Cavalcanti, Maria Laura Viveiros de Castro. (2020). Drama, ritual e performance: a antropologia de Victor Turner. Rio de Janeiro: Mauad. 146 p.
Em foco, Victor Turner (1920-1983). Um ancestral. Em seu livro, Drama, ritual e performance: a antropologia de Victor Turner, Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti procura recompor a obra de um ancestral antropológico. O título sinaliza um percurso.
Em sua análise da recepção de Turner no cenário atual da antropologia Cavalcanti detecta uma espécie de empobrecimento na leitura da obra e na experiência antropológica. Um risco de sparagmos ou desmembramento da obra. Uma antropologia interessada nos últimos escritos do autor, que surgem como os primeiros esboços de uma antropologia da performance, produz possivelmente um esquecimento da obra anterior. E de algumas das contribuições mais criativas do autor. Entre elas, em destaque, os conceitos de drama social e símbolo ritual.
Num salto no remoinho do tempo, Cavalcanti busca a força originária da antropologia de Turner. O processo de criação de um conceito de performance na antropologia, em inícios dos anos 1980, que Turner associa a uma antropologia pós-moderna, se afunda no tempo e, particularmente, na etnografia realizada pelo autor nos anos 1950, numa aldeia ndembu. Há uma continuidade entre o que vem antes e depois. Schism and continuity. As primeiras palavras do título do livro de estreia de Turner, publicado em 1957, sinalizam um movimento ritual que também se detecta na narrativa de Cavalcanti. No estudo cuidadoso do conjunto da obra de Victor Turner, Maria Laura Cavalcanti realiza uma espécie de rito de cura, recompondo uma obra e um campo de estudos.
Retomando o percurso de Turner, o livro de Cavalcanti tem uma introdução e três capítulos tratando de drama social, símbolo ritual e performance, respectivamente. Seguem, em apêndice, duas entrevistas, uma com Roberto DaMatta e outra com Yvonne Maggie, duas figuras que iluminam a recepção originária de Turner e sua obra, nos anos 1970, na antropologia brasileira. DaMatta escreve o prefácio.
O percurso narrativo de Cavalcanti encena o próprio movimento da obra de Turner acerca do conceito de ritual - o eixo, diz Cavalcanti, em torno do qual se mobilizam outros temas, tais como os que compõem os três capítulos.
No capítulo 1, Drama social: o teatro adentra a antropologia, Cavalcanti encontra um momento originário: Schism and continuity in an African society: a study of Ndembu village life (1957). O livro de Turner produz uma inflexão altamente criativa no social-estruturalismo de meados do século XX. Ressalta-se a força da etnografia e da metodologia inovadora dos “casos em processos” (extended case method).
Particularmente, chama atenção a originalidade do uso da metáfora do drama, inspirada na tragédia grega. Na organização do material etnográfico, Turner elabora uma noção de drama social consistindo de quatro momentos: ruptura, crise, ação reparadora e desfecho. Na narrativa de Turner, a vida social se manifesta como um teatro dramático marcado por tensões, contradições e conflitos. Em foco, sete dramas sociais. Detalhadamente, Cavalcanti descreve três deles. Observase um processo estrutural, um sistema em movimento. Membros da aldeia se manifestam como pessoas concretas, personagens singulares.
A sequência dos dramas desemboca no “magnífico capítulo X”, no qual Turner analisa a fase regenerativa de um “culto de aflição” - o ritual do Chihamba. Um rito de cura se apresenta como ação reparadora. Em Schism and continuity, diz Cavalcanti, Victor Turner apresenta “poemas em forma de ação” (p. 42).
No capítulo 2, Símbolo ritual: luzes e sombras no dia social, as atenções se voltam para o Chihamba. Em destaque, o personagem/artefato Kavula, um estranho ser sobrenatural, cujo nome evoca o relâmpago, a chuva, a mandioca e outros grãos, e, ainda, a figura de Mwantiyanvwa, o ancestral originário. Na noite do primeiro dia do rito, por meio da atuação de um adepto sênior, Kavula se apresenta como um palhaço. No dia seguinte, presentifica-se na forma de um artefato ou boneco. Sua morte ritual produz um efeito de cura individual e coletiva. Nas trilhas de Turner, Cavalcanti examina o conceito de símbolo ritual em ação. E mostra como, na obra desse autor, os símbolos podem ser ambivalentes, polifônicos e multivocais.
Na parte final do capítulo, Cavalcanti chama atenção para o diálogo de Turner com a psicologia profunda de Bettelheim, Jung e Freud. Em foco, as propriedades dos símbolos, discutidas por Turner, com inspiração nas análises freudianas do trabalho do sonho. Nos símbolos se encontram elementos inconscientes, suprimidos. Há latência nos símbolos. De acordo com Turner, se a estrutura social se caracteriza como um mascaramento, os ritos de cura, tais como o Chihamba, produzem momentos de revelação. Tentam dizer o indizível. Nos símbolos, sombras se agitam. E a vida se ilumina.
O título do capítulo 3, de Cavalcanti, Do drama à performance, sugere um deslocamento: a virada performativa (performance turn) de Victor Turner. De início, uma etimologia. Performance, do latim formare, “formar, dar forma”. No inglês, perform, “executar, realizar”. No francês, parfourmer, “cumprir, acabar, concluir”.
Em seus últimos escritos, Turner procura esboçar os traços de antropologias da experiência e da performance. Mas, chama atenção a continuidade. Como um leitmotiv de sua obra, retornam os conceitos de drama social, símbolo ritual, liminaridade e communitas.
Acompanhando esse movimento, Cavalcanti retoma o ritual do Chihamba e o personagem/artefato Kavula, narrados no capítulo X de Schism and continuity. Kavula, o ser liminar, prenuncia temas vindouros. “Kavula é performance”, diz Cavalcanti (p. 84). Tem a ver com teatro, disfarce, manipulação de artefato, encenação e eficácia ritual.
Em relação aos últimos escritos de Turner, em finais dos anos 1970 e inícios da década seguinte, Cavalcanti chama atenção para sua natureza exploratória. E, sobretudo, para sua edição e publicação póstuma, que dificulta a leitura: On the edge of the bush (Turner, 1985); The anthropology of performance (Turner, 1987); e “Dewey, Dilthey and drama: an essay in the anthropology of experience” (Turner, 1986). Dos escritos dessa fase, apenas From ritual do theatre (Turner, 1982) foi publicado em vida.
A respeito desses escritos, eu gostaria de sugerir um adendo. Na última fase do percurso intelectual de Victor Turner se detecta um momento de transição, uma espécie de límen. Há uma fragilidade nesses textos, um inacabamento. Ou, mesmo, uma decomposição. Observa-se uma diminuição de vitalidade do trabalho etnográfico. Ao mesmo tempo, percebe-se um renascimento. Tomb and womb (túmulo e útero). Turner se permite correr novos riscos.
Percebe-se a força do deslocamento, enunciado em The ritual process (1969): de uma aldeia ndembu ao chamado mundo ocidental. Em finais dos anos 1970, Turner se depara com o empobrecimento da experiência do límen e dos rituais. Suas atenções se voltam para o florescimento, desde a Revolução Industrial, de outras formas de ação simbólica, chamadas liminoides. Comparadas às formas liminares, as liminoides ocorrem mais às margens dos poderes centrais da vida social. E podem ser mais críticas, lúdicas e subversivas. Abrem-se, com elas, possibilidades de interromper uma espécie de eterno retorno, schism and continuity.
Também se abre, com elas, em meio ao estilhaçamento da experiência, uma multiplicidade de formas de expressão, do ritual ao teatro e aos outros gêneros de performance. Em performance, o contido ou suprimido ganha uma forma de expressão. Da experiência e, particularmente, da articulação que ela proporciona entre passado e presente, no aqui e agora, depende a significação do mundo. A etimologia da palavra “experiência” é reveladora. Assim como a palavra “perigo”, ela deriva do termo indo-europeu per, “aventurar-se, correr riscos”. Performance é uma expressão da experiência, implica correr riscos. Em finais dos anos 1970, em Turner, se encontra uma antropologia em performance.
Um detalhe: no conceito de drama social se manifesta a possibilidade de uma experiência coletiva (mais Erfahrung que Erlebnis), principalmente de communitas. Nos últimos escritos de Turner, como mostra Cavalcanti, o conceito de drama social retorna com força.
Na primeira entrevista que se encontra em apêndice, Roberto DaMatta comenta que é sempre no final que se volta ao início. E relata a surpresa dos discípulos de Turner ao verificar que, nos anos finais, ele só se interessava por teatro. Ele parecia só querer saber de Richard Schechner, o diretor de teatro experimental e fundador do The Performance Group (TPG) em Nova York.
Nesse período final, porém, Turner voltava, sim, ao começo e à infância. Victor Turner é filho de Violet Witter - uma das fundadoras do Teatro Nacional Escocês. O subtítulo do primeiro capítulo de Cavalcanti é revelador: “o teatro adentra a antropologia”. Como nota Cavalcanti, a aparição da noção do ritual em Schism and continuity’ é, de certa forma, inesperada. Em relação ao título de um dos seus últimos escritos, Do ritual ao teatro, o percurso de Turner não deixa de revelar um movimento inverso, surpreendente: do teatro ao ritual. E, depois, do ritual ao teatro.
Na segunda entrevista, um comentário de Yvonne Maggie a respeito da recepção da obra de Turner na antropologia brasileira, nos anos 1970, também chama atenção. Era preciso redescobrir o Brasil. Foi o que ela fez em Guerra de orixá (1975) e outros escritos.
Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti faz parte dessa linhagem. Ela é uma das principais referências em estudos de rituais no Brasil. Realizou pesquisas marcantes sobre o carnaval carioca e o boi-bumbá de Parintins. Em encontros de antropologia e performance, tenho tido o privilégio de ouvir e aprender com as suas ideias e contribuições, sempre instigantes.
Seu livro Drama, ritual e performance: a antropologia de Victor Turner produz um efeito de cura, recompondo uma experiência antropológica. Um livro em performance, uma expressão da experiência. Ao longo do percurso, a autora propicia um encontro com o nosso ancestral antropológico, Victor Witter Turner, uma espécie de Kavula, como ela mesma sugere, um ser liminar capaz de nos surpreender.
REFERÊNCIAS
- Maggie, Yvonne. (1975).Guerra de orixá Rio de Janeiro: Zahar.
- Turner, Victor. (1987). The anthropology of performance New York: PAJ Publications.
- Turner, Victor. (1986). Dewey, Dilthey and drama: an essay in the anthropology of experience. In: Turner, Victor W. & Bruner, Edward M. (eds.). The anthropology of experience. Urbana/Chicago: University of Illinois Press.
- Turner, Victor. (1985). On the edge of the bush Tucson: The University of Arizona Press.
- Turner, Victor. (1982). From ritual do theatre. New York: Performing Arts Journal Publications.
- Turner, Victor. (1969). The ritual process. Piscataway, NJ: Transaction Publishers.
- Turner, Victor. (1957). Schism and continuity in an African society: a study of Ndembu village life Manchester: Rhodes-Livingstone Institute/Northern Rhodesia/Manchester University Press.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
16 Maio 2022 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2021
Histórico
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Recebido
16 Mar 2021 -
Aceito
20 Maio 2021