indicado pelo modelo contrafactual.

Figura 3
Recursos semestrais per capita em saúde próprios ou transferidos pelos estados para os municípios brasileiros e modelos de séries temporais interrompidas, em valores correntesa, em US$a, por porte populacional, 2010–2019.

DISCUSSÃO

Na média nacional, os resultados do modelo demonstram que a implementação da PAF teve um impacto negativo imediato nas despesas totais em saúde e nos recursos próprios/estaduais dos municípios. Esse impacto não foi uniforme entre os diferentes grupos, municípios pequenos tiveram quedas significativas apenas nas despesas totais, grandes apenas nos recursos próprios/estaduais e médios experimentaram declínio em ambas as variáveis, não havendo redução nos recursos transferidos pela União em nenhum desses.

No médio prazo, a implementação da PAF impactou negativamente apenas os municípios de grande porte, que apresentaram reduções significativas nas tendências de recursos próprios/estaduais e transferidos pela União.

Alguns estudos44. Barros RD, Aquino R, Souza LEPF. Evolution of the structure and results of Primary Health Care in Brazil between 2008 and 2019. Cienc Saude Coletiva. 2022 out;27(11):4289-301. https://doi.org/10.1590/1413-812320222711.02272022
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,55. Cruz WGN, Barros RD, Souza LEPF. Financiamento da saúde e dependência fiscal dos municípios brasileiros entre 2004 e 2019. Cienc Saude Coletiva. 2022 maio;27(6):2459-69. https://doi.org/10.1590/1413-81232022276.15062021
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, ao verificarem a diminuição das despesas em saúde nos municípios a partir de 2015, atribuem responsabilidade à crise econômica e à queda de receitas que resultou dela. No entanto, experiências internacionais2424. Stuckler D, Basu S, Suhrcke M, Coutts A, McKee M. The public health effect of economic crises and alternative policy responses in Europe: an empirical analysis. The Lancet. 25 de julho de 2009;374(9686):315-23. https://doi.org/10.1016/S0140-6736 (09)61124-7
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,2525. Karanikolos M, Mladovsky P, Cylus J, Thomson S, Basu S, Stuckler D, et al. Financial crisis, austerity, and health in Europe. Lancet. 2013 Apr;381(9874):1323-31. https://doi.org/10.1016/S0140-6736 (13)60102-6
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demonstram que crises econômicas não necessariamente geram impactos negativos sobre o financiamento das políticas sociais. É importante ressaltar que a implementação da PAF foi uma escolha e não uma consequência natural e imediata da crise.

Na perspectiva epidemiológica e de saúde pública, cortar gastos sociais em contexto de crise significa potencializar os efeitos negativos na saúde da população: aumenta riscos (por exemplo: consumo abusivo de álcool e tabaco, desnutrição e riscos ambientais); diminui o acesso aos serviços de promoção, prevenção e cuidado; e eleva a morbimortalidade66. Paes-Sousa R, Schramm JMA, Mendes LVP. Fiscal austerity and the health sector: the cost of adjustments. Cienc Saude Coletiva. 2019 mar;24(12):4375-84. https://doi.org/10.1590/1413-812320182412.23232019
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.

A discrepância no financiamento entre diferentes tamanhos de municípios valida a abordagem metodológica deste estudo. A literatura menciona a ligação entre tamanho populacional e alocação de recursos de saúde55. Cruz WGN, Barros RD, Souza LEPF. Financiamento da saúde e dependência fiscal dos municípios brasileiros entre 2004 e 2019. Cienc Saude Coletiva. 2022 maio;27(6):2459-69. https://doi.org/10.1590/1413-81232022276.15062021
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,2626. Araújo CEL, Gonçalves GQ, Machado JA. Os municípios brasileiros e os gastos próprios com saúde: algumas associações. Cienc Saude Coletiva. 2017 mar;22(3):953-63. https://doi.org/10.1590/1413-81232017223.15542016
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. Em geral, municípios médios gastam menos em saúde com recursos próprios do que os pequenos e grandes2626. Araújo CEL, Gonçalves GQ, Machado JA. Os municípios brasileiros e os gastos próprios com saúde: algumas associações. Cienc Saude Coletiva. 2017 mar;22(3):953-63. https://doi.org/10.1590/1413-81232017223.15542016
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. Entre 2003 e 2019, municípios grandes tiveram maior gasto per capita com recursos advindos de transferências55. Cruz WGN, Barros RD, Souza LEPF. Financiamento da saúde e dependência fiscal dos municípios brasileiros entre 2004 e 2019. Cienc Saude Coletiva. 2022 maio;27(6):2459-69. https://doi.org/10.1590/1413-81232022276.15062021
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. No entanto, como indicado por Cruz et al.55. Cruz WGN, Barros RD, Souza LEPF. Financiamento da saúde e dependência fiscal dos municípios brasileiros entre 2004 e 2019. Cienc Saude Coletiva. 2022 maio;27(6):2459-69. https://doi.org/10.1590/1413-81232022276.15062021
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e este estudo, municípios de pequeno porte tiveram o maior crescimento de despesas per capita com recursos transferidos no período.

As despesas totais em saúde nos municípios pequenos sofreram maior impacto imediatamente após a PAF. Cruz et al.55. Cruz WGN, Barros RD, Souza LEPF. Financiamento da saúde e dependência fiscal dos municípios brasileiros entre 2004 e 2019. Cienc Saude Coletiva. 2022 maio;27(6):2459-69. https://doi.org/10.1590/1413-81232022276.15062021
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sugerem que a queda geral no nível de despesas em saúde nos municípios brasileiros em 2015 ocorreu, predominantemente, pela diminuição das receitas municipais. Apesar de os indicadores desta pesquisa não possibilitarem singularizar despesas oriundas de recursos próprios, o fato é que municípios pequenos são mais dependentes de recursos externos para financiamento das ações de saúde55. Cruz WGN, Barros RD, Souza LEPF. Financiamento da saúde e dependência fiscal dos municípios brasileiros entre 2004 e 2019. Cienc Saude Coletiva. 2022 maio;27(6):2459-69. https://doi.org/10.1590/1413-81232022276.15062021
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, o que é natural, pois as receitas municipais são em grande parte atreladas à prestação de serviços e à circulação de mercadorias2727. Tristão JA. A administração tributária dos municípios brasileiros: uma avaliação do desempenho da arrecadação [thesis]. São Paulo: Fundação Getúlio Vargas; 2003, que são menores nesses locais. Assim, uma análise aprofundada do comportamento das despesas em saúde de municípios desse porte em situações de crise se mostra necessária em estudos futuros.

Ainda sobre municípios pequenos, verificou-se um inesperado crescimento na tendência dos recursos transferidos pela União pós-PAF. Ressalte-se, entretanto, que municípios grandes apresentaram tendência de queda nesse indicador, indicando uma redistribuição em vez de aumento dos recursos aportados. Isso mostra que, em certa medida, a atribuição da União de redistribuir a capacidade fiscal e a oferta dos serviços públicos ao longo do território2828. Simão JB, Orellano VIF. Um estudo sobre a distribuição das transferências para o setor de saúde no Brasil. Estud Econ. 2015 mar;45:33-63. https://doi.org/10.1590/0101-4161201545133jbv
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tem sido exercida, já que municípios pequenos tinham menor gasto per capita em saúde (Figura 1).

Os resultados dos municípios médios assemelham-se aos da média nacional: redução imediata nas despesas totais e nos recursos próprios/estaduais, sem mudanças nas tendências pós-PAF em todas as variáveis estudadas. A heterogeneidade desse grupo de municípios no que diz respeito à estrutura do sistema de saúde e às características demográficas e econômicas1414. Calvo MCM, Lacerda JT, Colussi CF, Schneider IJC, Rocha TAH. Estratificação de municípios brasileiros para avaliação de desempenho em saúde. Epidemiol Serv Saude. 2016 dez;25(4):767-76. https://doi.org/10.5123/S1679-49742016000400010
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dificulta a interpretação desses resultados. Sem perder isso de vista, destaca-se que eles tiveram as despesas per capita mais baixas em todo o período. Ou seja, embora não tenham sido os mais impactados pela PAF, esses são os municípios que mais carecem de aporte de recursos. A ausência do impacto sugere apenas que o problema antecede a PAF.

No que tange aos municípios de grande porte, demonstrou-se que despesas totais em saúde após a PAF só alcançaram os níveis de 2015, cerca de US$ 185 dólares per capita ao ano, em 2019. É razoável propor, dessa maneira, que o maior impacto da PAF se deu sobre esse grupo, uma vez que os municípios pequenos e médios recuperaram os níveis de suas despesas um ano antes.

A queda na tendência de recursos transferidos pela União tem a maior participação nos prejuízos dos municípios grandes. O aumento do volume de recursos alocados por emendas parlamentares (EP) destinados à saúde a partir de 2016 explica em parte essa mudança. Conforme constatam Piola e Vieira2929. Piola SF, Vieira FS. As emendas parlamentares e a alocação de recursos federais no Sistema Único de Saúde. Brasília, DF: IPEA; 2019. (Texto para discussão; n. 2497)., enquanto 1,7% do total de gastos federais com saúde em 2015 era oriundo de EP, esse percentual superou os 7% a partir de 2016. Cerca de 75% desses recursos transferidos para estados e municípios, principalmente os pequenos, devido à preferência dos parlamentares em alocar recursos em locais de maior proximidade com a população beneficiária2929. Piola SF, Vieira FS. As emendas parlamentares e a alocação de recursos federais no Sistema Único de Saúde. Brasília, DF: IPEA; 2019. (Texto para discussão; n. 2497).,3030. Vieira FS, Lima LD. Distorções das emendas parlamentares à alocação equitativa de recursos federais ao PAB. Rev Saude Publica. 2022;56:123. https://doi.org/10.11606/s1518-8787.2022056004465
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.

Embora essa destinação seja, em parte, desejada, uma vez que esses municípios são mais vulneráveis (Tabela 1), a distribuição desses recursos não se dá de forma equânime entre os municípios, o que pode gerar desigualdade3030. Vieira FS, Lima LD. Distorções das emendas parlamentares à alocação equitativa de recursos federais ao PAB. Rev Saude Publica. 2022;56:123. https://doi.org/10.11606/s1518-8787.2022056004465
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. Além disso, o aumento da parcela de gastos alocados por EP, junto ao congelamento de gastos com saúde no orçamento federal, significa uma redução da parcela de alocação própria pelo Ministério da Saúde2929. Piola SF, Vieira FS. As emendas parlamentares e a alocação de recursos federais no Sistema Único de Saúde. Brasília, DF: IPEA; 2019. (Texto para discussão; n. 2497)., o que implica uma diminuição de seu poder indutor3131. Arretche M. Democracia, federalismo e centralização no Brasil. Rio de Janerio: Editora Fiocruz; 2012 [cited 2023 Jul 9]. Available from: https://books.scielo.org/id/bx899
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. Ademais, estudos têm destacado uma falta de transparência orçamentária dos recursos destinados por EP2929. Piola SF, Vieira FS. As emendas parlamentares e a alocação de recursos federais no Sistema Único de Saúde. Brasília, DF: IPEA; 2019. (Texto para discussão; n. 2497).,3030. Vieira FS, Lima LD. Distorções das emendas parlamentares à alocação equitativa de recursos federais ao PAB. Rev Saude Publica. 2022;56:123. https://doi.org/10.11606/s1518-8787.2022056004465
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.

À exceção dos municípios de grande porte, os recursos transferidos pela União foram menos impactados pela implementação da PAF. Estudo anterior1212. Massuda A, Malik A, Lotta G, Siqueira M, Tasca R, Rocha R. Brazil's primary health care financing: case study. Lancet Global Health Commission on Financing Primary Health Care; 2022. demonstrou que o percentual de recursos federais destinados à saúde transferidos diretamente aos municípios permaneceu relativamente estável desde 2004, embora os valores per capita tenham aumentado. Nesse sentido, ressalta-se a importância de regras que estabelecem um financiamento regular dos serviços de saúde, como o Piso da Atenção Básica (PAB). O volume considerável de receitas provenientes dessas normas1212. Massuda A, Malik A, Lotta G, Siqueira M, Tasca R, Rocha R. Brazil's primary health care financing: case study. Lancet Global Health Commission on Financing Primary Health Care; 2022. contribuiu para amenizar o impacto da PAF no financiamento da saúde.

Investigar quais setores dos serviços municipais foram mais impactados, considerando as particularidades demográficas de cada município, mostra-se necessário em estudos futuros. Sabe-se que a implementação da PAF influenciou na perda de qualidade dos serviços relacionados à saúde bucal33. Rossi TRA, Lorena JE, Chaves SCL, Martelli PJL. Crise econômica, austeridade e seus efeitos sobre o financiamento e acesso a serviços públicos e privados de saúde bucal. Cienc Saude Coletiva. 2019 Nov;24(12):4427-36. https://doi.org/10.1590/1413-812320182412.25582019
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. Além disso, também é mencionada na literatura uma diminuição no acesso a medicamentos fornecidos pelo SUS devido à redução dos gastos nas esferas municipais e estaduais 2015 e 20163232. Vieira FS. Evolução do gasto com medicamentos do Sistema Único de Saúde no período de 2010 a 2016. Brasília, DF: IPEA; 2018. (Texto para discussão; n. 2356)..

Uma questão indiretamente levantada pelos resultados diz respeito à dependência fiscal dos municípios em relação aos gastos em saúde. Os municípios de pequeno e médio porte experimentaram uma diminuição de despesas com recursos próprios/estaduais, relativamente aos recursos oriundos da União, indicando um crescimento da dependência de recursos federais para gastos com saúde. Cruz et al.55. Cruz WGN, Barros RD, Souza LEPF. Financiamento da saúde e dependência fiscal dos municípios brasileiros entre 2004 e 2019. Cienc Saude Coletiva. 2022 maio;27(6):2459-69. https://doi.org/10.1590/1413-81232022276.15062021
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, ao analisarem as receitas municipais, observaram um crescimento expressivo das receitas não próprias em relação às próprias a partir de 2016, especialmente entre os municípios de pequeno porte, o que sugere que o crescimento da dependência fiscal não se limita à área da saúde.

A disponibilidade de recursos para os municípios é essencial para a descentralização do SUS e fortalecimento da APS. Nas últimas décadas, o aumento de recursos públicos destinados à saúde ocorreu pelo crescimento de gastos municipais, sustentado, principalmente, pela destinação de recursos próprios1212. Massuda A, Malik A, Lotta G, Siqueira M, Tasca R, Rocha R. Brazil's primary health care financing: case study. Lancet Global Health Commission on Financing Primary Health Care; 2022.. No entanto, os resultados deste estudo evidenciam que esses recursos são suscetíveis aos ciclos econômicos e às decisões políticas do governo federal. Desse modo, corrobora-se a ideia de que os municípios carecem de uma fonte de arrecadação tributária mais regular e estável2727. Tristão JA. A administração tributária dos municípios brasileiros: uma avaliação do desempenho da arrecadação [thesis]. São Paulo: Fundação Getúlio Vargas; 2003.

Quanto às capacidades de arrecadação dos municípios brasileiros, cabe destacar ainda que, enquanto este artigo está sendo escrito, se encontra em tramitação o Projeto de Emenda à Constituição no 45, de 2019, que propõe mudanças nos mecanismos de tributação em todas as esferas do Estado brasileiro.

Os resultados do presente artigo devem ser interpretados com cautela. Os modelos de ITS mostraram que a implementação da PAF não teve impacto estatisticamente significativo nas despesas totais de saúde a médio prazo nos grupos municipais analisados, apesar de um leve declínio ter ocorrido em todos eles. Na melhor das hipóteses, pode-se inferir que tais despesas estagnaram a partir da PAF.

Deve-se considerar que o Brasil tem gastos públicos com saúde baixos em comparação com países de renda semelhante e que não possuem sistemas universais1313. Vieira FS, Piola SF, Benevides RPS. Vinculação orçamentária do gasto em saúde no Brasil: resultados e argumentos a seu favor. Brasília, DF: IPEA; 2019. (Texto para discussão, n. 2516).. Argentina e Chile, por exemplo, em 2015 tiveram despesas públicas maiores em percentuais do produto interno bruto (cerca de 1%) e per capita (40% e 50% maiores, respectivamente)1313. Vieira FS, Piola SF, Benevides RPS. Vinculação orçamentária do gasto em saúde no Brasil: resultados e argumentos a seu favor. Brasília, DF: IPEA; 2019. (Texto para discussão, n. 2516).. Contrastando a realidade com os ambiciosos princípios do SUS, torna-se evidente que agendas de cortes, ou mesmo de estagnação, de gastos públicos, são incompatíveis com a efetiva realização do nosso sistema de saúde1313. Vieira FS, Piola SF, Benevides RPS. Vinculação orçamentária do gasto em saúde no Brasil: resultados e argumentos a seu favor. Brasília, DF: IPEA; 2019. (Texto para discussão, n. 2516)..

Uma importante limitação deste estudo é derivada da decisão de não utilizar o indicador de “Participação das transferências para a Saúde em relação à despesa total do Município com saúde”, disponibilizado pelo SIOPS. Essa escolha foi feita devido às alterações nas codificações de receitas e despesas do indicador nos anos de 2016, 2017 e 2019, conforme esclarecido pela Coordenação do Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (CSIOPS/CGES/DESID/SE/MS), em resposta à indagação dos autores. Essas mudanças dificultam uma análise longitudinal precisa da participação dos estados e dos gastos próprios em saúde nos municípios.

Outras importantes limitações devem ser destacadas. A primeira decorre da qualidade dos dados disponibilizados pelo SIOPS, que tem sofrido críticas acerca de sua confiabilidade e completude3333. Vieira FS, Almeida ATC, Servo LMS, Benevides RPS. Gasto total dos municípios em atenção primária à saúde no Brasil: um método para ajuste da despesa declarada de 2015 a 2020. Cad Saude Publica. 2022 jun;38(5):e00280221. https://doi.org/10.1590/0102-311XPT280221
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. Neste estudo, a incompletude dos dados foi uma característica que se fez presente, especialmente nos municípios pequenos, o que pode ter superestimado as suas despesas. Uma última limitação diz respeito ao tamanho da série temporal analisada. O pequeno número de pontos no tempo dificulta a identificação de tendências significativas ou padrões sazonais, a estimação adequada dos parâmetros de autorregressão (AR) e média móvel (MA), além de aumentar a sensibilidade dos modelos aos outliers1919. Schaffer AL, Dobbins TA, Pearson SA. Interrupted time series analysis using autoregressive integrated moving average (ARIMA) models: a guide for evaluating large-scale health interventions. BMC Med Res Methodol. 2021;21(1):1-12. https://doi.org/10.1186/s12874-021-01235-8
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.

Por outro lado, o estudo destaca-se por estimar em abrangência nacional o impacto da PAF no financiamento da saúde dos municípios a partir de ITS, um método quase-experimental indicado para estudos de avaliação de impacto de políticas públicas1919. Schaffer AL, Dobbins TA, Pearson SA. Interrupted time series analysis using autoregressive integrated moving average (ARIMA) models: a guide for evaluating large-scale health interventions. BMC Med Res Methodol. 2021;21(1):1-12. https://doi.org/10.1186/s12874-021-01235-8
https://doi.org/10.1186/s12874-021-01235...
.

Embora a PAF tenha sido interrompida em decorrência da pandemia, ela ainda ocupa espaço relevante na agenda pública. O Brasil de 2015 a 2019 configurou-se como um laboratório social, proporcionando uma oportunidade para avaliação e denúncia das consequências da austeridade no SUS e na saúde da população. O papel da política fiscal para a estabilização da economia não pode servir de argumento para a supressão de gastos de saúde, haja vista que esses possuem efeitos redistributivos e multiplicadores3434. Ocké-Reis C. "Financiamento adequado é condição para garantia do direito universal à saúde". Radis Com Saude. 2023 [cited 2023 Ago 3]. Available from: https://radis.ensp.fiocruz.br/entrevista/financiamento-adequado-e-condicao-para-garantia-do-direito-universal-a-saude/
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. Conforme sinaliza Ocké-Reis3434. Ocké-Reis C. "Financiamento adequado é condição para garantia do direito universal à saúde". Radis Com Saude. 2023 [cited 2023 Ago 3]. Available from: https://radis.ensp.fiocruz.br/entrevista/financiamento-adequado-e-condicao-para-garantia-do-direito-universal-a-saude/
https://radis.ensp.fiocruz.br/entrevista...
, a criação de um novo marco fiscal deve considerar a necessidade de aumento dos gastos públicos com saúde para pelo menos 6% do produto interno bruto, com vistas a uma aproximação dos pressupostos do SUS com a realidade concreta.

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  • Financiamento: Atividade promovida pelo Programa de Saúde Pública, com recursos CAPES PROEX Processo Nº: 88881.974063/2024-01.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    23 Ago 2023
  • Aceito
    17 Abr 2024
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