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CIRCUITOS DE SOLIDARIEDADE: CONSTRUINDO RESPOSTAS COLETIVAS EM MEIO À CRISE* * Este texto se beneficiou de uma discussão promovida na Oficina de Sociologia Econômica e do Trabalho (OSET), do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP), coordenada pela profa. Nadya A. Guimarães. Agradeço aos professores e colegas que estiveram presentes nessa sessão pelos valiosos comentários. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), código de financiamento 001.

SOLIDARITY CIRCUITS: BUILDING COLLECTIVE RESPONSES AMID THE CRISIS

Resumo

As campanhas de solidariedade que aconteceram durante a pandemia da covid-19 no Brasil evidenciaram questões fundamentais para os estudos que exploram a interface entre solidariedade e economia nas ciências sociais. O trabalho busca contribuir com essa temática investigando as relações interpessoais e as práticas econômicas que sustentaram as trocas inseridas nas campanhas de solidariedade de base associativa durante a pandemia. Fundamentada em uma pesquisa etnográfica sobre uma dessas campanhas, argumento que foram as relações baseadas em práticas econômicas solidárias existentes antes da pandemia, que permitiram respostas coletivas emergenciais. Essas relações e práticas que são (re)inventadas e (re)nomeadas, eu chamei de “circuitos de solidariedade”, inspirada no conceito de Viviana Zelizer em Economic Lives (2011Zelizer, Viviana. (2011). Economic Lives: How Culture Shapes the Economy. Princeton, NJ: Princeton University Press.). A dinâmica desses circuitos se mostrou diretamente relacionada com marcadores de crise e fortalecidos pela existência prévia de associações, destacando o papel crucial dos intermediadores na articulação dessas estruturas de médio alcance.

Palavras-chave:
Pandemia; Circuitos econômicos; Vida econômica; Associativismo; Solidariedade

Abstract

The solidarity campaigns during the COVID-19 pandemic in Brazil highlighted fundamental issues for studies exploring the interface between solidarity and economics in the social sciences. The study aims to contribute to this theme by investigating the interpersonal relationships and economic practices that sustained the exchanges within associative-based solidarity campaigns during the pandemic. Grounded in ethnographic research on one of these campaigns, I argue that the relationships based on solidary economic practices established before the pandemic enabled emergent collective responses. These relationships and practices, which are (re)invented and (re)named, I have termed “solidarity circuits”, inspired by Viviana Zelizer’s concept in Economic Lives (2011Zelizer, Viviana. (2011). Economic Lives: How Culture Shapes the Economy. Princeton, NJ: Princeton University Press.). The dynamics of these circuits were related to crisis markers and strengthened by the previous existence of associations, highlighting the crucial role of intermediaries in articulating these medium-reach structures.

Keywords:
Pandemic; Economic circuits; Economic life; Associativism; Solidarity

INTRODUÇÃO

Desde os primeiros meses da pandemia, em paralelo às notícias sobre o aumento do número de casos e mortes, circulavam, entre os mais diversos meios de comunicação, informações e pedidos de ajuda relacionados às ações de solidariedade. Das mobilizações individuais e espontâneas às impulsionadas por movimentos e coletivos sociais, organizações do terceiro setor e de grandes empresas, foram múltiplas as ações e os atores envolvidos. Entre essa diversidade, as mobilizações mais significativas e duradouras estiveram voltadas para a doação de comida, o que revela aspectos particulares da pandemia da covid-19 no Brasil. Este texto se debruça sobre essa “onda de solidariedade”, a partir da experiência de uma campanha de base associativa.

A solidariedade é um tema que desafia a sociologia desde o princípio. Inicialmente, ela foi abordada por Émile Durkheim (1999 [1893]Durkheim, Émile. (1999 [1893]). A divisão do trabalho social. São Paulo: Martins Fontes.) através do problema do vínculo social e suas variações em sociedades “tradicionais” e “modernas”. Entretanto, foi com Marcel Mauss (2018 [1925]Mauss, Marcel. (2018 [1925]). Sociologia e antropologia. São Paulo: Ubu.) que o tema ganhou complexidade teórica e ao mesmo tempo densidade empírica através dos estudos sobre a dádiva. Para Mauss, a dádiva não é um fenômeno desinteressado ou altruísta, ao contrário, ela é reveladora de estruturas e dinâmicas de produção de hierarquias e desigualdades nas sociedades.

Desde a publicação de Mauss, uma série de estudos fizeram avanços significativos no tema. Na antropologia e sociologia econômica, destacam-se trabalhos como de Arjun Appadurai (2008Appadurai, Arjun. (2008). Introdução: mercadorias e políticas de valor. In: Appadurai, Arjun (ed.). A vida social das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural. Niterói, RJ: Eduff, p. 15-88.) e Philippe Steiner (2004Steiner, Philippe. (2004). A doação de órgãos: a lei, o mercado e as famílias. Tempo Social, 16/2, p. 101-128.). O primeiro ofereceu contribuições sobre as formas de circulação da mercadoria e da produção de valor no contexto da globalização (Appadurai, 2008Appadurai, Arjun. (2008). Introdução: mercadorias e políticas de valor. In: Appadurai, Arjun (ed.). A vida social das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural. Niterói, RJ: Eduff, p. 15-88.), enquanto o segundo esteve centrado na importância dos intermediadores nas cadeias de doação cada vez mais longas e internacionalizadas (Steiner, 2004Steiner, Philippe. (2004). A doação de órgãos: a lei, o mercado e as famílias. Tempo Social, 16/2, p. 101-128.). A relação entre economia e solidariedade também foi construída através de teorias que disputam um modelo de organização econômico. As chamadas “economias alternativas” frequentemente recorrem a princípios de solidariedade para propor arranjos econômicos que consideram mais justo. No Brasil, a economia solidária (Singer, 2002Singer, Paul. (2002). Introdução à economia solidária. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo.) é uma representante desse movimento.

Embora haja diferenças consideráveis nessa literatura, a dimensão política da solidariedade não escapa a nenhuma dessas reflexões. Os estudos sobre solidariedade e economia sempre estiveram na interface com as discussões sobre ideologias (socialismo), sistemas de organização estatal (welfare state) e formas de participação política (associativismo). As campanhas de doação de alimentos são excelentes exemplos de como solidariedade, economia e política se entrelaçam na prática; por isso, entender o movimento das ações de solidariedade que aconteceram durante a pandemia no Brasil, pode colaborar para o aprofundamento dessa temática. Afinal, o que essa “onda de solidariedade” nos informa sobre o modo como as pessoas articulam solidariedade e economia nas urgências impostas pelo cotidiano da vida? Partindo dessa questão de fundo, este trabalho busca responder especificamente à seguinte pergunta: quais relações interpessoais e práticas econômicas sustentaram as trocas inseridas nas campanhas de solidariedade de base associativa durante o período da covid-19?

Para responder essa questão, recorro à abordagem relacional de Viviana Zelizer (2011Zelizer, Viviana. (2011). Economic Lives: How Culture Shapes the Economy. Princeton, NJ: Princeton University Press.). No meu entendimento, esse enquadramento permite analisar no mesmo nível a combinação entre relações interpessoais e economia. Segundo a autora, as pessoas trabalham duro para determinar e nomear as relações pessoais e íntimas e os tipos de transações econômicas permitidas entre elas. Um casamento, um namoro, um encontro ou algumas horas com um(a) prostituto(a) provavelmente envolve sexo e dinheiro, mas o modo com que essas coisas são combinadas e significadas é que delimita a forma como essa relação irá se constituir e será nominada (Zelizer, 2009Zelizer, Viviana. (2009). Dinheiro, poder e sexo. Cadernos Pagu, 32, p. 135-157.). Segundo a autora, intimidade e economia operam no mesmo nível prático, embora tenham sido separadas e opostas pela teoria social e econômica. Intimidade, nesse sentido, é entendida, de uma forma ampla, como relações baseadas na confiança, em interações particularizadas, que envolvem informações que não estão publicamente disponíveis (Zelizer, 2009Zelizer, Viviana. (2009). Dinheiro, poder e sexo. Cadernos Pagu, 32, p. 135-157.; 2011Zelizer, Viviana. (2011). Economic Lives: How Culture Shapes the Economy. Princeton, NJ: Princeton University Press.).

Os temas que atravessam este trabalho, como a admissão da insuficiência de comida na casa ou o orçamento doméstico exposto através da doação de dinheiro, serão tomados aqui na esfera da intimidade. Ademais, esses pontos serão tomados como temas que tradicionalmente têm sido associados ao gênero feminino e ao espaço doméstico, e, por isso, marginalizados na teoria social. Assim, esse referencial permitirá entender como as pessoas dão significados, organizam e delimitam práticas econômicas para o que chamam de solidariedade. A aproximação da abordagem com o tema se mostra ainda mais alinhada pelas mãos da própria autora, que recentemente publicou um texto sobre as doações solidárias que aconteceram durante a pandemia (Zelizer, 2022Zelizer, Viviana. (2022). Pandemic Money Puzzles. In: Beermann, Johannes (ed.). The Euro at 20: The Future of Our Money. London: Penguin. p. 466-484.).

O caso empírico que orienta as discussões é a ação local Periferia Viva, realizada na região do Pontal do Paranapanema, extremo oeste do estado de São Paulo. O Periferia Viva foi uma campanha nacional, impulsionada por pessoas vinculadas a movimentos e coletivos populares do espectro político da esquerda que se opunham à gestão da pandemia do governo Bolsonaro. No Pontal do Paranapanema, o Periferia Viva foi realizado pelo Coletivo Cultural Galpão da Lua, pelos núcleos locais do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), do Levante Popular da Juventude, da Consulta Popular, bem como por sindicatos e coletivos (estudantis, feministas) locais. O foco principal da campanha foi distribuir cestas1 1 Destacarei em itálico as palavras com significado endêmico entre os interlocutores da pesquisa. de alimentos agroecológicos para famílias urbanas, produzidas por famílias do MST e financiadas por meio de doações de dinheiro.

Apesar do Periferia Viva ser a porta de entrada para a construção da análise, minha interpretação mobiliza ainda outras duas ações, essenciais para entender o que chamo de “circuitos de solidariedade”. A primeira delas é a Feira da Reforma Agrária de Presidente Prudente. Realizada desde 2017, uma vez por mês, é uma iniciativa do Galpão da Lua em parceria com o MST e a Consulta Popular, capitaneada por Bia2 2 Os nomes citados aqui são fictícios na tentativa de minimizar os riscos de exposição dos sujeitos da pesquisa, conforme acordado com os interlocutores durante a pesquisa de campo. Os nomes das organizações e ações, por sua vez, seguem as nomenclaturas originais, na intenção de evitar um apagamento histórico e garantir o registro de seus feitos. , a principal interlocutora desta pesquisa. A Feira agrega produtores de diferentes assentamentos com uma diversidade de produtos, além disso, conta com a participação de produtores e artesãos urbanos. A segunda ação é o Raízes do Pontal, um projeto de extensão universitária, vinculado ao campus local da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), por meio de uma parceria entre grupos de pesquisa e o MST, que funciona desde 2018. O Raízes do Pontal é um projeto baseado no modelo Comunidade que Sustenta a Agricultura (CSA), e sua principal atividade é a comercialização de cestas de alimentos agroecológicos. Ambas as atividades surgiram em um contexto que os sujeitos identificaram como crise: impeachment da presidenta Dilma Rousseff, corte nas políticas públicas de apoio à agricultura familiar e recessão econômica.

O Periferia Viva surgiu durante a pandemia, em um momento em que a Feira da Reforma Agrária paralisou suas atividades e o Raízes do Pontal precisou fazer adaptações. Meu argumento central é que foram essas ações existentes antes da pandemia, em que práticas econômicas solidárias já existiam, que permitiram a organização de respostas criadas com a urgência necessária. O formato que essa estrutura econômica intermediária ganhou no momento da pandemia foi nomeado pelos sujeitos envolvidos como “campanha”, no entanto, entendo que as ações pré-existentes são variações dessa estrutura. Essas variações entre relações interpessoais, atravessadas por trocas econômicas solidárias, significadas por valores pertinentes a um conjunto delimitado de pessoas, eu chamei de “circuitos solidários”, inspirada no conceito de circuitos de Zelizer (2011Zelizer, Viviana. (2011). Economic Lives: How Culture Shapes the Economy. Princeton, NJ: Princeton University Press.). Analisar essas estruturas me permitiu identificar, entretanto, dois aspectos próprios da dinâmica dos circuitos de solidariedade: (1) o modo como as crises são significadas pelos sujeitos e utilizadas como marcadores-chave na (re)construção de arranjos econômicos; e (2) a pré-existência de um associativismo que fortalece a dimensão organizativa dos circuitos e o papel dos intermediadores nessa articulação.

A pesquisa empírica foi orientada por uma etnografia multimétodos (Feltran & Motta, 2021Feltran, Gabriel & Motta, Luana. (2021). Policía y ladrón. Runa, 42/1, p. 43-64.). Utilizei, como fonte, anotações do caderno de campo, conversas informais, reuniões de organização, entrevistas semiestruturadas e materiais documentais, como atas, planilhas e redes sociais. Todo esse material foi produzido na interface entre o presencial e o virtual. Considero relevante destacar que essa pesquisa não se limita a falar sobre pandemia, ela foi construída e inicialmente desenvolvida durante esse período. Por isso mesmo, as escolhas metodológicas e as temáticas abordadas levam as marcas desse contexto. Comecei a acompanhar a campanha em julho de 2021. Ela havia sido iniciada em março de 2020 e terminaria pouco tempo depois da minha entrada, em dezembro de 2021. Quando a campanha encerrou suas atividades, passei a acompanhar as outras ações, a Feira da Reforma Agrária e o Raízes do Pontal. Entre elas, mantenho uma aproximação maior com a feira, em que me tornei parte do coletivo organizador.

Além desta introdução, o texto conta com mais cinco seções. A seguir, proponho um enquadramento analítico para o modo como vou tratar da relação entre solidariedade e economia. Depois, apresento o Periferia Viva, destacando alguns significados relevantes para a compreensão do caso. As seções seguintes apresentam análises das relações e práticas econômicas que considero centrais: o dinheiro doado e os circuitos de solidariedade. Ao final, apresento uma síntese dos achados.

ENQUADRANDO O PROBLEMA: SOLIDARIEDADE E VIDA ECONÔMICA

A relação entre solidariedade e economia tem sido abordada por diferentes prismas na sociologia. Uma parte significativa dessas investigações é tributária dos ensaios de Marcel Mauss (2018Mauss, Marcel. (2018 [1925]). Sociologia e antropologia. São Paulo: Ubu.) e segue explorando a complexidade da relação entre troca, reciprocidade e dádiva. Entre elas, destacam-se trabalhos já mencionados de Appadurai (2008Appadurai, Arjun. (2008). Introdução: mercadorias e políticas de valor. In: Appadurai, Arjun (ed.). A vida social das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural. Niterói, RJ: Eduff, p. 15-88.) e Steiner (2004Steiner, Philippe. (2004). A doação de órgãos: a lei, o mercado e as famílias. Tempo Social, 16/2, p. 101-128.). Em especial, desde o trabalho sobre doações de órgãos, Steiner (2004Steiner, Philippe. (2004). A doação de órgãos: a lei, o mercado e as famílias. Tempo Social, 16/2, p. 101-128.) tem oferecido uma ampla discussão que entrelaça economia, solidariedade, trocas e mercados. O autor propõe o conceito de dádiva organizacional para explicar as relações de solidariedade estabelecida entre estranhos, em que os intermediadores ganham relevância no processo, permitindo que a troca aconteça sem que doadores e beneficiários se conheçam ou se relacionem diretamente. Essa intermediação funciona como um sistema de “porta” mais do que “pontes”, ou seja, esses atores controlam fluxos de bens, dinheiro e informação, operando um verdadeiro sistema de distribuição de recursos mais do que um sistema de conectores entre dois pontos. A abordagem de Steiner é inovadora pois permite aprofundar as formas de organização da solidariedade mediadas através de escalas de médio e grande alcance, ou seja, aquelas que extrapolam relações de sociabilidade primária.

Por outro ponto de vista, especialmente no Brasil, o debate sobre solidariedade e economia também tem sido evocado pelas chamadas economias alternativas. Entre elas, a mais famosa é a economia solidária, que moveu teorias, movimentos, práticas comerciais e políticas institucionais ao seu redor. Da proposta de Paul Singer (2002Singer, Paul. (2002). Introdução à economia solidária. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo.), às discussões nos fóruns e organizações cooperadas, a economia solidária chegou a se tornar nome de uma secretaria nacional vinculada ao Ministério do Trabalho e Emprego, em 2002, primeiro governo Lula. A pesquisa de Eugênia Motta (2010Motta, Eugênia de Souza M. G. (2010). Trajetórias e transformações no mundo da economia solidária. Tese de Doutorado. PPGAS/Museu Nacional; Universidade Federal do Rio de Janeiro.) investigou as representações, práticas e organizações que se formaram na disputa sobre o que seria essa economia alternativa, revelando a formação de fronteiras flexíveis e significados múltiplos sobre o mundo da economia solidária que busca se consolidar na primeira década dos anos 2000.

Esses dois prismas não exaurem as formas sobre as quais a sociologia tem pensado a relação entre solidariedade e economia, mas apresenta a diversidade de possibilidades que tem se constituído. Nessa perspectiva, este trabalho propõe uma nova aproximação do tema, com isso, busco uma interpretação que ultrapasse dois obstáculos que identifiquei na literatura mencionada. O primeiro está relacionado com a centralidade da dádiva nos estudos sobre solidariedade. Ainda que as investigações tenham feito avanços significativos, o esquema dar-receber-retribuir continua orientando as análises, de modo que limita o enquadramento das trocas solidárias a esse fluxo, estabelecendo quase um sinônimo entre trocas solidárias e dádivas. O segundo obstáculo está relacionado a uma concepção moralista de economia, representado aqui pelas economias alternativas. Essa visão é valorativa e hierarquiza as trocas econômicas, resultado em uma análise moralizante sobre o que a economia deveria ser.

O que eu busco aqui é abordar a relação entre solidariedade e economia através de um novo prisma, privilegiando a abordagem relacional de Zelizer (2011Zelizer, Viviana. (2011). Economic Lives: How Culture Shapes the Economy. Princeton, NJ: Princeton University Press.), que oferece um enquadramento analítico que permite investigar as relações econômicas que se estabelecem no cotidiano da vida comum. Como ela destaca, há vida econômica para além das trocas reguladas, da moeda oficial ou das relações legalmente estabelecidas. É nessa vida econômica, enraizada no cotidiano, que as pessoas estabelecem, avaliam e negociam relações pessoais e intimidade, consolidando circuitos econômicos. Para Zelizer, essa simbiose entre o íntimo e o econômico nega as tradicionais abordagens da economia e da própria sociologia, que buscavam separar essas esferas, ora opondo, ora hierarquizando.

Nesse sentido, ao negar o status corruptivo do dinheiro, a autora trata da constituição das relações interpessoais através das esferas da intimidade e da economia e com isso alcança determinados temas e objetos frequentemente marginalizados pela teoria social e econômica. Seu trabalho pioneiro sobre a produção doméstica do dinheiro é um exemplo de como as relações de gênero são constituidoras da economia (Zelizer, 1997Zelizer, Viviana. (1997). The Social Meaning of Money. Princeton, NJ: Princeton University Press.). Com base em uma pesquisa documental sobre as famílias estadunidenses na virada do século XX, a autora demonstra que o modo como o dinheiro entrava nas casas (salário, renda), era administrado (mesadas) ou alocado (gastos, poupança, investimentos) revelava assimetrias de gênero, classe e raça fundamentais para entender o funcionamento da sociedade naquele contexto. Orçamento doméstico, bem como alimentação e cuidado, são temas tratados por Zelizer (2005Zelizer, Viviana. (2005). The Purchase of Intimacy. Princeton, NJ: Princeton University Press.) a partir da relação entre intimidade e economia na interface com a categoria gênero. Esse arranjo inspira a construção sociológica do objeto de estudo desta investigação.

Segundo Zelizer (2005Zelizer, Viviana. (2005). The Purchase of Intimacy. Princeton, NJ: Princeton University Press.), a busca pela combinação entre o íntimo e o econômico é frequente no cotidiano das pessoas e modo como elas são ajustadas concede sentido e nome próprio a elas. Por exemplo, o tipo de transação econômica que ocorre dentro de um casamento é diferente daquela que ocorre entre amigos, e esse fato é importante para diferenciar os níveis de relações que estabelecemos. Segundo Zelizer (2009Zelizer, Viviana. (2009). Dinheiro, poder e sexo. Cadernos Pagu, 32, p. 135-157.: 142), “as relações são tão importantes que as pessoas trabalham duro para combiná-las com formas apropriadas de atividade econômica e marcadores claros do caráter dessa relação”. O esforço de diferenciar o significado das relações sociais em toda ação econômica, Zelizer (2012Zelizer, Viviana. (2012). How I Became a Relational Economic Sociologist and What Does That Mean? Politics and Society, 60/2, p. 145-174.) chama de “trabalho relacional”. Segundo a autora, para distinguir as relações, as pessoas desenham fronteiras, dão significados, nomes e práticas aceitáveis a elas. Além disso, estabelecem um conjunto de transações econômicas apropriadas a essas relações e demarcam um outro conjunto como inadequadas, por fim, ainda adotam meios de pagamento próprios para essas transações (Zelizer, 2012Zelizer, Viviana. (2012). How I Became a Relational Economic Sociologist and What Does That Mean? Politics and Society, 60/2, p. 145-174.).

O trabalho relacional está imerso nos circuitos econômicos (Zelizer, 2011Zelizer, Viviana. (2011). Economic Lives: How Culture Shapes the Economy. Princeton, NJ: Princeton University Press.). Os circuitos são estruturas de mezzo alcance que combinam de um modo singular atividades econômicas, meios de pagamento, sistemas de contabilidade, relações interpessoais, fronteiras e significados. Esse tipo de estrutura - distinto das firmas, mercados e redes, que estiveram no centro da análise da economia e da sociologia econômica - ajuda a entender relações econômicas inseridas em situações pouco exploradas por essa literatura, como as economias doméstica, informal ou do cuidado. Os circuitos funcionam como arranjos econômicos que constrangem as interações e as trocas e reforçam relações de confiança e reciprocidade. Eles não operam de forma fixa, ou seja, são estruturas abertas, passíveis de negociação e alteração. Segundo Zelizer, circuitos econômicos são caracterizados por cinco elementos: (1) relações sociais delimitadas entre um conjunto de indivíduos específicos; (2) um conjunto definido de transações econômicas com significado compartilhado entre essas pessoas; (3) um sistema de contabilidade que serve como referência econômica e métrica nessa relação; (4) o compartilhamento de significados e valores morais entre os participantes; e (5) fronteiras controláveis que separam membros e não membros (Zelizer, 2011Zelizer, Viviana. (2011). Economic Lives: How Culture Shapes the Economy. Princeton, NJ: Princeton University Press.). Moralidades e ideologias são partes fundamentais na construção desses circuitos.

Segundo Zelizer (2011Zelizer, Viviana. (2011). Economic Lives: How Culture Shapes the Economy. Princeton, NJ: Princeton University Press.), os circuitos são respostas que surgem nas interseções entre os mercados capitalistas e as necessidades urgentes das pessoas, já que em muitas situações de necessidades e desejos da vida pessoal os mercados falham. Ainda que não esteja claro em que situações específicas os circuitos surgem, sua emergência parece estar fortemente associada a períodos críticos em que as pessoas enfrentam problemas coletivos de confiança e falta de autoridades centrais que apresentem acordos resolutivos (Zelizer, 2011Zelizer, Viviana. (2011). Economic Lives: How Culture Shapes the Economy. Princeton, NJ: Princeton University Press.). Nesse contexto, as pessoas criam, negociam e renomeiam a forma como relacionam contatos pessoais e íntimos com atividades econômicas. O modo como vivenciamos a pandemia no Brasil foi marcado por um contexto de risco, inseguranças e incertezas, o que, segundo Zelizer, configura um cenário favorável para o desenvolvimento de circuitos; no entanto, como apresentarei a seguir, é a própria constatação da crise que impulsiona os sujeitos a estabelecerem essas novas práticas econômicas, fortalecendo associações previamente estabelecidas. Na seção seguinte, apresento o caso do Periferia Viva no Pontal do Paranapanema.

O PERIFERIA VIVA NO PONTAL DO PARANAPANEMA

Ainda nas primeiras semanas de pandemia, quando as informações e prescrições eram muito incertas, Bia - uma mulher com um pouco mais de trinta anos e trabalhadora da cultura - recebeu uma mensagem de uma amiga que relatava fortes sintomas gripais. Ela recomendou à amiga que fizesse uma sopa com muito alho para aliviar os tais sintomas e que se mantivesse isolada, mas recebeu uma resposta inesperada. Ela descreveu esse momento da seguinte maneira:

Ai, eu sei que essa pessoa não tinha nem alho em casa! Tipo, faltavam várias pequenas coisas. Estava para ir ao mercado, não tinha uma compra e faltava uma comida. Aí, nesse meio tempo, dessa pessoa muito próxima de mim, eu fiquei sabendo de outras três mulheres numa situação muito parecida. Aí, eu pensei: vamos fazer marmita. Aí, eu vou fazer comida e a gente vai entregar a marmita pronta (Bia, Coletivo Cultural Galpão da Lua, organização do Periferia Viva e da Feira da Reforma Agrária).

No dia seguinte, já não eram quatro, mas dez mulheres que precisavam de ajuda. Bia concluiu que seria incapaz de fazer comida para tantas pessoas, já que, além das próprias mulheres, também havia a preocupação com crianças e outros dependentes. Daí a ideia das cestas de alimentos como uma solução para garantir comida para mais pessoas. Desde esse momento, Bia já relatava a preocupação de assegurar uma variedade de produtos que fugisse das “cestas básicas que vêm prontas”, como ela descreveu. Cebola, alho, frutas, legumes e verduras já eram o foco inicial.

Determinada a executar o plano, Bia contactou Marcus - a quem descreveu como um “mentor financeiro”. Marcus é responsável por arrecadar doações financeiras que dão suporte à Feira da Reforma Agrária de Presidente Prudente, iniciativa promovida por Bia em parceria com o MST e a Consulta Popular. A rede de pessoas articulada em torno da feira foi chave para Bia estruturar o plano. Além de Marcus e os doadores, os feirantes foram peças importantes nesse arranjo. Depois de receber algumas mensagens de texto dos assentados que participavam da feira, relatando preocupações com o escoamento da produção durante aqueles primeiros dias da pandemia, ela avaliou que era preciso agir em um duplo sentido:

Então, tipo assim, o campo e a cidade estavam sofrendo. Desespero! O que que eu vou fazer? O que que eu vou comer? Como que eu vou pagar minhas contas? Aí, eu falei: - Marcus, então a gente faz assim, já que a gente vai comprar verdura, legume fresco, a gente compra o máximo que a gente conseguir do campo, do pessoal do assentamento e, o que sobrar, a gente ainda compra alguma coisa da cidade (Bia, Coletivo Cultural Galpão da Lua, organização do Periferia Viva e da Feira da Reforma Agrária).

Em seguida, Bia e alguns colegas percorreram de van o “caminho dos assentados da feira”. Depois de comprar alimentos das famílias que viviam nos lotes e receber algumas doações dessas mesmas famílias e de outros lugares, eles tinham conseguido juntar uma quantidade considerável de comida, o que resultou em mais de quarenta cestas. Essa foi a primeira ação de solidariedade promovida por esse grupo no contexto da pandemia. Depois desse dia, Bia e seus colegas nunca mais voltaram aos assentamentos para comprar comida. Nas ações seguintes, novas parcerias foram firmadas e o alimento passou a chegar até a cidade através dos próprios produtores. O Periferia Viva funcionou durante dois anos com entregas de cestas periódicas. Inicialmente, quinzenais, e, nos meses finais da campanha, mensais.

Do ímpeto inicial de ajudar uma amiga, Bia impulsionou o que viria a ser um arranjo socioeconômico. As ajudas configuram formas de cuidado informal, comum na relação de amizade, vizinhança e parentesco entre mulheres, especialmente em contexto de vulnerabilidade e pobreza (Guimarães & Vieira, 2020Guimarães, Nadya Araujo & Vieira, Priscila Pereira Faria. (2020). As “ajudas”: o cuidado que não diz seu nome. Estudos Avançados, 34/98, p. 7-24.). O que parece ser diferente, no contexto da pandemia, é a escala da ajuda, ou, dito de outra forma, do cuidado. A emergência de um cuidado em nível coletivo ou comunitário, voltado para o problema da produção da vida nos núcleos familiar e doméstico, é aqui representado pela centralidade na distribuição e acesso à comida. Ao elevar o problema à dimensão coletiva, Bia e seus parceiros deram início a um circuito que envolveria redes pessoais, negociações econômicas e a emergência de fronteiras identitárias.

Desde a primeira ação, havia a doação de alimentos industrializados presentes nas tradicionais cestas básicas que circulam pelo país, mas o foco central da campanha sempre foi o alimento fresco, preferencialmente vindo da produção orgânica e/ou agroflorestal dos assentamentos da reforma agrária. A circulação de alimentos frescos estava orientada ao menos por duas motivações. Primeiro, a identificação e atribuição moral do que era o necessário, ou seja, do que as famílias pobres urbanas precisavam naquele momento; e, em segundo lugar, uma dimensão propriamente política. Quando Marcelo - professor, com um pouco mais de trinta anos e um dos principais organizadores do Periferia Viva e da Feira da Reforma Agrária - relatou as motivações iniciais da campanha, ele destacou: “Pô, nós estamos no Pontal do Paranapanema. Se tem uma coisa que aqui tem é a luta pela terra e a produção de alimentos, né?”. O Pontal do Paranapanema, localizado no extremo Oeste do estado de São Paulo, é a região com a maior quantidade de assentamentos da Reforma Agrária no estado, e foi palco de importantes conflitos pela terra durante as décadas de 1980 e 19903 3 Para saber mais ver MST... (2021) e Rabello e Heck (2022). . Circular alimentos entre os lotes rurais e os bairros urbanos era intencionalmente uma ação política. A fala de Marcelo exemplifica isso:

E a gente falou, meu, bora olhar para essa produção que existe nos assentamentos e vamos também viabilizar, porque essa galera também não tinha como vender, não tinha como comercializar. E não é a gente que vai salvá-los, mas vamos começar a pensar nessa política. [...]. Como é que a gente faz um diálogo, que seja dialogar o alimento, mas dialogar a produção saudável e essas coisas ao mesmo tempo? Ah, vamos tentar construir alguma campanha de solidariedade, e aí começou a rolar várias, né? (Marcelo, Consulta Popular, organizador do Periferia Viva e da Feira da Reforma Agrária).

Os organizadores assumiram de fato o papel de intermediadores na relação econômica. Como apontado por Steiner (2004Steiner, Philippe. (2004). A doação de órgãos: a lei, o mercado e as famílias. Tempo Social, 16/2, p. 101-128.), os intermediadores exercem funções ligadas à arrecadação, controle e distribuição de recursos, e, assim, operam uma verdadeira organização da solidariedade. O que fica mais evidente no caso do Periferia Viva é que, nesse processo, eles valoram e dão significados específicos à doação. São os organizadores que imprimem o sentido político à doação, seja no momento da arrecadação ou da distribuição, mas é fundamental lembrar que a negociação com doadores e donatários, além de diferente, é desigual. Para Steiner (2004Steiner, Philippe. (2004). A doação de órgãos: a lei, o mercado e as famílias. Tempo Social, 16/2, p. 101-128.; 2017Steiner, Philippe. (2017). A dádiva organizacional: dádiva à distância e circuitos de troca. Tempo Social, 19/1, p. 23-43.), olhar para esses intermediadores é abrir a caixa-preta da organização que se estabelece através das cadeias de doação. Na perspectiva deste trabalho, os processos culturais e simbólicos mobilizados na negociação entre doadores, intermediadores e donatários é um ponto-chave para compreender a produção do que os atores chamam de solidariedade.

Se o tipo de comida que circula através da campanha não é uma questão banal, tampouco seria o dinheiro. Marcus exercia um papel central nessa articulação. Segundo Bia, “ele é um mentor porque ele conhece as pessoas que vão ajudar financeiramente, ele consegue fazer essa rede financeira”. Marcus - aposentado, com cerca de sessenta anos - já era responsável pela tarefa de arrecadar doações na Feira da Reforma Agrária. Contatos profissionais, colegas do partido político e do sindicato e uma rede pessoal são suas principais fontes de colaboração. Como Marcus descreveu: “Eu peguei o meu leque de relacionamentos, aí comecei a mandar, aí onde caiu, pegou! Alguns são muito solidários mesmo, fazem com convicção. Outros tem que pegar no pé”. Confiança, valores políticos e ideologias em comum sustentam essas relações. Marcus é um elo entre os doadores e as ações empreendidas por Bia. Além da rede de arrecadações mobilizada por Marcus, outros dois mecanismos de doação estavam disponíveis no Periferia Viva: a transferência bancária via pix e um site especializado em financiamento coletivo.

Além dos alimentos e do dinheiro, também circulavam, entre as pessoas envolvidas no Periferia Viva, símbolos que representavam os ideais da campanha. Sempre esteve presente entre os organizadores a preocupação de que as cestas não fossem mais uma entre outras que as famílias podiam receber naquele momento. Uma das soluções para essa questão foi enviar recados que transmitiam simbolicamente as concepções morais e ideológicas daqueles que promoviam a campanha. Disso são exemplos a Figura 1.

Figura 1
Carta e fanzine anexadas às cestas distribuídas pelo Periferia Viva no Pontal do Paranapanema

Os recados conferiam significados e diferenciação para as cestas. Se o tipo de comida que circulava já revelava um aspecto político e moral da campanha, os recados deixavam esses elementos mais evidentes. Temas como a vacinação, o Dia Internacional da Mulher, o Dia da Consciência Negra e denúncias contra o governo Bolsonaro estiveram presentes nesses recados. Campanhas informativas e grupos de comunicação popular se espalharam pelas periferias e comunidades durante a pandemia (Fonseca, 2022Fonseca, Mariana de Souza. (2022). Construção de narrativas em contextos de crise: coletivos de comunicação das periferias na pandemia de covid-19. Teoria e Pesquisa, 31/2, p. 3-27.; Menezes et al., 2021Menezes, Palloma Valle et al. (2021). Painéis comunitários: a disputa pela verdade da pandemia nas favelas cariocas. Horizontes Antropológicos, 27/59, p. 109-128.). Destaca-se o fortalecimento da narrativa da ausência do Estado nos diversos territórios periféricos, ao mesmo tempo que se aponta para a consolidação de uma linguagem própria das periferias, marcada por uma reafirmação da identidade (Fonseca, 2022Fonseca, Mariana de Souza. (2022). Construção de narrativas em contextos de crise: coletivos de comunicação das periferias na pandemia de covid-19. Teoria e Pesquisa, 31/2, p. 3-27.). A ideia do “nós por nós”, que aparece na Figura 1, foi frequentemente utilizada pelas campanhas de base associativa e representa os movimentos de reconhecimento e proteção que caracteriza a solidariedade desses grupos.

A representação de “nós” era recorrentemente acionada e ressignificada no Periferia Viva. Inicialmente, a ação foi articulada para atender redes pessoais de Bia que envolviam, além de amigas, colegas de trabalho. Bia se define como trabalhadora da cultura, promovendo eventos culturais e atuando em espetáculos de rua, e, no início da pandemia, também trabalhava como professora temporária em escolas públicas. Artistas e professores se tornaram o foco da campanha; contudo, não demorou muito tempo para que o “nós” fosse rearticulado, incluindo os militantes (estudantes, religiosos e trabalhadores que se colocavam no campo da esquerda). A campanha estava focada em atender “os nossos”, como Bia me disse, e isso incluía ela própria nas primeiras semanas. Ao longo do processo, a campanha também foi agregando outras famílias, considerando sempre esse trabalho que aproximava e distanciava determinadas pessoas através de fronteiras simbólicas e sociais definidas e articuladas pelo grupo (Lamont & Molnár, 2002Lamont, Michèle & Molnár, Virág. (2002). The Study of Boundaries in the Social Sciences. Annual Review of Sociology, 28, p. 167-195.).

Alimentos, dinheiro e símbolos circulavam entre doadores, organizadores, produtores e beneficiários criando, fortalecendo e ressignificando laços de confiança e solidariedade através da produção de valores políticos, morais e ideológicos. Assim, relações interpessoais e práticas econômicas se firmavam em torno das cestas. Na seção seguinte, busco explorar as transações e contabilidades que operacionalizavam a circulação desses bens na campanha.

PRÁTICAS ECONÔMICAS E O DINHEIRO SOLIDÁRIO

O movimento em torno das cestas exigiu de Bia e seus(suas) companheiros(as) a necessidade de definir regras sobre o que poderia circular, em quais sentido e com que frequência. Na prática, isso significou o estabelecimento de um sistema de transação econômica: a organização recebia doações de alimentos e dinheiro, mas a distribuição era exclusivamente de alimentos; o dinheiro seria prioritariamente gasto com a compra das cestas agroecológicas, mas também podia ser utilizado para comprar comida industrializada e custear a infraestrutura da campanha (por exemplo, combustível para os carros que realizam as entregas); as cestas distribuídas deviam ser acompanhadas por um elemento simbólico (os recados); no início a frequência de distribuição era quinzenal, depois, ficou mais espaçada, com um intervalo de trinta dias; já as doações para o financiamento podiam ser periódicas ou eventuais, e os recursos podiam chegar através de pontos de coleta, transferências bancárias ou site de financiamento coletivo. Esta seção busca desvendar as camadas morais e simbólicas que sustentavam as relações em torno das cestas, centradas especialmente no fluxo do dinheiro.

A cada rodada do Periferia Viva, quinze cestas do Raízes do Pontal eram adquiridas e transformadas em vinte e três cestas para doação. Com isso, as cestas da campanha de solidariedade tinham um formato próprio, que também podiam variar a depender das famílias que iriam receber. Essa prática foi desenvolvida ao longo do tempo em paralelo ao estreitamento da relação de intimidade com as famílias. Esse estreitamento se tornou um critério fundamental para a decisão sobre o tamanho da cesta, bem como a manutenção ou interrompimento da doação. Em outras situações, essa relação íntima já existia, dado que parte dos beneficiários eram próximos à organização da campanha, quando não faziam parte da organização. Nessa relação, novos termos eram estabelecidos, limites renegociados entre intimidades e transações econômicas no sentido de “bem ajustá-las” (Zelizer, 2011Zelizer, Viviana. (2011). Economic Lives: How Culture Shapes the Economy. Princeton, NJ: Princeton University Press.). Não por isso, essas relações excluíam as hierarquias e desigualdades nas negociações.

As pesquisas de Zelizer (1997Zelizer, Viviana. (1997). The Social Meaning of Money. Princeton, NJ: Princeton University Press.) sobre o significado social do dinheiro ajudam a entender essa configuração. Em resposta às teorias econômicas que argumentam a favor da fungibilidade e neutralidade do dinheiro, as investigações de Zelizer sobre os gastos domésticos e sobre a associação entre dinheiro e relações íntimas demonstraram como moralidades e significados culturais impactam na forma como as pessoas administram seus orçamentos. Como gastar, com quem e quanto são questões que as pessoas lidam cotidianamente quando precisam administrar seus orçamentos; esse processo a autora chamou de “destinação de dinheiro” e mais tarde consolidou a ideia no conceito de “destinação relacional”, ou seja, as pessoas não tomam decisão sobre o dinheiro considerando apenas escolhas racionais que maximizem os interesses pessoais; ao contrário, elas tomam as decisões em relação às outras pessoas, orientadas por moralidades e práticas culturais (Bandelj et al., 2017Bandelj, Nina et al. (ed.). (2017). Money Talks: Explaining How Money Really Works. Princeton, NJ: Princeton University Press.).

Apesar de Zelizer estar centrada na questão do dinheiro, argumento que esse enquadramento também ajuda a entender as transações em torno das cestas. Quem receberia a doação e o quanto receberia de alimento era uma decisão que exigia da organização um trabalho que mobilizou moralidades (a predileção por famílias com crianças), e, especialmente no Periferia Viva, o compartilhamento de valores políticos e ideológicos (a prioridade passou a ser a militância). Assim, o que esse caso demonstra é que ainda que o conceito de “destinação relacional” se aplique ao dinheiro, não se limita a ele. No meu entendimento, esse conceito ajuda igualmente a compreender situações mais gerais de destinação de recursos, como no caso das cestas.

Embora as cestas fossem adquiridas em troca de dinheiro, as pessoas vinculadas ao MST descreviam aquela tarefa como mais uma ação de solidariedade do movimento. Gabriel - militante do MST, com pouco mais de vinte anos - falou em diversos momentos sobre o movimento sempre fazer campanhas de solidariedade, mas isso não excluía a financeirização e a articulação mais ampla da ação, como ele me explicou: “Como a gente ia fazer uma ação de solidariedade [durante a pandemia]? A gente dependia de ajuda da sociedade civil, mas seria sobretudo dos parceiros que a gente já tinha constituído, que davam essa garantia aquisitiva, né?”. Os parceiros a que Gabriel se refere são aqueles que já adquiriam as cestas do Raízes do Pontal, os financiadores da Feira da Reforma Agrária e os tradicionais apoiadores do MST, como partidos políticos e associações de classe e sindicatos. Para os produtores, o dinheiro recebido em troca das cestas não tinha um valor monetário e lucrativo, era um dinheiro solidário.

Essa concepção de dinheiro também atravessava a relação com os doadores, em que a dimensão política fica ainda mais evidente, afinal, tanto o Raízes do Pontal como a Feira da Reforma Agrária são atividades que explicitam seu caráter político, pautando temas historicamente vinculados à esquerda, como a reforma agrária. Assim como os organizadores da campanha que operavam em duplo sentido, doando comida para a periferia urbana e garantindo a compra da produção das famílias do MST, os financiadores também garantiam uma dupla doação. O dinheiro solidário financiava a produção de famílias dos assentamentos e a doação para famílias das periferias urbanas.

Com a ideia de dinheiro solidário, quero destacar como moralidades, valores, ideologias e sentimentos orientam a “destinação do dinheiro” (Zelizer, 1997Zelizer, Viviana. (1997). The Social Meaning of Money. Princeton, NJ: Princeton University Press.) nas campanhas de solidariedade. No Periferia Viva, especificamente, tratava-se de concepções ligadas à ideia de solidariedade de classe, apoio à reforma agrária e oposição ao governo Bolsonaro, centrada em um perfil de pessoas que se descreviam como simpatizantes e afiliadas à ideologia da esquerda e do campo popular. É possível que campanhas ligadas às igrejas ou às associações construam e negociem outros significados para o dinheiro doado. O que é interessante enfatizar é que nessa configuração, o valor monetário, o princípio do lucro ou do autointeresse importa menos, já que o foco está sobre a circulação do dinheiro e das trocas econômicas como manutenção das relações sociais e das organizações de mezzo alcance, como as campanhas de solidariedade.

O dinheiro solidário, nesse sentido, apresenta uma dinâmica própria, estruturada por hierarquias e desigualdades e conectada por moralidades que buscam dar sentido ao seu próprio percurso. No caso do Periferia Viva, o ponto de partida era o dinheiro que saía das finanças domésticas em um contexto de produção de valores políticos e ideológicos, através de ideias representadas na gramática dos sujeitos como classe trabalhadora, luta e reforma agrária. Marcelo, além de organizador, era também um dos doadores. Ao explicar a sua condição, ele retrata um pouco mais sobre esta etapa do fluxo de dinheiro.

Então, vamos juntar dinheiro com quem? Com os companheiros que podem contribuir. Então, ia eu lá, eu sou funcionário público, então, o meu salário continua pingando na conta. Eu tinha condições de tirar duzentos, trezentos reais por mês, cem [reais], depende qual mês era, para bancar uma parte das cestas. Os companheiros que continuavam recebendo salário, que já tinham esse compromisso, que eram de esquerda, depositavam dinheiro para gente. Professores da Unesp, sindicatos... (Marcelo, Consulta Popular, organizador do Periferia Viva e da Feira da Reforma Agrária).

Assim, ao se tornar fundo monetário da campanha, o dinheiro solidário passava a ser operado por uma lógica coletiva. O dinheiro era prioritariamente gasto com a compra das cestas, mas uma outra parte era alocada no combustível dos carros que faziam as entregas, materiais de apoio (embalagem, papel sulfite, tinta para impressora etc.) e, em algumas ocasiões, na compra de alimentos industrializados. Nessa etapa, o dinheiro estava vinculado ao sentimento de pertencimento coletivo (solidariedade de classe) e esperança (construção de um novo futuro), impulsionado por ideais como trabalho de base e política da solidariedade. Nessa etapa, o dinheiro doado era instrumento para realizar a luta.

O dinheiro doado chegava até as famílias beneficiadas pela campanha na forma de alimento. Nessa etapa, ele se tornava orçamento doméstico (na forma de produto) de um novo domicílio. Parte considerável desse grupo estava vinculado à própria militância, por isso, também compartilhavam ideias como classe trabalhadora e luta. Entre beneficiários mais distantes das organizações políticas, ideias como povo ressoavam com mais força na conexão com o grupo, por isso, as cestas representavam o pertencimento e o reconhecimento a um determinado grupo.

A Figura 2 ilustra o fluxo do dinheiro solidário através da campanha Periferia Viva. Destaco dois pontos chaves para a análise da dinâmica desse dinheiro. Primeiro, a estrutura material de desigualdades que ele revela: de um domicílio que retira uma parte do orçamento para transferir dinheiro (doadores), ele se torna rendimento (produtores), ferramenta política (organizadores) e orçamento doméstico (beneficiários). Depois, destaco como o fluxo ganha sentido através da produção comum de valores políticos e ideológicos entre os grupos. Assim, ainda que com ênfases diferentes, são ideias como solidariedade de classe e luta política que alimentam nexos nessa dinâmica.

Figura 2
Fluxo do dinheiro na campanha Periferia Viva

A Figura 2 apresenta como diferentes dimensões no nível material e simbólico dão sentido e significado ao dinheiro solidário ao longo do fluxo da campanha. Ainda que diferente da forma como Ariel Wilkis (2017Wilkis, Ariel. (2017). The Moral Power of Money: Morality and Economy in the Life of the Poor. Stanford, CA: Stanford University Press.) constrói a ideia de peças do quebra-cabeça do dinheiro, esse fluxo é suficiente para explorar o que o autor está chamando de dinâmicas do dinheiro4 4 Ariel Wilkis (2017) utiliza a ideia de peças do dinheiro para se referir a diferentes modalidades de representação do dinheiro. A organização do livro reflete essa ideia, já que cada capítulo nomeia uma forma de representação do dinheiro: emprestado, ganhado, doado, político, sacrificado e salvaguardado. , ou seja, como “hierarquias, tensões e conversões” em torno do dinheiro envolvem negociações de status e poder. A Figura 2 ilustra, ainda, a centralidade dos “organizadores” como intermediadores no sistema desenvolvido pela campanha (as flechas estão sempre conectadas a essa caixa). Como tratado anteriormente, os intermediadores são peças chaves nos sistemas de doação das sociedades contemporâneas (Steiner, 2017Steiner, Philippe. (2017). A dádiva organizacional: dádiva à distância e circuitos de troca. Tempo Social, 19/1, p. 23-43.), e, no caso do Periferia Viva, eles exerciam a função de arrecadação e distribuição de recursos, além de produtores de significados e valores aos bens doados.

Na seção seguinte, argumento que a circulação de alimento, dinheiro e símbolos, através de determinadas transações e contabilidades, enquadradas por valores particulares, revelam a emergência de um circuito de solidariedade.

CONSTRUINDO RESPOSTAS COLETIVAS: OS CIRCUITOS DE SOLIDARIEDADE

Era novembro de 2021 quando recebi um convite para colaborar no que viria a ser a última entrega das cestas do Periferia Viva em Presidente Prudente. Nosso ponto de encontro era o Galpão da Lua, um antigo depósito da Ferrovia Paulista S.A. (Fepasa), atualmente ocupado pelo coletivo cultural presidido por Bia. Fui a primeira a chegar. Em seguida, Cláudio, militante do MST e um dos assentados responsável por produzir os alimentos, encostou sua picape próximo a uma das portas. Juntos, começamos a descarregar as caixas de alimentos em direção ao galpão.

Depois de descarregar o carro e organizar o espaço iniciamos a montagem das cestas. Nesse tempo, dois jovens se juntaram ao trabalho. Bruno, doutorando na Unesp, pesquisador e simpatizante do MST, e Gabriel, estudante de graduação da Unesp, uma das novas lideranças do MST na região e irmão de Cláudio. Aos poucos, as caixas, organizadas por tipos de alimentos, se esvaziavam e davam forma a um novo produto, composto por um punhado diverso de alimentos. Verduras, frutas e legumes variados, posteriormente embalados em sacos plásticos transparentes, formavam as cestas. A Figura 3 ilustra esse processo.

Figura 3
Produção das cestas no Galpão da Lua

Não demorou muito para que eu me desse conta de que aquela não era apenas uma atividade do Periferia Viva. Além das cestas destinadas à doação através da campanha de solidariedade, naquele dia, também montamos cestas que seriam comercializadas através do Raízes do Pontal. Naquele dia, no mesmo espaço, com os mesmos produtos, montamos cestas que foram comercialmente vendidas, e cestas que, apesar de serem compradas com dinheiro, estavam vinculadas à lógica de doação. O trabalho de diferenciar as cestas, os preços, os beneficiários e toda a operacionalização das trocas joga luz sobre o trabalho relacional exercido pelos sujeitos envolvidos na campanha.

Para Zelizer (2012Zelizer, Viviana. (2012). How I Became a Relational Economic Sociologist and What Does That Mean? Politics and Society, 60/2, p. 145-174.), o trabalho relacional envolve formas de diferenciar, valorar e nomear as relações pessoais. Esse trabalho era realizado constantemente no processo de formatação dinâmico do Periferia Viva. Quando Bia e sua amiga tiveram a conversa que resultou na primeira entrega de doações de cestas, negociaram ali novos acordos sobre aquela relação. Ajustar as relações pessoais não exclui as transações econômicas ou as assimetrias de poder, mas delimita quais serão permitidas. Essa negociação se repetiu, por exemplo, nos acordos entre Bia, Marcelo e Marcus, que reajustaram as regras estabelecidas em torno da relação que mantinham na Feira da Reforma Agrária. Isso significou que Bia deixou de ser apenas organizadora, e se tornou também beneficiária da ação, quando recebia as cestas. Marcelo, além de organizador, passou a ser um dos principais doadores, e Marcus tinha um novo argumento para acionar a rede de doadores: não se tratava de apoiar apenas um projeto político, mas também uma campanha de combate à fome em um momento de emergência. Essas negociações se estendiam às demais relações em torno das cestas.

As renegociações e o estabelecimento de novas regras para as práticas que seriam permitidas entre aquelas pessoas resultaram na configuração de um novo circuito econômico: o Periferia Viva. Os circuitos funcionam como arranjos sociais que constrangem as interações, comunicações, trocas e o comportamento dos e entre os indivíduos, mas não de forma fixa, eles são estruturas abertas, passíveis de negociação e alteração (Zelizer, 2011Zelizer, Viviana. (2011). Economic Lives: How Culture Shapes the Economy. Princeton, NJ: Princeton University Press.). Nesse sentido, o próprio Periferia Viva passou a ser um circuito produtor de um significado muito particular de periferia entre aquelas pessoas. O nome da campanha foi definido nacionalmente e reproduzido na ação local, contudo, os bairros urbanos onde moravam os beneficiados pela campanha não estavam circunscritos a uma periferia geográfica ou socialmente delimitada. Os domicílios estavam espalhados pela cidade. Centro e periferia são categorias desafiadas por essa configuração. O que conectava os domicílios da campanha eram as redes pessoais e o compartilhamento de valores engendrados na produção das trocadas, estabelecidos em um contexto de comunidade. Esses elementos eram responsáveis, inclusive, por conectar esses domicílios aos lotes dos assentamentos rurais, originando uma configuração muito própria do que entendiam por periferia e estabelecendo laços particulares do que era uma comunidade.

Considero, assim, que tratar o Periferia Viva como um circuito zelizeriano permite olhar para os laços sociais que se formam e se negociam através de práticas econômicas. No Periferia Viva, as relações se estabeleciam em torno da circulação das cestas, as pessoas se articulavam, mobilizavam recursos e realizavam trocas com base em regras negociadas entre um grupo delimitado de pessoas. Essas regras representavam um conjunto definido de trocas entre alimento, dinheiro e símbolos políticos que davam sentido àquelas relações pessoais. Essas trocas, por sua vez, eram gerenciadas por um sistema de transação e contabilidade específico que organizavam a circulação do dinheiro e da comida entre determinadas pessoas. Esse complexo arranjo econômico era sustentado pela produção comum de sentimentos e valores entre os sujeitos vinculados à campanha, simbolizados, especialmente, na ideia de solidariedade de classe e luta política. A moralidade que sustentava toda essa articulação também era responsável por delimitar fronteiras entre membros e não membros da campanha, definida através da identidade de classe trabalhadora. A Figura 4 ilustra esse argumento.

Figura 4
Circuito econômico do Periferia Viva

Pensar o Periferia Viva como um circuito apresenta ganhos que não se limitam a ele. Por isso, argumento que o Periferia Viva é parte de um circuito mais amplo de solidariedade, que apresenta uma configuração temporal e espacial dinâmica. Essa dinâmica, vale ressaltar, é definida por marcadores de crise e fundamentada em articulações associativas. Assim, a ação de solidariedade na pandemia só foi possível porque um circuito de trocas já estava estabelecido previamente. Os projetos de comercialização Raízes do Pontal e Feira da Reforma Agrária permitiram que as redes entre as pessoas fossem rearticuladas e, mais importante, que os valores políticos e as ideologias que davam significados a elas fossem mobilizados em torno de uma nova atividade econômica. As falas a seguir, sustentam essa interpretação.

A gente só conseguiu dar continuidade ao projeto [Periferia Viva] por mais de um ano e meio, porque a gente já tinha uma... já tinha esse vínculo. Aí, essa rede, eu falo de rede, eu tento trabalhar na minha mamografia como rede, por quê? Só para explicar. A gente, no Pontal, já tinha, antes da pandemia, já tinha ações de solidariedade, mas a gente baseava sobretudo na sessão simbólica de comercialização, que era a feira do Galpão da Lua e há cinco anos, há cinco anos, o CSA [Raízes do Pontal] (Gabriel, MST, organizador do Periferia Viva e do Raízes do Pontal).

Então, antes de identificar Periferia Viva, campanha de solidariedade, a gente já tinha essa trajetória da feira (Marcelo, Consulta Popular, Organizador do Periferia Viva e da Feira da Reforma Agrária).

As relações e práticas econômicas que já eram desenvolvidas no Raízes do Pontal e na Feira da Reforma Agrária permitiram que o Periferia Viva fosse articulado desde o início da pandemia. Em especial, foi o vínculo de confiança que já havia sido estabelecido entre pessoas e organizações que sustentou a nova articulação. A garantia de que o dinheiro seria usado para os fins anunciados, de que a produção seria comprada e de que a comida chegaria até as casas, era dada pela confiança estabelecida previamente à pandemia, mas renegociada, rearticulada e renomeada durante o novo período de crise.

Assim, ainda que o Raízes do Pontal e a Feira da Reforma Agrária sejam nomeados como projetos de comercialização por suas organizações, eles estão baseados em práticas econômicas solidárias. Na concepção original, por exemplo, o Raízes do Pontal previa a doação de uma cesta de alimentos agroecológicos a cada 26 cestas vendidas. Essa diretriz nem sempre é seguida nesses termos, mas, em todas as entregas das cestas vendidas, há uma sobra de produção que é doada, geralmente, para casas de estudantes da Unesp. Ademais, há um princípio de solidariedade que guia os próprios consumidores das cestas, reforçando ideias e valores políticos. Assim como no Periferia Viva, há uma dimensão valorativa e política na comercialização dessas cestas, por parte de quem vende, de quem compra e de quem intermedia.

A Feira da Reforma Agrária, por sua vez, conta com um grupo de pessoas que financia os custos da infraestrutura, especialmente o combustível dos carros responsáveis por trazer a produção dos assentamentos. Esse princípio de solidariedade não é isento de conflitos e negociações. São constantes os diálogos sobre quem deve ser beneficiado por essas doações e quais seriam os valores justos. Embora se trate de um projeto centrado na comercialização de mercadorias, a solidariedade é acionada como uma forma de impulsionar o projeto e financiar gastos.

Dessa forma, é possível afirmar que a campanha de solidariedade e as outras ações articuladas a ela estão inseridas em um circuito de trocas mais amplo baseado em práticas econômicas solidárias. Os circuitos solidários podem ser entendidos, em um primeiro momento, como circuitos econômicos no sentido atribuído por Zelizer (2011Zelizer, Viviana. (2011). Economic Lives: How Culture Shapes the Economy. Princeton, NJ: Princeton University Press.), ou seja, arranjos intermediários que surgem na interseção entre as falhas do mercado e do Estado e as urgências da vida cotidiana, e se refazem em meio a ausência de respostas centrais que orientam a condução coletiva.

Meu argumento, no entanto, vai além. Entendo que esse contexto de falhas e urgências ganha relevância quando é acionado pelos próprios sujeitos como um momento de crise. Não só o Periferia Viva surgiu em uma crise, as outras duas ações também tiveram origem em um contexto especialmente crítico para os sujeitos e organizações envolvidos nesse circuito. Como eles mesmos pontuaram, foram o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, os cortes nas políticas públicas de apoio à agricultura familiar e a recessão econômica que criaram o contexto oportuno para a articulação das ações. Em determinada conversa, Gabriel, militante do MST, chegou a enfatizar: “Desde o golpe da Dilma de 2016 tudo piorou, né? Os assentamentos conseguem ter sua produção, mas também estavam passando por uma grande dificuldade, né? Econômica, de produção assim, mas eu acredito que o pessoal da área urbana foi quem mais sofreu com tudo isso [a pandemia]”.

Zelizer (2011Zelizer, Viviana. (2011). Economic Lives: How Culture Shapes the Economy. Princeton, NJ: Princeton University Press.) se questiona sobre em quais situações os circuitos começam e terminam. Essa pergunta é realmente difícil de ser respondida, contudo, o caso analisado mostra que contextos de crise são realmente significativos para a dinâmica dos circuitos. Além das concepções abstratas, dos modelos teóricos ou das narrativas, as crises existem como experiência e como categoria conceitual presente no cotidiano das pessoas. Crises expõem fragilidades das estruturas econômicas e levam pessoas a recriar meios de vida. Nessa perspectiva, mais do que entender as crises como um recurso narrativo, é válido entender o que as crises produzem concretamente e o que pessoas fazem em relação a ela (Vereta-Nahoum, 2021Vereta-Nahoum, André. (2021). Expanding the Sociological Imagination of Crisis: Theorizing Crisis Beyond Moral Indictments. Washington, DC: American Sociological Association.) - o início das mobilizações analisadas aqui sempre são vinculados a um contexto de crise para os sujeitos e organizações envolvidos.

Decretar a crise parece permitir, nesse sentido, um rearranjo das organizações solidárias. Um mecanismo que funciona como um diagnóstico que pressupõe uma possibilidade de cura para o problema identificado, para remetermos às origens dessa terminologia (Koselleck & Richter, 2006Koselleck, Reinhart. (2006). Futuro passado. Rio de Janeiro: Contraponto.). Assim, os circuitos, como uma forma de arranjo econômico, se realizam em momentos de incerteza radical (crises), em que as pessoas são levadas a um exercício constante de valoração do que e quem importa (valor) e necessitam pensar as possibilidades de futuro para si e para as futuras gerações (esperança). O intercruzamento entre as categorias crise, valor e esperança permite uma interpretação sobre as formas econômicas desenvolvidas no cotidiano da vida comum (Narotzky & Besnier, 2014Narotzky, Susana & Besnier, Niko. (2014). Crisis, Value, and Hope: Rethinking the Economy: An Introduction to Supplement. Current Anthropology, 55/S9, p. S4-S16.).

Não menos importante, a análise do caso destacou a relevância das relações associativas pré-existentes à pandemia. Através das trocas baseadas nos circuitos de solidariedade, este trabalho destacou a configuração de uma forma de associativismo que parece não ter sido devidamente notada até agora. Pesquisas sobre as organizações periféricas já vinham sendo produzidas recentemente no Brasil, no entanto, enfatizavam os movimentos culturais e identitários (D’Andrea, 2013D’Andrea, Tiaraju P. (2013). A formação dos sujeitos periféricos: cultura e política na periferia de São Paulo. Tese de Doutorado. PPGS/Universidade de São Paulo.; Moutinho; Alves & Carmo, 2016Moutinho, Laura et al. (2016). “Quanto mais você me nega, mais eu me reafirmo”: visibilidade e afetos na cena negra periférica paulistana. Revista Tomo, 28, p. 1-27.). O que o novo contexto revela é uma capacidade política e organizacional desses coletivos, novos e antigos, responderem rapidamente a outras demandas (Lourenço, 2022Lourenço, Joyce Louback. (2022). “Nem tudo é perdido, nem tudo é ruim”: as articulações do coletivo Vozes da Rua para o enfrentamento à pandemia da covid-19 em Juiz de Fora, MG. Mediações-Revista de Ciências Sociais, 27/1, e44589.; Carmo, 2022Carmo, Milena Mateuzi. (2022). A fome não espera: a luta de mulheres nas periferias de São Paulo durante a pandemia covid-19. Vibrant, 19, e19908.; Menezes et al., 2021Menezes, Palloma Valle et al. (2021). Painéis comunitários: a disputa pela verdade da pandemia nas favelas cariocas. Horizontes Antropológicos, 27/59, p. 109-128.). Essa capacidade está relacionada a uma forma de fazer política no cotidiano que coloca novas questões para os estudos sobre cidadania e associativismo e cuidado em sua dimensão coletiva (Jupp, 2022Jupp, Eleanor. (2022). Care, Crisis and Activism: The Politics of Everyday Life. Bristol: Bristol University Press; Policy.). Ademais, o caso do Periferia Viva também acrescenta uma camada de complexidade a esses estudos, já que desloca o olhar das periferias dos grandes centros urbanos e joga luz às formas de organização presente em outros territórios. A clássica articulação entre urbano e rural é ressignificada através dos circuitos que renomeiam as relações sociais, políticas e econômicas.

A relevância das associações na articulação dos circuitos mostra também a importância das organizações nesse tipo de estrutura econômica. Quando falamos em circuitos de solidariedades, estamos falando de uma estrutura de alcance intermediário que, ao mesmo tempo, pressupõe uma organização de nível intermediário. O papel das organizações nas trocas solidárias já havia sido destacado por Steiner (2017Steiner, Philippe. (2017). A dádiva organizacional: dádiva à distância e circuitos de troca. Tempo Social, 19/1, p. 23-43.), embora não tivesse sido devidamente articulado aos circuitos econômicos. A análise mostrou que a organização funciona como um intermediador na arrecadação e distribuição de recursos, bem como na produção de valores em comum.

Apesar das particularidades, as três ações mostram diferentes faces do circuito de solidariedade. Ambos articulam comida, dinheiro e política através de uma lógica sustentada na solidariedade e no compartilhamento de valores políticos e ideológicos. No Raízes do Pontal, eles assumem a configuração de um CSA. Na Feira da Reforma Agrária, o formato de um centro comercial, e, no Periferia Viva, as vestes de uma doação. Nos três casos, repetem-se pessoas, mercadorias e moralidades, no entanto, o sentido dado a cada um deles e as transações e contabilidades que orientam as trocas, apresentam suas especificidades. Nesses circuitos, as pessoas criam, renomeiam e dão novos significados que permitem a produção da vida em contextos de crise.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A experiência das campanhas de solidariedade que aconteceram durante a pandemia da covid-19 no Brasil possibilitaram aprofundar o conhecimento sociológico produzido na interface entre solidariedade e economia. Este trabalho buscou responder quais são as relações interpessoais e as práticas econômicas que sustentaram as trocas inseridas nessas campanhas. Baseada na análise da campanha Periferia Viva, desenvolvida na região do Pontal do Paranapanema, pude constatar que foram práticas como o dinheiro solidário e as relações associativas pré-existentes à pandemia que sustentaram as ações emergenciais durante a crise da covid-19. Essas práticas e relações, eu chamei de “circuitos de solidariedade”. Esses circuitos mostraram ter relação direta com contextos de crise e com a capacidade organizativa de associações previamente existentes. Essas duas dimensões estavam fortemente orientadas por concepções valorativas e políticas.

Assim, os circuitos de solidariedade se mostraram resultado de um contexto de crise em que a organização coletiva oferece respostas criativas e valorativas às formas de produção da vida. No caso do Periferia Viva, as bandeiras políticas se voltaram para o problema da fome. Esse tipo de mobilização parece apontar novos horizontes para um tipo de associativismo que disputa uma forma de fazer política enraizada nas demandas do cotidiano (Jupp, 2022Jupp, Eleanor. (2022). Care, Crisis and Activism: The Politics of Everyday Life. Bristol: Bristol University Press; Policy.). É exatamente essa politização das necessidades para a produção da vida que destacam a dimensão coletiva e comunitária do cuidado. Estudos futuros podem colaborar nesse sentido, aprofundando o entendimento sobre as dimensões do cuidado comunitário e as formas de organização associativa nas periferias e populações vulneráveis no Brasil.

Por enquanto, o que é possível afirmar é que as campanhas desenvolvidas durante a pandemia no Brasil parecem ter jogado luz sobre a clássica temática solidariedade e econômica, enfatizando ainda mais seus aspectos políticos. Entender como esse tema se configura no cotidiano das pessoas dota a sociologia de capacidade para responder às questões postas em um mundo pós-pandêmico.

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  • *
    Este texto se beneficiou de uma discussão promovida na Oficina de Sociologia Econômica e do Trabalho (OSET), do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP), coordenada pela profa. Nadya A. Guimarães. Agradeço aos professores e colegas que estiveram presentes nessa sessão pelos valiosos comentários. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), código de financiamento 001.
  • 1
    Destacarei em itálico as palavras com significado endêmico entre os interlocutores da pesquisa.
  • 2
    Os nomes citados aqui são fictícios na tentativa de minimizar os riscos de exposição dos sujeitos da pesquisa, conforme acordado com os interlocutores durante a pesquisa de campo. Os nomes das organizações e ações, por sua vez, seguem as nomenclaturas originais, na intenção de evitar um apagamento histórico e garantir o registro de seus feitos.
  • 3
    Para saber mais ver MST... (2021MST em Paranapanema (2021, 28 out.). Memória Globo. Disponível em: Disponível em: https://memoriaglobo.globo.com/jornalismo/coberturas/mst-em-paranapanema/noticia/mst-em-paranapanema.ghtml . Acesso em: 3 maio 2024.
    https://memoriaglobo.globo.com/jornalism...
    ) e Rabello e Heck (2022Rabello, Diógenes & Heck, Fernando (2022, 14 jul.). Há 32 anos, o MST fazia a primeira ocupação de terra no Pontal do Paranapanema. MST. Disponível em: Disponível em: https://mst.org.br/2022/07/14/ha-32-anos-o-mst-fazia-primeira-ocupacao-de-terras-no-pontal-do-paranapanema/ . Acesso em: 3 abr. 2023.
    https://mst.org.br/2022/07/14/ha-32-anos...
    ).
  • 4
    Ariel Wilkis (2017Wilkis, Ariel. (2017). The Moral Power of Money: Morality and Economy in the Life of the Poor. Stanford, CA: Stanford University Press.) utiliza a ideia de peças do dinheiro para se referir a diferentes modalidades de representação do dinheiro. A organização do livro reflete essa ideia, já que cada capítulo nomeia uma forma de representação do dinheiro: emprestado, ganhado, doado, político, sacrificado e salvaguardado.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    01 Nov 2023
  • Revisado
    21 Jan 2024
  • Aceito
    01 Abr 2024
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