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GÊNERO, INTIMIDADE E ECONOMIA: UMA ENTREVISTA COM VIVIANA ZELIZER

GENDER, INTIMACY, AND ECONOMY: AN INTERVIEW WITH VIVIANA ZELIZER

Resumo

Viviana Zelizer é uma socióloga argentina que estabeleceu sua carreira nos Estados Unidos e atualmente leciona na Universidade de Princeton. Em 2023, Zelizer recebeu o maior prêmio da American Sociological Association (ASA) pelo impacto e contribuição de sua obra para o campo da Sociologia. Além de seu fundamental aporte para a Sociologia Econômica, Cultural e do Dinheiro, as obras de Zelizer têm recebido um reconhecimento ímpar nos estudos de gênero, principalmente por seu enquadramento teórico-analítico a respeito de intimidade, moralidades e dinâmicas familiares. A entrevista explora o impacto de seu trabalho nos estudos de gênero, bem como suas perspectivas sobre cuidados, dinâmicas familiares e transações monetárias.

Palavras-chave:
Viviana Zelizer; Intimidade; Economia; Cuidado

Abstract

Viviana Zelizer, an Argentine sociologist who has established her career in the United States and currently holds a position at Princeton University, was awarded the highest honor by the American Sociological Association (ASA) in 2023 for her significant impact and contributions to the field of Sociology. Beyond her seminal work in Economic, Cultural, and Money Sociology, Zelizer’s research has garnered exceptional recognition in gender studies, particularly for her theoretical and analytical framework concerning intimacy, moralities, and family dynamics. This interview delves into the influence of her work on gender studies, as well as her perspectives into caregiving, familial dynamics, and monetary transactions.

Keywords:
Viviana Zelizer; Intimacy; Economy; Care

Viviana Zelizer é uma socióloga argentina que estabeleceu sua carreira nos Estados Unidos e atualmente leciona na Universidade de Princeton. Em 2023, recebeu a mais alta honraria da American Sociological Association (ASA) por seu impacto e contribuição no campo da sociologia1 1 Disponível em: https://www.princeton.edu/news/2023/06/22/professor-viviana-zelizer-receive-highest-award-and-second-major-honor-american .

A influência de Zelizer se estende internacionalmente e é bastante relevante no Brasil. Muitas de suas obras, incluindo o livro A negociação da Intimidade (2011, Editora Vozes) e o artigo O significado social do dinheiro: dinheiros especiais (2003, Editora Celta), foram traduzidas para o português. Além disso, uma importante entrevista discutindo sua pesquisa, conduzida por Nadya Guimarães, André Vereta-Nahoum, Federico Neiburg e Bianca Freire-Medeiros foi publicada na revista Tempo Social em 2017.

A influência de Zelizer nas áreas de sociologia econômica e sociologia do dinheiro são inquestionáveis, mas gostaríamos de ressaltar também o reconhecimento e a recepção ímpar de suas obras nos estudos de gênero. Isso se deve em grande parte às suas contribuições teórico-conceituais sobre intimidades, moralidades e cuidado, que são amplamente debatidas no campo.

Suas ideias inspiram gerações de intelectuais, incluindo nós mesmas e as/os autoras/es deste dossiê. Com cinco artigos e um Registro de Pesquisa, todos fundamentados nas obras de Zelizer, o dossiê aborda desafios analíticos e aprimora nossa compreensão dos fenômenos sociais. Esses trabalhos vão além das dicotomias simplistas entre mercado e não-mercado, público e privado, familiar e econômico, entre outros. Eles ampliam nossas reflexões sobre a vida econômica e destacam a importância analítica dos atores sociais na formação de significados e fronteiras - na melhor tradição de Viviana Zelizer. Apontam também como é fértil a contribuição teórico-conceitual da autora, de modo que suas reflexões são de suma importância para analisar uma variedade de aportes empíricos e contextos sociais distintos: a educação financeira; campanhas de solidariedade durante a pandemia; o trabalho das camareiras de hotéis; a ação de influenciadoras/es digitais; o trabalho sexual; e as relações pessoais e familiares em um pólo de confecção brasileiro.

Em setembro de 2023, tivemos a oportunidade de conversar com Viviana Zelizer por videochamada para discutir suas contribuições teóricas, principalmente suas ideias sobre gênero, mercados e intimidade. As perguntas foram enviadas antecipadamente por e-mail, lançando as bases para uma animada e inspiradora conversa. Durante a entrevista, Zelizer falou sobre sua trajetória de pesquisa e alguns de seus temas de interesse2 2 Gostaríamos de agradecer ao trabalho de Daniele Thomaz pelo cuidadoso acompanhamento de todo o processo desta publicação. Agradecemos também a gentileza de Jonas Delecave pela leitura atenciosa. . A entrevista foi transcrita, revista por Zelizer, e passou por pequenas edições de conteúdo. Por fim, tivemos uma agradável surpresa ao recebermos por e-mail o syllabus da disciplina Sex Roles And Society, ministrada por Zelizer em 1981 na Universidade de Columbia, que está no final da entrevista.

Anna Bárbara Araujo, Thays Monticelli: Gostaríamos de começar perguntando sobre o impacto do seu trabalho nos estudos de gênero. Na introdução de seu livro Economic Lives: How Culture Shapes the Economy (Zelizer, 2011aZelizer, Viviana. (2011a). Economic lives: how culture shapes the economy. Princeton, Nova Jersey: Princeton University Press.), você apresenta uma trajetória empírica fascinante sobre seguro de vida, dinheiro, infância e os significados sociais do dinheiro, que levam a temas relacionados à intimidade e ao cuidado. Você também discute essa trajetória em uma entrevista realizada no Brasil (Zelizer et al., 2017aZelizer, Viviana et al. (2017a). A negociação da intimidade, dez anos depois: Entrevista com Viviana Zelizer. Tempo Social, 29/1, p. 190-209.). Não há dúvida de que seu trabalho abriu novos caminhos na sociologia econômica e na sociologia cultural, mas também recebeu atenção significativa nos estudos de gênero. Como você vê o diálogo entre seu trabalho e esse campo?

Viviana Zelizer: Deixe-me dividir minha trajetória intelectual com a análise de gênero em três categorias: primeiro, minha pesquisa; segundo, o ensino; e terceiro, minha experiência pessoal como uma intelectual mulher. Mas primeiro gostaria de fazer uma observação de que, até recentemente, a maioria dos estudos de gênero abordava o gênero como uma categoria dicotômica de homens/mulheres. E tem sido estimulante ver estudantes se baseando no meu trabalho, mas explorando novos territórios. Eu ministrei um curso no último semestre e duas/ois das/os alunas/os desenvolveram propostas inovadoras envolvendo queerizar economias3 3 Em inglês, queering economies. Optamos por traduzir como queerizar, notando que a tradução de queer é particularmente complexa para o contexto lusófono (Alós, 2020; Pelúcio, 2014). . Então temos avanços importantes, mas a maior parte dos trabalhos sobre os quais vou falar é essencialmente baseada na dicotomia de gênero homens/mulheres.

Estou pensando em quando vim da Argentina, quando tinha apenas 21 anos. Não vou contar toda essa história, mas eu estive na universidade em Buenos Aires e depois terminei minha graduação nos Estados Unidos, na Universidade de Rutgers, onde fiz um curso com uma socióloga alemã, Susanne Schad-Somers. Ela estava terminando seu doutorado na Universidade de Columbia e me apresentou à literatura de gênero que eu não tinha lido na Argentina. Estamos falando do final dos anos 1960. Era uma literatura principalmente política, já que havia poucas pesquisas sistemáticas no campo. Depois o campo se desenvolveu, mas eu fui apresentada neste período inicial. Então, quando cheguei à pós-graduação na Universidade de Columbia, não estava estudando questões de gênero e tampouco havia cursos sobre o tema. Lá, me concentrei no que é mais conhecido do meu trabalho, que é a sociologia cultural e histórica, especificamente a interseção entre moralidade e mercados. Minha tese analisou a resposta cultural ao desenvolvimento do seguro de vida - não porque eu estivesse interessada em seguros, mas porque se tornou um espaço muito interessante para entender o impacto da cultura e da moral em uma instituição econômica importante, que não havia sido estudada até então. Mas aí, enquanto fazia essa pesquisa, surgiram alguns caminhos para o gênero. Algo que achei fascinante foi o fato de que uma das fontes que se opunham ao seguro de vida - que era destinado à população de classe média - eram as esposas. Os homens eram os principais segurados, e suas esposas estavam sendo protegidas pelo seguro de vida. Mas, ao observar as fontes de arquivos, descobri que as mulheres se opunham ao seguro. Mas por quê? Porque viam esse dinheiro como “dinheiro da morte”, “dinheiro de sangue” ou dinheiro “ruim”, “imoral”. Mesmo que o seguro estivesse protegendo-as, elas estavam recebendo dinheiro com a morte de seus maridos.

Aos poucos, comecei a entrar no tema dos domicílios e nas características particulares dos papéis de gênero, moralidade e dinheiro. Notem que estou contando para vocês uma versão rápida, um pouco caricata, da minha trajetória. Antes de começar a trabalhar em The Social Meaning of Money (Zelizer, 1994Zelizer, Viviana. (1994). The social meaning of money. New York: Basic Books.), o primeiro artigo que escrevi e apresentei em uma sessão da ASA foi sobre dinheiro doméstico como um caso de “dinheiros (“monies”) especiais”4 4 Optamos por traduzir tanto money quanto monies por dinheiro, mas colocando a palavra em itálico no segundo caso. . Eu não tinha certeza ainda se o artigo se tornaria parte de um livro. Isso é importante dizer, porque os estudantes pensam: “Ah, eu sabia que estava escrevendo um livro e simplesmente escrevi”. Eu não sabia! Eu estava meramente pesquisando questões que eram interessantes e, então, o livro foi se desenvolvendo. Não me lembro de todos os passos, mas, claramente, aquela questão de gênero me intrigou. Na verdade, como eu disse a vocês, e eu nem me lembrava disso, parte deste interesse por gênero já havia surgido na pós-graduação. E me lembro agora que havia um professor visitante que lecionava um curso sobre gênero ou família na Universidade de Columbia e, para essa disciplina, escrevi um trabalho sobre o que acontece quando as mulheres ganham mais que seus maridos. Isso desde então se tornou um tema de pesquisa no campo, mas eu já estava interessada nesse tópico no início dos anos 1970.

De qualquer forma, a questão de gênero e, especificamente, os diferentes usos do dinheiro por mulheres e homens em casa, e como isso variava pela classe social, tornou-se muito mais central em The Social Meaning of Money. Encontrei semelhanças e diferenças entre esposas da classe trabalhadora e da classe alta em relação à administração do dinheiro. Claro, eu me concentrei nos domicílios como parte do que se revelou, novamente, um desafio muito maior do que eu havia antecipado para a teoria econômica da fungibilidade. Todo o esforço era mostrar que não é verdade que todos os dinheiros são iguais, e o gênero foi a primeira via para fazer isso. O livro também fala sobre dinheiros de seguridade social e dinheiros de presente, mas, mesmo dentro desses temas, eu estava intrigada com as diferenças de gênero. Foi assim que o gênero entrou na minha pesquisa. E, como vocês mencionaram, e eu também pude observar com grande surpresa, essa pesquisa em particular, sobre dinheiro doméstico, se tornou internacional! E, novamente, eu não escrevi para um público internacional. Eu estava apenas fazendo meu trabalho, porque isso era muito fascinante para mim. Eu não poderia imaginar que teríamos a alegria e o privilégio de estar falando agora sobre isso. Vocês estão aí no Brasil, e existem grupos na Argentina, Espanha, Quênia, França, Índia e outros países que me escreveram e me enviaram artigos sobre suas pesquisas sobre gênero e dinheiro. Vejo todas essas coisas como presentes inesperados e bem-vindos.

Então, como vocês podem ver, os enigmas de gênero que me interessam já faziam parte de The Social Meaning of Money. Um deles é algo que se aplica a muitas pesquisas sobre transferências de renda no Brasil: toda a questão de que quando o dinheiro é dado à mãe em vez de dado ao marido ou à família, é mais provável que seja gasto com as crianças e com as casas. E, como vocês sabem, existem programas importantes de microcrédito no Brasil. Outros enigmas intrigantes sobre gênero e dinheiro doméstico surgiram durante minha pesquisa, incluindo a grande quantidade de ‘trapaças’ que acontece quando parceiros escondem dinheiro um do outro. Sabe? Mulheres e homens escondendo dinheiro dos cônjuges ou outros parceiros. Isso acontece até mesmo entre pessoas que se amam, não apenas em casos de divórcio.

Muito no início dessa trajetória de pesquisa, foram estabelecidas conexões interdisciplinares muito fortes - novamente, para minha surpresa - não apenas entre países, mas também com economistas feministas que fizeram trabalhos muito importantes. Isso incluía pessoas como Nancy Folbre, uma autoridade no campo, e Julie Nelson, outra influente economista feminista. Vocês me fizeram uma pergunta muito intrigante sobre por quê comecei a pensar sobre cuidados. Não tenho tanta certeza, mas acho que em grande medida foi por conta dessa conversa inicial com economistas feministas. Elas estavam mostrando, como eu também estava tentando fazer, como a economia tradicional e até os estágios iniciais da sociologia econômica ignoraram áreas-chave da atividade econômica - principalmente a atividade econômica feminina. As casas foram ignoradas, o trabalho de cuidados foi ignorado. Esse era um grupo, as economistas feministas, e também havia as pesquisadoras feministas da área do direito. Há muito tempo, mesmo antes de A Negociação da Intimidade (Zelizer, 2005aZelizer, Viviana. (2005a). The Purchase of intimacy. Princeton: Princeton University Press.) ser publicado, eu era convidada para palestrar em vários seminários do direito e até participar de uma sessão plenária em uma reunião nacional de pesquisadoras/es da área. Mas o que era importante em termos de pesquisa é que havia uma conexão relevante entre economistas feministas e pesquisadoras feministas do direito interessadas em ver como a negligência sobre o gênero tinha consequências econômicas e jurídicas. Havia todo um conjunto de literatura e pesquisadoras/es - em direito e depois em sociologia - que estavam analisando como o trabalho não-remunerado das mulheres não era considerado e casos de divórcio, por exemplo, ou como as “barrigas de aluguel”5 5 Optamos por traduzir surrogate mothers por barrigas de aluguel. É necessário dizer, no entanto, que esse termo pode carregar conotações negativas ou contraditórias, especialmente no Brasil, onde é proibido que a gestação por substituição seja remunerada (Graziuso, 2018). recebem pouco dinheiro, enquanto os médicos homens envolvidos no trabalho recebem bem mais.

Então, começando aos poucos, a parte sobre gênero na minha pesquisa se desenvolveu em distintas direções. Isso é parte da versão resumida da minha trajetória com o gênero.

E seguindo para a segunda categoria, com relação ao ensino, meu primeiro emprego foi na Universidade de Rutgers e eu não lecionei sobre gênero - embora tenha dado uma palestra sobre gênero e prisões como convidada em um dos cursos de um colega. Eu fiquei lá apenas dois anos e ministrei principalmente Introdução à Sociologia e Teoria Social. Em seguida entrei para o Barnard College e a Universidade de Columbia em 1978, e me pediram para lecionar um curso sobre Sociologia do Gênero, mesmo que eu não estivesse trabalhando nessa área. Não tenho certeza, mas acho que pode ter sido o primeiro curso sobre Sociologia do Gênero no Departamento de Sociologia da Universidade de Columbia. Recentemente, li um brilhante ensaio autobiográfico da socióloga Ann Swidler, da Universidade da Califórnia em Berkeley, publicado no Annual Review of Sociology (2023Swidler, Ann. (2023). Life’s work: history, biography, and ideas. Annual Review of Sociology , 49, p. 21-37.). Entre muitos outros tópicos, ela menciona também ter sido solicitada, no início de sua carreira, a ministrar cursos sobre gênero, embora não fosse especialista no campo. Isso levanta uma questão interessante: a quem, nessa época, era solicitado ensinar gênero? Tinha que ser uma mulher? Então eu dei um curso sobre Sociologia do Gênero e adorei. Embora não estivesse fazendo pesquisa nessa área, fiquei muito interessada na literatura, ministrei um longo curso com alunas/os talentosas/os e engajadas/os e foi muito estimulante.

Em 1988, quando fui para a Universidade de Princeton, também ministrei alguns seminários sobre Sociologia do Gênero, mas não, durante esses primeiros anos, sobre Sociologia Econômica. Foi só sete ou oito anos depois que comecei a ministrar a disciplina de Sociologia Econômica. E, nesses cursos, embora não houvesse seções separadas sobre gênero, eu aplicava o que é chamado de difundir o gênero (mainstream gender), ou seja, em tudo o que ensinava, havia uma perspectiva de gênero. Surpreendentemente, isso não acontecia no campo da sociologia econômica. As pessoas estavam conduzindo ótimas pesquisas na área, mas em grande maioria sobre redes e organizações. Havia poucas exceções. Por exemplo Ronald Burt (1998Burt, Robert. (1998). The gender of social capital. Rationality and Society, 10/1, p. 5-46.), um sociólogo excelente, que escreveu sobre o gênero do capital social. Mas ele foi uma exceção.

Eu estava introduzindo o gênero no campo e depois, em 2008 a seção de gênero da ASA se uniu à seção de Sociologia Econômica, pela primeira vez, para apoiar uma nova sessão chamada “Gendering Economic Sociology: Expanding the Field’s Scope and Analytic Frameworks”. Fui convidada para apresentar um trabalho nessa sessão e, em 2011, publiquei uma versão resumida da palestra no Wall Street Journal (Zelizer, 2011bZelizer, Viviana. (2011b). The gender of money. Disponível em: Disponível em: https://www.wsj.com/articles/BL-IMB-1033 . Acesso em: 2 nov. 2023.
https://www.wsj.com/articles/BL-IMB-1033...
), embora nunca tenha publicado o artigo original. Mas naquele momento, eu disse: “Eu tenho que dar um curso sobre gênero e transações econômicas”, e foi o que fiz. Organizei uma disciplina sobre gênero e transações econômicas, e várias/os sociólogas/os talentosas/os que participaram do curso, hoje bastante conhecidas/os, começaram a trabalhar em questões sobre os domicílios. Então o curso teve algum tipo de influência. Foi assim que a parte do ensino caminhou. Não foi como se eu estivesse imediatamente ensinando gênero e sociologia econômica. Foi um caminho muito gradual. Tenho ministrado principalmente disciplinas de Sociologia Econômica, mas quando as faço, sempre há um elemento de gênero. Como resultado, meus programas de curso se tornaram muito distintos do que era então o curso padrão de Sociologia Econômica, que se concentrava em corporações e outras estruturas econômicas, mas raramente em gênero ou outras formas de desigualdades. Paula England e Nancy Folbre (2005England, Paula & Folbre, Nancy. (2005). Gender and economic sociology. In: Smelser, Neil & Swedberg, Richard. (orgs.). The handbook of economic sociology, second edition. New York: Russell Sage Foundation; Princeton University Press. p. 627-649.) têm um importante ensaio sobre a questão de Gênero e Sociologia Econômica na primeira edição de The Handbook of Economic Sociology.

O campo mudou desde então, assim como as ementas, à medida que algumas/uns de minhas/meus ex-alunas/os e outras/os pesquisadoras/es mais jovens estão incorporando gênero e outras formas de desigualdades categóricas, como raça, em seus programas de Sociologia Econômica e escrevendo sobre gênero e o campo - vejam, por exemplo, o brilhante artigo de Nina Bandelj Academic Familism, Spillover Prestige and Gender Segregation in Sociology Subfields: The Trajectory of Economic Sociology (Bandelj, 2019Bandelj, Nina. (2019). Academic familism, spillover prestige and gender segregation in sociology subfields: the trajectory of economic sociology. The American Sociologist, 50/4, p. 488-508.).

A última parte deste pequeno passeio sobre gênero na minha vida diz respeito à minha experiência pessoal. Quando comecei e quando escrevi meu trabalho sobre seguro de vida, moralidade e mercados, nem sequer sabia que havia um campo chamado sociologia econômica, o campo era recente e meu trabalho era muito diferente do que era produzido. Então, gradualmente, outros integraram meu trabalho ao campo da sociologia econômica. Havia poucas mulheres no campo. As figuras-chave, as estrelas, eram em sua maioria homens. De alguma forma, não percebi muito esse padrão, o que frequentemente acontece com mulheres. Quer dizer, eu poderia ter percebido. Um exemplo, sobre o qual já escrevi em outro lugar, ocorreu entre 1990 e 1991. Aconteceu uma série de seminários sobre sociologia econômica na Russell Sage Foundation, em Nova York. Acho que nos encontrávamos uma vez por mês, e um excelente livro foi produzido a partir desses encontros. Havia talvez dez pessoas lá e eu era a única mulher - ou, pelo menos, era a única mulher na maior parte do tempo. Mas eu realmente não estava pensando sobre isso, o que é inusitado. Não me concentrei claramente na minha conexão com essa história de gênero até começar a lecionar. Quando comecei a ministrar o curso de Sociologia Econômica e tive que explicar mais sobre o campo às/aos minhas/meus alunas/os, e explicar por que tinha preparado um programa tão diferente de qualquer outro curso, foi quando comecei a pensar sobre isso. Em 1999, escrevi um breve ensaio sobre gênero e sociologia econômica para uma seção da ASA (Zelizer, 2000Zelizer, Viviana. (2000). A gendered division of labor. Economic Sociology: European Electronic Newsletter, 1/3, p. 2-5.), onde reuni evidências para mapear a questão da generificação do campo.

Em 2019, quando recebi um diploma honorário da Universidade Sciences PO, me pediram para escrever uma declaração biográfica sobre minha pesquisa (Zelizer, 2020Zelizer, Viviana. (2020). Acceptance speech. Economic Sociology: European Electronic Newsletter , 21/3, p. 27-29). Isso me fez pensar que, de certo modo, porque naquele período inicial eu era uma mulher trabalhando em um campo dominado por homens, e talvez, de certa forma, eu tivesse uma perspectiva diferente sobre a atividade econômica. Como eu não era central para o campo, eu tinha algo como uma entradinha lateral. Quando escrevi isso, estava lendo o famoso sociólogo George Simmel (1950Simmel, Georg. (1950). The stranger. In: Wolff, Kurt Heinrich. (org.). The sociology of Georg Simmel. New York: Free Press. p. 402-408.). Ele fala sobre como o estrangeiro é mais livre. Prática e teoricamente, um estrangeiro tem mais liberdade. Então pensei que, talvez, eu tenha percebido questões dos domicílios, cuidados e gênero porque eu era meio que uma estrangeira no campo. Quem sabe? É uma hipótese.

Sobre minha ligação com o campo dos estudos de gênero… Eu não me vejo como uma teórica de gênero porque não estou realmente contribuindo para as teorias canônicas de gênero. Estou contribuindo simplesmente por meio da minha perspectiva da sociologia econômica e, mais significativamente, a partir da análise do que chamo de trabalho relacional. Introduzo o conceito de trabalho relacional em A Negociação da Intimidade como uma forma útil de pensar sobre como as relações sociais, incluindo as relações generificadas, moldam a atividade econômica. E mais uma vez, para minha surpresa, esse conceito se espalhou e foi aplicado a múltiplos domínios (Bandelj, 2020Bandelj, Nina. (2020). Relational work in the economy. Annual Review of Sociology, 46, p. 251-272.).

A.B.A, T.M: Em sua pesquisa, você documentou como o dinheiro entra no âmbito das relações pessoais e íntimas. Você poderia falar um pouco sobre suas análises e como isso se conecta ao gênero? Em outras palavras, como as relações que estabelecemos com o dinheiro podem ser generificadas? De que maneiras as transações monetárias podem moldar as dinâmicas de gênero?

V.Z: Essencialmente, e estou tentando descrever isso de maneira concisa, a análise de redes estava mostrando como as estruturas dos laços sociais moldam a ação econômica individual, certo? A abordagem do trabalho relacional, enquanto reconhece a importância da análise estrutural, propõe explorar o conteúdo dos laços sociais. Não apenas a estrutura, mas o que está acontecendo no interior dos laços sociais. Em vez de indivíduos, você inicia a análise examinando as relações. Esse é o ponto de partida. Na análise do trabalho relacional, foi importante introduzir o gênero porque, nessa negociação que eu mencionei, as pessoas estão tentando combinar suas relações com certos tipos de transações e meios econômicos. O gênero importa para esse processo relacional, essa é a dinâmica do trabalho relacional. Pensem na nossa conversa. Neste momento, estamos interagindo como colegas pesquisadoras. Não estamos sequer falando sobre dinheiro porque esta é uma entrevista acadêmica. Provavelmente seria um pouco chocante se eu tivesse cobrado, especialmente se fosse um valor alto, mas mesmo qualquer valor, para fazer essa entrevista. Ou imagine se vocês me enviassem uma gorjeta depois? Seria uma combinação ruim entre as relações. Estou usando nós mesmas como exemplo de como as relações são importantes para moldar quais tipos de transações econômicas são legítimas e quais são realmente absurdas ou ultrajantes. O gênero entra aí. Quando estamos fazendo essa negociação sobre quais são os tipos certos de transações econômicas, o gênero importa, certo? A identidade de gênero e as relações de gênero importam. Isso é muito diferente de uma análise cega ao gênero, que assume que tudo o que importa nas atividades ou transações econômicas são interesses ou recursos, e que identidades ou relações são interessantes, mas secundárias. Ao adicionar o gênero, veja tudo o que aparece. Isso faz parte do trabalho relacional que fazemos em casa. Maridos e esposas, para dar um exemplo tradicional, não estão apenas negociando dinheiro. Eles estão negociando o que significa ser um marido ou uma esposa. Além disso, há uma série de artigos usando o trabalho relacional e introduzindo o gênero. No ano passado, foi publicado um artigo maravilhoso no American Sociological Review pela Aliya Rao, da London School of Economics and Political Science, chamado Relational Work in the Family: The Gendered Microfoundation of Parents’ Economic Decisions (Rao, 2022Rao, Aliya Hamid. (2022). Relational work in the Family: the gendered microfoundation of parents’ economic decisions. American Sociological Review, 87/6, p. 1094-1120.). Ela focaliza pais e mães desempregados e como, dependendo se você está olhando para maridos ou para esposas, suas decisões econômicas variam em termos de gastos com os filhos. Isso é um exemplo de como incluir gênero não é apenas uma decisão política, mas que, de fato, ao inserir sistematicamente o gênero na análise econômica, você consegue explicar melhor o que acontece no mundo.

Mencionarei um exemplo. Uma de minhas alunas acabou de defender uma tese sobre um tema totalmente diferente. Ela está estudando a transmissão de riqueza nos Estados Unidos, e parte do que ela fez foi focar em padrões de herança e transmissão de riqueza em Dallas, no Texas (O’Brien, 2023O’Brien, Shay. (2023). The family web: multigenerational class persistence in elite ppopulations. Socio-Economic Review, 22/1, p. 1-27.). Ela mostra como, ao olhar para pais e filhos e ignorar mulheres, esposas e filhas, a maioria dos estudos sobre herança está deixando passar elementos significativos dessas histórias. Isso mostra a importância de introduzir o gênero. Embora eu não possa reivindicar ser uma teórica de gênero, meu trabalho contribui para nossa compreensão do gênero no domínio econômico por meio da Sociologia Econômica.

A.B.A, T.M: Que ótimo! Estamos fascinadas com suas respostas.

V.Z: Fico feliz em conversar sobre isso. Vocês estão organizando este dossiê, que inclui jovens pesquisadoras/es que se baseiam em meu trabalho para suas pesquisas, é uma alegria para mim.

A.B.A, T.M: Muito obrigada. Quando você estava falando sobre o primeiro curso sobre gênero que lhe pediram para ministrar - talvez por ser mulher, não por ter estudado gênero -, nós ficamos curiosas sobre algo. Quais autoras você selecionou para o curso e por quê?

V.Z: Essa é uma ótima pergunta. Fiquei muito curiosa agora. Eu guardei o que ensinei no primeiro curso na Universidade de Princeton, mas isso já é muito depois. Acho que comecei em 2009. Vou procurar e enviar para vocês o programa original do curso na Universidade de Columbia.

A.B.A, T.M: Obrigada. Mencionamos que seu artigo, A economia do care (Zelizer, 2011cZelizer, Viviana. (2011c) A economia do care. Civitas: Revista de Ciências Sociais, 10/3, p. 376-391. Disponível em: Disponível em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/civitas/article/view/8337 . Acesso em: 13 maio 2024
https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs...
), foi traduzido para o português na Civitas - Revista de Ciências Sociais (2011) e também em “Cuidado e cuidadoras: as várias faces do trabalho do care” (2012Hirata, Helena & Guimarães, Nadya Araujo. (orgs.). (2012). Cuidado e cuidadoras: as várias faces do trabalho do care. São Paulo: Atlas.), um livro organizado por Helena Hirata e Nadya Guimarães. Você poderia falar um pouco mais sobre como você entrou no campo dos cuidados?

V.Z: Com certeza. Boa pergunta! Não tenho certeza exatamente de como entrei no campo dos cuidados. Estou tentando lembrar… não é tão claro quanto minha análise sobre os domicílios. Estou me perguntando: “Quando comecei falar sobre cuidados?”. Foi antes de A Negociação da Intimidade, no qual tenho um capítulo inteiro sobre cuidados e a partir daí segui trabalhando. Sei que fui inspirada por estudiosas francesas no campo, com as quais tive uma conexão muito próxima, e que começou por meio da renomada Florence Weber. Ela escreveu trabalhos muito importantes. Desde o início, também desenvolvi uma amizade próxima com a maravilhosa Nadya Guimarães, que fez pesquisas importantes sobre cuidados. Todas essas conexões são extraordinárias e partes maravilhosas da vida acadêmica sobre as quais as/os pesquisadoras/es raramente escrevem.

De qualquer forma, refletindo sobre quando comecei a prestar atenção aos cuidados, lembro que escrevi uma resenha de três livros sobre cuidados em 2002 (Zelizer, 2002Zelizer, Viviana. (2002). How care counts. Contemporary Sociology, 31/2, p. 115-119.). Um dos livros era de Nancy Folbre (2001Folbre, Nancy. (2001). The invisible heart: economics and family values. New York: New Press.), a quem mencionamos antes. Em 2002, já estava trabalhando em A Negociação da Intimidade. Tenho a sensação, e não posso dizer com certeza, porque não me lembro, mas acho que a conexão está nessas conversas que tive no início com as economistas feministas e teóricas do direito que estavam muito preocupadas com a economia do cuidado - e é por isso também que elas se interessaram pelas minhas pesquisas sobre domicílios e dinheiro. Em termos do que chamo de perspectiva dos mundos hostis (Zelizer, 2005aZelizer, Viviana. (2005a). The Purchase of intimacy. Princeton: Princeton University Press.; 2005bZelizer, Viviana. (2005b). Circuits within capitalism. In: Nee, Victor & Swedberg, Richard. (orgs.). The economic sociology of capitalism. Princeton: Princeton University Press . p. 289-322.; 2009Zelizer, Viviana. (2009). Dualidades perigosas. Mana, 15/1, p. 237-256.), os “mundos” referem-se a esse enquadramento que define as transações econômicas como o contrário ou o lado oposto das conexões íntimas e, portanto, teoriza que qualquer contato entre as duas esferas levará à corrupção da intimidade e das conexões sentimentais. O cuidado remunerado é uma espécie de pesadelo para os teóricos dos mundos hostis porque parece estar corrompendo a conexão sentimental derradeira e mais preciosa: cuidar de outra pessoa. E isso também levou a uma certa resistência, especialmente nos Estados Unidos, um pouco menos na Europa, às/aos cuidadoras/es familiares remuneradas/os. Isso está mudando agora. Nadya Guimarães (2020Guimarães, Nadya Araujo & Hirata, Helena. (2020). El cuidado: sus formas, relaciones y actores: reflexiones a partir del caso de Brasil. In: Guimarães, Nadya Araujo & Hirata, Helena (orgs.). El cuidado en América Latina: mirando los casos de Argentina, Brasil, Chile, Colombia y Uruguay. Buenos Aires: Fundación Medifé Edita. p. 75-117.; 2021Guimarães, Nadya Araujo. (2021). The circuits of care: reflections from the Brazilian case. In: Guimarães, Nadya Araujo & Hirata, Helena (orgs.). Care and care workers: a Latin American perspective. Cham: Springer Nature Switzerland. p. 125-147.) escreveu extensivamente sobre as duas categorias diferentes de cuidadoras: remuneradas e não remuneradas. Ambas as categorias carregam a suspeita de receberem algum tipo de compensação pelo que deveria ser feito como um presente. Quando se trata de cuidadoras remuneradas, isso frequentemente significa que elas são mal pagas porque seu trabalho não é definido como “trabalho real” - como se um pagamento mais baixo garantisse um cuidado “autêntico”.

É por isso que o tema dos cuidados surgiu para mim como um exemplo contundente de como teorias equivocadas dos mundos hostis podem ter consequências práticas, negativas e prejudiciais para os/as cuidadores/as.

Agora, também me lembro que a questão da economia do cuidado me intrigou, pois proporcionava uma conexão entre meu trabalho e políticas sociais, ao mostrar que teorias equivocadas dos mundos hostis levam a políticas ruins, como remunerar muito mal as contribuições vitais das cuidadoras, auxiliares de saúde, babás, enfermeiras, etc. A baixa remuneração das/os trabalhadoras/es do cuidado em saúde ficou muito visível com a covid-19, nos Estados Unidos e em outros lugares. Lembro que, em certo momento, quando estava escrevendo sobre a economia das crianças, fiquei muito interessada nas crianças como cuidadoras. Há muitas crianças em todo o mundo, incluindo nos Estados Unidos, que estão cuidando de irmãs/os, pais ou avós, e que às vezes são responsáveis por procedimentos de saúde mais simples. Fiquei interessada nisso porque sabia que havia programas na Inglaterra que compensavam financeiramente crianças que eram cuidadoras. Naquela época, lembro de ligar para alguma divisão do governo nos Estados Unidos perguntando sobre arranjos de compensação para crianças cuidadoras e a resposta foi: “Não, não, não pagamos crianças”. A possibilidade não existia. Esse mesmo desconforto também foi observado em relação às/aos cuidadoras/es familiares de maneira mais ampla. No entanto, houve alguma mudança. Durante a covid-19 nos Estados Unidos, foi relatado que as chamadas mais frequentes que as organizações nacionais de cuidados recebiam eram de familiares, justamente perguntando se poderiam ser pagas/os como cuidadoras/es. Portanto, novos programas de cuidado familiar remunerado surgiram. Tenho um artigo sobre esse tema (Zelizer, 2010Zelizer, Viviana. (2010). Caring everywhere. In: Boris, Eileen & Parreñas, Rhacel Salazar. Intimate laborers: cultures, technologies, and the politics of care. Stanford: Stanford University Press, p. 267-279.) onde reviso programas europeus mais antigos de cuidado familiar remunerado.

O que também é muito importante observar é a preocupação de algumas estudiosas feministas sobre os sistemas de cuidado familiar remunerado, que normalmente subvencionam mulheres, como filhas e esposas.

Qual é a preocupação? Que ao subsidiar as obrigações de cuidado das mulheres pagando-as, digamos, para serem cuidadoras familiares, acabamos circunscrevendo ainda mais as mulheres aos papéis domésticos. Em vez de oferecer um suporte social mais amplo, você está fornecendo suporte econômico para que as mulheres permaneçam em seu papel como cuidadoras familiares. E a preocupação é: isso não as confina?

Como outro exemplo da urgência de desenvolver políticas melhores de apoio aos cuidados, um artigo recente no The New York Times (Cottle, 2023Cottle, Michelle. (2023). You shouldn’t have to take care of your aging parents on your own. Disponível em: Disponível em: https://www.nytimes.com/2023/09/06/opinion/seniors-home-care-aging.html . Acesso em: 2 nov. 2023.
https://www.nytimes.com/2023/09/06/opini...
) mostra que a falta de apoio social levou a uma crise crescente para adultos que cuidam de seus pais. Muitos têm que sair dos empregos por esse motivo. Observem que, para a maioria dos idosos americanos - e este é um dado que acabou de sair há algumas semanas em um artigo - o cuidado será provido de maneira não remunerada por membros da família ou amigas/os. Estima-se que esse trabalho gratuito tenha contribuído com cerca de US$ 600 bilhões para a economia em 2021. Para aquelas/es que prestam o trabalho, como o artigo observa, esse cuidado não é gratuito, pois elas/es normalmente dependem de seus próprios fundos de aposentadoria. A maioria das pessoas que cuidam, não surpreendentemente, são mulheres.

Então, essa é a resposta longa sobre minha pesquisa sobre a economia do cuidado. Também escrevi um artigo de opinião no The Guardian (Zelizer, 2005cZelizer, Viviana. (2005c). Intimate truths. Disponível em: Disponível em: https://www.theguardian.com/news/2005/sep/24/mainsection.saturday3 . Acesso em: 2 nov. 2023.
https://www.theguardian.com/news/2005/se...
), em que conectei os cuidados aos eventos de 11 de setembro e aos acordos financeiros que foram feitos em tempos de tragédia. Aqui, surgiu a questão sobre compensação legal pelo trabalho de cuidado não remunerado.

E quanto ao meu envolvimento pessoal com os cuidados? Por muito tempo, não tive conexão pessoal com o assunto. Mas então, depois de escrever A Negociação da Intimidade, vivi a questão do cuidado remunerado com minha própria mãe em minha cidade natal, Buenos Aires. Meu irmão, que é médico, assumiu os cuidados da minha mãe quando ela adoeceu. Somente depois contratamos um auxílio remunerado. Então, vivenciei pessoalmente as limitações de uma visão de ‘mundos hostis’, pois essa cuidadora bem remunerada não apenas prestava um cuidado maravilhoso para minha mãe, mas também desenvolveu laços íntimos com ela e minha família. Então, vivi as questões sobre as quais vinha escrevendo por tanto tempo.

Alguns/mas dos/as alunos/as que frequentaram meus cursos e leram meu trabalho, à medida que tinham seus próprios filhos, relatavam suas experiências ao participar do cuidado remunerado com aquelas/es que contrataram para cuidar de seus/suas filhos/as. Elas/es começaram a viver a negociação de dinheiro e as relações íntimas de uma forma muito pessoal. Que tipo de relação é essa? É íntima, se você tem o poder de demitir a trabalhadora? Mas, ao mesmo tempo, você depende da cuidadora. Como expressar afeto? Que tipo de presentes trocar?

A.B.A, T.M: Gostaríamos agora de aprofundar um pouco mais sobre a conexão entre economia e intimidade. Em seu trabalho, você enfatiza o papel crucial da confiança nas relações sociais. Como você acha que a tecnologia poderia transformar ou interferir nessa lógica? Estamos pensando em fenômenos “novos” como aplicativos de namoro, aplicativos para contratar trabalhadoras domésticas e até robôs projetados para ‘interagir’ com os idosos e entretê-los. E como isso poderia mudar - se é que muda - nossa compreensão da intimidade?

V.Z: Em termos do impacto da tecnologia, lembro-me de discutir o aplicativo Venmo em entrevistas anteriores (Zelizer et al., 2017aZelizer, Viviana et al. (2017a). A negociação da intimidade, dez anos depois: Entrevista com Viviana Zelizer. Tempo Social, 29/1, p. 190-209.; Zelizer, 2023Zelizer, Viviana. (2023). Finding the value of money: interview with Dr. Viviana Zelizer. Disponível em: Disponível em: https://academicinfluence.com/interviews/sociology/viviana-zelizer . Acesso em: 10 dez. 2023.
https://academicinfluence.com/interviews...
). Obviamente, há uma interação entre todos esses fatores: tecnologia, novas formas de moedas digitais e nossas relações íntimas. Além disso, sempre houve o medo de que a tecnologia iria minar as relações pessoais.

Quando se trata de dinheiro, observem outro paradoxo: no início do século XX, o grande medo era que o dinheiro homogeneizasse e, assim, minasse as relações pessoais em prol do lucro. Agora, no século XXI, vimos uma multiplicação de diferentes tipos de moedas, não apenas moedas internacionais como o euro, mas muitas moedas digitais, bitcoin e mais.

O mundo dos dinheiros está, portanto, se diversificando e se tornando mais personalizado. Mas os medos sobre o impacto desses novos dinheiros nas relações ainda não desapareceram. E, ainda assim, as relações sociais, embora possam mudar em forma e conteúdo, continuarão a moldar os usos e significados do dinheiro.

Se estiverem interessadas, tenho um ensaio na Los Angeles Review of Books de alguns anos atrás (Zelizer, 2017bZelizer, Viviana. (2017b). A dollar is a dollar is not a dollar: unmasking the social and moral meanings of money. Disponível em: Disponível em: https://lareviewofbooks.org/article/a-dollar-is-a-dollar-is-not-a-dollar-unmasking-the-social-and-moral-meanings-of-money . Acesso em: 10 dez. 2023.
https://lareviewofbooks.org/article/a-do...
) que menciona algumas dessas transformações.

A.B.A, T.M: Muito obrigada!

V.Z: Espero que a conversa continue!

Figura 1
Syllabus da disciplina Sex Roles And Society, ministrada por Zelizer em 1981 na Universidade de Columbia

REFERÊNCIAS

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    » https://academicinfluence.com/interviews/sociology/viviana-zelizer
  • 1
  • 2
    Gostaríamos de agradecer ao trabalho de Daniele Thomaz pelo cuidadoso acompanhamento de todo o processo desta publicação. Agradecemos também a gentileza de Jonas Delecave pela leitura atenciosa.
  • 3
    Em inglês, queering economies. Optamos por traduzir como queerizar, notando que a tradução de queer é particularmente complexa para o contexto lusófono (Alós, 2020Alós, Anselmo Pereira. (2020). Traduzir o queer: uma opção viável? Revista Estudos Feministas, 28/2, e60099.; Pelúcio, 2014Pelúcio, Larissa. (2014). Traduções e torções, ou o que se quer dizer quando dizemos queer no Brasil?. Revista Periódicus, 1/1, p. 1-24.).
  • 4
    Optamos por traduzir tanto money quanto monies por dinheiro, mas colocando a palavra em itálico no segundo caso.
  • 5
    Optamos por traduzir surrogate mothers por barrigas de aluguel. É necessário dizer, no entanto, que esse termo pode carregar conotações negativas ou contraditórias, especialmente no Brasil, onde é proibido que a gestação por substituição seja remunerada (Graziuso, 2018Graziuso, Bruna Kern. (2018). Gestação de substituição no Brasil e nos Estados Unidos: regulamentações e práticas de casos nacionais e transnacionais. Dissertação de Mestrado. PPGD/Universidade La Salle.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    12 Abr 2024
  • Aceito
    13 Maio 2024
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