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TRABALHO SEXUAL, CUIDADO E RISCO NA PANDEMIA DA COVID-19 E NA EPIDEMIA DA AIDS

SEX WORK, CARE, AND RISK IN THE COVID-19 PANDEMIC AND AIDS EPIDEMIC

Resumo

Este artigo analisa as ressonâncias discursivas, morais e sociais no enfrentamento à epidemia da aids e pandemia da covid-19 em dois importantes contextos dos movimentos e organizações de trabalhadoras do sexo. Dialoga com as contribuições de Viviana Zelizer para problematizar como a transação comercial do sexo pago concorre para atribuir valor moral, afetivo e simbólico a diferentes práticas de cuidado que circulam no trabalho sexual. A pesquisa coletou informações em documentos arquivados e ambiente digital, incluindo levantamentos em redes sociais. A abordagem relacional privilegiou a ação política e criativa de trabalhadoras do sexo nos dois contextos em que o cuidado está atravessado por ambivalências morais. Resultados apontam os sentidos cambiantes que o cuidado pode ganhar. Nas políticas de prevenção à aids, sexo pago e cuidado estão imbricados, denotando confiança e sexo seguro. Na pandemia, sexo remunerado e risco de infecção, juntos maximizam a ideia de que trabalhadoras do sexo oferecem riscos.

Palavras-chave:
Trabalho sexual; Cuidado; Gênero; Intimidade; Epidemias

Abstract

This article analyzes the discursive, moral, and social resonances in response the AIDS epidemic and the COVID-19 pandemic in two important contexts of sex worker movements and organizations. It engages with Viviana Zelizer’s contributions to problematize how the commercial transaction of paid sex contributes to attributing moral, affective, and symbolic value to different caregiving practices circulating within sex work. The research gathered information from archived documents and digital environments, including surveys on social networks. The relational approach privileged the political and creative action of sex workers in the two contexts where care is intersected by moral ambiguities. Results indicate the changing meanings that care can acquire. In AIDS prevention policies, paid sex and care are intertwined, denoting trust and safe sex. In the pandemic, paid sex and the risk of infection, together maximize the idea that sex workers pose risks.

Keywords:
Sex work; Care; Gender; Intimacy; Epidemics

Em março de 2020 a Organização Mundial de Saúde (OMS) reconheceu a pandemia causada pelo vírus SARS-CoV-2. Entre os anos 2020 e 2021 estudos da área da saúde publicados na revista The Lancet já aproximavam a epidemia da aids e a pandemia da covid-19 com o intuito de fornecer lições e respostas à epidemia do coronavírus. Ressaltavam que o impacto global na saúde iria requerer expansão e sinergia entre movimentos de cuidado e uma governança global de saúde (Hargreaves & Davey, 2020Hargreaves, James; Davey, Calum & Group for lessons from pandemic HIV prevention for the COVID-19 response. (2020). Three lessons for the covid-19 response from pandemic HIV. Lancet HIV, 7/5, e309-e311., Pozniak et al, 2020Pozniak, Anton et al. (2020). A covid-19 conference at AIDS 2020: Virtual. Lancet, 395/10237, p. 1598-1599.). Antevia-se que a covid-19 não afetaria a todos igualmente, mas incidiria mais fortemente entre idosos e grupos vulneráveis em países de baixa e média renda. A atenção se voltava para o rastreamento do status socioeconômico das pessoas afetadas, reconhecendo-se que, assim como o conselho “abstenha-se, seja fiel e use preservativos” não poderia prevenir a disseminação do HIV onde desigualdades de gênero e estigma eram norma, as instruções para lavar as mãos e garantir o distanciamento físico dificultariam o combate ao novo coronavírus entre aqueles que se encontravam na pobreza (Hargreaves & Davey, 2020Hargreaves, James; Davey, Calum & Group for lessons from pandemic HIV prevention for the COVID-19 response. (2020). Three lessons for the covid-19 response from pandemic HIV. Lancet HIV, 7/5, e309-e311.). Mesmo tratando-se de um vírus com diferentes composições e formas de reprodução, conexões econômicas, sociais, políticas e morais aproximavam experiências e condutas humanas no combate às infecções.

Os resultados da pesquisa sobre trabalho sexual que embasa este artigo problematizam a separação feita entre efeitos estigmatizadores, relacionados à epidemia da aids, e efeitos sociais e econômicos, mais destacados na pandemia da covid-19. Identifica-se que esses estiveram muito interconectados na maneira como atingiram o trabalho sexual nos dois acontecimentos. Ao mesmo tempo, nossas conclusões convergem para a compreensão de que o “cuidado”, nos dois casos, ganhou centralidade.

Os contextos da epidemia da aids e pandemia da covid-19, marcaram a história recente do trabalho sexual no Brasil. À nossa pesquisa interessou analisar como movimentos, redes, organizações e grupos de prostitutas e trabalhadoras sexuais enfrentaram os efeitos da pandemia da covid-19 e se estes atores mobilizaram conhecimentos, informações, aparatos políticos e emocionais que estiveram presentes nas lutas de combate à epidemia da aids1 1 Registro os meus agradecimentos aos pareceristas anônimos da revista Sociologia e Antropologia pela criteriosa avaliação e pelas valiosas sugestões. A pesquisa apresentada neste artigo foi coordenada pela autora e teve a participação, em diferentes momentos, de seis bolsistas de iniciação científica por meio do apoio da FAPERJ e CNPQ (por meio do programa PIBIC/UFRJ). São eles: Arthur Oliveira dos Anjos, Julia Chaise, Ysabella Silva de Andrade, Tainá de Oliveira, Juliana Flor e Bárbara Mattos. Às instituições de fomento e aos bolsistas, deixo os meus agradecimentos. .

O processo de construção das prostitutas como sujeitos políticos, por meio de organizações representativas e movimentos sociais, alterou a agenda pública que relacionava trabalho sexual e prevenção ao HIV/aids, contribuindo para que esta relação se associasse à prevenção e informação (Moraes, 2020Moraes, Aparecida Fonseca. (2020). Gabriela Leite e mudanças nas práticas discursivas sobre prostituição no Brasil. Estudos Históricos, 33/70, p. 254-279). Na pandemia de covid-19, trabalhadoras do sexo e prostitutas ocuparam diferentes plataformas de ambientes online para criar redes de colaboração e proteção, organizando-se para ter acesso a equipamentos de proteção individual, cursos para a oferta de serviços eróticos pela internet e participando de ações de enfrentamento às dificuldades sociais e econômicas2 2 É preciso justificar porque se escolheu manter a utilização, ao mesmo tempo, dos termos “prostituta” e “trabalhadora sexual” neste artigo. Em primeiro lugar, tratam-se de categorias “nativas” que coexistem ou circulam de maneira alternada - a depender dos contextos e grupos de ativistas - nos campos políticos de associações e movimentos. Algumas redes, organizações, grupos, pessoas, usam a autodenominação “prostituta”, outras, a de “trabalhadora do sexo”. Em segundo lugar, situados em seus respectivos contextos históricos, enquanto “prostituição” e “prostituta” marcaram o debate sobre estigma e mácula moral, as terminologias “trabalho sexual” e “trabalhadora do sexo”, de emprego mais recente e frequentemente associadas à debates sobre a regulamentação deste trabalho, indicam as mudanças que ocorreram sem anular, contudo, os seus significados morais. Essas terminologias obviamente não são neutras e denotam tensões e controvérsias que existem para dentro e para fora das fronteiras da “prostituição” e do “trabalho sexual”. Por essas razões, optou-se por mantê-las simultaneamente no artigo e, no caso de precisar sustentar alguma coerência argumentativa, os termos foram empregados de maneira alternada. . Ao relacionar práticas sociais e discursivas presentes em suas organizações e grupos para enfrentar a aids e a covid-19, inicialmente perguntamos: Como trabalhadoras do sexo mobilizaram aparatos cognitivos e emocionais, alguns já presentes nas lutas de combate à epidemia de HIV/aids, durante a pandemia do coronavírus? Como conhecimentos, informações e formas de interação surgidas nas redes políticas de seus movimentos ajudaram a enfrentar os efeitos da pandemia? No plano das redes amplas de organizações que dirigem ações e produzem conhecimento a grupos de prostitutas trabalhadoras do sexo e seus movimentos, perguntamos como os riscos e efeitos sociais da pandemia e da aids foram relacionados.

A pesquisa para o levantamento de informações qualitativas sobre a pandemia da covid-19, reuniu dados extraídos do ambiente online entre os anos 2020 e 2022. A coleta implicou no acompanhamento de publicações de postagens em redes sociais e de acontecimentos e debates ocorridos em lives e encontros que juntaram trabalhadoras do sexo, mediadores e colaboradores de diferentes grupos, coletivos e organizações. Suplementarmente, analisamos surveys, relatórios e depoimentos publicados nos sites de três organizações internacionais - as redes Global Network of Sex Work Projects (NSWP), Red de Mujeres Trabajadoras Sexuales de Latinoamérica y el Caribe (RedTrasex) e Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS) - e da organização nacional Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA). Reportagens veiculadas nas mídias digitais também contribuíram para a formulação de um quadro de compreensão. A coleta de dados e informações sobre a epidemia da aids priorizou a análise documental de materiais informativos de campanhas governamentais de prevenção realizadas nos anos 2000 (cartilhas, folders, reportagens, etc.) e as publicações do jornal Beijo da Rua, relevante fonte de informação sobre organizações e movimentos de prostitutas entre os anos 1980 e 20003 3 Concebido por Gabriela Leite, prostituta ativista de projeção nacional e internacional, o periódico Beijo da Rua teve seu primeiro número lançado em 1988 e durante quase três décadas foi considerado o mais importante tabloide brasileiro voltado para as prostitutas e seus movimentos associativos (Moraes & Brasil, 2020: 62). Algumas informações retiradas desta fonte, o Jornal Beijo da Rua, integram o arquivo da pesquisadora e outra parte foi extraída da pesquisa de mestrado de Brasil (2020). .

TRABALHO ÍNTIMO, SEXO PAGO E CUIDADOS REMUNERADOS

Preliminarmente, consideramos que o trabalho sexual envolve intimidade, e está imbricado com atenção pessoal e cuidados remunerados. Zelizer (2005Zelizer, Viviana. (2005). The purchase of intimacy. Princeton: Princeton University Press.; 2010Zelizer, Viviana. (2010). Caring Everywhere. In: Parreñas, Rhacel Salazar & Boris, Eileen (eds.). Intimate Labors: Cultures, Technologies, and the Politics of Care. Stanford: Stanford University Press , p. 267-279.) contesta a contradição entre relações de intimidade e relações impessoais baseada em explanações econômicas que veem mercado em toda parte, o que tenderia a suprimir ou anular laços e relações pessoais. Contrapondo-se a argumentos que consideram que onde há relacionamento íntimo não há trabalho, a autora assume uma definição ampla de intimidade que pode se estender a uma série de relações pessoais, como a de prostituta-cliente. A intimidade inclui interações que dependem do conhecimento particularizado recebido e da atenção prestada por pelo menos uma pessoa, mas que não estão largamente disponíveis a terceiros. Enquanto o conhecimento envolvido pode incluir elementos como rituais interpessoais, informações corporais, consciência da vulnerabilidade pessoal, memória compartilhada; a atenção prestada pode incluir termos carinhosos, serviços corporais, linguagem privada, apoio emocional. Já a definição ampla de trabalho empregada utilizado pela autora, por sua vez, inclui não apenas empregos remunerados pelo mercado, mas qualquer esforço que crie valor de uso transferível, “incluindo o valor de uso que os economistas normalmente chamam de ‘capital humano’“ (Zelizer 2010Zelizer, Viviana. (2010). Caring Everywhere. In: Parreñas, Rhacel Salazar & Boris, Eileen (eds.). Intimate Labors: Cultures, Technologies, and the Politics of Care. Stanford: Stanford University Press , p. 267-279.: 267-270).

Apesar de os cuidados pagos em ambientes íntimos situarem melhor a questão das atenções dispensadas por empregadas, enfermeiras e outras profissionais que atuam em espaços domésticos e familiares, argumentamos que, em um número significativo de situações, o serviço de atenção sexual remunerado ocorre em ambientes que conotam intimidade, como as “casas de cafetinas”, mais comuns em zonas de prostituição, e os quartos, ou “quartinhos”, que podem ser ocupados em hotéis, bares e outros locais. A atividade de trabalho que envolve sexo pago, intimidade, atenção e cuidado remunerado implica também em um tipo de “batalha moral e política”, parafraseando a interpretação de Zelizer (2010Zelizer, Viviana. (2010). Caring Everywhere. In: Parreñas, Rhacel Salazar & Boris, Eileen (eds.). Intimate Labors: Cultures, Technologies, and the Politics of Care. Stanford: Stanford University Press , p. 267-279.) sobre o clamor suscitado pelos cuidados pagos em ambientes íntimos.

O trabalho sexual mobiliza um conjunto de atenções pessoais. As “relações do care”, incluem qualquer tipo de atenção pessoal, constante e/ou intensa, que “visa melhorar o bem-estar daquela ou daquele que é seu objeto” (Zelizer 2012Zelizer, Viviana. (2012). A economia do care. In: Hirata, Helena & Guimarães, Nadya Araujo (orgs.). Cuidado e cuidadoras: as várias faces do trabalho do care. São Paulo: Atlas. p. 15-28.: 18), mas, ainda que a intimidade e o cuidado muitas vezes se complementem, eles não se equiparam e não têm uma conexão necessária. Para esclarecer, destacamos aquelas relações que, mesmo envolvendo intimidade interpessoal, podem ser abusivas ou arriscadas a pelo menos uma das partes, não implicando em atenção cuidadosa (Zelizer 2010Zelizer, Viviana. (2010). Caring Everywhere. In: Parreñas, Rhacel Salazar & Boris, Eileen (eds.). Intimate Labors: Cultures, Technologies, and the Politics of Care. Stanford: Stanford University Press , p. 267-279.: 269-270).

A troca de sexo por dinheiro nas relações de intimidade leva a investigar as relações de poder e as variações relevantes (Zelizer, 2009Zelizer, Viviana. (2009). Dinheiro, poder e sexo. Cadernos Pagu, 32, p. 135-157.), uma vez que são inseparáveis das práticas de cuidado e lhes atribuem sentido interpretativo. Em relações interpessoais consideradas “perigosas”, em que o encontro de sexo e dinheiro é visto de forma maculada, moralmente contaminada como ocorre com a prostituição e com o trabalho sexual, sendo pouco relevante nesta afirmação o termo empregado, há convicção, em parte significativa do senso comum, de que o dinheiro degrada e de que as mulheres oferecem os seus corpos como mercadoria. Mas deveríamos perguntar o que torna essa relação possível, ou quando ela não é possível.

Se considerarmos a longevidade e regularidade da prostituição, podemos supor que há mais interesse na sua existência do que se imagina. Afinal, a oferta de sexo categoricamente definida pela troca por pagamento, não deixa muita margem a ambiguidades, e pressupõe um interesse tácito entre as duas partes em tornar esta relação possível. Ao mesmo tempo, existem evidentes desvantagens na relação das prostitutas com os homens clientes. A mais importante diz respeito às representações sociais que imprimem nos corpos e definições das mulheres envolvidas nesta relação, a ideia de “mercadoria” e “degradação moral”. Além disso, muitos clientes podem reter diferentes vantagens sociais e econômicas que usarão para mostrar como este é um lugar onde o poder atua. Isso pode desencadear diferentes situações de violência, outros tipos de tensionamento, como ruptura da transação econômica, brusca ou não, e que pode ocorrer antes ou mesmo depois do pagamento. Mas rupturas na negociação do serviço sexual também ocorrem por motivações afetivas e emocionais das duas partes da relação, ainda que muitas vezes possam estar combinadas com exercícios de poder.

Continuidades ou rupturas na troca sexo dinheiro, relacionam-se com o tipo de negociação que ocorre nessas transações. O uso de preservativos afeta significativamente o curso das negociações na relação da trabalhadora do sexo com o cliente. Na epidemia da aids no Brasil, houve um período, principalmente no início dos anos 2000, em que muitas prostitutas ganharam considerável poder de barganha nesta relação. Uma parte delas estava em contato com redes governamentais e não governamentais de apoio, atenção e prevenção, detinham informações qualificadas sobre o assunto, estavam atentas aos jogos eróticos que podiam reverter situações inesperadas e, além de outros recursos, estavam com as doações de preservativos em dia. Estas condições vantajosas não atingiam a todas, e mesmo as mais beneficiadas podiam passar por situações perigosas ou disruptivas com clientes que recusassem o uso de preservativos.

O contexto de enfrentamento da pandemia de covid-19 puxa outro fio de interpretação. Como mostrará a nossa pesquisa, as relações de poder se movimentaram, mas com mais desvantagens para estas trabalhadoras. Este contexto deslocou relações de poder dentro e fora da relação prostituta-cliente, aumentando assim os custos social e moral para as trabalhadoras do sexo. No período de isolamento social, impossibilitadas de trabalhar, sentiram o agravamento dos efeitos econômicos e sociais, assim como os efeitos de estigmatização. Para esclarecer um pouco mais, o efeito estigmatizador relaciona-se à associação deste trabalho à interpessoalidade íntima e ao contato corporal, mas também à possibilidade destas mulheres ocuparem as ruas. A premissa pode parecer paradoxal, já que associa intimidade e rua, mas está consoante com as condições em que se exerce o trabalho sexual.

Estes exemplos mostram que barganhas e negociações ocorrem nas transações comerciais do sexo pago em situações específicas e envolvem exercício de poder. Resultados satisfatórios, as “boas combinações”, dependem de “estoques de significados, marcadores e práticas existentes no meio local” (Zelizer, 2009Zelizer, Viviana. (2009). Dinheiro, poder e sexo. Cadernos Pagu, 32, p. 135-157.: 143)4 4 Zelizer se refere a marcadores sociais que envolvem acordos entre parceiros (marido-mulher, patrão-secretário, médico-paciente) e a práticas combinatórias que variam de acordo com classe, etnia, raça, gênero, arranjo cultural, etc. . Compreender as trocas entre sexo pago e prática de cuidado no contexto do trabalho sexual implica em transitar pela perspectiva zelizeriana da “nova economia do care”, qual seja, analisar as suas combinações e seu funcionamento. Não significa olhar apenas para a combinação em si mesma, mas para o modo como ela funciona para tornar algumas situações “mais felizes, justas e produtivas” ou para identificar “as causas das injustiças, danos e perigos” destas (Zelizer 2012Zelizer, Viviana. (2012). A economia do care. In: Hirata, Helena & Guimarães, Nadya Araujo (orgs.). Cuidado e cuidadoras: as várias faces do trabalho do care. São Paulo: Atlas. p. 15-28.: 23-24).

EPIDEMIA DE AIDS: AGENDA PÚBLICA DE PREVENÇÃO, TRABALHO SEXUAL E PRÁTICAS DE CUIDADO

No Brasil, a epidemia de aids intensificou uma ordem de especializações no trabalho sexual que veio a requerer condições cognitivas e emocionais que, em alguma medida, reforçaram hierarquias já existentes entre as diferentes modalidades e condições de oferta de trabalho sexual. Analisado em seus aspectos relacionais, este contexto permitiu conhecer um pouco mais as fricções e a interpenetração das fronteiras materiais, técnicas e emocionais no cuidado e autocuidado que circularam no trabalho de prostitutas quanto à prevenção da aids. Se por um lado os treinamentos e habilidades adquiridas com a aids e procedimentos para cuidar de si e dos outros reduziram os riscos de contaminação e revigoraram debates públicos e políticos em torno do reconhecimento social e profissional da categoria, tal especialização simultaneamente valorizou e desvalorizou diferentes grupos de trabalhadores sexuais. Ao mesmo tempo em que muitas trabalhadoras sexuais passaram a ser identificadas como agentes de cuidado e de prevenção à aids, ainda é pouco conhecido como e quais prostitutas eram alcançadas por estas políticas e como e quais exclusões ocorriam. Molinier (2014Molinier, Pascale. (2013). Le travail du care. Paris: La Dispute.: 24) define o care como uma região de desacordos e conflitos que resultam ao mesmo tempo de especialização e hierarquização. Embora as crises tenham sido bem capturadas por estudos que analisaram as críticas de profissionais do sexo às campanhas governamentais de prevenção à aids, (Cesar Lenz, 2014Cesar, Flavio Cruz Lenz. (2014). O Estado da saúde e a “doença” das prostitutas: uma análise das representações da prostituição nos discursos do SUS e do terceiro setor. In: Simões, Soraya; Silva, Hélio & Moraes, Aparecida Fonseca. Prostituição e outras formas de amor. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense; Faperj. p. 29-56.; Murray, 2018Murray, Laura Rebecca; Kerrigan, Deanna & Paiva, Vera Silvia. (2019). Rites of resistance: sex workers’ fight to maintain rights and pleasure in the centre of the response to HIV in Brazil. Global Public Health, 14/6-7, p. 939-953.), a desvalorização entre as trabalhadoras ainda merece ser melhor analisada.

Os conflitos também estiveram associados aos processos de estigmatização que atingiram não apenas prostitutas, mas pessoas que representavam desafios às formas de regulação moral das ordens do gênero e da sexualidade. Os conflitos trazidos por ativistas transexuais chamaram atenção para o fato de serem incluídos nas políticas de saúde como sujeitos preventivos e não como sujeitos integrais (Aguião, 2018Aguião, Silvia. (2018). Fazer-se no “Estado”: uma etnografia sobre o processo de constituição dos ‘LGBT’ como sujeitos de direitos no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Eduerj.).

Os aprendizados e treinamentos de prostitutas como agentes de prevenção à aids fortaleceu-as no cuidado de si, no sentido de que a participação nessas práticas políticas de cuidado permitia que desenvolvessem formas de atenção para si mesmas, o que se estendia às obrigações de cuidar de outros (Foucault, 2020Foucault, Michel. (2020). História da sexualidade: o cuidado de si. São Paulo: Paz e Terra.). Esses dois sentidos de cuidado, para si e para com os outros, tornaram-se indissociáveis em termos de benefícios em saúde e “sexo seguro”, ainda que as práticas sociais mostrassem que as negociações para o uso de preservativos poderiam ser custosas quando clientes barganhavam o benefício do prazer.

A participação de trabalhadoras do sexo nas políticas de atenção e prevenção à aids ocorreu em posições desvantajosas, uma vez que nenhuma mudança brusca apagaria completamente o longo processo de estigmatização e preconceito que predominou no olhar médico e higienista, e de outros profissionais, que classificaram o comportamento destas mulheres como pessoas que oferecem risco de contaminação. Mas, simultaneamente, esses conflitos também foram enfrentados por trabalhadoras do sexo e prostitutas como oportunidade de fortalecimento político. Isso ocorreu por meio de diferentes processos de aproximação e/ou afastamento delas e outros atores sociais, muitos deles profissionais da área da saúde, que também participaram da construção e criação das políticas de enfrentamento à epidemia da aids.

Abers et al (2018Abers, Rebecca Neaera; Silva, Marcelo Kunrath & Tatagiba, Luciana. (2018). Movimentos sociais e políticas públicas: repensando atores e oportunidades políticas. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, 105, p. 15-46.) criticam estudos brasileiros sobre a participação de movimentos sociais na produção de políticas públicas que se concentram demasiadamente na agência dos movimentos sociais ou que, ao contrário, abordam o contexto como estrutura externa que determina oportunidades e constrangimentos, destituindo esses movimentos de agência. Para os autores, a importância deve ser dada aos agenciamentos dos diversos atores e instituições com os quais os movimentos interagem no interior da produção das políticas públicas, entendendo que estes são situacionais, relacionais, e que podem ocorrer mesmo que as condições não sejam “igualitárias”. Essa perspectiva ajuda a compreender também que os movimentos e organizações de prostitutas e trabalhadoras do sexo se movimentam em um campo onde as margens de ação podem oscilar, mais ou menos restritas, incertas ou favoráveis.

Projetos que contaram com a participação de prostitutas e trabalhadoras do sexo tiveram apoio do governo ou ainda de organizações internacionais. Um dos projetos financiados pelo Ministério da Saúde desenvolveu oficinas de prevenção e cinco organizações de prostitutas em diferentes regiões coordenaram a capacitação de até doze organizações não governamentais de cada região do país. Neste processo, mobilizaram energias e capacidades envolvidas nas práticas de atenção e cuidado, parte delas já incorporadas nas suas rotinas profissionais.

Esquinas do Brasil - Técnicos aprendem com prostitutas a enfrentar preconceitos e dão a volta por cima em projeto nacional de prevenção e cidadania: No início, era apenas uma espécie de tesão misturada com uma puta vontade de entrar de cabeça no universo da prostituição - e da prevenção! Um ano depois, podemos dizer que o projeto Esquina na Noite confirmou, em todo o país, o sucesso da estratégia de incorporar Ong/aids no trabalho preventivo junto aos profissionais do sexo. A ideia foi concebida pela Rede Brasileira de Profissionais do Sexo e financiada pelo Ministério da Saúde, por meio de cinco coordenadores regionais (Davida, no Sudeste; Gempac, no Norte; Gapa-MG, no Centro-Oeste; NER no Sul, e Aproce, no Nordeste) (TÉCNICOS APRENDEM…, 2003: 5 apudMattos, 2020Mattos, Mariana Brasil de. (2020) “Sem vergonha de ser puta”: a construção de prostitutas como sujeitos políticos no jornal Beijo da rua. Dissertação de Mestrado. PPGSA/Universidade Federal do Rio de Janeiro.).

A campanha Profissional do Sexo: Sem vergonha, garota. Você tem profissão foi uma ação de prevenção direcionada às prostitutas e trabalhadoras do sexo lançada em março de 2002, em Brasília, durante um seminário sobre Aids e Prostituição. Ela foi criada em um departamento do Ministério da Saúde que tratava de infecções sexualmente transmissíveis, mas o que chama atenção é a amplitude da diversidade de participações em sua elaboração. A equipe foi composta por técnicos, assessores e coordenadores do Ministério da Saúde, de secretarias estaduais de saúde e de outros órgãos governamentais, reuniu também pesquisadoras e pesquisadores de universidades, representantes de movimentos, organizações e redes de prostitutas, entre outros. A Coordenação Nacional de DST e Aids do Ministério da Saúde e grupos vinculados aos movimentos de prostitutas e trabalhadoras do sexo se encarregaram da execução. Foi produzido também um conjunto diversificado de materiais informativos para veiculação em rádios e locais de transação comercial do sexo. O diversificado material continha música, disponibilizada no formato de SPOT.MP3, folders, cartilhas, adesivos para banheiros e outros locais, “bottons” e um manual multiplicador de ações de prevenção à aids. Seus conteúdos abordavam assuntos sobre prática de sexo seguro, doenças transmissíveis nas relações sexuais sem uso de preservativo, dependência química e uso de drogas injetáveis, entre outros.

Muitas destas ações que privilegiavam informações sobre o uso correto de preservativos, como a campanha citada, associavam prevenção, cuidado e prazer. O “sexo seguro” na prostituição se sobrepôs à representação de perigo e disseminação de doenças. As técnicas de colocação de camisinhas no atendimento aos clientes aparecem em inúmeros cartazes, folders e cartilhas que circularam. Mattos (2020Mattos, Mariana Brasil de. (2020) “Sem vergonha de ser puta”: a construção de prostitutas como sujeitos políticos no jornal Beijo da rua. Dissertação de Mestrado. PPGSA/Universidade Federal do Rio de Janeiro.) registra que, entre 2002 e 2004, oito edições do jornal Beijo da rua reproduzem imagens e informações sobre o uso de preservativos, incluindo técnicas para colocar “com a boca”. No “golpe da camisinha” o cliente tira a proteção no momento em que a mulher está sobre ele, mas a “mulher experiente dá a volta por cima”, acaricia o seu pênis, e volta a colocar a camisinha (Mattos, 2020Mattos, Mariana Brasil de. (2020) “Sem vergonha de ser puta”: a construção de prostitutas como sujeitos políticos no jornal Beijo da rua. Dissertação de Mestrado. PPGSA/Universidade Federal do Rio de Janeiro.: 43).

Figura 1
Jornal Beijo da Rua. “Como Usar” (Março de 2002: 2). Jornal Beijo da Rua. “O golpe da camisinha”

Importante notar como a interlocução destes atores no processo de capacitação e formação de grupos criou um tipo de comunicação sobre prevenção onde cuidado e atenção são mediados por emoções, afetos, sentimentos: toques, carícias, jogos eróticos e de prazer, paciência, convencimento, jocosidade, zombaria, ironia, ou seja, condutas afetivas e criativas que podem evitar que a negociação seja interrompida, e que podem garantir que as trocas ocorram e sejam valorizadas, que se tornam elementos relevantes nesta relação interpessoal. Ao mesmo tempo, tal forma de comunicação e de contato íntimo mediado por sentimentos recorre a aparatos cognitivos para dar inteligibilidade e informação técnica à mensagem veiculada. Tizziani (2017Tizziani, Ania. (2017). Trabajo emocional y tecnologías afectivas: perspectivas sobre un programa de empleo para empleadas domésticas en un municipio del Área Metropolitana de Buenos Aires. In: Abramowski, Ana & Canevaro, Santiago (orgs.). Pensar los afectos: aproximaciones desde las ciencias sociales y las humanidades. Buenos Aires: Universidad Nacional de General Sarmiento. p. 137-150.: 75) chama atenção para “tecnologias afetivas” presentes em cursos de capacitação para o cuidado com crianças e que buscam mobilizar emocionalmente os seus participantes, procurando alcançar um nível “pré-cognitivo, menos explícito e predizível, e que condiciona que atitudes e emoções possam ser expressas, manejadas, modificadas”. Tais cursos colocariam em jogo a energia afetiva dos participantes, suas capacidades incorporadas, para motivá-los e comovê-los a se interessarem, implicarem, comprometerem e transformarem. Em uma aproximação com os esforços empreendidos por trabalhadoras do sexo que precisam comprometer seus clientes com o uso de preservativos, podemos dizer que a completa eficácia do emprego destas tecnologias afetivas implica em comprometer os homens com a prática de prevenção à aids. Neste caso, o vínculo situacional mais importante no contexto da troca sexual-comercial é sexo-cuidado-afeto-dinheiro.

Em números publicados no jornal Beijo da Rua na década de 2010, há críticas à difusão de políticas de saúde muito concentradas nas doenças sexualmente transmissíveis e aids, o que terminaria por reforçar o estigma da prostituição e aumentaria a segmentação em relação à política universal e integral de saúde que deveria alcançar a todas. Passados cerca de vinte anos de participação de trabalhadoras do sexo e prostitutas nas campanhas de prevenção, em 2011 a voz de uma ativista do Nordeste fazia coro com outros grupos e populações identificados como ameaçadores às ordens da sexualidade e do gênero, para mostrar como novos circuitos de produção de rótulos gerados dentro das políticas de atenção à aids vinham dividindo e confinando estas mulheres:

Não ao gueto da aids. Sim a todos os direitos […]: “O que antes era tido como estratégia, hoje se apresenta como faca de dois gumes”. O contexto da prostituição tem outras questões tão ou mais relevantes do que a prevenção. Hoje ocorre como no passado: o confinamento das prostitutas a programas relacionadas à aids, as mulheres da vida representadas como foco de doenças sexualmente transmissíveis. A diferença é que hoje algumas delas são “profissionais do governo”, repassadoras de camisinhas. O SUS é nosso, o confinamento, não. As prostitutas querem mais do que isso, principalmente se querem como cidadãs, parte da sociedade. […] Não podemos continuar fazendo um trabalho confinado às políticas de aids, a reforçar o estigma, a vitimização e o controle sanitário das prostitutas, o que se contrapõe aos princípios desta Rede, de autonomia, acesso integral e principalmente de identidade. […] Viramos profissionais no repasse de preservativos, acompanhado de qualificada informação. […] (Barreto, Jornal Beijo da Rua, 2011b: 5-6 apud Mattos, 2020Mattos, Mariana Brasil de. (2020) “Sem vergonha de ser puta”: a construção de prostitutas como sujeitos políticos no jornal Beijo da rua. Dissertação de Mestrado. PPGSA/Universidade Federal do Rio de Janeiro.).

No caso da epidemia da aids, estigmatizações e formas de exclusão e desvalorização aparecem borradas pela importância que teve também a maneira como prostitutas foram relacionalmente construídas como empreendedoras de cuidado e atenção, o que implicou em valorizar as suas capacidades políticas, cognitivas e disposições emocionais, modificando a posição estigmatizada de degradação e perigo. As campanhas e políticas de prevenção e combate à aids mostram que o sexo pago no contexto do trabalho sexual foi normalizado, mas continuou regulado pelo uso de diferentes artefatos materiais e também cognitivos e emocionais, que contribuíam para controlar as contaminações. Isso expôs as ambivalências em jogo porque, simultaneamente, prostitutas e trabalhadoras do sexo não deixaram de fortalecer as suas capacidades e os seus movimentos políticos, mas também tiveram que enfrentar conflitos e tensões produzidos em torno do seu lugar ambíguo e de integração relativa na sociedade.

PANDEMIA DA COVID-19: EFEITOS SOCIAIS E ESTIGMA NO TRABALHO SEXUAL

No Brasil, o controle e a prevenção na pandemia do novo coronavírus foram feitos em diferentes esferas administrativas: federal, estadual e municipal. O isolamento social incluiu o controle da mobilidade da população, o fechamento do comércio não-essencial, das escolas e universidades, de áreas públicas de lazer, etc. A maior parte das autoridades incentivou a medida de isolamento social, porém o debate sobre o alcance desta se desenvolveu no país de maneiras muito diferentes, mobilizando argumentos e opiniões díspares e polêmicas. Identificava-se que a medida de isolamento social tinha alcance relevante, mas limitado à mitigação da pandemia e atenuação da curva de contágio, e que este sofria ainda com variações conforme a renda, escolaridade, idade, sexo, entre outros (Bezerra et al., 2020Bezerra, Anselmo César Vasconcelos et al. (2020). Fatores associados ao comportamento da população durante o isolamento social na pandemia de COVID-19. Ciência & Saúde Coletiva, 25, p. 2411-2421.). Ainda sem a vacina, a medida consagrou-se e foi a mais adotada e difundida pelas autoridades sanitárias, gerando considerável impacto social, econômico e político.

Durante o período, o autocuidado e o cuidado foram cultivados como práticas inseparáveis da agenda de saúde de combate ao vírus e da aplicação das medidas de prevenção no âmbito de toda e qualquer forma de contato interpessoal e íntimo. O problema da medida de isolamento social na vida das mulheres esteve atrelado principalmente à preponderância da presença delas em diferentes tarefas e profissões de cuidado, portanto, nos espaços público e doméstico. Identificava-se também que, quanto mais presentes as desigualdades e seus efeitos sociais, econômicos e raciais na vida das mulheres, mais se agravariam os riscos de contaminação, requerendo “ainda mais cuidados”, principalmente em “países do sul global, como o Brasil” (Canavêz et al., 2021Canavêz, Fernanda; Farias, Camila Peixoto & Luczinski, Giovana Fagundes. (2021). A pandemia de Covid-19 narrada por mulheres: o que dizem as profissionais de saúde? Saúde em Debate, 45, p. 112-123.).

A pandemia da covid-19 esgarçou desigualdades sociais e de gênero já existentes e as intensificou nas camadas mais vulneráveis da população. As necessárias medidas de isolamento social levaram à interdição de diferentes espaços, privados e públicos, de oferta de serviço sexual. A NSWP, uma rede internacional que conecta redes regionais que defendem os “direitos de trabalhadores do sexo, feminino, masculino e transexuais”5 5 Disponível em: https://www.nswp.org/who-we-are. Acesso em: 22 mar. 2022 publicou que no ano de 2020, em países da América Latina como Brasil, Colômbia, Equador, e El Salvador, a aplicação de medidas de isolamento social em locais de oferta de serviços sexuais foi acompanhada por forte repressão policial, com prisões e o uso de força para fechar e interditar bairros, áreas e ruas onde o trabalho sexual ocorria, estigmatizando e criminalizando a atividade e pessoas que foram acusadas de violarem a quarentena (NSWP, 2020aNSWP. (2020a). COVID-19 Impact Survey - Latin America. Nswp. Disponível em: Disponível em: https://www.nswp.org/resource/nswp-global-and-regional-reports/covid-19-impact-latin-america . Acesso em: 27 jul. 2022.
https://www.nswp.org/resource/nswp-globa...
.). Os documentos coletados e o acompanhamento de notícias no site da NSWP mostraram que algumas trabalhadoras do sexo migraram para o ambiente online, mas que dificuldades financeiras e tecnológicas encontradas neste novo investimento, além da redução da remuneração, não chegaram a permitir que a mudança de modalidade se afirmasse como solução para a maioria. Segundo reportagens (Souto, 2021Souto, Luiza. (2021). Sem beijo, de máscara: prostitutas criam regras para trabalhar na pandemia. Uol Universa. Disponível em: Disponível em: https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2021/03/25/so-de-costas-trabalhadoras-sexuais-adotam-protocolo-para-poder-trabalhar.htm . Acesso em: 28 jul. 2022.
https://www.uol.com.br/universa/noticias...
), algumas arriscaram-se a descumprir o isolamento social e voltaram às ruas para aplacar os obstáculos econômicos e sociais que enfrentavam.

As interconexões entre a pandemia da covid-19 e aids também foram abordadas em documentos de organizações que procuram responder globalmente à epidemia de HIV e aids. A UNAIDS examinou a pandemia de covid-19 para mostrar como esta ampliou desigualdades, interrompeu serviços de HIV e alterou os índices de infecção da aids. Ao qualificar e estimar as consequências indiretas da pandemia da covid-19 entre trabalhadoras/es do sexo, a UNAIDS e a NWSP apontaram o aumento de situações de exclusão, criminalização, discriminação e de infecções por HIV, ao mesmo tempo em que publicizaram que o atendimento de serviços de saúde necessários para o tratamento diminuiu (UNAIDS, 2020aUNAIDS. (2020a). Executive summary. Global AIDS Update. (2020a). Disponível em: Disponível em: https://www.unaids.org/sites/default/files/media_asset/2020_global-aids-report_executive-summary_en.pdf . Acesso em: 11 nov. 2022.
https://www.unaids.org/sites/default/fil...
, 2020bUNAIDS. (2020b). COVID-19 pode afetar disponibilidade e custo de ARVs, mas riscos podem ser mitigados. UNAIDS Brasil, Online. Disponível em: Disponível em: https://unaids.org.br/2020/06/covid-19-pode-afetar-disponibilidade-e-custo-de-arvs-mas-riscos-podem-ser-mitigados/ . Acesso em: 28 jul. 2022.
https://unaids.org.br/2020/06/covid-19-p...
; NSWP, 2021)6 6 Documento da UNAIDS (2020a) utiliza estimativas epidemiológicas da ONUSIDA, 2020 (https://aidsinfo.unaids.org/) para projetar infecções e mortalidade relacionadas com a aids. Qualitativamente, o documento ressalta que negar às trabalhadoras do sexo as proteções fornecidas a outros trabalhadores é uma exclusão particularmente prejudicial durante as crises econômicas da covid-19 e utiliza estudos de modelagem para sugerir que, em dez anos, a descriminalização do trabalho sexual poderia evitar de 33 a 46% das infecções por HIV. O documento da NSWP (2021) faz parte de pesquisa qualitativa desenvolvida em diversos países para monitorar o impacto da covid-19 entre trabalhadoras do sexo. As respostas à pesquisa documentam as experiências dessas trabalhadoras, de suas organizações e de seus governos, em diferentes contextos da pandemia. Entrevistas com informantes-chave em cada região também foram realizadas. No Brasil a ABIA analisou como a pandemia da covid-19 aumentou as falhas pré-existentes na governança e nas políticas de prevenção à aids e dirigidas às pessoas que vivem com HIV agravando, entre outros problemas, a dificuldade de acesso aos preservativos e desconsiderando a importância dos conhecimentos e aprendizagens obtidas pelos “movimentos de AIDS” no combate às epidemias (Parker, et al., 2020; Galvão, 2020; Raxach, 2021). .

O isolamento social na pandemia comprometeu os rendimentos de trabalhadoras do sexo e a mobilização de suas organizações, associações e grupos ativistas, que passou a ocorrer principalmente por meio da ocupação de diferentes plataformas de ambientes online. Foi com o uso da comunicação digital no momento do isolamento social que muitas delas mantiveram o seu ativismo organizando lives, eventos, webinar e videochamadas, e algumas ainda conseguiram oferecer serviço sexual por meio de ferramentas e plataformas digitais.

As reuniões e encontros via internet permitiram criar, ainda que não regularmente, fontes alternativas de renda. As atividades online contribuíram para que se orientassem mutuamente ou ainda com a ajuda de especialistas, se esclarecendo sobre direitos sociais e trabalhistas, sobre auxílio emergencial, sobre acesso às doações executadas pelos governos7 7 Uma ativista da Rede Brasileira de Prostitutas mencionou a importância da comunicação utilizando “lives […] assim podemos ir conversando mais e passando isso para o mundo” (Conhecimento de pu(n)ta, 2020). . Os ambientes online informavam também sobre como chegar até equipamentos de proteção individual, sobre cursos de serviços eróticos pela internet, além de darem orientação para agirem no enfrentamento a dificuldades sociais e econômicas. Várias organizações e coletivos liderados por trabalhadoras do sexo em todo o território nacional assumiram a responsabilidade de apoiar seus grupos locais por meio de oficinas e outras atividades orientadas, que podiam incluir instruções ou minicursos sobre fonte de renda por meio das várias modalidades de sexo na internet ou em plataformas pagas (webcam, camming, etc.) e até a distribuição de cestas básicas de alimentos, arrecadação de fundos, etc. Alguns grupos ou coletivos buscaram parcerias com outras organizações e movimentos de profissionais de saúde para viabilizar a ajuda financeira, realizar testagens para a covid-19, distribuir máscaras e álcool em gel e chegaram a elaborar materiais com informações sobre como se proteger na pandemia. Tais esforços procuravam ocupar espaços vazios e enfrentar falhas e deficiências deixadas por omissão dos governos.

Em diferentes lives e encontros, prostitutas e trabalhadoras/es do sexo referiam-se aos impedimentos para acessar políticas públicas adotadas para apoiar a população trabalhadora no período da crise. Mas estas dificuldades também mobilizaram e fortaleceram redes e coletivos. O Coletivo Rebu, por exemplo, fez o cadastro de diversas trabalhadoras do sexo da região metropolitana de Belo Horizonte para acompanhar a distribuição de auxílios do governo, além de distribuir cestas básicas8 8 Evento do Canal ECOS. Trabalhadoras sexuais e mulheres vivendo com HIV/Aids falam sobre as desigualdades de gênero, raça e classe em tempos de covid-19 (2020). .

A PRECIFICAÇÃO DO SEXO NA PANDEMIA

O trabalho online e a comercialização do sexo pela internet se tornaram saídas para quem pôde manter o isolamento social. As práticas mais comuns para negociar o conteúdo sexual na internet eram feitas por meio de mídias, videochamadas, ligações e venda de materiais de sexshop, como vibradores, roupas e acessórios. As interações virtuais e mídias para oferecerem fotos e vídeos eram criadas por elas e comercializadas na internet em contas pessoais nas redes sociais ou em plataformas pagas de camming, como o Câmera Privê e o OnlyFans. Os principais materiais vendidos eram fotos e vídeos de nudez ou com roupas íntimas, masturbação, danças eróticas e sensuais e cenas filmadas durante o sexo.

Para conseguirem realizar esse trabalho pela internet, trabalhadoras do sexo experientes no trabalho online ensinaram ou capacitaram outras mulheres, explicando sobre segurança online, meios de pagamento e plataformas adequadas para comercializar serviços sexuais. A precificação se mostrou um desafio porque, em primeiro lugar, depende de onde estão vendendo. As plataformas de sexo utilizam, em geral, uma tabela de preços que depende do material utilizado, do tempo de vídeo, da quantidade de fotos, etc. Quem trabalha individualmente deve então, a partir disso, projetar seu preço. Nas situações em que trataram da precificação do serviço sexual, concordaram entre si que a prostituição virtual ainda é elitizada. Uma ativista e uma “cam girl”9 9 Adotando apenas uma definição geral, a cam girl utiliza webcams (camming) para interagir por meio de trocas econômicas e sexuais, além de oferecer fantasias, diversão, emoções. estudante de história, realizaram uma live pelo Instagram na qual discutiram como manter o trabalho online. Elas frisaram que o número de inscrição em plataformas havia aumentado, mas que o tipo de trabalho exigia tecnologia e dinheiro, investimentos dos quais geralmente não dispunham.

É paradoxal que na fase do isolamento social na pandemia, quando muitas prostitutas e trabalhadoras do sexo estavam impedidas de ganhar dinheiro com sexo pago, algumas delas tenham se visto debruçadas em um cálculo complexo para precificar seu trabalho no ambiente online. Um trabalho que estaria então envolto em uma intimidade mental e emocional, mas sem a interação que ocorre quando há a materialidade de corpos, considerados veículos transmissores de infecção. Várias modalidades de sexo pela internet podem gerar mais custos para clientes e prostitutas do que o sexo pago em presença, onde os custos do cuidado com preservativos, lubrificantes, exames médicos, medicamentos, terapias, etc. raramente são contabilizados ou apresentados como itens do cálculo da precificação. Considerando que em muitas modalidades presenciais do trabalho sexual o dinheiro gasto com os cuidados destinados à saúde integral e à saúde dos corpos é um critério pouco visível na atribuição do preço, notamos que na mercantilização do sexo pago este cuidado existe porque foi incorporado como tarefa e responsabilidade das trabalhadoras do sexo e prostitutas.

Uma outra dimensão analítica a ser ressaltada é que, conforme pode sugerir a aplicação dos conceitos de amplitude e duração nas relações do sexo pago em Zelizer (2009Zelizer, Viviana. (2009). Dinheiro, poder e sexo. Cadernos Pagu, 32, p. 135-157.), as interações online ficaram mais limitadas pela troca breve de (algum tipo de) sexo-dinheiro, muitas vezes mais caras. Mas não podemos desconsiderar que estas trocas podem ser ampliadas, mesmo que essa ampliação (relacionamentos, flertes, etc.) não corresponda ao padrão das interações pessoais que ocorrem neste tipo de transação comercial. Neste caso, a previsibilidade contratual do encontro será interrompida e o seu desfecho poderá estar combinado com sentimentos e emoções despertados entre as partes envolvidas.

RISCOS E CUIDADOS NA PANDEMIA

O sexo pela internet foi uma alternativa pouco viável para um maior número de trabalhadoras do sexo. Os encontros e lives mostram que em várias regiões elas dependeram da distribuição de cestas básicas, de materiais de proteção e saúde, e mesmo de dinheiro para o pagamento do aluguel. Em alguns casos, contaram também com a ajuda de seus coletivos e redes para receber orientações, máscaras, álcool em gel, camisinha e continuar trabalhando10 10 Principalmente os eventos: Putafeminismo em contexto de pandemia (2020) e Conhecimento de pu(n)ta (2020). . A seleção de clientes considerados de confiança, ou seja, conhecidos e geralmente mais velhos, se tornou, entre muitas, um critério ainda mais importante para a redução de riscos de infecção .

Lourdes Barreto, fundadora do Grupo de Mulheres Prostitutas do Estado do Pará (GEMPAC), se refere à pandemia como mais uma “crise sanitária” que as prostitutas enfrentam:

a rede brasileira em 40 anos se mobilizou muito em diversos Estados do Brasil e fez muitas coisas pela causa das prostitutas. Nessa crise sanitária, cada uma das prostitutas foi para cima mesmo, de frente a um país com ausência de políticas públicas. Mesmo sendo grupo de risco, continuei a movimentação para ajudar as companheiras… O movimento sem-terra foi um dos movimentos sociais que mais as apoiaram em Belém nesse momento, principalmente com doações de comida orgânicas (Conhecimento de pu(n)ta, 2020).

A pesquisa nos ambientes online mostrou como a pandemia de covid-19 afetou as trabalhadoras do sexo, alterando ideias e práticas associadas ao trabalho de cuidado junto ao cliente, o cuidado com a própria saúde, além do controle, segurança e redução de riscos no trabalho. Para elas, o conflito no trabalho de cuidado durante a pandemia ocorreu na fronteira entre dois riscos: o temor de contrair o vírus e desenvolver a doença e o temor de perder a fonte de renda. Este conflito perdurou até o período de vacinação que, no Brasil, só ocorreu em janeiro de 2022. Em um dos eventos analisados, ativistas afirmaram que a pandemia potencializou a precarização do trabalho sexual11 11 Ativistas da organização Queerentenados no evento: Putafeminismo em contexto de pandemia (2020). .

ENTRELAÇANDO EPIDEMIA DA AIDS E PANDEMIA DA COVID: CUIDAMOS, MAS NÃO SOMOS CUIDADAS

Os recursos buscados pelas trabalhadoras do sexo para enfrentar a pandemia de covid-19 mostram como a memória coletiva de prevenção a aids foi importante. As discussões sobre saúde, estado e direitos trabalhistas reforçavam a rede de ativismo online na pandemia, o que para muitas fortalecia também a luta contra o estigma da prostituta no contexto pandêmico. Aquelas que foram para as ruas sentiram a repressão policial devido a denúncias de moradores locais e foram criminalizadas ou tratadas como “perigosas” e “portadoras de doenças”, mesmo não estando infectadas. Para muitas delas, essas situações reavivam o preconceito enfrentado principalmente no momento de eclosão da epidemia da aids, além de guardarem a memória perene dos preconceitos em relação às infecções sexualmente transmissíveis, temas, portanto, com que os movimentos de prostitutas no Brasil lidam há décadas.

Em post oficial de um coletivo de prostitutas, havia um comentário que dizia que elas “[…] são colocadas num espaço de estigma talvez tão prejudicial quanto o vírus atual”12 12 Pandemia No Sexo, 2020, Coletivo Cirandeiras. . Uma outra ativista, durante uma live na Universidade de São Paulo (USP), em setembro de 202013 13 Evento: Conhecimento de Pu(n)ta: cuidado e prazer na pandemia. Lições da Rede Brasileira de Prostitutas. , disse que esteve à frente de coletivos no Rio de Janeiro para auxiliar pessoas LGBTI+ durante a pandemia, e completa que, se nesta cidade existe uma prevenção forte sobre HIV e aids, ela veio da união dos movimento LGBTI+ com o movimento das prostitutas.

Durante o período, no contato entre trabalhadoras do sexo e prostitutas reconheceu-se que “a pandemia, assim como a aids e o HIV, afeta o trabalho sexual diretamente”. Em outra live, uma ativista de Belo Horizonte criticava o fato de que trabalhadoras do sexo só são lembradas nos espaços governamentais quando o assunto é referente à aids, e disse que são trabalhadoras informais invisíveis pois, mesmo em contextos como o de então, onde o auxílio governamental para com trabalhadores informais estava sendo implementado, trabalhadoras do sexo estavam sendo “deixadas de fora”14 14 Live: Mulheres putas na luta (2020) e live: Pandemia no sexo (2020). .

Mesmo tendo o trabalho sexual chamado a atenção da mídia desde o início do isolamento social, as mulheres relacionaram os impactos negativos da covid-19 com a desassistência governamental, afetando principalmente seus meios de subsistência e tendo repercussão nas políticas de atenção e proteção ao HIV. Mencionaram que o reconhecimento destas profissionais como grupo vulnerável poderia ampará-las e evitaria a exposição de muitas mulheres nas ruas antes do término do isolamento social. As manifestações de prostitutas que ocuparam as ruas da cidade de Belo Horizonte e reivindicavam a inclusão nos “grupos prioritários” a serem imunizados na primeira fase da vacinação, também foram registradas pela mídia que mostrava que elas declaravam ter uma “profissão de risco” (Pimentel, 2021Pimentel, Thais. (2021). Prostitutas de BH, em paralisação desde o início de abril, fazem manifestação por vacina: ‘Queremos ser incluídas como grupo prioritário’, diz presidente da Associação das Prostitutas de Minas Gerais (Aprosmig), Cida Vieira. G1 Minas. Disponível em: Disponível em: https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/2021/04/05/prostitutas-de-bh-em-paralisacao-desde-o-inicio-de-abril-fazem-manifestacao-por-vacina.ghtml . Acesso em: 18 maio 2022.
https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/not...
).

A significativa movimentação de trabalhadoras do sexo e prostitutas no ambiente online sublinha como a inevitável medida de isolamento social na pandemia de covid-19 desafiou a comercialização de serviços sexuais. Suas organizações e grupos ativistas exploraram as oportunidades de informação e capacitação para o trabalho online, para acesso ao próprio cuidado, além de terem criado possibilidades de resistir às adversidades com o fortalecimento de ações e discussões relacionadas a assuntos acerca de saúde, papel do Estado, direitos trabalhistas, entre outros.

É importante problematizar os significados morais destes acontecimentos. No ambiente online circulou intensamente a percepção de que o “estigma da prostituta”, classificada como mulher que oferece risco de contaminação, aumentou os efeitos sociais que recaíram sobre elas. A pandemia mostrou que quando estas mulheres não se tornam responsáveis pelo cuidado em programas do Estado, elas não são cuidadas por este. Como lembrou em evento online uma das participantes, “nós cuidamos [referindo-se à epidemia da aids], mas agora não somos cuidadas”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os resultados da pesquisa ajudaram a alargar simultaneamente as compreensões sociológicas de “risco”, “efeito social” e “cuidado”. Trataremos primeiro dos acontecimentos que interconectaram os riscos e os efeitos sociais na epidemia da aids e na pandemia de covid-19.

Conforme chamamos atenção no início do artigo, há um relativo consenso na literatura sobre epidemias que considera que os efeitos estigmatizadores estariam concentrados na aids, enquanto efeitos sociais e econômicos seriam proeminentes na pandemia de covid-19. Ao analisar as “ideologizações” em torno da aids e da covid-19, Marcondes (2021Marcondes, Guilherme. (2022). Efeitos Sociais das ideologizações das pandemias de HIV e covid-19 em perspectiva. Sociologia & Antropologia, 11, p. 109-129.: 122) ressalta que, em termos de “efeitos sociais”, em ambas há a acentuação de distâncias sociais e a morte da população. Conclui que, no caso da aids, o gênero e a sexualidade contribuíram para a estigmatização e a discriminação, enquanto que na covid-19 a questão se volta “[…] para ideologias políticas e econômicas”. Estas questões estimularam um diálogo importante frente aos resultados da nossa pesquisa.

Ao pesquisar o trabalho sexual nesses dois contextos, e se tratando de um grupo social que desafia modelos normativos de gênero e sexualidade, identificamos que os dois efeitos estão muito imbricados nos dois casos. Na covid-19, tal como na aids, a estigmatização também maximiza os efeitos sociais. Na pandemia de covid-19, efeitos sociais e econômicos estão de tal forma relacionados com o lugar social estigmatizado de prostitutas e trabalhadoras do sexo, que se misturam à ideia de risco de contaminação. Tais imbricamentos, reforçam o estigma de que estas pessoas oferecem riscos, mesmo quando não podem ser identificadas como transmissoras de infecção.

Como ressaltamos, os desafios gerados com a epidemia da aids e mesmo com a pandemia de covid-19 impulsionaram a autoafirmação e ação destes grupos estigmatizados. Isto foi mais significativo na aids, mas também ocorreu na pandemia, quando as capacidades cognitivas, especializadas e políticas, conquistadas via transmissão de experiências do combate e prevenção à aids, reavivaram a ação de organizações, coletivos, redes e movimentos.

O cuidado ganha centralidade na aids e na pandemia. Mas os seus sinais reversos e contraditórios nos fazem ver tanto uma prática universal para produzir bem-estar e saúde quanto uma prática que esconde desigualdades e processos discriminatórios variados. No contexto do trabalho sexual, as fronteiras do cuidado estão borradas por moralidade relativa à sexualidade. Desafios e pânicos contemporâneos em torno da ideia de contaminação reforçam a associação entre intimidade sexual e risco à saúde, mas também a aproximação entre trabalho sexual e cuidado. O que as nossas conclusões mostram é que quanto mais as práticas de cuidado aparecem valorizadas nos contextos epidêmicos, mais são expostas as ambivalências que permeiam este tipo de intimidade sexual. As práticas de cuidado relativas ao uso de preservativos na epidemia da aids mostram que nas campanhas de prevenção as trabalhadoras do sexo são responsabilizadas por cuidar e evitar infecções. É claro que elas também têm muito interesse em cuidar de si e de cuidar do uso dos preservativos na relação com o cliente, mas o foco na responsabilidade da trabalhadora sexual reforça a ideia de que elas têm a tarefa e a obrigação de cuidar, e mesmo as confunde com a posição de detentoras de algum risco. Ao mesmo tempo, o uso de preservativos também especializou e segmentou a organização da atividade, divisando boas práticas e equivalendo-as ao melhor cuidado oferecido por uma profissional. Na pandemia da covid-19 elas identificaram questões éticas sobre as quais diziam que, mesmo fornecendo cuidado com e para o Estado na epidemia da aids, agora não eram cuidadas por ele. Neste contexto, portanto, o cuidado assume diferentes significados morais e políticos.

As noções de intimidade e trabalho relacional na teoria de Viviana Zelizer oferecem artefatos analíticos que permitem identificar como, na esfera econômica, mediada por sexo e dinheiro, diferentes circuitos de relações humanas requerem esforços dos atores sociais para tornar as trocas possíveis. Na dimensão relacional, a ação econômica é desvendada em sua complexidade, em diferentes camadas de significados produzidos nas tensões e limites entre as esferas econômica, política, emocional e moral. Com isso, em vez de identificarmos apenas o sexo mercantilizado, que transformaria os encontros mediados pelo dinheiro em comércio e exploração, apreendemos circuitos de práticas, relações econômicas e de poder que implicam em negociações, rupturas, durabilidade, “batalhas moral e política” (Zelizer: 2009Zelizer, Viviana. (2009). Dinheiro, poder e sexo. Cadernos Pagu, 32, p. 135-157.; 2005Zelizer, Viviana. (2005). The purchase of intimacy. Princeton: Princeton University Press.). É claro que, como mostramos, as variações de marcadores sociais e contatos interpessoais deslocam não apenas significados, mas também formas de dominação que podem implicar em constrangimentos, estigmatizações, perigos e violências, embora haja sempre uma intimidade a ser relacionalmente compreendida e desvendada na sua complexidade.

A exemplo do que inspiram os estudos do care orientados pela perspectiva da economia das relações sociais íntimas em Viviana Zelizer (2010Zelizer, Viviana. (2010). Caring Everywhere. In: Parreñas, Rhacel Salazar & Boris, Eileen (eds.). Intimate Labors: Cultures, Technologies, and the Politics of Care. Stanford: Stanford University Press , p. 267-279.; 2012Zelizer, Viviana. (2012). A economia do care. In: Hirata, Helena & Guimarães, Nadya Araujo (orgs.). Cuidado e cuidadoras: as várias faces do trabalho do care. São Paulo: Atlas. p. 15-28.), o trabalho sexual dialoga com muitas das condições estruturais e subjetivas por meio das quais o cuidado se desenvolve. Estudos têm mostrado como nas trocas intimidade-sexo-dinheiro, circulam cuidados e moralidades. Parreñas (2010Parreñas, Rhacel Salazar. (2010). Cultures of flirtation: sex and the moral boundaries of filipina migrant hostesses in Tokyo. In: Parreñas, Rhacel Salazar & Boris, Eileen. (eds.). Intimate Labors: Cultures, Technologies, and the Politics of Care. Stanford: Stanford University Press. p. 132-147.) descreve as restrições estruturais e fronteiras morais do cuidado que dificultam o trabalho de migrantes filipinas que flertam com clientes e os levam a consumir em bares de clubes no Japão. Piscitelli (2016Piscitelli, Adriana Gracia. (2016). Carinho, limpeza e cuidado: experiências de migrantes brasileiras. In: Abreu, Alice Rangel de Paiva et al. (orgs.). Gênero e Trabalho no Brasil e na França: perspectivas interseccionais. São Paulo: Boitempo. p. 47-56.) analisa a experiência de migrantes brasileiras em diferentes setores de atividades no exterior e, entre outras conclusões, mostra que nos trabalhos sexuais a articulação entre sexo comercial, carinho, limpeza e cuidado permitiu a trabalhadoras do sexo atrair clientes e somas elevadas de dinheiro. Obviamente estes exemplos intersectam diferentes contextos migratórios, de nacionalidade, raça, etnia, classe e de práticas envolvidas, mas o olhar para arenas que contêm feixes de relações que se alteram e alternam em posições de poder (Zelizer, 2012Zelizer, Viviana. (2012). A economia do care. In: Hirata, Helena & Guimarães, Nadya Araujo (orgs.). Cuidado e cuidadoras: as várias faces do trabalho do care. São Paulo: Atlas. p. 15-28.; 2010Zelizer, Viviana. (2010). Caring Everywhere. In: Parreñas, Rhacel Salazar & Boris, Eileen (eds.). Intimate Labors: Cultures, Technologies, and the Politics of Care. Stanford: Stanford University Press , p. 267-279.; 2009Zelizer, Viviana. (2009). Dinheiro, poder e sexo. Cadernos Pagu, 32, p. 135-157.) mostra as variadas formas de cuidado que a relação intimidade-sexo-dinheiro pode vir a mobilizar.

Os cenários de risco epidêmico analisados neste artigo mostraram como as relações de cuidado e dinheiro se estreitaram e foram ao mesmo tempo amplificadas por questões morais e políticas. Analisadas relacionalmente, as epidemias mobilizaram práticas e anseios de cuidado, amparo, ajuda e outros clamores morais e materiais por compensação de danos. As respostas políticas e imediatas dos Estados nacionais, colocadas em cada contexto, envolveram, em alguma medida, amparo emocional e dinheiro acompanhado de recursos materiais, investimentos cujas somas aumentaram e se estenderam na covid-19. Na pandemia, os clamores por apoio e ajuda não foram diferentes entre trabalhadoras do sexo e prostitutas que, desamparadas pelo Estado e estigmatizadas, tiveram que construir suas próprias respostas e soluções econômicas, sociais e políticas.

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  • Zelizer, Viviana. (2010). Caring Everywhere. In: Parreñas, Rhacel Salazar & Boris, Eileen (eds.). Intimate Labors: Cultures, Technologies, and the Politics of Care. Stanford: Stanford University Press , p. 267-279.
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  • Zelizer, Viviana. (2009). Dinheiro, poder e sexo. Cadernos Pagu, 32, p. 135-157.
  • Zelizer, Viviana. (2005). The purchase of intimacy. Princeton: Princeton University Press.
  • 1
    Registro os meus agradecimentos aos pareceristas anônimos da revista Sociologia e Antropologia pela criteriosa avaliação e pelas valiosas sugestões. A pesquisa apresentada neste artigo foi coordenada pela autora e teve a participação, em diferentes momentos, de seis bolsistas de iniciação científica por meio do apoio da FAPERJ e CNPQ (por meio do programa PIBIC/UFRJ). São eles: Arthur Oliveira dos Anjos, Julia Chaise, Ysabella Silva de Andrade, Tainá de Oliveira, Juliana Flor e Bárbara Mattos. Às instituições de fomento e aos bolsistas, deixo os meus agradecimentos.
  • 2
    É preciso justificar porque se escolheu manter a utilização, ao mesmo tempo, dos termos “prostituta” e “trabalhadora sexual” neste artigo. Em primeiro lugar, tratam-se de categorias “nativas” que coexistem ou circulam de maneira alternada - a depender dos contextos e grupos de ativistas - nos campos políticos de associações e movimentos. Algumas redes, organizações, grupos, pessoas, usam a autodenominação “prostituta”, outras, a de “trabalhadora do sexo”. Em segundo lugar, situados em seus respectivos contextos históricos, enquanto “prostituição” e “prostituta” marcaram o debate sobre estigma e mácula moral, as terminologias “trabalho sexual” e “trabalhadora do sexo”, de emprego mais recente e frequentemente associadas à debates sobre a regulamentação deste trabalho, indicam as mudanças que ocorreram sem anular, contudo, os seus significados morais. Essas terminologias obviamente não são neutras e denotam tensões e controvérsias que existem para dentro e para fora das fronteiras da “prostituição” e do “trabalho sexual”. Por essas razões, optou-se por mantê-las simultaneamente no artigo e, no caso de precisar sustentar alguma coerência argumentativa, os termos foram empregados de maneira alternada.
  • 3
    Concebido por Gabriela Leite, prostituta ativista de projeção nacional e internacional, o periódico Beijo da Rua teve seu primeiro número lançado em 1988 e durante quase três décadas foi considerado o mais importante tabloide brasileiro voltado para as prostitutas e seus movimentos associativos (Moraes & Brasil, 2020Moraes, Aparecida Fonseca & Mattos, Mariana Brasil de. (2020). Prostituição e feminismo: controvérsias, tensões e aproximações a partir do jornal Beijo da Rua. In: Moraes, Aparecida Fonseca; Araujo, Anna Bárbara & Gama, Maria Clara. Diálogos feministas: gerações, identidades, trabalho e direitos. Rio de Janeiro: Editora UFRJ. p. 61-80.: 62). Algumas informações retiradas desta fonte, o Jornal Beijo da Rua, integram o arquivo da pesquisadora e outra parte foi extraída da pesquisa de mestrado de Brasil (2020Mattos, Mariana Brasil de. (2020) “Sem vergonha de ser puta”: a construção de prostitutas como sujeitos políticos no jornal Beijo da rua. Dissertação de Mestrado. PPGSA/Universidade Federal do Rio de Janeiro.).
  • 4
    Zelizer se refere a marcadores sociais que envolvem acordos entre parceiros (marido-mulher, patrão-secretário, médico-paciente) e a práticas combinatórias que variam de acordo com classe, etnia, raça, gênero, arranjo cultural, etc.
  • 5
    Disponível em: https://www.nswp.org/who-we-are. Acesso em: 22 mar. 2022
  • 6
    Documento da UNAIDS (2020aUNAIDS. (2020a). Executive summary. Global AIDS Update. (2020a). Disponível em: Disponível em: https://www.unaids.org/sites/default/files/media_asset/2020_global-aids-report_executive-summary_en.pdf . Acesso em: 11 nov. 2022.
    https://www.unaids.org/sites/default/fil...
    ) utiliza estimativas epidemiológicas da ONUSIDA, 2020 (https://aidsinfo.unaids.org/) para projetar infecções e mortalidade relacionadas com a aids. Qualitativamente, o documento ressalta que negar às trabalhadoras do sexo as proteções fornecidas a outros trabalhadores é uma exclusão particularmente prejudicial durante as crises econômicas da covid-19 e utiliza estudos de modelagem para sugerir que, em dez anos, a descriminalização do trabalho sexual poderia evitar de 33 a 46% das infecções por HIV. O documento da NSWP (2021) faz parte de pesquisa qualitativa desenvolvida em diversos países para monitorar o impacto da covid-19 entre trabalhadoras do sexo. As respostas à pesquisa documentam as experiências dessas trabalhadoras, de suas organizações e de seus governos, em diferentes contextos da pandemia. Entrevistas com informantes-chave em cada região também foram realizadas. No Brasil a ABIA analisou como a pandemia da covid-19 aumentou as falhas pré-existentes na governança e nas políticas de prevenção à aids e dirigidas às pessoas que vivem com HIV agravando, entre outros problemas, a dificuldade de acesso aos preservativos e desconsiderando a importância dos conhecimentos e aprendizagens obtidas pelos “movimentos de AIDS” no combate às epidemias (Parker, et al., 2020Parker, Richard et al. (2020). AIDS E COVID-19: O impacto do novo coronavírus na resposta ao HIV. Dossiê ABIA - HIV/AIDS e COVID-19 no Brasil, p. 22-25. Disponível em: Disponível em: https://abiaids.org.br/abia-lanca-resumo-da-publicacao-dossie-abia-hiv-aids-e-covid-19-no-brasil-2020/34617 . Acesso em: 28 jul. 2022.
    https://abiaids.org.br/abia-lanca-resumo...
    ; Galvão, 2020Galvão, Jane. (2020). Covid-19: algumas reflexões. Dossiê ABIA - HIV/AIDS e COVID-19 no Brasil, p. 10-14. Disponível em: Disponível em: https://abiaids.org.br/abia-lanca-resumo-da-publicacao-dossie-abia-hiv-aids-e-covid-19-no-brasil-2020/34617 . Acesso em: 28 jul. 2022.
    https://abiaids.org.br/abia-lanca-resumo...
    ; Raxach, 2021Raxach, Juan Carlos. (2020). HIV/AIDS e COVID-19 - Retomada de conceitos estigmatizantes. Dossiê ABIA - HIV/AIDS e COVID-19 no Brasil, p. 10-14. Disponível em: Disponível em: https://abiaids.org.br/abia-lanca-resumo-da-publicacao-dossie-abia-hiv-aids-e-covid-19-no-brasil-2020/34617 . Acesso em: 28 jul. 2022.
    https://abiaids.org.br/abia-lanca-resumo...
    ).
  • 7
    Uma ativista da Rede Brasileira de Prostitutas mencionou a importância da comunicação utilizando “lives […] assim podemos ir conversando mais e passando isso para o mundo” (Conhecimento de pu(n)ta, 2020).
  • 8
    Evento do Canal ECOS. Trabalhadoras sexuais e mulheres vivendo com HIV/Aids falam sobre as desigualdades de gênero, raça e classe em tempos de covid-19 (2020).
  • 9
    Adotando apenas uma definição geral, a cam girl utiliza webcams (camming) para interagir por meio de trocas econômicas e sexuais, além de oferecer fantasias, diversão, emoções.
  • 10
    Principalmente os eventos: Putafeminismo em contexto de pandemia (2020) e Conhecimento de pu(n)ta (2020).
  • 11
    Ativistas da organização Queerentenados no evento: Putafeminismo em contexto de pandemia (2020).
  • 12
    Pandemia No Sexo, 2020, Coletivo Cirandeiras.
  • 13
    Evento: Conhecimento de Pu(n)ta: cuidado e prazer na pandemia. Lições da Rede Brasileira de Prostitutas.
  • 14
    Live: Mulheres putas na luta (2020) e live: Pandemia no sexo (2020).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    03 Fev 2024
  • Revisado
    03 Maio 2024
  • Aceito
    21 Maio 2024
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