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PANDEMIA, FARMACOLOGIA E BIOPODER — OU SOBRE MEU ENCONTRO COM O SARS-COV2 E ROSA B.

PANDEMICS, PHARMACOLOGY AND BIOPOWER — OR A REFLECTION ABOUT MY ENCONUNTER WITH SARS-COV2 AND ROSA B.

Resumo

Em prosa livre e a partir de uma experiência pessoal, uso referências teóricas da antropologia do corpo e da saúde (ou medical anthropology, no âmbito estadunidense), para explorar criticamente o modo como o conceito de biopolítica, de Michel Foucault, tem sido usado em análises sobre a chegada da pandemia de covid-19. Argumento que o uso do termo no singular o afasta da pluralidade de vivências que ajuda a conceituar e sugiro o rastreamento da natureza matizada da fonte das biopolíticas, o biopoder, como forma de ampliar as nuanças que os cientistas sociais tentam identificar e incorporar às suas análises. Como caso exemplar de trabalho de rastreamento de um biopoder pós-disciplinar e fragmentado, resgato a etnografia de João Biehl sobre o estabelecimento da política de combate à aids no Brasil. Uso o diagnóstico de farmaceuticalização da saúde pública, de Biehl, para imaginar os desafios que ela coloca ao enfrentamento da covid-19.

Palavras-chave
Covid-19; Michel Foucault; biopolítica; biopoder; farmaceuticalização da saúde

Abstract

Exploring in free prose a quarantine-days private experience, I use theoretical references from Medical Anthropology to critically assess the wide use of Michel Foucault’s concept of biopolitics to analyze the impacts of the covid-19 pandemic. I defend that the monolithic use of the term in its singular form drives its analytic potential away from the plurality of experiences it tries to apprehend and narrate. I suggest that in order to refine the adequacy of our reflections, rather than biopolitics, social scientists trace the nuanced nature of its source, biopower. I then present and explore João Biehl’s ethnography on the negotiation and implementation of the AIDS policy in Brazil as an exemplary case of the tracking of post-disciplinary and fragmented biopower. In the early days of the pandemic, I use Biehl’s diagnostic of a pharmaceuticalization of Brazilian public health to imagine the challenges it poses to the tackling of covid-19.

Keywords
Covid-19; Michel Foucault; biopolitics; biopower; pharmaceuticalization of health

Conheci Rosa B. em meados de abril, por intermédiomeio de um aplicativo. Eu, em Princeton, Estados Unidos. Ela, em algum lugar das redondezas. Trocamos algumas mensagens, mas ela manteve seu sobrenome anônimo. Foi o vírus que nos aproximou.

Como Rosa B., o vírus tem nome cifrado, mas diferentemente dela, tem a pertença genealógica registrada. Uma comissão internacional de taxonomistas o batizou. O singularizou. SARS-CovUrbani, SARS-Cov-2 Wuhan-Hu-1, são exemplos de indivíduos virais distintos, porém geneticamente relacionados. O nome indica o parentesco com famílias virais já identificadas, o hospedeiro, o local e a data de identificação. A lógica inscrita na nomenclatura é que, quanto mais individualizado, mais adequadamente o vírus poderá ser tratado.

Irônico. Para o vírus, nome digno de realeza, com todos os sobrenomes e pertenças sublinhados. Para Rosa, a inespecificidade de um B e um ponto. O que seu B. ocultará? Por que ela opta por manter a anonímia da letra. e, ao mesmo tempo, a sua própria? Qual será sua pertença genealógica, as geografias de suas vivências e as marcas de privilégios e desprivilégios que imprimem sobre seu corpo?

Como um ente distinto, que rastreamos, isolamos, responsabilizamos e combatemos, o vírus existe há menos de 120 anos (Booss & August, 2013Booss, John & August, Marilyn. J. (2013). To catch a virus. Washington, D.C.: American Society for Microbiology.). Só então, entre a ciência, os empreendimentos imperialistas e as campanhas militares, tornou-se visível. Mas a noção de que os corpos adoecem em contato uns com os outros é antiga. A palavra latina Contagĭium – união, junção de elementos entre si – traduz essa conexão. O vírus se torna visível quando afeta as economias e as relações humanas. Estima-se que nossa biologia, erguida sobre cerca de 23 mil genes, abrigue também algo como oito milhões de genes de micróbios (Benezra, 2018Benezra, Amber. (2018). Making microbiomes. In: Gibbon, Sahra et al. (orgs.). Routledge Handbook of Genomics, Health and Society. London/New York: Routledge.), entre eles, os vírus (Wolf, 2015Wolf, Meike. (2015). Is there really such a thing as “one health”? Thinking about a more than human world from the perspective of cultural anthropology. Social Science & Medicine, 129, p. 5-11.; Moya & Brocal, 2018Moya, Andrés & Brocal, Vicente Pérez. (2018). The human virome − methods and protocols. New York: The Human Press.). Trata-se do que hoje se chama de viroma humano. Somos sistemas microbiais. Ecossistemas. E um dentre muitos vírus que nos compõem só ganha identidade distinta quando afeta consideravelmente nossa biologia, práticas e modos de organização. Singularizamos o vírus – e ele nos coletiviza. Para o vírus, mapeamentos genéticos e nome diferencial. Para “a humanidade”, uma doença global: a covid-19 (World Health Organization, 2020World Health Organization (WHO). (2020). Naming the coronavirus disease (Covid-19) and the virus that causes it. Available at: https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019/technical-guidance/naming-the-coronavirus-disease-(covid-2019)-and-the-virus-that- causes-it. Accessed Oct. 21 2020.
https://www.who.int/emergencies/diseases...
). Para a humanidade! – vale repetir, pois, conforme nos lembra Ailton Krenak (2020Krenak, Ailton. (2020). Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras.: 03) na nova edição de seu Ideias para adiar o fim do mundo, este vírus discrimina os humanos, ceifando apenas suas vidas, e de nenhuma outra criatura.

É a doença, portanto, ou os efeitos do vírus sobre os corpos num determinado tempo e ambiente que nos aproximam; que deixam mais evidente nossa interdependência e também nos lembram de nossa própria finitude frente à fragilidade da biologia alheia. Foi assim comigo e Rosa B. Entre oito bilhões de pessoas, na presença da doença, ela se tornou visível para mim. Trancafiada em casa, trabalhando e consumindo pela internet, aprendi a navegar um aplicativo de compras, enchi um carrinho virtual, inseri os dados do cartão de crédito e agendei um horário de entrega. Custou, mas consegui. Sábado, entre 9h e 11h da manhã. Rosa B. faria minhas compras e as entregaria.

Difícil olhar para a pandemia como potência positiva; não focar em seu poder destrutivo e nos desdobramentos negativos e duradouros que já a vemos trazer. Se a covid-19 tem um potencial, no entanto, parece ser o de iluminar os mecanismos de inclusão e exclusão que nossos sistemas biopolíticos, aqueles articulados em nome da vida e do capital, engendram. Devemos olhar e registrá-los atentamente; documentar e explorá-los analítica e politicamente. Como se assistíssemos às denúncias sociais de Ilha das Flores, de Jorge Furtado (1989)Furtado, Jorge (dir.). (1989). Ilha das Flores, cor, 13min., Brasil., ou Parasita, de Bong Joon Ho (2019)Ho, Bong Joon (dir.). (2019). Parasita, cor, 132min, Coreia do Sul., e devêssemos ao privilégio que constatamos ter – e que se escancara diante de nós – não esquecer os detalhes do enredo. Na pandemia, a grande “humanidade adoecida” também pode ser decomposta em suas diferenças e singularidades. Rosa B. e eu: cada uma de um lado do aplicativo. Eu no meu home office. Ela, percorrendo as seções do supermercado quando tudo é ainda tão assustador; quando a doença mancha a cada dia mais um país nos mapas dinâmicos da internet; quando ainda parecemos igualmente vulneráveis ao vírus. Se hoje precaução, zelo e responsabilidade me definem, o que definiria Rosa B.? Coragem? Desamparo? Sobrevivência? O vírus é proteína e é política. É proteína política.

Pensando sobre a pandemia em maio de 2020, imaginar modos de governança que considerem vidas plurais parece um dos maiores desafios. É um exercício que se torna mais complexo à medida que consideramos que as forças que influenciam possiblidades de existência não emanam de uma única (ou pura) fonte de poder. É um esforço demandante que se coloca, portanto, aos gestores públicos, mas também à sociedade, em seu sentido lato e histórico. No caso dos cientistas e analistas sociais, exige que calibremos nosso instrumental teórico à luz do holofote que a pandemia oferece. Nesse sentido, talvez precisemos pensar em biopolíticas, no plural, diferentemente da forma usual – e no singular – como vejo o termo empregado em análises relativas à pandemia.1 1 Por exemplo, na tradução do texto de Paul Beatriz Preciado (2020), em diálogo com a obra de Foucault, e nos textos publicados na série “Pandemia, Cultura e Sociedade” do Blog da Biblioteca Virtual do Pensamento Social, em que o presente texto foi originalmente publicado, e em que o uso do termo é geralmente feito em diálogo com a obra de Giorgio Agamben (cf. Meira Monteiro, 2020; Hillani, 2020 e alguns posts do “Simpósio Mundo Social e Pandemia”). Mais profícuo ainda, talvez fosse acompanharmos o complexo emaranhado de onde emanam as biopolíticas ou, como nos sugerem Paul Rabinow e Nikolas Rose (2006), perguntarmo-nos onde está hoje o biopoder.

Cunhados por Michel Foucault (1926-1984), os termos biopoder e biopolítica compõem uma teia de articulações que o filósofo tece para descrever a emergência do estado e as ideias de sociedade moderna e de um direito à vida que o fundamentam.2 2 Biopoder, biopolítica e a reflexão que articulam aparecem no volume 1 de A história da sexualidade (publicado na França com o título La volonté de savoir, em 1973) e em alguns seminários de Foucault que estão publicados em fontes diversas. Para explicar os conceitos de biopoder e biopolítica e aqui os explorar, consultei, em inglês, The history of sexuality – an introduction (publicação do primeiro volume de A história da sexualidade nos Estados Unidos), assim como as aulas de Foucault publicadas no volume Ethics, subjectivity and truth, editado por Paul Rabinow em 1997. Também recorri a Where is biopower today (Rabinow & Rose, 2006). Enquanto o poder centralizado era exercido pelo monarca absolutista, reiterava-se com rituais de morte que relembravam aos súditos pomposa, intermitente e exemplarmente – que a vida de um vassalo pertencia ao rei. Com a degola do absolutismo, surge uma outra estrutura de poder, que se organiza em torno do Estado em termos de governamentalidade, e que Foucault chama biopoder – justamente porque se exerce em nome e em função da vida como novo elemento articulador. Não que as populações tenham deixado de morrer. Morrem muito, mas em nome de (e sob) regimes que prometem defender suas vidas – assegurando atribuir a todas igual valor – e contra os quais tais populações podem se rebelar se a promessa for descumprida.

Em defesa da vida, segue Foucault, abre-se um espaço político: biopolítico; um campo de estratégias e disputas para gerir questões ligadas à vitalidade dos corpos individual e social – seus processos de nascimento, reprodução, amadurecimento, morbidade (doenças) e mortalidade. Biopolíticas englobam as negociações em que se definem problemas a priorizar, áreas de expertise a ouvir a seu respeito, protocolos a seguir na gestão da vida. É, portanto, o conceito da hora porque se refere ao espaço de contestações que ora se evidencia, e o âmbito em que se definem as abordagens para lidar com a covid-19. Trata-se de um processo dinâmico que só pode ser narrado – sobretudo com um desfecho – a posteriori, mas que se baseará na reprodução de desigualdades, e redefinirá os contornos da sociedade em si; de quem, nos termos de Foucault (1978Foucault, Michel. (1978). The History of Sexuality, v. 1. New York: Random House.: 138), se fará viver ou deixará morrer.

Em defesa da minha vida, fico em casa. Em defesa da sua, Rosa B. vai ao mercado por mim. Numa economia moral perversa e enraizada, a política que eu abraço rejeita a sobrevivência física de Rosa B., que ganha um percentual sobre as compras que faço. Depois de entregar minha encomenda, ela corre, em seu próprio carro, sem luva ou máscara, para atender ao cliente do próximo horário e ganhar mais uns trocos. A defesa da vida revela existências e estratégias de sobrevivência desiguais, e, no plano da governamentalidade, fala de um poder fragmentado, que não implica exclusivamente um inequívoco “governo central”.

O processo de implementação da política de combate à aids no Brasil, entre meados da década de 1990 e início dos anos 2000, fornece um bom exemplo, sobretudo a reflexão etnográfica de João Biehl (2007b)Biehl, João. (2007b). Will to live − Aids therapies and the politics of survival. Princeton/Oxford: Princeton University Press., que acompanha o trânsito de um biopoder fragmentado e disputado, e as biopolíticas que implementa. O trabalho de Biehl diagnostica a farmaceuticalização de nossa saúde pública. Trata-se de uma noção de saúde crescentemente centrada na dispensação de remédios, na individualização dos cuidados (cuja gestão, mesmo no sistema público, se relega cada vez mais ao indivíduo), na descentralização dos recursos e das estruturas que a provêm e na transição do direito humano à saúde ao direito biológico a medicamentos.

A farmaceuticalização da saúde pública (Biehl 2007aBiehl, João. (2007a). Pharmaceuticalization: Aids treatment and global health politics. Anthropological Quarterly, 80/4, p. 1083-1126.; 2007b) fala, ao mesmo tempo, de um Estado em retração e da participação (e projeção) de instâncias que colaboram para a produção de soluções medicamentosas na arena do biopoder – e podemos pensar aí nas farmacêuticas multinacionais como força de peso, mas também na ciência, que lê e reproduz os corpos de forma cada vez mais molecularizada, na própria biomedicina e na indústria de medicamentos estatal. Uma das especificidades do Estado moderno, que se consolida ao longo dos séculos XVIII e XIX, nos lembram Rabinow e Rose (2006Rabinow, Paul & Rose, Nikolas. (2006). Biopower today. BioSocieties, 1, p, 195-217.: 203), é seu desenvolvimento em diálogo com “[…] aparatos de saberes e de problematização [que] exercerão demandas sobre poderes centrais e os constrangerão”.3 3 Livre adaptação e tradução minha para um trecho do texto de Rabinow e Rose (2006: 203). Apesar do discurso nacionalista que adota a atual situação no Brasil, de sua postura agressiva em relação a organismos internacionais como a Organização Mundial para a Saúde (OMS), o Estado que forja não parece rumar à estatização. Na prática, quanto mais liberal seu regime, mais dependente será dos aparatos de saber / poder que o sustentam.

Biehl mostra, portanto, que políticas públicas são forjadas nos vazios que se formam entre interesses, discursos e possibilidades de ação de forças diversas. Ele expõe um Estado que, no início do século XXI, responde a uma agenda global neoliberal, negocia com bancos internacionais para desenvolvimento e assina acordos de propriedade intelectual que beneficiam potências mundiais; mas que também se organiza em torno de modelos de ação e demandas que vêm da sociedade civil. Trata-se de um Estado que privatiza, terceiriza, desinveste em infraestrutura, repassa recursos enxutos para gestão e dispêndio por outros entes da federação, e relega articulação e cuidados à sociedade civil organizada; mas que, ao mesmo tempo, ameaça quebrar patentes no cenário internacional em nome de sua soberania e em defesa da vida de seus cidadãos.

Apesar de enfatizar sua falta de apreço pelas ciências humanas, se lesse algumas das pesquisas produzidas nesse âmbito, o regime de hoje talvez identificasse que a projeção do Brasil no cenário internacional como caso-modelo para a lida com a aids só se deu depois de quase 20 anos de pesquisa que levaram aos antirretrovirais. O Executivo também talvez se reconhecesse, então, como parte de uma cena que sistematicamente esvaziou modelos que priorizam prevenção e cuidados, enquanto investiu na concepção de saúde pública como manejo de doenças. Quando não há cura, o zelo pelo “direito à vida” depende de saúde comunitária, de leitos, médicos e clínicas proporcionalmente distribuídos por todo o país, pesquisa e poupança – poupança em seguridade social, em testes e possibilidades de atendimentos. A descentralização da saúde no Brasil dispersa a coordenação de tais investimentos. Como mostra Biehl, ela amplia a possiblidade de má-gestão de dados (Biehl, 2007bBiehl, João. (2007b). Will to live − Aids therapies and the politics of survival. Princeton/Oxford: Princeton University Press.) e de falhas na dispensação de remédios ditos essenciais (Biehl, 2013Biehl, João. (2013). The judicialization of biopolitics: Claiming the right to pharmaceuticals in Brazilian courts. American Ethnologist, 40/3, p. 419-436.). No caso da covid-19, ela tem sido uma das brechas em que o governo central se autoexime diante da pandemia e da apropriação indevida de orçamentos por governos estaduais, e em que se desdobram, contestam e disputam apostas em vacinas, entre outros. Não se trata, portanto, de um estado completamente ausente, mas de uma instância de concentração de poder que aprendeu a improvisar.

Sim, é verdade que a pandemia tem sido usada para reiterar nacionalismos e acionar mecanismos de exceção (Caduff, 2020Caduff, Carlo. (2020). What went wrong: corona and the world after the full stop. Medical Anthropology Quarterly, 34/4, p. 1-21.), levando sua implementação repressora ao nível biológico, como indica, por exemplo, Paul Preciado (2020)Preciado, Paul B. (2020). Aprendendo do vírus. São Paulo: n-1 edições., numa das reflexões mais inspiradoras que li sobre a covid-19. Do fechamento de fronteiras aos toques de recolher, passando pelas restrições ao direito de ir e vir e pelos cortes em conquistas trabalhistas, muito do que se justifica em nome da nação num momento como o que vivemos impacta de forma inclemente e desigual as vivências e os corpos. Enquanto eu escrevia o primeiro esboço desta reflexão, entre abril e maio de 2020, a “nação” era evocada e exaltada por pessoas revolvidas em bandeiras brasileiras que gritavam palavras de ordem contra a democracia e a ciência em Brasília. O regime que promete protegê-las não apenas as incitava a se expor nas ruas, como tossia perdigotos sobre suas cabeças, e em vez de tratar a pandemia como problema sério e desafiador que é, usava-a como subterfúgio para desviar a atenção de intervenções indevidas na polícia federal e nas leis de proteção ao meio ambiente, entre outras. Mas enquanto os holofotes estão sobre o governo federal, é importante não perder de vista – ou deixar se tornarem invisíveis – os aparatos de saber/ poder que encontram espaço e função nessa cena nacionalista. No caso da saúde, sugere Joseph Dumit (2018)Dumit, Joseph. (2018). The infernal alternatives of corporate pharmaceutical research: abandoning psychiatry. Medical Anthropology, 37/1, p. 59-74., onde a lógica farmaceuticalizada já estiver institucionalizada, ela terá de resistir ser reduzida ao tamanho do mercado que a população local representar.

Antes entendida como ausência de doença, a saúde hoje, em muitas partes do mundo, tende a se praticar como manejo da cronicidade e prevenção de risco via medicamentos (Dumit, 2012Dumit, Joseph. (2012). Drugs for life? How pharmaceutical companies define our health. Durham: Duke University Press.). Enquanto o tratamento ou prevenção farmacológica para a covid-19 não vem, é neste contexto de interlocução e brechas que a farmaceuticalização como aparato normalizador (do fetiche; das vidas) encontra espaço. Em termos estatais, talvez fiquemos menos inventivos, e nos vejamos com as mãos atadas até a salvação farmacoquímica chegar. Já no que diz respeito aos interesse e modos de operação da indústria farmacêutica, este é o momento para o escoamento de remédios engavetados e da potencialização de lucros sobre substâncias já comercializadas. Não esqueçamos da corrida para liberar o uso da cloroquina para no tratamento da covid-19; assim como da aprovação expedita para testes com Remdesivir, de um laboratório americano, entre outros. Com a crise econômica que chegou e vai ficar, é em países com estruturas mais precárias que novos e antigos produtos serão testados, reiterando, nas palavras da também antropóloga Adriana Petryna (2005)Petryna, Adriana. (2005). Ethical variability: drug development and globalizing clinical trials. American Ethnologist, 32/2, p. 183-197., uma variabilidade ética que relativiza protocolos e pratica desigualmente a proteção a sujeitos de pesquisa no mundo global. Em troca de um pagamento e precisando de cuidados, talvez, no futuro, Rosa B. possa participar de um ensaio clínico. Em defesa de sua vida, um governo deveria ter reservas de mecanismos para protegê-la.

Em tempos de covid-19, como no início da aids, o Estado demora a reconhecer a pandemia como problema, não coordena ações de combate com estados e municípios, e falha em oferecer prevenção. Sem testes, mecanismos abrangentes e coordenados de monitoramento, rastreamento de contatos e cuidado contínuo, é impossível mapear o fluxo da doença e dar cara a seus efeitos. No caso da aids, no Brasil, tardiamente encarada, se espraiou das grandes cidades para o interior. Começou masculina e urbana, se espalhou e endemizou na periferia, e se feminizou, contaminando cada vez mais mulheres e, verticalmente, as crianças que gestavam.

O livro de Biehl (2007b)Biehl, João. (2007b). Will to live − Aids therapies and the politics of survival. Princeton/Oxford: Princeton University Press. indica que, gerir a saúde farmacologicamente, de maneira perene, passou a ser parte de uma série essencial de práticas que legitimam a cidadania. É assim que a farmaceuticalização vira estrutura. Consumir remédios passa a ser crucial para tornar-se paciente e, assim, integrar o sistema de saúde e o mercado médico. As pessoas sem valor para o sistema em vigência tendem a ser apagadas por mecanismos a que Biehl chama de tecnologias de invisibilidade. O antropólogo sabe: para rastrear o trânsito do poder, das políticas e de outras entidades abstratas, e os efeitos que causam sobre os corpos, é preciso buscar os menos visíveis, os indivíduos das margens e suas estratégias de sobrevivência. Quando enunciamos biopolítica, tendemos a narrar, no máximo, as vidas que se articulam via tecnologias e sistemas; mas fica difícil, sobretudo em quarentena, interceptar aqueles que, numa situação ainda mais frágil que a de Rosa B., não acessam saúde, crédito, consumo, internet ou celular. Está aí outro desafio do momento para as ciências sociais: achar novas formas de rastrear o “social” no isolamento.

A pandemia evoca a ação coletiva, nos aproxima e universaliza como espécie e como sociedade global ameaçada; mas também individua, discrimina e exclui. “[A] precariedade de nossas vidas é fragilizada ou protegida por políticas globais de precarização”, escreve Debora Diniz (2016Diniz, Debora. (2016). Didier Fassin entrevistado por Debora Diniz. Rio de Janeiro: Eduerj.: 26), num diálogo que provoca entre o antropólogo Didier Fassin e a filósofa Judith Butler. Rosa B., com quem troquei algumas mensagens sobre o prazo de validade da salada, não revelou seu sobrenome, mas não deixou escapar sua genealogia. Era negra, quiçá latina, pobre e não tinha seguro saúde na maior economia do planeta – e, por ora, ainda o epicentro da covid-19.

NOTAS

  • 1
    Por exemplo, na tradução do texto de Paul Beatriz Preciado (2020)Preciado, Paul B. (2020). Aprendendo do vírus. São Paulo: n-1 edições., em diálogo com a obra de Foucault, e nos textos publicados na série “Pandemia, Cultura e Sociedade” do Blog da Biblioteca Virtual do Pensamento Social, em que o presente texto foi originalmente publicado, e em que o uso do termo é geralmente feito em diálogo com a obra de Giorgio Agamben (cf. Meira Monteiro, 2020Monteiro, Pedro Meira. Heidegger e o iPad: presença e imagem na pandemia. Disponível em: https://blogbvps.wordpress.com/2020/04/29/heidegger-e-o-ipad-presenca-e-imagem-na-pandemia-por-pedro-meira-monteiro. Acesso em 26 out. 2020.
    https://blogbvps.wordpress.com/2020/04/2...
    ; Hillani, 2020Hillani, Allan. M. (2020). Os usos de Agamben em tempos de pandemia. Disponível em: https://blogbvps.wordpress. com/2020/06/15/os-usos-de-agamben-em-tempos-de- pandemia-por-allan-m-hillani. Acesso em 26 out. 2020.
    https://blogbvps.wordpress...
    e alguns posts do “Simpósio Mundo Social e Pandemia”).
  • 2
    Biopoder, biopolítica e a reflexão que articulam aparecem no volume 1 de A história da sexualidade (publicado na França com o título La volonté de savoir, em 1973) e em alguns seminários de Foucault que estão publicados em fontes diversas. Para explicar os conceitos de biopoder e biopolítica e aqui os explorar, consultei, em inglês, The history of sexuality – an introduction (publicação do primeiro volume de A história da sexualidade nos Estados Unidos), assim como as aulas de Foucault publicadas no volume Ethics, subjectivity and truth, editado por Paul Rabinow em 1997. Também recorri a Where is biopower today (Rabinow & Rose, 2006Rabinow, Paul & Rose, Nikolas. (2006). Biopower today. BioSocieties, 1, p, 195-217.).
  • 3
    Livre adaptação e tradução minha para um trecho do texto de Rabinow e Rose (2006Rabinow, Paul & Rose, Nikolas. (2006). Biopower today. BioSocieties, 1, p, 195-217.: 203).

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Set 2021
  • Data do Fascículo
    Ago 2021

Histórico

  • Recebido
    06 Nov 2020
  • Aceito
    06 Maio 2021
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