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Dilemas e perspectivas dos feminismos no Brasil contemporâneo

Buarque de Hollanda, Heloísa. (org.). (2018). Explosão feminista: arte, cultura, política e universidade. São Paulo: Companhia das Letras.

"Há pouquíssimo tempo, por volta de 2015, eu acreditava que a minha geração teria sido, talvez, a última empenhada na luta das mulheres. Até que um vozerio, marchas, protestos, campanhas na rede e meninas na rua se aglomeraram". O depoimento de He-loísa Buarque de Hollanda expressa percepções de várias lideranças históricas do movimento feminista no Brasil. Até recentemente, muitas pensavam que o feminismo estava em crise, fosse por dificuldade de renovação de seus quadros, fosse pela falta de efervescência cultural em torno das suas pautas. E então veio a "explosão".

Explosão feminista: arte, cultura, política e universidade (2018) descreve a transformação recente do feminismo no Brasil em um movimento de massas, destacando o papel das ferramentas de comunicação digital na difusão do seu ideário. Organizado por Heloísa Buarque de Hollanda, professora emérita da Faculdade de Letras da UFRJ, o livro lida também com as consequências dessa expansão: ao ganhar mais adeptas, fica mais patente a heterogeneidade do campo de interesses e a amplitude das divergências em torno dos diagnósticos, objetivos e táticas dos diversos feminismos.

Heloísa assinala que nos anos 1980 o discurso hegemônico do feminismo no Brasil se conjugava no singular, afirmando a especificidade da "mulher" e a relativa autonomia do feminismo em face das outras lutas sociais. Hoje o espaço público do feminismo rechaça a ideia de uma "condição feminina" universal e conjuga o feminismo no plural, combinando eixos como gênero, classe, raça, etnia, orientação sexual, deficiência, religião etc. A ideia que predomina é que o feminismo deve se ocupar das diversas opressões existentes na sociedade, pois não existe uma experiência única capaz de organizar a luta política.

Explosão feminista trabalha entre os registros acadêmico, pessoal e político, propondo um panorama dos "feminismos da diferença" da atualidade pelos testemunhos de algumas de suas protagonistas. Descrito como um "livro-ocupação", a estrutura de capítulos procura observar os diferentes "lugares de fala" estabelecidos no campo político do feminismo contemporâneo. Conta com artigos, entrevistas e colaborações, que ocupam quatro grandes partes de um livro de 544 páginas.

Em "Novas Gerações" as colaboradoras fazem um balanço dos protestos de rua, do uso das redes sociais e da busca da representação política pelas feministas em anos recentes. "Palavra forte" coleciona reflexões sobre o feminismo nas artes, poesia, cinema, teatro, música e academia. "Os feminismos da diferença" apresenta contribuições de mulheres que se demarcam como negras, indígenas, asiáticas interseccionais, transfeministas, lésbicas, radicais e protestantes. Por fim, "As veteranas, ou um sinal de alerta sobre uma memória não escrita" traz depoimentos de lideranças destacadas dos movimentos feministas atuantes desde os anos 1970 e 1980.

Explosão feminista dá acesso a uma miríade de abordagens sobre o feminismo, nos estimulando a assumir diversos ângulos e prismas, e incentivando a desconstrução de verdades estabelecidas - seja na sociedade, seja no interior do próprio campo discursivo e político do feminismo. Dois eixos se destacam. O primeiro é como a perspectiva teórica e política de gênero permite questionar a ideia de mulher tomada como padrão no Brasil: branca e possuidora de um "corpo natural". Como assinalam Vieira e Gomes, além de alienar as diversas expressões de gênero na sociedade, esse ideal colabora para reforçar a noção de uma mulher determinada pela biologia. É precisamente a inscrição das diferenças e desigualdades no mundo da natureza que torna invisíveis os mecanismos sociais que produzem e sustentam as desigualdades de gênero.

O segundo aspecto que chama atenção é como a noção de "feminismo" não acomoda confortavelmente os horizontes e experiências de várias mulheres, como explicam algumas autoras da coletânea. O campo social é atravessado por outros eixos além do gênero, e esse estabelece relações complexas com diversas desigualdades e dimensões estruturais da vida. As próprias conquistas obtidas pelas feministas e plasmadas em forma de leis e políticas públicas atingem de maneira diversa e desigual o coletivo difuso que chamamos de "mulheres".

As mulheres indígenas, por exemplo, permanecem sem acesso à maioria das políticas públicas para mulheres e são invisíveis nas estatísticas sobre violência. Oliveira e Benites destacam que elas enfrentam o duplo desafio de lutar enquanto mulheres e membros de suas comunidades, em defesa de seu território e cultura. Elas frisam também que a cultura indígena possui formas específicas de papéis de gênero, que não segregam as mulheres dos eventos sociais e políticos, e que isso vem mudando - para pior - com a influência da cultura não indígena.

Nesse sentido, o movimento crítico do feminismo é situado e não uma teleologia universal. As alianças e coalizões possíveis precisam ser construídas de forma histórica, contingente às circunstâncias e sensível às diferenças. A seção final, em que falam as "veteranas", reúne relatos sobre os primeiros grupos de reflexão, as campanhas contra a violência doméstica, a luta por delegacias especializadas, a formação dos conselhos estaduais dos direitos da mulher, a campanha na Constituinte, que trouxe marcos legais tão importantes, a ação transversal em campos como saúde, moradia, renda mínima, trabalho, direitos reprodutivos, bem como a luta de mulheres negras pela produção de estatísticas e ações de protesto contra o racismo. São mulheres irreverentes, iconoclastas, rebeldes, hoje na casa dos 70 anos, que inventaram formas de fazer política diante de diferentes dilemas e contextos.

UMA "QUARTA ONDA" FEMINISTA?

Explosão feminista estimula diversas reflexões sobre os feminismos contemporâneos. Responsáveis pelos dois primeiros capítulos, Bogado e Costa descrevem as características das jovens mulheres que compõem a "quarta onda" do feminismo no Brasil: a preferência por formas de organização autônoma e horizontal, o rechaço à mediação e ao surgimento de lideranças e a importância do corpo e da performance como repertórios de protesto. Elas frisam ainda a importância conferida às múltiplas posições identitárias das ativistas e apontam a utilização intensa das redes sociais como vetor de ativismo como marcador essencial. É no espaço virtual que as experiências em primeira pessoa, a difusão de estilos de vida e narrativas de si marcam uma nova forma de fazer política, que dilui as fronteiras entre o que é público e privado.

Os modos de agir, sentir e pensar se estabelecem em sociedade, e as ações políticas se dão no interior de disputas e estruturas de oportunidades. Os primeiros capítulos de Explosão feminista nos instigam a buscar um referencial teórico mais claro para o conceito de "onda". Isso porque o próprio processo de produção de identidades ativado por essa ideia em um campo heterogêneo como o feminismo pode ser encarado como reflexo de disputas de poder e lutas por reconhecimento. O uso de repertórios como a horizontalidade, o rechaço às lideranças, e as marcações interseccionais nos corpos também podem ser pensado como táticas, formas de identificação e delimitação de fronteiras políticas - sempre fluidas e provisórias - entre os grupos. O caráter aparentemente espontâneo das manifestações de rua, divulgadas e convocadas pelas redes sociais, também não deve nos cegar para a importância do ativismo não virtual, das instituições que dão apoio e infraestrutura e os encontros geracionais que favorecem as mobilizações (Gomes & Sorj, 2014Gomes, Carla & Sorj, Bila. (2014). Corpo, geração e identidade: a Marcha das Vadias no Brasil. Sociedade e Estado, 29/2, p. 433-447.).

Além disso, diversas lideranças feministas forjadas nas práticas e atividades da "quarta onda" se lançaram recentemente na disputa por cargos eleitorais. Isso dá demonstração prática da fluidez entre as dicotomias autonomia/institucionalização e horizontalidade/verticalidade. Seria instigante olhar mais para experiências que procuram mediação entre essas dicotomias: iniciativas como as "mandatas", "gabinetonas" e as "chapas coletivas" nas câmaras municipais e estaduais, por exemplo, buscam adaptar à política institucional as experimentações recentes das feministas com formas de organização na sociedade civil como os coletivos e as ocupações.

Essa multiplicação de candidaturas de feministas expressa aquilo que Sorj (2018)Sorj, Bila. (2018). O movimento feminista e o "reencantamento" da política institucional: algumas anotações. Artigo apresentado na XXXVI International Congress of the Latin American Studies Association, Barcelona, Espanha, de 23 a 26 de maio de 2018. chamou de "reencantamento da política", um impulso de reocupar espaços de poder e reivindicar direitos para o Estado. É possível traçar semelhanças com o momento de institucionalização do feminismo nos anos 1990 descrito pelas "veteranas" na última seção do livro. Foi ali que muitas feministas que haviam construído formas autônomas de atuação na sociedade civil viram a necessidade e a oportunidade de buscar a infraestrutura do aparato estatal ou das ONGs para dar escala e continuidade a suas ações. O feminismo, enfim, é um campo em fluxo permanente (Álvarez, 2014Álvarez, Sonia. (2014). Para além da sociedade civil: reflexões sobre o campo feminista. Cadernos Pagu, 43, p. 13-56.).

DEPOIS DA "EXPLOSÃO"

Durante as eleições presidenciais de 2018, milhares de pessoas ocuparam mais de uma centena de cidades brasileiras para protestar contra o candidato Jair Bolsonaro. A convocação começou no grupo de Facebook Mulheres contra Bolsonaro, que aglutinou quase quatro milhões de usuárias, e transbordou para outros espaços virtuais e não virtuais. No pico da manifestação, estima-se que havia 100 mil pessoas reunidas no Largo da Batata, em São Paulo, e 25 mil na Cinelândia, no Rio de Janeiro. Segundo Céli Pinto, o #EleNão foi a maior manifestação de mulheres da história do Brasil (Rossi, Carneiro & Gragnani, 2018Rossi, Amanda; Carneiro, Julia Dias & Gragnani, Juliana. (2018). #EleNão: a manifestação histórica liderada por mulheres no Brasil vista por quatro ângulos. BBC News Brasil. Disponível em <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45700013> Acesso em 24/11/2018.
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). O sucesso mobilizador do slogan #EleNão é uma expressão da escala e da pluralidade do feminismo contemporâneo descritos em Explosão feminista. O rechaço a um candidato foi um enquadramento de protesto suficientemente aberto para mobilizar interesses diversos. Esse foi também um pleito marcado pelo impacto avassalador das redes sociais e mensageiros instantâneos e da forte eficácia de campanhas virtuais que disseminaram ondas de pânico moral em torno de questões de gênero e feminismo. Isso deve nos incentivar a olhar para esses meios a partir de novas perguntas.

Por um lado, como demonstram as autoras de Explosão feminista, as redes sociais foram fundamentais para o feminismo, ajudando na produção de novas subjetividades, conexões e solidariedades e a articulação do ambiente virtual e não virtual. Por outro lado, as redes sociais não são meros suportes horizontais e neutros de conexão e propagação de informações. Uma questão que fica por ser abordada, portanto, é como esses meios estruturam, abrem - e também fecham - oportunidades de mobilização e intervenção discursiva das feministas. As redes e comunicadores instantâneos têm seu funcionamento determinado por decisões corporativas e incentivam formas específicas de difundir e entender a mensagem, afetando os hábitos de percepção e interações sociais dos usuários. Uma dimensão pouco trabalhada em Explosão feminista é o caráter fortemente conflitivo do ecossistema virtual em que atuam as feministas: em virtude da sua própria estrutura e funcionamento, essas redes frequentemente exacerbam as divergências, o individualismo e determinadas visões binárias e fixas das identidades (Han, 2018Han, Byung-Chul. (2018). Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Veneza: Editora Âyiné).

As mudanças na comunicação política introduzidas pelas companhias de tecnologia digital afetam também a democracia e, portanto, o terreno de atuação do feminismo. Explosão feminista reúne experiências e análises de feministas dos campos das artes, poesia, cinema, teatro, música, política e academia. Apesar das diferenças, elas convergem em um aspecto: mais do que mudar o conteúdo, a operação crítica do feminismo desafia formas estabelecidas de fazer e comunicar de todos os campos em que incide. Um desafio para os próximos anos pode ser levar essa reflexão crítica também para a estrutura privatizada do ambiente digital. Como as feministas podem lutar pelo controle democrático dos serviços digitais? De que maneira podem se apoderar, construir e ter controle das ferramentas digitais que dão suporte às suas formas de ativismo?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • Álvarez, Sonia. (2014). Para além da sociedade civil: reflexões sobre o campo feminista. Cadernos Pagu, 43, p. 13-56.
  • Buarque de Hollanda, Heloísa (org.). (2018). Explosão feminista: arte, cultura, política e universidade São Paulo: Companhia das Letras.
  • Gomes, Carla & Sorj, Bila. (2014). Corpo, geração e identidade: a Marcha das Vadias no Brasil. Sociedade e Estado, 29/2, p. 433-447.
  • Han, Byung-Chul. (2018). Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder Veneza: Editora Âyiné
  • Rossi, Amanda; Carneiro, Julia Dias & Gragnani, Juliana. (2018). #EleNão: a manifestação histórica liderada por mulheres no Brasil vista por quatro ângulos. BBC News Brasil Disponível em <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45700013> Acesso em 24/11/2018.
    » https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45700013
  • Sorj, Bila. (2018). O movimento feminista e o "reencantamento" da política institucional: algumas anotações. Artigo apresentado na XXXVI International Congress of the Latin American Studies Association, Barcelona, Espanha, de 23 a 26 de maio de 2018.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2019

Histórico

  • Recebido
    08 Dez 2018
  • Aceito
    21 Jan 2019
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