Open-access NOVAS FORMAS DE RELACIONAR AUTORIDADE E SOLIDARIEDADE: QUESTÕES TEÓRICAS E EMPÍRICAS*

Resumo:

O artigo combina discussão teórica com análise empírica, em um esforço para discutir mudanças em curso na teoria e na prática. Tomando ideias e ações como componentes entrelaçados dos processos sociais, focaliza-se uma mudança intelectual ampla e uma inovação institucional empírica como fenômenos que se espelham. No nível teórico, aborda-se a tendência a conceber a sociedade de uma forma que difere do cânone vigente até há bem pouco, argumentando que o ressurgimento da sociedade civil no discurso público, a ascensão de novos movimentos sociais e a difusão de ideais cosmopolitas são alguns dos indícios de transformação que exigem dos cientistas sociais novas lentes teóricas. No nível empírico, considera-se o mundo das organizações não governamentais ilustrativo da nova imagem da sociedade. Sugere-se que a elevação de tais organizações à condição de parceiro ou de alternativa para os mecanismos de autoridade sinaliza uma nova forma de enquadrar as relações entre Estado e sociedade.

Palavras-chave: Solidariedade e autoridade; Estado; Mercado; Sociedade; Organizações não governamentais

Abstract:

The article combines both a theoretical discussion and an empirical analysis in an attempt to deal with ongoing changes in theory and in practice. Taking ideas and actions as interwoven components of social processes, I discuss a broad intellectual change and an empirical institutional innovation as phenomena that mirror each other. At the theoretical level, I look at the tendency to approach society in ways that differ from old established canons. I contend that the resurgence of civil society in the public discourse, the rise of new social movements, the emergence of cosmopolitan ideals are some of the indications of transformations that have demanded new theoretical lenses for social scientists. At the empirical level, I focus on the world of Non-Governmental Organizations as something that somehow illustrates the new image of society. I suggest that the elevation of such organizations to the condition of either partners or alternatives to authority mechanisms point to a new way of framing the relationships between state and society.

Keywords: Solidarity and authority; State; Market; Society; Non-governmental organizations

As profundas mudanças que o mundo experimentou nas últimas três ou quatro décadas apresentam para nós, sociólogos, grandes desafios intelectuais e políticos. O mundo, indubitavelmente, sempre enfrentou crises e passou por transformações. É claro também que as ciências sociais em geral entendem esses fatos como desafios. É, porém, igualmente verdadeiro que, em momentos específicos, a sociedade passa por pontos de inflexão para os quais modelos convencionais de compreensão parecem inadequados, dando assim espaço para sentimentos de ruptura e descontinuidade. Reconhecer, por exemplo, a economia como dimensão distinta é algo que ocorreu somente após o surgimento de uma noção segundo a qual as esferas pública e privada da vida social tinham suas diferenças. Em certo sentido, o próprio processo de fragmentação das ciências sociais em disciplinas especializadas está ligado a desafios histórico-culturais diante dos quais os antigos conceitos teóricos pareciam inadequados ou demasiadamente limitados (Elias, 1984).

Ao longo deste artigo, examino um desafio contemporâneo específico, particularmente saliente para aqueles que, como eu, foram treinados na tradição clássica da sociologia histórica, relacionado aos padrões de entendimento da sociedade e de suas formas básicas de organização. A meu ver, há mudanças conceituais recentes na sociologia que respondem a transformações atuais em processos sociais objetivos e subjetivos. Ao mesmo tempo, concordo com Somers & Gibson quando sustentam que "a teoria social é tanto história e narrativa quanto é metateoria" (1995: 45). Segundo insistem, "toda teoria pressupõe uma questão anterior que seu desenvolvimento visa responder - a própria teoria, portanto, já representa um momento de intervenção no processo narrativo da construção de conhecimento" (Somers & Gibson, 1995: 45).

Apresento primeiramente uma discussão teórica e, depois, uma breve análise empírica, visando salientar transformações simultâneas em curso na teoria e na prática. Entendendo ideias e ações como componentes entrelaçados dos processos sociais, discuto uma ampla mudança intelectual e uma inovação institucional empírica como fenômenos que se espelham. No nível teórico, questiono a tendência a conceber a sociedade de formas que diferem dos cânones vigentes até há bem pouco. Sustento que o ressurgimento da sociedade civil no discurso público, a ascensão de novos movimentos sociais e a emergência de ideais cosmopolitas são alguns dos indícios de transformações que impõem a necessidade de novas lentes teóricas aos cientistas sociais. Ao mesmo tempo, porém, não ignoro que, ao responderem a mudanças sociais, os sociólogos também contribuem para a formação de um novo entendimento da vida social.

No nível empírico, concentro-me no mundo das organizações não governamentais (ONGs) como algo que, de certo modo, ilustra a nova imagem da sociedade. Proponho que a elevação de tais organizações à condição de parceiro ou de alternativa para os mecanismos de autoridade sugere uma nova forma de enquadrar as relações entre Estado e sociedade. Embora organizações voluntárias, iniciativas filantrópicas e outros movimentos de solidariedade não sejam novidade, há algo de novo quando as organizações sociais são percebidas como manifestações sociais vis-à-vis ao Estado ou ao mercado.

Não é meu propósito aferir se as ONGs ou outras entidades civis estão efetivamente incrementando a solidariedade social. Ao combinar reflexão teórica e investigação empírica, meu objetivo não é pôr à prova uma hipótese. Proponho-me a estudar as ONGs porque, da perspectiva de uma sociologia do conhecimento, tomo como dado que a solidariedade social enquanto tal se tornou um foco pertinente de análise, da mesma forma que autoridade pública e interesses do mercado têm, desde há muito, constituído perspectivas analíticas legítimas. Utilizando dados de uma pesquisa empírica feita no Brasil, examino certas características básicas de uma amostra de ONGs a fim de sugerir algumas questões de pesquisa que acredito serem úteis ao mapeamento dos novos termos de interação entre Estado, mercado e sociedade.

A imagem do mundo social que vem surgindo nas últimas décadas constitui uma transformação cultural expressiva, tendo um impacto significativo sobre a constituição de novos atores sociais. Esses últimos, por sua vez, afetam a forma como a sociedade é retratada. Não é meu propósito sugerir que essa ou aquela influência seja mais importante do que outra. Pelo contrário, enfatizo o impacto mútuo que está em jogo entre essas duas dimensões de análise. Também gostaria de chamar a atenção que conceitos são produtos culturais e, portanto, fatores contextuais os afetam profundamente. Tal constatação significa que as constantes tentativas de redefinir conceitos expressam nossa historicidade: ao buscarmos dar conta das mudanças experimentadas pela sociedade, estamos ao mesmo tempo modelando o futuro ou influenciando a reconstrução da sociedade, como mencionado anteriormente. Nesse sentido, a teoria sociológica responde a preocupações cognitivas e também morais.

MUDANÇAS NO ESPELHO DA SOCIEDADE

A notável aceleração de processos globais e o ressurgimento surpreendente do liberalismo tiveram, entre outras múltiplas consequências, um impacto na desconstrução das formas como se costumava compreender a sociedade, criando assim outros desafios para as ciências sociais. Na verdade, sob o rótulo genérico da globalização, o mundo está passando por transformações econômicas, políticas, sociais e culturais tão rápidas e abrangentes que ainda faltam definições e conceitos claros para o que vem ocorrendo. Presos no redemoinho de mudanças empíricas e intelectuais, nós, cientistas sociais, por vezes vivenciamos uma situação quase anômica, já que nossos instrumentos e conceitos básicos para organizar ideias, formular hipóteses e elaborar proposições teóricas nos dão sinais de inadequação ou insuficiência.

Esse desconforto é comum aos sociólogos do norte e do sul, tanto em países menos afluentes quanto nos mais prósperos. As peças básicas do novo quebra-cabeça sociológico são as mesmas para uns e para outros. Contudo, há também diferenças contextuais óbvias, sugerindo, desse modo, a conclusão que não importa quão global seja o mundo nem quão fluida seja a modernidade, Estados nacionais ainda são muito relevantes, pois contribuem para conferir sentido às maneiras como os problemas e suas soluções são formulados em um ou em outro espaço sociogeográfico (Reis, 2004; Axtmann, 2004). Em outras palavras, o modo como as pessoas percebem as mudanças profundamente afetado por suas experiências históricas e pelo modo como estavam acostumadas a pensar a sociedade em que vivem e, ainda, suas perspectivas futuras. No entanto, como quer que seja, na medida em que se leva em consideração tal contexto, essa condição faz de todos companheiros cosmopolitas de uma mesma aventura. Somos todos observadores contextualmente condicionados e, em certo sentido, mais e mais comparativistas.

A mudança conceitual a que me refiro certamente não tem relevância direta para algumas áreas da sociologia. É, porém, suficientemente abrangente para afetar diversas subáreas da disciplina. Gostaria de chamar a atenção para a mudança no estatuto teórico da solidariedade social que, implícita ou explicitamente, teve lugar nos discursos leigos e nos sociológicos. Até há pouco, era possível ver mecanismos de autoridade e de interesse como formas de organizar a sociedade e garantir a solidariedade. Entretanto, em tempos recentes, a solidariedade e a própria sociedade são cada vez mais vistas como instância adicional, como outra dimensão lógica que deve ser levada em consideração como componente analítico equivalente à autoridade do Estado e aos interesses do mercado. Whose Keeper?, o título sugestivo do livro de Wolfe (1989), resumiu bem o sentimento crescente segundo o qual autoridade e interesses de mercado não dispõem de recursos suficientes para resolver os problemas de organização social.

A sociologia histórica clássica ensinou que a sociedade contemporânea dependia, sobretudo, de dois instrumentos básicos para sua organização: recursos de autoridade e mecanismos de troca baseados em interesse. Em outras palavras, é de costume pensar na sociedade organizada em estruturas de autoridade - sendo o Estado a principal - e em estruturas de troca - sendo o mercado a mais óbvia na sociedade moderna. É comum igualmente pensar nas estruturas de solidariedade como derivadas de interesses materiais ou ideais comuns. Nessa tradição de análise sociológica, aprende-se a pensar a sociedade como agrupamento de interesses materiais e de ideais que dependem de mecanismos de autoridade e de mercado para sua organização, bem como para alcançar metas específicas (Bendix, 1964).

Como Weber (1978: 927) observou, uma situação de mercado não é uma comunidade, mas constitui, sim, uma base possível para uma ação comunitária. Mesmo se considerarmos os antagonismos estruturais, a solidariedade pode se manifestar entre trabalho e capital, compradores e vendedores, produtores e consumidores, desde que as partes envolvidas compartilhem um interesse comum, que é o próprio êxito da troca em questão. Interesses geram não apenas competição, mas também interdependência. Assim, a autoridade legítima cria uma relação entre rei e súdito, entre lordes e camponeses, entre governos e cidadãos.

Em suma, a perspectiva de análise vigente na sociologia considerava que os recursos de Estado e mercado constituíam os instrumentos básicos com os quais a sociedade contemporânea contava para se organizar. Esses dois recursos típicos eram vistos como os instrumentos que produzem a ordem social, ainda que essa ordem envolva opressão e exploração, tal como enfatizado na tradição teórica marxista.

Entendendo a sociedade como fundamento substantivo, a perspectiva clássica considera o repertório de recursos disponíveis aos governos, aos partidos, às empresas e aos grupos de interesse mecanismos instrumentais a serem usados para organizar a solidariedade, impor a ordem e avançar interesses. Nessa perspectiva, o Estado nacional se manifesta como um bem-sucedido amálgama histórico de autoridade com solidariedade. Graças a um processo cultural que levou a certa naturalização do Estado-nação, a sociedade se tornou equivalente à nação; e a nação, a fonte da legitimidade do Estado (Reis, 1998b).

Em outras palavras, historicamente, a formação e a consolidação do Estado-nação acarretaram uma fusão peculiar: de um lado a obediência à autoridade estatal; de outro, a concordância espontânea com esta, derivada de um sentimento de pertencimento conferido aos indivíduos pela nacionalidade. Nesse quadro político-cultural, o Estado nacional veio a ser percebido não só como o processo histórico europeu, mas também como desenvolvimento natural da sociedade moderna. As pessoas se acostumaram a pensar em sociedades e em nações como equivalentes, ambas circunscritas ao território dos Estados-nação. Nesse contexto, a cidadania nacional se tornou o tipo ideal da moderna identidade coletiva. O Estado-nação bem-sucedido deveria ser capaz de transformar a cidadania no principal identificador de uma coletividade ou de uma "sociedade", ao passo que nações se tornavam sinônimos de sociedades.

O impacto do Estado-nação como ideologia foi avassalador no mundo em desenvolvimento. Tornou-se incontestável que a ideia de um direito fundamental à autodeterminação que inspirou a descolonização não se referia a comunidades de qualquer outra natureza senão aos povos como membros de Estados-nação. Outros grupos de solidariedade foram subestimados, quando não abertamente denunciados como obstáculos ao progresso. As expectativas de crescimento econômico, desenvolvimento e modernização se confundiam com ideias que mesclavam em combinações variáveis recursos de autoridade com mercado. Na perspectiva dos ativistas políticos, reformas e revoluções constituíam meios que possibilitavam o emprego eficiente do mercado ou da autoridade. Entre estudiosos e técnicos observa-se uma perspectiva semelhante. Uma análise da literatura clássica sobre desenvolvimento dos anos 1950 e 1960 revela um padrão bastante claro: as receitas para o crescimento eram, basicamente, planos para o uso eficiente de iniciativas do mercado ou da autoridade. A solidariedade não constituía um recurso instrumental naqueles planos, mas simplesmente a matéria "natural" da qual é feita a sociabilidade.

A literatura especializada reconheceu que sentimentos de solidariedade podiam ser até mesmo restritivos e causar divisões entre tribos, clãs e grupos étnicos ou religiosos. Contudo, no parecer de alguns autores, esses sentimentos sempre existiram como um tipo de fundamento residual que une as pessoas e, ao mesmo tempo, muitas vezes as impede de tomar decisões racionalmente planejadas. Foi apenas em décadas recentes que novas imagens da vida social e planos para transformá-la substituíram o modelo convencional por um novo que considera comunidade e solidariedade elementos suscetíveis a iniciativas racionais, não importa se as denominamos capital social, confiança, associativismo ou se usamos noções similares. A ideia segundo a qual, assim como os mecanismos de autoridade e mercado, os recursos societais podem ser planejados racionalmente para alcançar metas específicas encontra paralelo no renascimento da sociedade civil no discurso público.

Resgatada do passado após um longo período de esquecimento e até de desprezo declarado, a sociedade civil ressurge, quase sempre associada ao lado bom do mundo, como um componente virtuoso da vida coletiva (Alexander, 1998; Arato & Cohen, 1992; Keane, 1988a, 1988b; Pérez-Díaz, 1993). O retorno da "sociedade civil" ao discurso cotidiano revela um fato interessante: embora a expressão adquira significados bem distintos de acordo com o contexto, sempre transmite a ideia que se trata de forças sociais saudáveis, aptas a refrear os excessos da autoridade ou do mercado (Van Rooy, 1998). Como observou Hall (1995: 2), a sociedade civil se tornou "a um só tempo um valor social e um conjunto de instituições sociais". É bem evidente que o conceito pretende transmitir a ideia de uma reação ao mal-estar político ou econômico em contextos muito diferentes se observarmos que a sociedade civil se tornou epítome da democracia em ex-países comunistas, bem como em antigas ditaduras capitalistas estatais na América Latina. Em ambos os contextos, em combinação com o conceito da cidadania, a sociedade civil substitui velhos lemas no discurso democrático. Assim, por exemplo, enquanto anteriormente, mesmo em alguns círculos acadêmicos, a noção de cidadania foi vista como "mistificação burguesa", na era pós-bipolar tornou-se uma ideia redentora, um bem altamente valorizado. É fácil perceber que agora qualquer imagem positiva da vida social enfatiza o papel dos cidadãos ativos na revitalização da sociedade civil, a fim de compensar as deficiências tanto do Estado quanto do mercado.

Ao mesmo tempo que o clamor por uma sociedade ativa se torna cada vez mais forte, pode-se observar sinais claros que demonstram que a imagem e o papel dos atores do mercado e do Estado estão experimentando mudanças significativas. A ideia da responsabilidade social corporativa, que assumiu tanta importância no mundo empresarial, é um bom indício de que um novo código moral está ganhando notoriedade (Carroll, 1999; Garriga & Melé, 2004; Hemingway & Maclagan, 2004; Zadek, 2004). A nova moralidade do mercado foi interpretada de modos diferentes. Para alguns, é sobretudo uma estratégia de marketing, ou seja, emula uma solidariedade falsa entre fornecedores e o mercado consumidor, manipulada pelos primeiros. Para outros, a nova sensibilidade social dos executivos é uma espécie de regresso natural à ação voluntária diante do recuo estatal no que tange aos programas sociais sob a pressão de forças neoliberais. Para o que pretendo neste artigo, não importa provar se estas ou outras hipóteses sobre a ascensão da responsabilidade social corporativa são verdadeiras ou não. Gostaria, simplesmente, de chamar a atenção para o fato de as soluções convencionais às quais a sociedade moderna havia se acostumado para o provimento de bens sociais passarem a ser questionadas. A meu ver, o fato de o Estado compartilhar provisões de assistência social com outros modelos que garantem solidariedade ainda não recebeu a devida atenção dos sociólogos.

Da mesma forma que a responsabilidade social corporativa se torna mais destacada, a adoção de princípios de mercado dentro das estruturas de autoridade ou, dito de outra forma, as exigências impostas em nome de um novo tipo de administração governamental (new public management doctrine) que observamos em diferentes partes do mundo, sugerem que elementos típicos do mercado têm permeado o Estado. Governos devem se comportar como firmas bem-administradas e firmas devem assumir funções de assistência social: tais são valores tão atuais quanto a ideia segundo a qual a sociedade civil deve compensar as deficiências de recursos do Estado e do mercado, como dito anteriormente.

A fim de decifrar o significado profundo desse tipo de revolução cultural que põe em questão os significados convencionais de autoridade, mercado e solidariedade, as agendas da sociologia precisam lidar com as mudanças em andamento partindo de múltiplos ângulos. O que pretendo fazer em seguida é explorar, de modo preliminar, uma das questões que considero relevantes para esse tipo de agenda. Focarei a atenção em um dos novos atores sociais na sociedade civil, especificamente nas chamadas ONGs. Meu propósito aqui é delinear uma imagem geral desse tipo de ator e, nesse processo, refletir sobre algumas questões que sua presença e atuação inspiram. Mais precisamente, ao analisar um conjunto de ONGs no Brasil, procuro esboçar seu perfil e, sobretudo, formular perguntas de pesquisa que possam nos ajudar a lançar luz sobre suas estruturas e os papéis que desempenham.

NOVOS ATORES EM CENA

A redescoberta da sociedade civil em décadas recentes encontra eco em uma nova onda de associações voluntárias, movimentos sociais, estratégias para criar capital social, reflexões sobre fontes de confiança social e outros fenômenos semelhantes (Anheier & Themudo, 2002; Della Porta & Tarrow, 2005; Fernandes, 1994; Keck & Sikkink, 1999; Khagram, Riker & Sikkink, 2002). Entendo esses desenvolvimentos como manifestações das mudanças profundas no modo como a sociedade vê a si mesma e como vê seus meios básicos de organização, conforme discutido anteriormente. O que todos eles têm em comum é a ênfase nos recursos de solidariedade como distintos da autoridade estatal ou dos interesses baseados no mercado. Os novos rótulos que descrevem os atores da sociedade civil - ONGs, terceiro setor, setor solidário, entre outros - apontam claramente para meios alternativos ao Estado e ao mercado. Espera-se que os atores da sociedade civil providenciem ingredientes cruciais à vida social, algo que, ou inexiste, ou é fornecido de modo inadequado pela autoridade tradicional e pelos mecanismos de mercado.

Esses desenvolvimentos precisam ser lembrados para se entender a importância que as chamadas ONGs vieram a adquirir no mundo inteiro (Clayton, 1996; Clarke, 1998; Fowler, 1997; Landim, 1988; OECD, 1988; Salamon & Anheier, 1996; Wapner, 1995). Para alguns, essas organizações são a consequência natural do enfraquecimento dos Estados nacionais causado pelo desafio da globalização. Para outros, são antes uma expressão da impaciência da sociedade com as formas tradicionais de participação. Alguns enxergam esses novos atores como virtuosos, como sinal positivo do fortalecimento societal. Outros já os veem como o lado perverso do neoliberalismo que exonera o Estado de suas obrigações sociais, que exige filantropismo e converte direitos legítimos em dádivas caritativas.

Não importam as explicações para as origens das ONGs, que, a despeito de suas implicações ambíguas, se propagaram e se tornaram uma realidade verdadeiramente global. Mais importante do que identificar a motivação por trás da propagação das ONGs é explorar até que ponto podem ser vistas como expressão da mudança na percepção social sobre os mecanismos básicos da organização societal. É também crucial analisar as consequências atuais desse tipo de desenvolvimento para a organização social e suas possíveis consequências a longo prazo. Portanto, não tomo partido da vasta literatura dedicada à celebração das virtudes ou à acusação dos vícios do terceiro setor, das iniciativas filantrópicas e das ONGs. Tampouco darei, por ora, atenção à representação ideológica que essas organizações fazem de si mesmas. Meu propósito será limitado à indicação de algumas informações sistemáticas sobre a estrutura e o funcionamento das ONGs no Brasil a fim de identificar possíveis pontos de partida para pesquisas mais detalhadas sobre mudanças na interação entre sociedade e Estado. Ao observar as ONGs como ilustração das mudanças tanto culturais quanto institucionais que vêm ocorrendo, estou, em certa medida, tomando-as como proxy da sociedade civil, embora plenamente ciente de que elas não esgotam o universo da sociedade civil.

É importante levar em consideração que, no contexto dos países latino-americanos, a propagação das ONGs sinaliza um desvio considerável da visão centrada no Estado que prevaleceu durante a maior parte do século XX. Na verdade, tanto a literatura sobre desenvolvimento quanto as estratégias políticas adotadas no antes chamado Terceiro Mundo se baseavam na suposição de que a responsabilidade de promover o crescimento econômico, estimular a modernização social e promover a inclusão social cabia aos Estados nacionais. Independentemente de sua inspiração socialista ou capitalista, os modelos de desenvolvimento conferiam ao Estado a responsabilidade de impor a racionalidade econômica. Nos países em que a receita era o capitalismo estatal, o setor governamental não só agiu como investidor estratégico na criação de condições adequadas para o capital privado, mas também era ele mesmo um ator no jogo do mercado (Stepan, 1978). Além disso, a responsabilidade de providenciar assistência social era conferida aos recursos da autoridade. Mesmo que a assistência social tenha sido compreendida como sujeita ao arbítrio da autoridade paternal em vez de ser reconhecida como direito legítimo, a ideologia prevalecente atribuía a responsabilidade pela proteção social ao governo. É verdade que a caridade inspirada pela religião sempre foi evidente. No contexto latino-americano, porém, os modernizadores religiosos faziam parte da liderança ativa que preconizava um desenvolvimento social sob a tutela do Estado.

No caso do Brasil, a partir da década de 1930, o Estado ocupava o papel-chave no modelo de crescimento adotado. Tanto sob regimes ditatoriais quanto sob regimes democráticos, as empresas estatais constituíam a espinha dorsal dos processos de desenvolvimento, e o capitalismo estatal era considerado o modelo mais legítimo para superar o subdesenvolvimento e promover a inclusão social (Martins, 1976; Reis, 1998a). Durante a ditadura militar modernizadora (1964 - 1985), o número de empresas estatais aumentou exponencialmente (Evans, 1979; Trebat, 1983). Ao mesmo tempo, o processo de consolidação estatal prosseguiu por meio da intensa penetração em áreas mais recuadas do território e da extensão tardia de benefícios sociais ao mundo rural.

A partir da década de 1980, a situação se alterou rapidamente tanto no Brasil quanto em outros lugares do mundo. Promessas de um Estado mais eficiente e elogios renovados para a "nova gestão governamental", típicos do Thatcherismo e da Reaganomics, rapidamente ecoaram no Terceiro Mundo. Na verdade, seja dentro do mundo capitalista avançado, seja dentro do antigo bloco comunista ou do antigo Terceiro Mundo, menos Estado e mais mercado se tornou a ideologia prevalecente. Na América Latina, do México ao Brasil, a rápida privatização econômica reverteu em poucos anos a ortodoxia pró-estatal. Grandes empresas estatais, que até então haviam sido os pilares incontestes do mercado e motivo de orgulho nacional para tantos países do Terceiro Mundo, tornaram-se, praticamente de um dia para o outro, o bode expiatório para o atraso econômico. Não obstante os protestos da oposição, o desaparecimento do Estado desenvolvimentista, tanto como modelo econômico quanto como ideologia oficial, foi surpreendentemente rápido.

Considerando o Brasil, ocasionalmente se ouvem demandas nostálgicas pela recuperação do projeto nacional de desenvolvimento sob a égide do Estado, particularmente entre as antigas elites, sejam elas representantes do setor empresarial, sejam líderes sindicalistas. Também é verdade que, ao apelar para as massas, os líderes partidários ainda recorrem ao discurso que enfatiza o desenvolvimentismo estatal. Contudo, as atuais receitas econômicas implementadas se encontram bem distantes das fórmulas do capitalismo estatal que prevalecia no passado. Não é que o Estado tenha deixado de ser um ator importante para as operações do mercado. É, porém, impossível negar que o papel da autoridade mudou significativamente e que as justificativas ideológicas para o protecionismo estatal não fazem mais parte do discurso oficial. Mesmo sendo verdade que, durante os últimos anos, podemos observar um ressurgimento evidente de discursos centrados no Estado em alguns países latino-americanos, não estamos de volta aos velhos tempos do capitalismo estatal indisputável. Agora, as autoridades estatais apelam para as novas associações da sociedade civil como meio de legitimação própria. O discurso oficial está repleto de exortações à parceria público-privada e de apelos para a solidariedade cívica.

À falência do capitalismo estatal correspondem a ascensão da ideologia do governo eficiente, a exortação do terceiro setor, a demanda por devolução da competência à sociedade civil. Além do mais, no Brasil e em outros países, os governos descobriram que a parceria com as ONGs pode ser uma alternativa atraente para obter flexibilidade ou evitar controles burocráticos. No caso do Brasil, há relatos frequentes na mídia sobre o uso de ONGs para patrocínio e nepotismo estatal. Apesar dos críticos que gostam de usar esses relatos para condenar as ONGs em geral, existem também organizações voltadas precisamente para a luta contra a corrupção, contra a falta de transparência e em prol da responsabilidade das agências públicas.

Ocorreram também outras mudanças importantes no discurso oficial que sugerem que a interação entre o Estado e a sociedade exige novas justificativas ideológicas. As formas convencionais de execução de papéis de autoridade foram submetidas a escrutínio crítico, e os padrões de comportamento típicos do mercado tornaram-se referência para as autoridades governamentais, por todo lado. Sob a ideologia da "nova administração pública", exige-se que os burocratas orientem seu comportamento por critérios de eficiência do mercado (Barzelay, 2001; Lane, 2000; McLaughlin, Osborne & Ferlie, 2002; Pollit & Bouckaert, 2000). Para resolver seus problemas fiscais, o setor público deve procurar inspiração no mercado. Reformas previdenciárias, por toda parte, remodelam a função protetora dos governos de acordo com novos moldes a fim de aproximá-la de práticas contratuais saudáveis. Nesse contexto, os atores da sociedade civil entram em cena como alternativa, seja para colaborar com o Estado, seja para substituí-lo visando dar continuidade às funções sociais.

Embora plenamente consciente de que sempre existiram formas múltiplas de organização ativa da sociedade civil, concentro-me aqui em ONGs como expressão de novas fórmulas de organização social. Enquanto a definição das ONGs é objeto de controvérsias, existe certo consenso em relação a alguns critérios, como: 1) ausência de fins lucrativos; 2) existência de uma estrutura formal; 3) autonomia em relação aos governos; 4) não representatividade formal (Baccaro, 2002; Landim, 2002; Salamon, 1999).

A evidência que uso nas páginas seguintes provém de uma pesquisa intitulada "Mercado, Estado e sociedade na implementação de políticas sociais". Meus comentários se baseiam nos resultados preliminares de levantamento conduzido para identificar as características básicas das ONGs ativas no Brasil. Como já enfatizei, estou convencida de que mudanças significativas ocorreram na forma como concebemos arranjos sociais hoje, mudanças essas que precisam ser esclarecidas e que exigem pesquisas em áreas que, até então, ainda não foram suficientemente estudadas. Nesse sentido, vejo as ONGs como parte das novas formas de organização que são amplamente mencionadas, seja positiva, seja negativamente, mas sobre as quais ainda precisamos aprender muito mais.

Conforme mencionei, meu propósito central é investigar como essas novas organizações - chamadas de ONGs - se estruturam, como interagem com o Estado e como operam. Existem numerosos estudos de caso de ONGs individuais, mas quase não há análises sistemáticas do fenômeno mais geral de seu surgimento e de sua consolidação. Assumo, portanto, a tarefa de obter não uma fotografia em close-up, mas sim um tipo de imagem panorâmica de uma classe de ONGs brasileiras.

Estou bastante ciente de que os riscos de simplificação envolvidos em uma abordagem tão ampla são imensos. Além disso, existem dificuldades específicas no mapeamento das ONGs no Brasil que fazem da generalização um empreendimento ainda mais problemático. Como selecionar uma amostra confiável? Não foi uma tarefa fácil consolidar uma lista de ONGs ativas no Brasil. Muitos problemas precisavam ser resolvidos quando me confrontei com a decisão entre critérios de definição demasiadamente inclusivos ou exclusivos. Os bancos de dados consultados variavam entre as cerca de seiscentas ONGs listadas nos arquivos bem-organizados da Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong) e as mais de 200 mil registradas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2004).

Na tentativa de consolidar o banco de dados para extrair dele uma amostra, tornou-se evidente que a própria disputa sobre a definição de o que é uma ONG deveria constituir um problema de investigação. Debates sobre a definição "correta" já expressam uma competição significativa entre diferentes interesses. Entre o grande número de definições para as ONGs, foi escolhida aquela que se baseia em três características: ausência de fins lucrativos, ausência de uma base representativa e independência do governo. Dúvidas, no entanto, persistiram: deveria o termo ser usado para descrever qualquer organização sem fins lucrativos? Deveria ser aplicado a organizações profissionais que buscam promover causas sociais específicas? Deveria ser restringido a associações que incorporam as metas de movimentos sociais específicos? Eis algumas das intensas controvérsias teóricas e práticas reveladas simplesmente no esforço de mapear o universo das ONGs.

Dadas essas enormes disparidades nas definições correntes, além das dificuldades práticas na realização do levantamento, foram feitas escolhas cruciais. Primeiramente, foram selecionadas apenas ONGs brasileiras que se envolvem explicitamente em atividades nas seguintes áreas: saúde, educação, questões de gênero, direitos de minorias, direitos humanos, infância e juventude, e meio ambiente. Foram excluídas, portanto, ONGs concentradas exclusivamente em atividades de esporte, lazer e outras áreas de atividade que tradicionalmente contavam com o apoio de organizações de voluntariado, muitas vezes com fundo religioso, e que diferem significativamente do discurso típico das ONGs. A opção aqui foi incluir ONGs que prestam serviços tradicionalmente oferecidos pelo Estado (autoridade) ou pelo mercado. A decisão de incluir apenas aquelas que estão ativas no Brasil era coerente com a ideia de focalizar, sobretudo, as mudanças de interação entre o Estado-nação e seus cidadãos, embora a importância dos atores internacionais e globais para as ONGs nacionais seja explicitamente contemplada na pesquisa.1 Em segundo lugar, o estudo limita-se a organizações que operam em seis centros urbanos do Brasil: São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Belo Horizonte, Porto Alegre e Salvador. As três primeiras cidades foram selecionadas por apresentar a maior concentração em termos absolutos de sedes de ONGs no país (São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília); outras duas respondem pela maior concentração relativa de organizações civis no Brasil, de acordo com estatísticas oficiais (Porto Alegre e Belo Horizonte). Por fim, Salvador foi incluída por ser o centro urbano que apresenta o maior número de ONGs que atuam na região nordeste, em que a pobreza e a exclusão social são particularmente severas.

É possível argumentar que a amostra, que compreende 301 casos, mesmo não sendo inteiramente aleatória, é de algum modo representativa do universo das ONGs brasileiras. Além disso, supõe-se que, desconsiderando distorções espaciais e funcionais, os resultados da pesquisa fornecem informações relevantes sobre a estrutura e o funcionamento das ONGs no Brasil. Supõe-se também que as informações em questão podem ser úteis ao inspirar novas investigações para esclarecer as mudanças significativas que estão ocorrendo nas formas de interação entre a sociedade e o Estado no Brasil e em outros lugares.

O primeiro ponto a ser observado é que as ONGs, como definido aqui, representam de fato um desenvolvimento recente no país. A maioria dessas organizações da amostra (84%) foi criada nos últimos vinte anos, conforme ilustrado no Gráfico 1 [ver p. 103]. Na verdade, é possível ver que o crescimento das ONGs foi ainda mais intenso na década de 1990 do que na década de 1980, como sugere o estudo mais abrangente feito pelo IBGE, resumido no Gráfico 2 [ver p. 103].

Gráfico 1
Distribuição das ONGs de acordo com a data de fundação

Gráfico 2
Distribuição das ONGs de acordo com a data de fundação - categorias do IBGE

Levando em consideração o caráter recente das ONGs que emerge da amostra, perguntei-me se seria possível encontrar os primeiros sinais de institucionalização nesse universo. Estariam essas organizações se movimentando em direção a padrões estabelecidos de estruturação e de ação ou estariam ainda indefinidas quanto à sua forma de atuação ou mesmo quanto às suas chances de sobrevivência? As respostas a essas perguntas certamente devem ser consideradas muito provisórias. Após essa advertência, concentrei-me nos seguintes indicadores: 1) a "geração" a que pertence a organização; 2) adaptabilidade, medida pela capacidade demonstrada de redefinir seus objetivos de modo que a ONG se adapte às mudanças no ambiente; 3) seu grau de autonomia, tal como sugerido pela dependência financeira de uma única ou de mais fontes de apoio; 4) sua profissionalização, tal como sugerida pela proporção de pessoas em sua folha de pagamento, relativamente ao voluntariado. Considerando esses indicadores, podia-se esperar que, quanto mais antiga fosse a ONG, maior seria a probabilidade de se tornar mais flexível, menos dependente ela seria de uma única fonte de apoio financeiro e mais profissional seria em sua estrutura.

Analisando os dados, observa-se que as ONGs apresentam uma flexibilidade significativa em relação a mudanças de seus objetivos ou públicos. Assim, a Tabela 1 [ver p. 105] mostra que cerca de um terço do total da amostra (32,3%) sofreu alterações em seus objetivos ou clientela. Os dados também sugerem que a idade parece afetar a capacidade de adaptação da ONG: a proporção das organizações que mudaram seus objetivos é maior entre as mais antigas.

Tabela 1
Mudanças nos objetivos ou no público das ONGs de acordo com a data de fundação

Em seguida, perguntei se a propensão para se adaptar às exigências do contexto varia de acordo com os setores em que atuam as ONGs. Existem variações na capacidade de adaptação de acordo com o tipo de atividade desenvolvida pela ONG? A Tabela 2 [ver p. 105] indica que as organizações dedicadas sobretudo a atividades na área da saúde são aquelas com menor propensão a mudanças (21,1%), seguidas pelas organizações voltadas para comunidades rurais e grupos indígenas (22,2%), enquanto as mais flexíveis são as ONGs que têm como alvo principal a pobreza e o desemprego. As diferenças significativas que observamos entre as ONGs que atuam em áreas distintas podem, de fato, refletir as condições específicas de cada setor. Assim, por exemplo, poderíamos supor que as organizações dedicadas a atividades na área de saúde são menos adaptáveis​​, dados os investimentos fixos que fazem em equipamentos e em pessoal especializado.

Tabela 2
Mudanças nos objetivos ou no público de acordo com a área principal de atuação

A Tabela 3 [ver p. 107] mostra as principais fontes de apoio financeiro das ONGs de acordo com seu tempo de vida. Observa-se que a dependência de recursos externos é maior entre as mais antigas. As ONGs estabelecidas na década mais recente são as que mais dependem de fontes de apoio domésticas não governamentais. A afluência de fundos estrangeiros é particularmente notada nas organizações estabelecidas entre 1985 e 1994. A idade, no entanto, não parece afetar a propensão a diversificar as fontes de financiamento. A proporção de organizações que conseguem diversificar seus apoiadores, evitando assim a dependência única, é mais ou menos a mesma entre as ONGs mais antigas e as mais novas. Observamos também que a proporção de ONGs que contam com fontes de governo como financiamento principal permaneceu aproximadamente a mesma entre as organizações estabelecidas nas últimas duas décadas.

Tabela 3
Fonte de apoio principal das ONGs de acordo com a data de fundação

A fim de verificar se as ONGs sofreram mudanças em seus padrões de dependência financeira, perguntou-se quais foram suas principais fontes de financiamento dez anos atrás. A Tabela 4 [ver p. 107] resume as respostas obtidas. Comparando as informações dessa tabela com os dados do total de ONGs na Tabela 3, podemos observar que a maior mudança é encontrada no recuo de quase 5% na proporção de organizações que, dez anos atrás, dependiam sobretudo de fontes financeiras estrangeiras. Podemos observar também que a proporção de ONGs que, ou dependem em especial de autossustentação, ou diversificam suas fontes de financiamento, cresceu ligeiramente nos últimos dez anos. As duas tabelas mostram também que a proporção de ONGs que dependem de fundos públicos domésticos e de fontes não governamentais permaneceu quase inalterada.

Tabela 4
Fontes principais de apoio financeiro das ONGs dez anos atrás

Pesquisas adicionais serão necessárias para identificar as possíveis implicações das mudanças observadas nos padrões de financiamento. Seria prematuro antecipar mudanças no desempenho das ONGs como resultado de uma proporção menor de organizações que dependem de recursos externos. Também não podemos prever se o número maior de ONGs que se autossustentam ou diversificam suas fontes financeiras trará novos padrões de interação com as estruturas de autoridade ou se tal movimento implicaria um declínio de mecanismos políticos tradicionais, como as redes clientelistas. A crença generalizada no que diz respeito a uma crescente capacidade das organizações da sociedade civil de serem independentes e de compartilharem responsabilidades públicas ainda precisa ser comprovada.

Enfocando ainda a questão da institucionalização, pergunto se as ONGs revelam tendência ao desenvolvimento de uma estrutura mais profissionalizada à medida que envelhecem. A fim de esclarecer esse ponto, examinei a proporção de funcionários pagos entre as diferentes gerações de ONGs. Os resultados, conforme mostra a Tabela 5 [ver p. 109], indicam que a porcentagem de trabalhadores não remunerados aumenta significativamente quanto mais nos aproximamos das novas gerações. Notável é também o fato segundo o qual, quanto mais antiga a ONG, maior o número de funcionários em sua folha de pagamento. Poderíamos, então, sugerir que, de forma semelhante às burocracias, as ONGs tendem a expandir conforme envelhecem? Podemos aceitar isso como uma hipótese a ser explorada, assim como devemos continuar a investigar a fim de verificar se a forte presença de trabalho voluntário entre as ONGs mais jovens revela a presença de estruturas inovadoras ou apenas a pouca idade e a falta de institucionalização de algumas delas.

Tabela 5
Número de funcionários pagos de acordo com o ano de fundação da ONG

O próximo conjunto de questões se concentra no processo interno de como as decisões são tomadas. As ONGs que atuam no Brasil contam com mecanismos de participação ampliados? Há indicações de que elas possuem maneiras inovadoras, não burocráticas de operação, como tendem a ser retratadas por seus apoiadores? As respostas apresentadas na Tabela 6 [ver p. 109] sugerem que as ONGs são sensíveis às questões de legitimidade. Mais de três quartos afirmam consultar seus constituintes "sempre" ou "frequentemente". No entanto, quanto ao próprio processo de decisão, 69% dizem que seus administradores-chefe são os únicos responsáveis​​; 18%, que esse é frequentemente o caso. A julgar por essa informação, não temos indícios que sugiram que as ONGs são significativamente diferentes das organizações burocráticas convencionais em seu processo decisório.

Tabela 6
Os líderes consultam suas bases?

Considerando a ênfase da literatura sobre o papel fundamental da comunicação rápida para a proliferação de ONGs, também foi investigado o grau de uso de tecnologia de informação entre essas organizações. Na verdade, todas as ONGs da amostra usam listas de correio eletrônico, e 70% delas têm acesso de banda larga à Internet - uma porcentagem muito elevada se levarmos em consideração o número de computadores per capita no Brasil e o índice ainda menor de acesso rápido à Internet. Além disso, 81% delas têm uma página web. Desse total, quase dois terços atualizam a página pelo menos uma vez por mês, conforme demonstrado na Tabela 7 [ver p. 109]. Já a Tabela 8 [ver p. 111] mostra que a maioria delas (86,9%) utiliza o site notadamente para informar sobre suas atividades, ao passo que 7,4% afirmam que sua finalidade básica é fornecer informações de utilidade pública, e 5,7% procuram, em primeiro lugar, o cultivo de contatos sociais.

Tabela 7
Frequência com que a página web é atualizada
Tabela 8
Propósito principal da página web

Os dados confirmam a percepção de que as ONGs são altamente informatizadas. Estamos acostumados a ouvir que a conectividade rápida é parte tão essencial do mundo global quanto as próprias ONGs (Matthews, 1997). Também estamos acostumados a ouvir que as minorias e os grupos excluídos podem agora, graças à Internet, contornar seu isolamento e passar diretamente do nível local para o global. Não obstante as muitas histórias de sucesso sobre nativos que rapidamente mobilizam o apoio internacional para sua causa, seria possível dizer que as ONGs são, em geral, mais aptas a se comunicar com a sociedade civil do que as agências do Estado? Eu diria que essa conclusão é prematura. Primeiramente, considerando que menos de 20% da população brasileira tem acesso a computadores em casa, devemos concluir que a comunicação generalizada é uma característica problemática das práticas eletrônicas no Brasil, não importa se tais práticas têm suas origens no Estado ou em organizações da sociedade civil. Em segundo lugar, é importante lembrar que a desigualdade no acesso à comunicação eletrônica pode realmente acentuar oligopólios de participação e representação.

Além disso, deve-se observar que o setor governamental no Brasil, de forma semelhante às ONGs, apresenta, em termos relativos, um grau muito elevado de informatização, apesar do fato de a cidadania permanecer ainda restrita a apenas uma parcela da população. Acesso ao governo se tornou, em muitos aspectos, mais rápido e confortável para aqueles que, antes, já tinham acesso menos difícil. Hoje, por exemplo, 95% dos brasileiros que preenchem uma declaração de imposto de renda o fazem pela Internet.2 Estes, porém, representam apenas 16,5 milhões - cerca de 9% - da população. Portanto, a chance de as ONGs alcançarem apenas aqueles que já fazem parte da comunidade política aparenta ser alta. Certamente, a qualidade da cidadania pode aumentar de forma considerável, mas as consequências para aqueles que se encontram em situações menos favorecidas podem não ser tão espetaculares quanto sugerem os defensores dos novos canais de participação.

É evidente que, uma vez que as ONGs se têm voltado em grande parte para públicos eletrônicos, elas podem ser mais eficazes na comunicação e na mobilização de apoio. No entanto, como tais, devem ser comparadas com os grupos de interesse, sindicatos, grupos de lobistas, entre outros, e não com o setor público. A fim de obtermos mais informações sobre a natureza das relações entre as ONGs e o Estado, perguntei então como as próprias ONGs se veem. Será que diriam que são essencialmente organizações sociais ou comunitárias que operam, sobretudo, por meio da participação voluntária? Ou será que se descreveriam melhor como organizações de especialistas e consultores técnicos dedicadas a objetivos coletivos? As respostas que recebemos revelam uma divisão bastante equilibrada entre as ONGs "comunitárias" e as "consultivas". Entre essas últimas, porém, a proporção daqueles que dizem agir em parceria com o governo federal é maior. Já no nível local as proporções se invertem, apresentando mais ONGs "comunitárias" do que "consultivas" agindo em parceria com o governo.

Por último, mas não menos importante, foi averiguada a propensão das ONGs para assumir funções tradicionalmente desempenhadas pelas agências estatais. Embora essa parte do estudo tenha apenas começado, é possível dizer que as ONGs de perfil mais consultivo ou técnico estão mais propensas a desenvolver uma parceria com o governo federal do que aquelas que se definem como "comunitárias". Estas apresentam uma taxa ligeiramente mais elevada de parcerias com as administrações locais do que as ONGs consultivas. Quanto à parceria com os estados regionais, não existem grandes diferenças entre os dois modelos. Esses resultados são reproduzidos nas Tabelas 9, 10 e 11 [ver p. 111 e 113].

Tabela 9
Parcerias com o governo federal segundo as características da ONG
Tabela 10
Parcerias com governos locais de acordo com as características da ONG
Tabela 11
Parcerias com o governo regional de acordo com as características da ONG

O que podemos concluir das informações analisadas​​? Certamente, os dados não nos permitem dizer muito sobre as mudanças nos padrões de interação entre a sociedade e o Estado. No entanto, o próprio fato de estarmos olhando para organizações da sociedade civil cuja missão é explicitamente o fornecimento de bens e serviços outrora vistos como de responsabilidade do poder público sinaliza uma mudança cultural profunda. Mais importante, porém, é que os dados revelam a extensão de nossa ignorância sobre questões-chave relacionadas à nossa sociedade. Não sabemos, por exemplo, como podemos tornar as ONGs mais responsáveis e mais ágeis. Também não sabemos se elas realmente aumentam a participação social ou se são sinal de novas formas de poder monopolista. Por definição, essas organizações não são representativas, mas, à medida que assumem papéis e funções, podem vir a adquirir poderes e privilégios. Será que as ONGs oferecem uma distribuição mais eficiente e menos corrupta dos serviços sociais do que as burocracias governamentais? Enquanto as agências internacionais, hoje, trabalham com essa hipótese, não temos evidências claras sobre isso realmente ser uma característica lógica das ONGs.

Para concluir esse estudo preliminar, eu diria que, por mais incipiente que seja, ele indica a necessidade de prosseguir na análise dos dados de pesquisa já disponíveis. Sugere também a necessidade de mais informação sobre as novas formas de organização que estão assumindo tarefas tradicionalmente atribuídas a agências governamentais com a colaboração apenas marginal de antigas iniciativas filantrópicas. Nesse estudo, é sugerido ainda que talvez seja importante investigar até que ponto novos atores, como as ONGs, são realmente inovadores em suas formas de organização e ação, em suas fontes de financiamento etc. As ONGs realmente estão causando um impacto transformador? Em que sentido? Quem são os mais beneficiários? São realmente mais participativas do que outras organizações da sociedade civil? A quem elas prestam contas​​? Aos doadores? Aos beneficiários? Essas e outras questões cruciais não devem ser entendidas como crítica, mas sim como busca de evidências, como algo que precisamos conhecer com urgência por questões de eficiência e justiça.

Insisto que o realinhamento conceitual do Estado, do mercado e das forças sociais é, ao mesmo tempo, o resultado das transformações históricas atuais, bem como a tentativa intelectual de conferir sentido às mudanças em curso. Assim, a agenda da sociologia precisa contemplar os processos empíricos em jogo e, simultaneamente, explicar as mudanças nas formas de conceber a sociedade. Enquanto os Estados nacionais experimentam pressões locais e globais, as mudanças que vêm ocorrendo nos padrões de interação entre Estado, mercado e sociedade civil permanecem subteorizadas. Embora alguns venham chamando a atenção para um declínio das forças associativas (Putnam, 2000), há muitas evidências de que novas forças participativas estão entrando no jogo, forças que desafiam nossos antigos esquemas de interpretação. No âmbito global, a explosão do chamado terceiro setor, a relevância crescente do conceito de responsabilidade social corporativa ou a mudança de governabilidade para governança no léxico das agências internacionais são alguns dos indícios das mudanças que estão ocorrendo. Embora distintos, esses processos convergem como expressões de uma nova maneira de conceber a vida social. Cada uma dessas manifestações tem recebido considerável atenção por parte da sociologia. Falta-nos, contudo, um quadro teórico mais amplo, que nos ajude a atar melhor as muitas pontas que permeiam o mundo social contemporâneo. Para enfrentar esse desafio, temos de passar da teorização abstrata à pesquisa empírica e vice-versa, tudo isso no ritmo acelerado típico do mundo globalizado.

  • Tradução de Markus A. Hediger

NOTAS

  • *
    A pesquisa para este estudo foi possível graças ao apoio da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj). Uma versão deste artigo foi publicada em Kalekin-Fishman, Devorah & Denis, Ann B. (orgs.). The ISA Handbook in Contemporary Sociology. Londres: Sage, 2009, p. 74 - 90.
  • 1
    Em Koslinski e Reis (2009), foi explorado justamente o possível impacto das ligações transnacionais sobre as ONGs. Contrariamente à afirmação habitual que laços estrangeiros tendem a tornar as ONGs de países menos desenvolvidos menos enraizadas nos mesmos, mostramos que laços externos estão intimamente associados a redes sociais domésticas mais intensas.
  • 2
    A partir de 2011, o meio eletrônico passa a ser o único disponível para declaração de imposto de renda.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Jun 2011
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