Resumo
Este artigo analisa o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA em sua seção relativa ao ato infracional e as narrativas de exame da magistratura e da promotoria atuantes no sistema de justiça juvenil. Entende-se que o ECA e as narrativas de exame são forjados com o poder disciplinar, na lógica que o concerne, constituindo-se em vetores para sua expansão. É exposta a articulação entre esse poder e a lei do ECA, assim como entre ele e as narrativas. Por fim, é dada visibilidade ao perfil/tipo de adolescente suscetível à maior intensidade punitiva no interior do sistema socioeducativo. As noções de sociedade/poder disciplinar e exame pensadas por Michel Foucault são guias orientadores desta reflexão.
Palavras-chave : Estatuto da Criança e do Adolescente; Justiça juvenil; Medidas socioeducativas; Poder disciplinar; Práticas de exame
Abstract
This article analyses the Brazilian Child and Adolescent Statute - ECA in its section on the infraction act and the magistrature and prosecution´s exam narratives in the juvenile justice system. It is understood that ECA and exam narratives are forged with the disciplinary power, in the logic that concerns it, comprising vectors for its expansion. The articulation between this power and the ECA law, as well as between it and the narratives, is exposed. Finally, the profile/type of adolescent susceptible to greater punitive intensity within the socio-educational system is given visibility. The notions of society/disciplinary power and examination thought by Michel Foucault are orienting guides of this reflection.
Keywords : Brazilian Child and Adolescent Statute; Juvenile justice; Socio-educational measures; Disciplinary power; Exam practices
INTRODUÇÃO
As práticas judiciárias - a maneira pela qual, entre os homens, se arbitram os danos e as responsabilidades, o modo pelo qual na história do ocidente, se concebeu e se definiu a maneira como os homens podiam ser julgados em função dos erros que haviam cometido, a maneira como se impôs a determinados indivíduos a reparação de algumas de suas ações e a punição de outras, todas essas regras ou, se quiserem, todas essas práticas regulares, é claro, mas também modificadas sem cessar através da história - me parecem uma das formas pelas quais nossa sociedade definiu tipos de subjetividade, formas de saber e, por conseguinte, relações entre o homem e a verdade… (Foucault, 2002: 11)
Este artigo trata de achados de pesquisa no âmbito da justiça juvenil realizada por pesquisadores associados ao Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Criminalidade e Violência (Necrivi), da Universidade Federal de Goiás (UFG). A pesquisa de campo foi realizada durante o ano de 2016, em um Juizado da Infância e Juventude localizado no estado de Goiás. Na ocasião, foram feitas entrevistas semiestruturadas com profissionais do Ministério Público, da Defensoria Pública e do Poder Judiciário. Fora deste artigo ficaram as narrativas dos defensores, uma vez que nos propomos a analisar os órgãos incumbidos da acusação do adolescente e decisão sobre seu encaminhamento.
A opção pela técnica da entrevista semiestruturada decorre daquilo que um roteiro com perguntas nem tão abertas, nem tão direcionadas, pode viabilizar: “uma compreensão detalhada das crenças, atitudes, valores e motivações em relação ao comportamento das pessoas em contextos sociais específicos” (Gaskell, 2002: 65).
O texto está dividido em quatro itens, a saber: “Sociedade Disciplinar e Exame”; “Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a Lógica Disciplinar”; “Narrativas de Exame”; e “Considerações Finais”. Esses itens são atravessados por três temáticas, com objetivos pontuais da reflexão proposta.
Uma dessas temáticas é a localização na genealogia do poder - pensada por Michel Foucault - da lei que organiza a justiça juvenil no Brasil, em particular, sua seção relativa à área infracional. Nesse caso, o título do artigo é prenúncio da afinidade eletiva entre a forma do poder disciplinar e a lei do ECA. Essa localização é feita, a princípio, no item intitulado “Sociedade Disciplinar e Exame”, sendo consolidada no item “Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lógica Disciplinar”.
Outra temática é relativa à análise da arte manejada pela justiça juvenil de (re)produzir e governar adolescentes “indesejáveis”. As primeiras pistas para isso estão no Estatuto e, definitivamente, nas narrativas de exame. Os itens que compreendem essa análise são “Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lógica Disciplinar”, e, “Narrativas de Exame”.
A investigação de narrativas de exame dos profissionais dessa justiça atuantes na área infracional permite acessar os critérios por eles mobilizados para a responsabilização do adolescente e, com isso, chegamos à terceira temática: visualização do perfil/tipo de adolescente suscetível à maior intensidade punitiva no interior do sistema de responsabilização juvenil; ou, o que seria o mesmo, a visualização do perfil/tipo de adolescente exposto a maior controle social do Estado, no âmbito do sistema socioeducativo. Buscamos, portanto, o perfil/tipo cuja vida mais afronta a norma e vice-versa. Os itens que tratam deste objetivo são “Narrativas de Exame” e as “Considerações Finais”.
Michel Foucault dedica alguns de seus escritos à sociedade disciplinar e às práticas de exame. O texto base utilizado para a apresentação conceitual desses elementos é A verdade e as formas jurídicas (Foucault, 2002), em função do objeto comum estudado: a justiça. O texto auxiliar mobilizado é Vigiar e Punir: nascimento da prisão (Foucault, 2012), em que Foucault se dedica amplamente à explanação desses temas. Outros trabalhos do autor que tratam da sociedade disciplinar e do exame foram consultados, o que contribuiu para o amadurecimento dessas escolhas1. As publicações A vontade de saber (1977) e Os Anormais (2001) estão presentes em itens subsequentes.
Cabe destacar duas pesquisas que influenciaram nossa abordagem. A dissertação Cortadores de Águas: prática de exame e justiça penal juvenil (2012), realizada por Izaque Miguel (2012), no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense. Miguel propõe uma análise foucaultiana dos discursos produtores de adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas, presentes em laudos, pareceres e relatórios avaliativos elaborados por psicólogos, assistentes sociais e pedagogos. A outra pesquisa, exposta na forma de artigo, de autoria de Sérgio Adorno (1994), é denominada “Crime, justiça penal e desigualdade jurídica: as mortes que se contam no tribunal do júri”. Nele, o sociólogo constrói seu objeto de pesquisa em diálogo com o pensamento de Michel Foucault: Adorno analisa as práticas de produção da verdade jurídica nos julgamentos de crimes dolosos contra a vida. Destaca, ainda, que a justiça penal é incapaz de transformar diferenças e desigualdades em direitos, ao concluir que negros, migrantes e pobres são perfis mais suscetíveis à sanção punitiva pelo tribunal do júri.
Por fim, é oportuno um sucinto esclarecimento: este artigo se debruça sobre o presente, a legislação estudada é vigente e as narrativas são de profissionais atualmente em exercício. A associação já anunciada, seja da legislação, seja das narrativas dos profissionais, com a lógica que rege a sociedade disciplinar, ou seja, com o poder disciplinar, não quer afirmar que a forma de poder preponderante no mundo a nós contemporâneo é a disciplinar. Afinal, Gilles Deleuze (1992) percebeu a emergência de um novo poder/modelo de sociedade que encontra no controle, e não mais na disciplina, seu correspondente produtivo contemporâneo. Deleuze pontua que o modelo disciplinar de sociedade entra em crise sobretudo após a Segunda Guerra, quando novas forças associadas ao controle - não mais à disciplina - tornam-se preponderantes. Essa passagem é tributária de uma mutação no interior da economia capitalista.
[…] o capitalismo do século XIX é de concentração, para a produção, e de propriedade. Por conseguinte, erige a fábrica como meio de confinamento, o capitalista sendo o proprietário dos meios de produção, mas também eventualmente proprietário de outros espaços concebidos por analogia (a casa familiar do operário, a escola). Quanto ao mercado, é conquistado ora por especialização, ora por colonização, ora por redução dos custos de produção. Mas atualmente o capitalismo não é mais dirigido para a produção, relegada com frequência à periferia do Terceiro Mundo, mesmo sob as formas complexas do têxtil, da metalurgia ou do petróleo. É um capitalismo de sobre-produção. Não compra mais matéria-prima e já não vende produtos acabados: compra produtos acabados, ou monta peças destacadas. O que ele quer vender são serviços, e o que quer comprar são ações. Já não é um capitalismo dirigido para a produção, mas para o produto, isto é, para a venda ou para o mercado. Por isso ele é essencialmente dispersivo, e a fábrica cedeu lugar à empresa. […] As conquistas de mercado se fazem por tomada de controle e não mais por formação de disciplina, por fixação de cotações mais do que por redução de custos, por transformação do produto mais do que por especialização da produção (Deleuze, 1992: 223-224).
A mudança da disciplina para o controle é, portanto, paradigmática, o que não exclui a convivência com o exercício do poder que reinava outrora.
SOCIEDADE DISCIPLINAR E EXAME
Foucault (2002) sugere que, no âmbito da prática penal, o exame é uma forma de produção da verdade característica da sociedade disciplinar. Esse modelo de sociedade tem início na Europa de meados do século XVIII e se manifesta no mundo ocidental em formas variadas e cronologias distintas. O exame é uma prática política e administrativa, mas também judiciária, uma vez que é uma forma de pesquisa da verdade no interior da ordem jurídica.
Ele possui relação direta com a origem das ciências humanas, a exemplo da sociologia, da psicologia, psicopatologia, criminologia, psicanálise e pedagogia. Todas essas maneiras de análise por meio das quais a verdade é produzida. Como ciências que formam o exame, elas são detentoras do poder de invenção sobre o homem e o entorno, o que faz delas, para além de formas de saber, formas de poder, legítimas construtoras do mundo e das subjetividades no âmbito da sociedade disciplinar2.
Ainda nesse contexto, o seu saber exerce poder sobre os corpos: poder disciplinar. Esse poder apresenta relação com a formação e estabilização do capitalismo industrial, com a gestão da sua produção. Ocupa-se, portanto, com a vigilância, com o exame dos corpos individuais a fim de torná-los produtivos. O modelo arquitetônico do panopticon, idealizado pelo filósofo e jurista Jeremy Bentham, é percebido por Foucault como exemplar para o exame e controle dos corpos, sendo já uma realidade em sociedades disciplinares do século XX. Trata-se de um edifício que permite ao vigilante tudo ver sem que sua vigilância seja notada. Esse modelo serve às instituições disciplinares, a exemplo de escola, do hospital, reformatórios e prisão (Foucault, 2002, 2012).
O contexto de nascimento da forma de confinamento conhecida como prisão é a Europa do século XIX, palco de sociedades industriais nascentes. A prisão é um marco da sociedade disciplinar e do poder que a ela concerne. Nesse período, ocorre uma mudança do sistema judiciário e penal em países europeus e do mundo ocidental que, guardadas particularidades, converge (Foucault, 2002, 2012).
Essa mudança procede um movimento de reformulação da lei penal que tem lugar no século XVIII, momento em que a infração passa a ser acusada em relação à lei positiva, deixando de associar-se à lei natural, moral ou religiosa; além disso, nesse contexto, a lei passa a representar a sociedade. Logo, aquele que perturba a ordem social, colocando-a em perigo, torna-se passível de punição. A lei penal é, no século XVIII, posta à serviço da garantia e fortalecimento do pacto social, ocupando-se em reparar o mal ou evitá-lo. Dessa forma, as punições pensadas por juristas como Beccaria e Bentham, além de legisladores como Brissot e Lapeletier, eram a deportação, exposição à vergonha e humilhação, o trabalho forçado como reparação ao dano social e a pena de talião, a qual estabelece que o indivíduo se torne paciente do crime que foi agente (Foucault, 2002).
No século XIX, a legislação penal é modificada, a lei se ajusta ao indivíduo, deixando de lado sua utilidade social. Nesse cenário surgem as chamadas circunstâncias atenuantes. Elas aparecem como uma relativização no rigor da lei: essa se abre a modificações de juízes ou júri, uma vez que o indivíduo se torna o objeto do julgamento. A penalidade do século XIX, diz Foucault, “tem em vista menos a defesa geral da sociedade que o controle e a reforma psicológica e moral das atitudes e do comportamento dos indivíduos” (Foucault, 2002: 85). Nela, é central a noção de periculosidade, o que retira o foco da infração efetivamente praticada para direcioná-lo à virtualidade do crime e do criminoso. Tendo então como finalidade a vigilância e a correção dos indivíduos e não a punição das infrações, a instituição penal deixa de se vincular exclusivamente ao poder judiciário, entrando em cena uma rede de instituições laterais - como as chama Foucault - para a realização desses propósitos, a saber: a polícia, instituições criminológicas, médicas, pedagógicas, psiquiátricas, psicológicas. Para Foucault, entramos na idade da ortopedia social (Foucault, 2002, 2012).
ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E A LÓGICA DISCIPLINAR
A lógica disciplinar está presente no Estatuto da Criança e do Adolescente. Há afinidade entre essa lei e a legislação penal engendrada nesse tipo de sociedade. Qual seria, então, essa afinidade?
O Estatuto, assim como a legislação penal do início do século XIX, não se preocupa tanto em punir as infrações dos indivíduos, mas em corrigir suas virtualidades. Isso está relacionado diretamente com o fato de esta lei, na seção relativa ao ato infracional, não privilegiar a relação de proporcionalidade entre o ato infracional praticado e a medida a ser cumprida, cujos correlatos no universo adulto são o crime e a pena.
Isso é especialmente claro no recurso da remissão, presente no artigo 126 do ECA:
Antes de iniciado o procedimento judicial para apuração de ato infracional, o representante do Ministério Público poderá conceder a remissão, como forma de exclusão do processo, atendendo às circunstâncias e consequências do fato, ao contexto social, bem como à personalidade do adolescente e sua maior ou menor participação no ato infracional (Brasil, 1990).
E, ainda, no artigo 127:
A remissão não implica necessariamente o reconhecimento ou comprovação da responsabilidade, nem prevalece para efeito de antecedentes, podendo incluir eventualmente a aplicação de qualquer das medidas previstas em lei, exceto a colocação em regime de Semiliberdade e a Internação (Brasil, 1990).
Para além do recurso da remissão, outros são os indicativos ou expressões da frágil relação de proporcionalidade entre ato e medida e da centralidade que assume o indivíduo, a individualidade e sua personalidade na justiça juvenil ocupada com a área infracional. A própria figura jurídica do adolescente soma nesta passagem de ênfase na infração para o indivíduo, no que se refere a ter o jovem como critério maior ou relevante para a definição do seu encaminhamento no interior do sistema socioeducativo.
A maneira como está construída a figura jurídica do adolescente no Código Penal, cujos desdobramentos estão presentes no ECA, convida ao afrouxamento da relação entre ato e medida. O adolescente é legalmente produzido como um ser humano em fase de formação das suas faculdades psíquicas, isto é, alguém social e biologicamente em desenvolvimento. Portanto, o adolescente é inimputável. A ele cabe um tratamento diferenciado daquele conferido ao adulto, pois não cumpre pena, mas medidas socioeducativas3. Por estar em formação, cuja responsabilidade remonta à família, à sociedade e ao Estado, a atenção à sua individualidade deve ser prioritária, uma vez que é ela tomada como parâmetro para a análise do seu desenvolvimento. Por esse ângulo, a passagem da ênfase da punição da infração individual para a correção das virtualidades do adolescente pela justiça juvenil torna-se compreensível e engajada com a construção deste ser por vir, cuja completude do corpo está inacabada.
A figura jurídica do adolescente influenciará diretamente o texto legal referente às medidas socioeducativas. Esse texto nos conta sobre o adolescente desejável, sobre este porvir almejado e sobre as maneiras de alcançá-lo. Antes de entrarmos propriamente nas medidas, vale pontuar brevemente a noção de socioeducação, tal como formulada em sua ideia original, assim como a modificação que vivencia no âmbito da sociedade disciplinar, indissociável do liberalismo político e econômico.
O conceito de socioeducação foi cunhado primeiramente pelo educador ucraniano Anton Makarenko em escrito redigido entre os anos de 1925 e 1935, intitulado Poema Pedagógico (Makarenko, 2012). Nele, o autor relata a experiência pedagógica com crianças abandonadas e jovens infratores na Colônia Gorki, localizada na antiga União Soviética. Na construção de Makarenko, a socioeducação é uma pedagogia bolchevique - uma educação voltada para a construção do homem socialista, para sua libertação do domínio de outro homem -, que aposta na transformação e considera a “reforma do ser humano” um “ridículo problema” (Makarenko, 2012: 640). Antônio Carlos da Costa, pedagogo e um dos redatores do Estatuto da Criança e do Adolescente é quem traz o termo para o Brasil e o reformula sob a perspectiva liberal. Sobre isso, nos fala o pesquisador do tema, Raniere (2014):
A entrada deste conceito no Estatuto da Criança e do Adolescente cria um novo possível em termos de reforma […] passando a ser agenciado, também, pela identidade do adolescente em conflito com a lei. Esta utopia correcional, longe de ter como modelo o homem socialista, apoia-se no mercado, no empreendedorismo, no protagonismo juvenil, na criação e conclusão de metas. Uma máquina de reformar infratores cujo funcionamento se dá pelo agenciamento da estranha adaptação de um conceito bolchevique com três grandes tecnologias do capitalismo mundial integrado: Responsabilidade, Identidade e Direitos Humanos (Raniere, 2014: 103).
As medidas aplicadas ao infrator ou ao acusado da infração, construídas em sintonia com a “utopia correcional” mencionada por Raniere, são um misto de responsabilização pelo suposto ato e educação para a vida social.
A menção à infração está presente na descrição legal das medidas que estabelecem o confinamento. Elas são a “internação” e a “semiliberdade”. Para a inserção do adolescente em uma delas, é relevante o teor da ação - grave ou gravíssimo -, não sendo esse, porém, critério legal exclusivo.
Art. 122. A medida de Internação só poderá ser aplicada quando: I - tratar-se de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência a pessoa; II - por reiteração no cometimento de outras infrações graves; III - por descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta. […] Art. 186. “§ 2º Sendo o fato grave, passível de aplicação de medida de Internação ou colocação em regime de semi-liberdade, a autoridade judiciária, verificando que o adolescente não possui advogado constituído, nomeará defensor (Brasil, 1990).
Uma exceção às medidas de confinamento é a obrigação de reparar o dano, que remonta à pena de talião, já que amparada na perspectiva do ressarcimento do dano causado a terceiro. É interessante destacar, considerando a “utopia correcional” (Raniere, 2014), que o estudo e a profissionalização, direitos do adolescente e deveres do Estado, estão previstos no interior dessas medidas que envolvem o confinamento. Isso remete à rede de instituições laterais que junto à instituição penal promovem a vigilância e correção do adolescente indisciplinado.
Nas demais medidas, as que não levam ao confinamento do adolescente, como é o caso da Liberdade Assistida (LA), da Prestação de Serviços à Comunidade (PSC) e da Advertência - que consiste “em admoestação verbal, que será reduzida a termo e assinada” (Brasil, 1990) -, a lei estabelece a prioridade do indivíduo sobre a infração. Vale destacar que as medidas de meio aberto de maior controle social, isto é, nas quais o adolescente fica mais tempo sob a vigilância do Estado - a LA e a PSC -, acionam, assim como as medidas de confinamento, instituições laterais. No caso das medidas em meio aberto, o texto legal se dedica comumente a pontuar como elas devem funcionar, de modo a viabilizar a fabricação deste adolescente desejado, disciplinado, sintonizado com a norma.
Caminhando para o fim deste item, trataremos em específico das medidas LA e PSC, uma vez que a definição legal de cada uma delas é oportuna para a visualização da lógica disciplinar.
O artigo 118 do Estatuto determina que “A Liberdade Assistida será adotada sempre que se afigurar a medida mais adequada para o fim de acompanhar, auxiliar e orientar o adolescente” (Brasil, 1990). E o artigo 119 ocupa-se em pontuar a maneira como a vigilância deve ocorrer e em que consiste a correção:
Art. 119. Incumbe ao orientador, com o apoio e a supervisão da autoridade competente, a realização dos seguintes encargos, entre outros: I - promover socialmente o adolescente e sua família, fornecendo-lhes orientação e inserindo-os, se necessário, em programa oficial ou comunitário de auxílio e assistência social; II - supervisionar a frequência e o aproveitamento escolar do adolescente, promovendo, inclusive, sua matrícula; III - diligenciar no sentido da profissionalização do adolescente e de sua inserção no mercado de trabalho; IV - apresentar relatório do caso (Brasil, 1990).
Vale mencionar que as responsabilidades do orientador se associam à efetivação dos direitos do adolescente. O adolescente construído pela lei do Estatuto não é mais exclusivamente aquele que se encontra em “situação irregular” (Brasil, 1979), como era o adolescente da lei anterior ao Estatuto, o Código de Menores de 1979:
Art. 2 Para os efeitos deste Código, considera-se em situação irregular o menor: I - privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução obrigatória, ainda que eventualmente, em razão de: a) falta, ação ou omissão dos pais ou responsável; b) manifesta impossibilidade dos pais ou responsável para provê-las; II - vítima de maus tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais ou responsável; III - em perigo moral, devido a: a) encontrar-se, de modo habitual, em ambiente contrário aos bons costumes; b) exploração em atividade contrária aos bons costumes; IV - privado de representação ou assistência legal, pela falta eventual dos pais ou responsável; V - Com desvio de conduta, em virtude de grave inadaptação familiar ou comunitária; VI - autor de infração penal” (Brasil, 1979).
O adolescente do ECA é genérico, é aquele que se encontra na faixa etária de 12 a 18 anos. Ele é forjado juridicamente no interior da ideia de cidadania, é sujeito de direitos, cabendo à família, sociedade e ao Estado a garantia desses direitos. O artigo 227 da Constituição Federal de 1988 fornece a base para a ruptura com a Doutrina da Situação Irregular que regia o Código de Menores de 1979, sendo prenúncio da Doutrina da Proteção Integral, presente no Estatuto.
É dever da família, da Sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e a convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (Brasil, 1988).
Desse modo, a atenção e a vigilância sobre o adolescente chega a uma intensidade tal que ele e a sociedade encontram-se sobrepostos, o que só parece viável quando os direitos estão por toda a parte e sua garantia depende de todos. É uma estratégia do novo discurso legal centrar-se no cidadão adolescente, que diante de uma sociedade que o protege, pode ter sua crueldade ampliada, seu desvio ainda mais incompreendido, quando nega seu afago protetor. Sendo assim, o espectro de reflexão sobre direitos amplia-se: eles contornam formalmente corpos de adolescentes, tornando estes menos vulneráveis ou a mercê de tudo e de todos, ao mesmo tempo que se constituem como meios de vigilância e disciplina pelo Estado, sociedade e família. Nesse último sentido, direitos e norma confundem-se na medida em que o exercício de direitos pelo adolescente significa também seu ajustamento à norma.
Continuando a definição das medidas, no caso da PSC, o Estatuto é ainda mais sucinto:
A prestação de serviços comunitários consiste na realização de tarefas gratuitas de interesse geral, por período não excedente a seis meses, junto a entidades assistenciais, hospitais, escolas e outros estabelecimentos congêneres, bem como em programas comunitários ou governamentais. Parágrafo único. As tarefas serão atribuídas conforme as aptidões do adolescente, devendo ser cumpridas durante jornada máxima de oito horas semanais, aos sábados, domingos e feriados ou em dias úteis, de modo a não prejudicar a frequência à escola ou à jornada normal de trabalho (Brasil, 1990).
Nota-se tanto na definição da LA como da PSC que a atenção à individualidade do adolescente é demandada. O “relatório do caso individual” (Brasil, 1990) - expresso no artigo supramencionado referente à LA - é de incumbência de especialistas das ciências da modernidade, a exemplo de psicólogos, pedagogos, assistentes sociais. Nele, o adolescente é descrito, medido, seu treinamento é organizado, ou seja, todos os “cuidados” a ele dirigidos no intuito de “docilizar seu corpo” (Foucault, 2012) para torná-lo compatível com a produção são registrados e documentados. Esse modo de realização do exame faz, portanto, de cada indivíduo um caso que “ao mesmo tempo constitui um objeto para o conhecimento e uma tomada para o poder” (Foucault, 2012: 183). Quando se trata da PSC, o parágrafo único do artigo faz referência e confere importância às aptidões do adolescente, o que dá a dimensão deste olhar específico sobre o indivíduo e constrói o sentido dessa medida. Ela não é construída como um castigo, mas como um benefício comum à sociedade e ao adolescente, uma oportunidade para o seu desenvolvimento, para a conformação de suas aptidões à norma.
Explicitada a operacionalização da lógica disciplinar na legislação penal da justiça juvenil, será observada agora a prática do exame colocada em operação pelos profissionais dessa justiça.
NARRATIVAS DE EXAME
Entramos neste item em contato com as narrativas de exame dos profissionais da justiça juvenil. O material que será analisado não é físico, já que não são relatórios técnicos redigidos por peritos das ciências humanas. Esses relatórios ficam disponíveis para o exame dos profissionais do sistema de justiça, podendo contribuir para sua produção. Outro documento disponível é o boletim de ocorrência elaborado na delegacia, onde a suposta infração está descrita. O material analisado é a fala, o discurso falado, aquilo dito durante as entrevistas.
O que pode ser, então, o discurso?
[…] o discurso - como a psicanálise nos mostrou - não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é também aquilo que é o objeto do desejo; e visto que - isto a história não cessa de nos ensinar - o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo porque, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar (Foucault, 2014: 10).
A produção do discurso envolve aquilo que pode ou não ser dito, o discurso inteligível e o ruído, aquilo que desejamos saber, nossa vontade de saber amparada no que possui força de verdade em oposição ao que é falso. Esses são procedimentos de exclusão, de controle do discurso socialmente produzido a fim de “conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade” (Foucault, 2014: 9).
Logo, como já colocado, a investigação de Foucault destaca que no contexto da sociedade disciplinar o discurso jurídico atrelado à área penal se produz enquanto discurso verdadeiro, ao associar-se às ciências da modernidade. Os discursos científicos carregam o estatuto da verdade sobre o homem e a sociedade, sobrepondo-se ao discurso jurídico. A lei perde força enquanto tal e com ela o soberano, pilar da sua existência. Os novos homens do direito serão os burocratas, gestores da norma, e, no caso desta pesquisa, fomos convidados a olhá-los também como examinadores.
Os discursos de algumas dessas ciências, que no interior do direito penal passam a informar a verdade sobre o homem, fazem dele um criminoso ou um inocente, definem seu grau de periculosidade. Portanto, aquilo que observamos a partir da pesquisa de campo é a produção, pelos profissionais da justiça, de uma prática discursiva que se mistura a determinadas ciências da modernidade - em específico a psicologia, a pedagogia e o serviço social - e tira delas sua força, disfarçando-se no seu interior ao associar-se à sua vontade de verdade. Estamos falando de uma prática discursiva que tem como objeto de desejo discursos constituintes dessas ciências do exame, que se senta em suas cadeiras e opera por meio delas, mas de natureza outra.
O discurso dos profissionais da justiça emerge, portanto, do desamparo dessas ciências do exame, por serem esses profissionais lançados pela legislação a produzir seu discurso com essas ciências e por elas não se apresentarem a eles de maneira suficiente, seja na sua formação, seja pela presença insuficiente de pessoal especializado para subsidiá-los em seus encaminhamentos. Talvez possamos dizer que este é um efeito localizado do rebaixamento da lei à norma, o que torna o discurso dos profissionais da justiça produto do desamparo da lei.
O exame feito pela justiça juvenil agrega discursos de especialistas das ciências mencionadas, da legislação, do Boletim de Ocorrência e do que pode ser chamado de “discurso desamparado dos profissionais do sistema de justiça”. É esse amálgama, e sua organização nos discursos dos profissionais estudados, que distanciará ou aproximará o adolescente da norma, tornando o indivíduo mais ou menos punível. Desse exame, surge aquilo que os profissionais querem saber sobre o adolescente e, nesse movimento, o adolescente torna-se visível. O que querem, então, promotores e magistrados saber? Ou, falando de outro modo, quais os critérios do exame?
O promotor Francisco4 explica como examina o adolescente para decidir sobre a medida mais adequada:
A primeira coisa é a responsabilização do adolescente. Então se leva em consideração também o ato infracional praticado; então, quanto menos violência, quanto menos agressividade, menos grave será a medida socioeducativa. Leva-se também em consideração a capacidade do adolescente de cumprir essa medida. Não adianta, por exemplo, um adolescente que pratica um ato infracional grave, mas que tem problemas psicológicos ou problemas psiquiátricos; nós não vamos nos responsabilizar em aplicar uma medida socioeducativa pra torná-la inócua; esse adolescente precisa de uma medida protetiva. Então é muito subjetiva essa análise. Então, leva em consideração a responsabilização, a capacidade de cumprimento, a necessidade de integração social. E isso, quanto mais integrado socialmente e familiarmente o adolescente, menos grave é a medida socioeducativa, menos intervenção e, também, a reprovação da conduta que é pra mostrar para o adolescente que existem consequências do seu ato equivocado. Então, todas as circunstâncias são analisadas de forma subjetiva e conforme o caso concreto, e esse caso concreto leva em consideração a família, leva em consideração a capacidade dele de obedecer, escolarização, tudo isso é levado em consideração: quanto mais ele tem capacidade de seguir regras, quanto mais princípios positivos tiver, quanto mais comprometido com a família, menos intervenção estatal terá (Francisco, 2016).
A Magistrada Lucia explica sua opção pelo confinamento de um adolescente quando o ato praticado não é grave:
[…] 19 furtos, sempre é colocado em liberdade, sempre devolvido para a família, quando chegou dezenove vezes e a mãe já não aguentava mais, e já não suportava, e ele não cumpria. Então ficou muito claro e muito evidente que ele não tinha compromisso em cumprir aquela medida em meio aberto, que é a Liberdade Assistida e a prestação de serviços; que exigia pelas circunstâncias, pela capacidade de cumprir, pela gravidade daquela situação, uma medida mais rigorosa. Aí seria Internação, como eu apliquei nesse caso. Foi um caso maravilhoso, porque ele era um menino de rua, ele tinha 19 passagens, se dizia homossexual e a mãe já havia desistido dele, porque não aguentava mais; nós decretamos Internação e mandamos para o Centro de Internação e lá ele ficou por quase dois anos. Saiu profissionalizado, a opção sexual, ele chegou à conclusão que não era homo, que era hétero, e, com curso profissionalizante de facção. Autorizei ele inclusive fazer qualificação em São Paulo, fazer aperfeiçoamento na profissão, e, hoje, ele é um rapaz lindo e está trabalhando e voltou a morar com a família e ajuda a mãe (Lucia, 2016).
O Promotor Renato também esclarece sua opção pelo confinamento de uma jovem:
[…] chegou aqui pra oitiva informal. Tinha treze anos, com cara de vinte e cinco, e extremamente desgastada. Envelhecida e desgastada fisicamente, devido ao uso do crack. Com quinze dias que ela ficou no centro de Internação, ela estava irreconhecível, comparativamente ao primeiro dia que eu a vi. Ela estava extremamente diferente, pra melhor, estava corada, com outras manifestações, com outras perspectivas. Então isso foi uma surpresa, porque quando eu a vi, quinze dias depois, eu não a reconheci de imediato. Então, nesse momento que eu verifiquei que a Internação foi mesmo a melhor medida… porque tirou ela do uso diário de crack, do envolvimento com o tráfico e com tentativas de homicídios; e só foi assim que ela pôde se recuperar fisicamente, psicologicamente, para que ela pudesse entender novas perspectivas inclusive de se relacionar com o seu pai, porque ela já tinha abandonado a família e se entregue a traficantes, inclusive na prostituição (Renato, 2016).
A magistrada Lucia explica aquilo que a faz repensar a opção pelo confinamento:
[…] quando o adolescente, ele comete, vamos supor, um assalto. Mas ele é um adolescente que não utilizou de violência e tem uma família estruturada, ele estuda e não está muito comprometido (com o crime). Eu estou levando em conta a gravidade do assalto, eu estou levando as circunstâncias, não houve violência, eu estou olhando a capacidade dele de cumprir; ele é um adolescente que estuda, ele entende que tem que ter ciência, ele arrependeu do que ele fez, então eu posso aplicar a pena perfeitamente, uma medida no meio aberto. Uma Liberdade Assistida de seis meses e prestação de serviço à comunidade (Lucia, 2016).
A Promotora Vânia esclarece sua prática de exame:
[…] porque muitas vezes o adolescente praticou um fato, e você vê claramente […] que aquilo foi episódico… E está evidente nele que as chances de não voltar a acontecer são muito grandes. Pelo comportamento dele, pelo reconhecimento do ato e tal […]. Tem os estelionatários, mas o adolescente ele não aguenta muito tempo de conversa, ele não tem a malícia suficiente para se sustentar muito tempo. Então, muitas vezes, quando eu estou insegura se esse adolescente realmente [praticou a infração] […] eu começo a prolongar o assunto, e voltar no assunto e prolongar o assunto, para tentar entender, extrair dele, se realmente é aquilo ali mesmo, se ele está realmente arrependido (Vânia, 2016).
Esse conjunto narrativo constitui-se de filtros perceptivos para a construção da figura do adolescente - como sendo alguém desviante, para além do ato infracional. Esses filtros são: a forma como o adolescente se relaciona com a educação formal, família, saúde, universo do trabalho; capacidade de ele cumprir a medida considerada indissociável da sua finalidade pedagógica; sinceridade associada ao reconhecimento da prática infracional; capacidade de arrependimento em relação ao feito; compromisso com o cumprimento da medida; envolvimento com o universo “criminoso”; e o controle da família sobre ele, o que pode ser também tratado como sua obediência à família.
Todos esses enunciados produzem a visibilidade do adolescente no interior da justiça juvenil. Soma-se à (suposta) infração, esse conjunto de “faltas” que mostram “como o indivíduo parecia com seu crime antes de o ter cometido” (Foucault, 2001: 24). São esses os duplos ético-morais do delito que criam a relação do autor da infração com o delinquente, do réu com o condenado, como colocado por Foucault na primeira conferência de Os anormais (Foucault, 2001). Alguns desses duplos éticos-morais do delito, como relação do adolescente com sua saúde, educação formal, profissionalização e cuidado familiar, são direitos do adolescente; direitos transformados em meios para exposição à maior ou menor intensidade punitiva, uma vez considerados para a definição do tempo e modo de permanência do adolescente no interior deste sistema de responsabilização juvenil que é o sistema socioeducativo.
Por fim, destacaremos uma fala do promotor Francisco, na qual transparece um certo desconforto com o julgamento não estritamente infracional colocado em operação na justiça juvenil:
Essas garantias, na minha opinião, não protegem o adolescente. Vou te dizer mais, por exemplo: nos Estados Unidos, que tem fama de ser autoritário e repressor, eles tratam no mesmo status de crime a questão da evasão escolar e a questão de cabular a aula. Fico pensando se a gente adotasse isso no Brasil a gente se anteciparia ao crime. Porque o menino está fora, pega o menino e traz aqui. Não espera ele cometer crime (Francisco, 2016).
A solução ao desconforto oferecida pelo promotor é transformar um direito em infração.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Até este momento do artigo percorremos por completo duas temáticas e parte da terceira. A escolha de temáticas como forma de elencar os objetivos pontuais que estruturam este texto e a relativa autonomia com que foram trabalhadas ao longo da escrita, assim como o conjunto das ideias nelas apresentadas, compuseram um percurso reflexivo necessário para continuidade da discussão da terceira temática, presente nestas considerações finais.
Antes, porém, de seguirmos para o encerramento desta última temática, torna-se oportuno rememorá-las conforme pontuadas na parte da apresentação: (a) localização na genealogia do poder da lei que organiza a justiça juvenil, o ECA; (b) a análise da seção relativa ao ato infracional presente no Estatuto e das narrativas de exame da justiça juvenil como meio para a compreensão da arte de (re)produzir e governar adolescentes “indesejáveis” pela justiça juvenil; e (c) a visualização do perfil/tipo de adolescente suscetível a maior intensidade punitiva no interior do sistema de responsabilização juvenil.
Em itens que tratam da segunda e terceira temática - Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lógica Disciplinar, e Narrativas de Exame - surge a discussão sobre o que pode ser chamado de paradoxo dos direitos dos adolescentes no âmbito da lógica disciplinar. Vimos que direitos, ao mesmo tempo que contornam juridicamente o adolescente, conferindo a ele cidadania, são meios para o reforço da norma e, nesse sentido, quando acusada sua ausência, podem se transformar em elementos para a punição do adolescente no interior do sistema socioeducativo.
Pode-se, portanto, afirmar que, para além da gravidade do ato infracional praticado pelo adolescente - critério importante para a definição da intensidade punitiva entre os profissionais do sistema de justiça juvenil -, outro critério relevante é a prática de direitos por este que é considerado na lei um sujeito de direitos: o adolescente. Quando não exercitados, ele será considerado na escala disciplinar como alguém indisciplinado, contribuindo para um aumento da intensidade punitiva sobre ele e para sua exposição a um maior controle estatal no interior do sistema de responsabilização juvenil. Nesse sentido, percebemos que o perfil/tipo de adolescente suscetível a maior intensidade punitiva é o socialmente vulnerável, cujos direitos se encontram em risco.
Neste contexto, consideramos interessante trazer uma colocação de Foucault sobre o funcionamento do direito no ocidente, a partir do século XIX: “Foi a vida, muito mais do que o direito que se tornou objeto das lutas políticas, ainda que estas últimas se formulem através de afirmações de direitos” (Foucault, 1977: 136). Como se quer viver e como se deve viver são questões caras a nossa sociedade, às sociedades liberais, disputas nas quais o direito está imerso e por meio das quais ele é produzido. A essa colocação de Foucault, vale acrescentar que a luta política está presente também na escrita. A política da escrita, característica da lógica disciplinar, praticada em relatórios de especialistas do humano, cuja função é a “sujeição dos que são percebidos como objeto” e a “objetivação dos que se sujeitam” (Foucault, 2012: 177), pode ver sua finalidade descoberta e ser lançada à solidão por certos modos de escritas de si.
Finalizamos o artigo com um trecho do texto intitulado “A Criança Criminosa”, publicado originalmente em 19585, escrito por um “delinquente” de outrora, que passou sua juventude em um reformatório. Filho de prostituta e pai desconhecido, esse adolescente era considerado um corpo nada dócil às disciplinas, que à sua maneira, implicado como esteve na linha de frente do enfrentamento, fez o mesmo que o autor cujas ideias orientam este texto, percebeu-as e enfrentou-as. Trata-se de Jean Genet.
O único meio que terão as pessoas importantes, as pessoas honestas, de salvaguardar alguma beleza moral é recusar qualquer piedade a rapazes que não a querem. Pois não acreditem, Senhores, Senhoras, Senhoritas, que lhes baste debruçarem-se com solicitude, indulgência, com um interesse compreensivo sobre a criança criminosa para ter o direito à sua afeição e à sua gratidão; seria necessário ser esta criança, seria necessário, os senhores também, ser o crime e santificá-lo por uma vida magnífica, isto é, pela audácia de romper com a onipotência do mundo. Posto que a gente se divide - a partir de nós que quisemos, que ousamos essa ruptura - entre os não culpados (não digo inocentes), entre não culpados que os senhores são e os culpados que nós somos, saibam que é toda uma vida que lhes conduzia desse lado da barra6 de onde os senhores acreditam poder, sem perigo e para seu conforto moral, nos estender uma mão caridosa. Quanto a mim, eu escolhi: estarei do lado do crime. E ajudarei as crianças não a recuperar as casas dos senhores, suas fábricas, suas escolas, suas leis e seus sacramentos, mas violá-los […] (Genet, 2007: 19).
REFERÊNCIAS
- Adorno, Sérgio. (1994). Crime, justiça penal e desigualdade jurídica: as mortes que se contam no tribunal do júri. Revista USP, 21, p. 132-151.
-
Brasil. (1990). Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União, 14 jul. 1990. Disponível em <Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm >. Acesso em 28 mar. 2018.
» http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm -
Brasil. (1979). Lei nº 6.697, de 10 de outubro de 1979. Institui o Código de Menores. Diário Oficial da União , 11 out. 1979. Disponível em <Disponível em http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1970-1979/lei-6697-10-outubro-1979-365840-publicacaooriginal-1-pl.html >. Acesso em 18 mar. 2018.
» http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1970-1979/lei-6697-10-outubro-1979-365840-publicacaooriginal-1-pl.html -
Brasil. (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial da União , 5 out. 1988. Disponível em <Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 18 mar. 2018.
» http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. -
Brasil. (1940). Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União , 8 dez. 1940. Disponível em <Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848.htm >. Acesso em 18 mar. 2018.
» http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848.htm - Deleuze, Gilles. (1992). Conversações, 1972-1990. Rio de Janeiro: Editora 34.
- Foucault, Michel. (1977). História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal.
- Foucault, Michel. (2001). Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). São Paulo: Martins Fontes.
- Foucault, Michel. (2002). A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU.
- Foucault, Michel. (2008). A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária.
- Foucault, Michel. (2012). Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis, RJ: Vozes.
- Foucault, Michel. (2014). A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Loyola.
- Gaskell, George. (2002). Entrevistas individuais e grupais. In: Bauer, Martin W. & Gaskell, George. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis: Vozes, p. 64-89.
- Genet, Jean. (2007). A criança criminosa. In: Bastos, Ruth et al. Adolescência, violência e a lei. Rio de Janeiro: Cia. de Freud; Vitória: Escola Lacaniana de Psicanálise, p. 13-22.
- Makarenko, Anton. (2012). Poema pedagógico. São Paulo: Editora 34.
- Miguel, Izaque. (2012). Cortadores de águas: prática de exame e justiça penal juvenil. Dissertação de mestrado. PPGP/Universidade Federal Fluminense.
- Raniere, Édio. (2014). A invenção das medidas socioeducativas. Tese de doutorado. PPGPSI/ Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
NOTAS
-
1
Sobre os escritos de Michel Foucault que tratam do instrumento do exame, eles se concentram entre os anos de 1973 e 1976, e, mais distante, em 1984. A verdade e as formas jurídicas, publicado originalmente em 1996, reúne 5 conferências dadas por ele na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, no ano de 1973. Nessas conferências, são expostas ideias desenvolvidas em Vigiar e Punir: nascimento da prisão, publicado originalmente em 1975, mesmo ano em que o Collège de France recebia o curso Os Anormais, cuja primeira publicação ocorre após quase três décadas, em 2001. Em 1976, é publicado o primeiro volume da coletânea “História da Sexualidade”, intitulado A vontade de saber; os outros dois volumes, O uso dos prazeres e O cuidado de si, vieram à público em 1984, ano da morte de Foucault. Toda essa produção se insere na pesquisa da genealogia do saber/poder por ele empreendida.
-
2
Na parte dedicada ao exame presente na publicação Vigiar e Punir, Foucault (2012) comumente utiliza o termo ciência(s) entre aspas. A utilização deste recurso na escrita do autor parece ter a finalidade de problematizar o entendimento do que possa ser considerado científico, ao mesmo tempo que indica a inserção neste rótulo de formações discursivas que, em sua concepção analítica, não podem ser entendidas como estritamente científicas, mas que em determinada conjuntura histórica são tratadas como tais, uma vez que têm o poder de dizer a verdade sobre o homem. Nesse sentido, o filósofo cita o caso de “ciências” da modernidade que têm em sua nomenclatura a expressão “psico”, já que algumas delas não se associam, em determinado momento da história, com aquilo que Foucault chama de “limiar de cientificidade” (Foucault, 2008), mas a análises ou práticas com força de verdade. A classificação de Foucault das formações discursivas, no que tange a serem científicas ou de outra natureza, está presente na publicação Arqueologia do Saber (Foucault, 2008), mais especificamente no subitem “Ciência e Saber”, em que o autor as associa a diferentes limiares: o limiar da positividade, limiar de epistemologização, limiar de cientificidade e limiar da formalização.
-
3
O Código Penal (1940) estabelece que são inimputáveis aqueles com “doença mental”, “desenvolvimento mental incompleto”, “desenvolvimento mental retardado”, “embriagues completa proveniente de caso fortuito ou força maior”. O adolescente é pensado como alguém com “desenvolvimento mental incompleto” e sua inimputabilidade é afirmada no artigo 27 do Código: “Os menores de 18 anos são penalmente inimputáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial”.
-
4
Todos os nomes são fictícios a fim de não expor a identidade dos entrevistados.
-
5
O original está publicado na obra de Jean Genet, L´Atelier d´Alberto Giacometti, Les Bonnes suivi d´une lettre, L´ Enfant Criminel, Le Funambule, da Édition L`Arbalète, de 1958.
-
6
Em nota, a tradutora Ana Lucia Carneiro da Cunha informa que o termo francês “barre” refere-se à grade que separa os magistrados do público no tribunal.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
26 Set 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
-
Recebido
31 Jan 2020 -
Revisado
02 Ago 2021 -
Aceito
07 Set 2021