Resumo:
O artigo aborda o conceito de carisma de Max Weber, tomando como hipótese a relação entre a categoria do carisma e um problema de explicação, que pode ser sintetizado na pergunta: como surge o novo na história e como o mundo se transforma e toma uma nova direção? O carisma não é apenas um tipo (de dominação) irracional e revolucionário; porém, principalmente, um modelo sociológico explicativo para a compreensão da mudança social. Neste sentido, Weber elabora o conceito do carisma como uma categoria complementar ao conceito de racionalismo. A história da sociedade se movimenta no campo das tensões entre o irracionalismo e o irracionalismo. O carisma pode ser visto como uma chave sociológica para o entendimento dos processos sociais nos quais as aparentes tendências evolucionistas e unidimensionais do racionalismo se rompem de modo explosivo, suspendendo as instituições para ganhar o domínio e controle através de formas pessoalizadas em contextos coletivos. O processo de cotidianização do carisma, entretanto, acaba sempre em nova racionalização das esferas da vida.
Palavras-chave:
Max Weber; Carisma; Racionalidade; Irracionalidade; Mudança social
Abstract:
The article discusses Max Weber's concept of charisma, taking as a hypothesis the relationship that the author establishes between the category of charisma and a problem of explanation, which can be summarized by the question: how the new emerges in history and how the world turns and takes a new direction? Charisma is not just one type (of domination) irrational and revolutionary; however, it is mainly a sociological explanatory model for understanding social change. In this sense, Weber elaborates the concept of charisma as a complementary category to the concept of rationalism. The history of society moves in the field of tension between rationalism and irrationalism. Charisma can be seen as a key to the sociological understanding of social processes in which the apparent evolutionary and one-dimensional trends of rationalism burst explosively, suspending the institutions to gain mastery and control in ways to personalize collective contexts. The process of turning charisma part of the everyday experience, however, always leads to further rationalization of the spheres of life.
Keywords:
Max Weber; Charisma; Rationality; Irrationality; Social change
O ENIGMA DE EUCLIDES DA CUNHA
Em Os sertões: campanha de Canudos , de 1902, o jornalista e escritor Euclides da Cunha relata, em forma de uma "densa descrição", um conflito social que se transformaria em uma tragédia nacional e, ao mesmo tempo, seria estilizado como um dos mitos de fundação do Brasil republicano. Após quatro campanhas que haviam mobilizado dezenas de brigadas com milhares de combatentes fortemente armados (e uma dúzia de canhões alemães produzidos pela firma Krupp), as tropas republicanas, em outubro de 1897, após o sítio de Canudos - um miserável povoado no interior da Bahia -, que durara onze meses, conseguiram romper a encarniçada resistência dos seguidores e discípulos do pregador e autodenominado profeta Antônio Vicente Mendes Maciel, o assim chamado Conselheiro. As tropas destruíram o templo construído pelos habitantes, arrasaram a cidade e causaram um massacre em sua população. "Aquilo não era uma campanha, era uma charqueada", escreve Euclides da Cunha (2009: 475)Cunha, Euclides da. Os sertões: campanha de Canudos. São Paulo: Ateliê, 2009..
Quem era esse Conselheiro que levou o governo da Primeira República brasileira a fazer uma campanha de grandes perdas contra uma pequena comunidade ascético-religiosa, que, partindo de Salvador, gerou uma onda de solidariedade nacional com os soldados combatentes e que viria a ser o berço da consciência brasileira nacional, o nascimento da nação? Que estranho fenômeno do longínquo sertão era esse que tanto irritou as pessoas de todo um país e polarizou a sociedade?
Para o governo brasileiro e o público político, ainda rudimentar na virada do século XX, de leitores de jornais, em Canudos, nada menos "estava em jogo [...] [do que] a sorte da República" (2009: 313). Corria o boato de que o Conselheiro estaria pregando contra a jovem República e de que Canudos era uma cidadela dos monarquistas que estariam usando os sertanejos para avançar os seus objetivos políticos. Cunha, porém, descreve o pregador ascético do sertão como um "gnóstico bronco" (2009: 139)Cunha, Euclides da. Os sertões: campanha de Canudos. São Paulo: Ateliê, 2009. e o compara com os "chefes de seitas dos primeiros séculos" (2009: 153). Na tentativa, influenciada pelo positivismo francês, de compreender os acontecimentos de modo científico e objetivo, Cunha esboça uma imagem do extraordinário líder sectário e seus seguidores, que oscila entre loucura e heroísmo, entre psicose mística e personalização da sociedade arcaico-campesina do sertão, portanto uma imagem bem ambivalente. O nosso cronista positivista interpreta os acontecimentos com as categorias do seu tempo, marcado por um otimismo progressista e um racionalismo positivista. Logo, a piedade místico-religiosa e a crença milagreira da sociedade de Canudos se apresentavam como reflexo dos "estigmas de estádios inferiores" (2009: 132). Para ele, a guerra no sertão representava o último alvoroço da luta entre modernidade e religião, entre iluminismo e superstição. "Havia ali uma inversão de papéis. Os homens, aparelhados pelos recursos bélicos da indústria moderna, é que eram materialmente forte e brutais, jogando pela boca dos canhões toneladas de aço em cima dos rebeldes que lhes antepunham a esgrima magistral de inextricáveis ardis" (2009: 364). Qual era o fundamento dessa resistência determinada, irracional e destemida, que não recuava diante de nenhum risco, e dessa capacidade de sofrimento e autossacrifício aparentemente ilimitada da comunidade de Canudos, que só pôde ser vencida por uma extrema violência militar e apenas após pesadas derrotas sofridas pelas tropas?
Para Euclides da Cunha, o Conselheiro e sua comunidade representavam um mistério. De modo bem positivista, ele recorreu às ciências contemporâneas: geografia, botânica, etnologia, engenharia militar, história, psicologia das massas e, também, a ainda jovem sociologia. Era o "não vulgar prestígio" (2009: 148), nutrido pela ascese virtuosa, que aderia ao "falso apóstolo" (2009: 138)? Ou era o "hipnotismo daquela insânia formidável" (2009: 153), com o qual ele influenciava os seus seguidores? Ou será que aqui se manifestavam as "camadas profundas da nossa estratificação étnica" (2009: 137)? Era, talvez, o "documento vivo de atavismo" (2009: 69), o resíduo personificado de uma cultura do deserto, há séculos isolada da civilização?
No final das contas e apesar de todos os esforços de Euclides da Cunha em elaborar uma caracterização clara, o Conselheiro de Canudos continuou sendo para ele um fenômeno social amorfo e indefinido. Ele não dispunha da teoria sociológica adequada nem do termo específico e esclarecedor para aquilo que observava e desejava entender. A terminologia do seu tempo ainda não oferecia uma categoria suficientemente precisa que permitisse descrever e analisar de forma adequada fenômenos sociais irracionais como o messianismo do Conselheiro e a comunidade religiosa de Canudos. Por isso, a magnífica narrativa de Euclides da Cunha sobre a guerra no sertão não pôde oferecer uma explicação sociológica satisfatória para a intensidade extraordinária da fé e do sacrifício coletivos que o Conselheiro conseguira evocar nas pessoas que o cercavam.
Foi Max Weber que, na década entre 1910 e 1920, criou um tipo ideal sociológico através do conceito de carisma que nos permite entender e explicar fenômenos sociais, caracterizados geralmente - e de forma alguma restrita apenas à vida religiosa - em sua oposição ao cotidiano, ordenado e duradouro. Quando Weber separou o conceito de carisma dos seus contextos originais mágico-religiosos e teológicos, e a partir dele desenvolveu um tipo ideal sociológico, ele conferiu ao irracional, extracotidiano e singular, ou seja, ao "outro lado" da normalidade e racionalidade do mundo da vivência, um status conceitual e um sólido fundamento teórico próprio. Com isso, as forças sociais afetivas e, em termos gerais, não racionais, que, além disso, rompem de forma abrupta e radical com as tradições e rotinas do dia a dia e geram algo radicalmente novo, se tornaram, pela primeira vez,1 1 Desconsidero aqui o esboço, de Vilfredo Pareto, de uma sociologia da ação não lógica, publicado em 1916. Pareto não dispõe de nenhum conceito que possa ser comparado com o paradigma do carisma de Weber. Além disso, tudo indica que Max Weber não conhecia a obra de Pareto (Bach, 2004). acessíveis a uma análise sociológica sistemática. Weber vê uma ligação entre o conceito do carisma e um problema de explicação específico, que pode ser elucidado através da seguinte pergunta: Como se desenvolve algo novo na história? O que origina revoluções que transformam o mundo? E o que causa um novo início e uma mudança de direção no decorrer da história da sociedade? O carisma, portanto, precisa ser compreendido não só como um modelo tipológico, mas também e principalmente como modelo de explicação.2 2 Quanto à acusação do "anatomismo dos tipos", ver Schluchter (1998: 20). Mais ainda: com o conceito de carisma, Max Weber desenvolve uma forte categoria complementar ao conceito de racionalismo. Portanto, a história da sociedade se movimenta em um campo de tensão constante entre racionalização e desracionalização. Na sociologia de Weber, "racionalismo e carisma criam assim uma polaridade essencial" (Green, 1980Green, Martin. Else und Frieda: die Richthofen-Schwestern. München: Deutscher Taschenbuch Verl, 1980.: 206). Estamos, então, lidando com um processo "dialético", cuja tensão básica Weber tenta captar de modo teórico através dos termos carisma versus racionalismo. O carisma precisa, então, também ser entendido como chave sociológica para a compreensão daquelas correntes sociais que interrompem, muitas vezes de forma inesperada e abrupta, a teleologia aparentemente evolucionista e unidimensional do racionalismo, suspendendo os valores institucionais vigentes e fazendo com que, através de personificações, novos coletivos com forte pressão para a conformidade conquistem o controle. Portanto, o conceito de carisma não possui, na obra tardia de Weber,3 3 O conceito do carisma conquistou uma posição de impor tância sistemática na obra de Weber apenas a partir de, mais ou menos, 1910 (Kroll, 2001; Hanke, 2005). apenas um status residual reservado para a descrição de epifenômenos ou anomalias sociais. Weber usa o carisma para denotar uma tensão fundamental que, como processo contrário, sempre está presente no cosmo do racionalismo fundamentalmente contraditório em si mesmo.
Neste artigo, ambas as teses sobre o modelo de carisma weberiano serão explicadas e demonstradas em maior detalhe. Começo com a pergunta pelo conteúdo explanatório do modelo e, então, investigo a relação tensional, imanente à teoria, entre o carisma e o racionalismo.
O PROBLEMA DA EXPLICAÇÃO: O CARISMA COMO PODER REVOLUCIONÁRIO NA HISTÓRIA
Em sua sociologia da dominação, Max Weber contrapõe a "dominação carismática" aos tipos "tradicional" e "legal-burocrático" de dominação. Weber nota que a dominação carismática "destitui (dentro de seu âmbito) o passado e é, nesse sentido, especificamente revolucionária". Em Economia e sociedade ele explica isso em maior detalhe:
O carisma é a grande força revolucionária nas épocas com forte vinculação à tradição [...] O carisma destrói [...] em suas formas de manifestação mais sublimes regra e tradição e inverte todos os conceitos sacrais. Ao invés da piedade em relação àquilo que é, desde sempre, considerado comum, e por isso sacral, ele força a sujeição interna sob aquilo que nunca antes existiu, sob o absolutamente singular, e por isso divino. Nesse sentido puramente empírico e neutro, é, porém, o poder especificamente criativo e revolucionário da história (Weber, 1991Weber, Max. Economia e sociedade. Brasília: Ed. UnB , 1991 (vol. 1).: 161).
Weber, portanto, reconhece no carisma uma força social essencialmente criativa ou destrutiva que irrompe de modo abrupto no decorrer dos acontecimentos e que pode dar à história um rumo novo, dar origem a uma nova religião, destruir as ordens e instituições políticas dominantes ou abrir o caminho para novas formas de vida, de uma ética e constituição econômica sem precedentes históricos. Para Weber, esse tipo de mudança de rumo histórico não acontece de forma evolucionista, silenciosa, imperceptível e gradativa. Antes, deve ser comparado com um choque ou aquele "big bang", através do qual se deu a origem dos sistemas planetários (Moscovici, 1988Moscovici, Serge. La machine à faire des dieux: sociologie et psychologie. Paris: Fayard, 1988.: 154). Sob condições específicas, também pode desencadear cadeias de efeitos com consequências graves e de virulência duradoura, que continuam a ecoar nos destinos de gerações e séculos e, em certos casos, causam um efeito "até a queima da última tonelada de combustível fóssil" (Weber, 1988Weber, Max. Gesammelte Aufsätze zur Religionssoziologie. Tübingen: J. C. B. Mohr, 1988 (vol. 1).: 203). O movimento criado por Jesus no primeiro século foi um desses acontecimentos incisivos, mas também, quinze séculos mais tarde, a Reforma de Lutero, Calvino e Zwinglio, que representavam um novo tipo de profeta que, de acordo com Weber, abriu o caminho para o racionalismo ocidental e, portanto, para a modernidade (Ebertz, 1987Ebertz, Michael N. Das Charisma des Gekreuzigten: Zur Soziologie der Jesusbewegung. Tübingen: Mohr Siebeck, 1987.; Schluchter, 1999aSchluchter, Wolfgang. A origem do modo de vida burguês. In: Souza, Jessé de (org.). O malandro e o protestante: a tese weberiana e a singularidade cultural brasileira. Brasília: Ed. UnB, 1999a, p. 121-136., 1999b). A esse tipo, porém, pertencem também, só para mencionar alguns poucos exemplos marcantes e proeminentes, os inúmeros movimentos messiânicos que surgiram durante toda a Idade Média e até o século XIX,4 4 Ver, para o Brasil, Pereira de Queiroz (2006); Facó (2009). de "apóstolos" autodenominados como, por exemplo, o já mencionado Conselheiro de Canudos; ou também ditaduras políticas como a de Mussolini, na Itália, ou a de Hitler, na Alemanha (Lepsius, 1993Lepsius, Rainer M. Das Modell der charismatischen Herrschaft und seine Anwendbarkeit auf den "Führerstaat". In: Demokratie in Deutschland. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1993, p. 95-118.; Bach & Breuer, 2010 ______& Breuer, Stefan. Der Faschismus als Bewegung und Regime: Italien und Deutschland im Vergleich. Wiesbaden: Verlag für Sozialwissenschaften, 2010.). A maioria desses movimentos "revolucionários" pode ser analisada de forma proveitosa com o tipo ideal weberiano de dominação carismática como modelo analítico heurístico, comforme comprova a volumosa literatura de pesquisa histórica (Nippel, 2000Nippel, Wilfried (org.). Virtuosen der Macht: Herrschaft und Charisma von Perikles bis Mao. München: C. H. Beck, 2000.; Möller, 2004Möller, Frank (org.). Charismatische Führer der deutschen Nation. München: Oldenbourg, 2004.).
Mas como explicar teoricamente essas rupturas repentinas e imediatas, causadas por processos carismáticos, com as ordens tradicionais? Quais são os processos sociais responsáveis por elas? Como podem ser descritas as formas típicas de seu desdobramento? Segundo Weber, o ponto de partida fundamental sempre é encontrado em novos conceitos de valores com pretensão de validade e que, assim, adquirem uma relevância prática para o modo de agir dos grupos sociais de seus defensores. Aqui, basta lembrar a famosa metáfora da "agulha ferroviária" da introdução à Ética econômica das religiões mundiais: "Interesses (materiais e ideais), e não ideias dominam de forma imediata a ação dos seres humanos. Mas: as 'imagens do mundo', criadas pelas ideias, têm, muitas vezes, e semelhante a agulhas ferroviárias, determinado os trilhos pelos quais a dinâmica dos interesses fez seguir a ação. Pois ela se orientava pela imagem do mundo: 'De que' e 'para que' queriam - e, para não esquecer: podiam - ser salvos?" (Weber, 1988Weber, Max. Gesammelte Aufsätze zur Religionssoziologie. Tübingen: J. C. B. Mohr, 1988 (vol. 1).: 252).
Os processos carismáticos também exercem a função de "agulhas", no sentido duplo da citação: de um lado, como caminhos da salvação predeterminados pelas ideias, pois o carisma é, em sua compreensão religiosa original, ao mesmo tempo força e símbolo da transcendência e da teodiceia; de outro, porém, também determinam os "trilhos" dos interesses cotidianos, como explicarei em maior detalhe mais abaixo.
Os fundamentos sociológico-religiosos do carisma
Para a gênese de processos genuinamente carismáticos, é decisiva, por parte de um círculo limitado de pessoas, a crença nas qualidades extracotidianas do pregador ou na personificação de novas ideias de valores. A fé como relacionamento de confiança incondicional em algo, seja isso algum poder mágico, Deus, a razão ou até mesmo as supostas faculdades "sobre-humanas" de uma pessoa, é essencialmente uma dimensão de sentido irracional que, pela sua natureza, dificilmente pode ser conciliada de forma duradoura com as exigências racionais do intelectualismo e do conhecimento racional.
Segundo Weber, existe um forte vínculo entre a fé e o "problema da teodiceia", a experiência da falta de sentido, da imperfeição e injustiça no mundo, que "faz parte universalmente das causas determinantes do desenvolvimento religioso e da necessidade de salvação" (Weber, 1991: 351). Independentemente de como as diferentes religiões "racionalizaram" o problema da teodiceia em suas representações de pecado e salvação de forma prática, em todos os casos ele é superado pela referência a um nível de sentido transcendente e extracotidiano (Kippenberg, 1991Kippenberg, Hans. Die vorderasiatischen Erlösungsreligionen. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1991.: 41-ss). Para Weber, o carisma é, nesse contexto, um conceito geral que vence o abismo entre o nível extrassensorial e o mundo do aquém, que sempre é o alvo das ações mágicas e religiosas (Kippenberg, 1991: 43). A irresistível força do carisma é o núcleo e a essência da ação e do pensamento religiosos. É o objeto central da fé, o mana, o numen, o pneuma ou o sagrado. Muitas vezes, as disposições da fé surgem ou se intensificam em tempos de crise, em que a estrutura herdada de instituições e valores sociais perde o equilíbrio, em que há anomia (no sentido empregado por Durkheim) e em que novas soluções precisam ser encontradas para problemas que até então muitas vezes eram desconhecidos. Já para o surgimento do movimento de Jesus, que, para Weber, é, em muitos sentidos, o exemplo histórico-empírico para o desenvolvimento do tipo de dominação carismática, é evidente que ele teve sua origem em uma zona de crise e conflito socioeconômica, que marcava "a sociedade judaico-palestina da 'virada dos tempos'" (Ebertz, 1987Ebertz, Michael N. Das Charisma des Gekreuzigten: Zur Soziologie der Jesusbewegung. Tübingen: Mohr Siebeck, 1987.: 53-ss, 153-ss; Schluchter, 1988: 232-ss).5 5 Também no surgimento do movimento sectário do Conselheiro de Canudos e em semelhantes movimentos socialreligiosos posteriores (como, por exemplo, o movimento do Padre Cícero Romão Batista, no Cariri do Ceará) o papel exercido por manifestações de crise social em decorrência da transformação estrutural nos latifúndios após a abolição da escravidão e da dramática perda de legitimação da Igreja Católica foi de importância fundamental, como demonstra de forma convincente Rui Facó (2009: 25-ss). Mas uma crise social, muitas vezes, também é o momento da confiança cega e da esperança, do fácil cultivo do entusiasmo através de promessas de salvação e redenção religiosas, mas também seculares (como, por exemplo, políticas).
As expectativas irracionais adquirem uma força de interpretação e mobilização autorreforçadora, principalmente quando são experimentadas em um coletivo. Isso não estabiliza apenas as convicções, através da pressão para imitação, do controle social e da autoafirmação social pelo companheiro na fé. Assim, através de mensagens e sua simbolização, a comunidade religiosa se assegura de sua união, o que aumenta a pressão para a conformidade. No movimento de Jesus, por exemplo, o estigma e, em particular, a autoestigmatização do Jesus de Nazaré exerceram essa função (Lipp, 2010Lipp, Wolfgang. Stigma und Charisma: Über soziales Grenzverhalten. Würzburg: Ergon, 2010.); na Alemanha nacional-socialista, a chamada "saudação alemã" assumiu um significado funcional equivalente para a "comunidade do povo alemão" (Allert, 2005Allert, Tilman. Der deutsche Gruß: Geschichte einer unheilvollen Gesten. Frankfurt am Main: Eichborn, 2005.).
A vivência coletiva da fé oferece ao pretendente carismático oportunidades para a aquisição de poder, que podem ser aproveitadas de forma consciente ou acidental, dado que, como pessoa, ele consegue se transformar na única garantia para a realização e a pureza dos conteúdos religiosos proclamados e exigir, no interesse da realização das promessas de redenção e/ou dos efeitos caritativos positivos vinculados à sua missão pessoal, uma obediência incondicional de seus seguidores e discípulos. Neste caso, porém, o carisma "força" a "sujeição" como consequência da lealdade aos valores, no nível da ação. Assim, o carisma se transforma em um recurso de poder e passa a constituir, ao mesmo tempo, uma relação de dominação.
Poder e dominação são, de acordo com Weber, relações sociais. Eles se baseiam em interações, em "efeitos recíprocos" no sentido dado por Simmel. Relações de poder e dominação são, evidentemente, relações sociais assimétricas, mas sempre pressupõem a disposição ou um interesse em obedecer, um "mínimo de vontade de obediência", como Weber escreve, por parte dos subjugados pelo poder (Weber, 1991: 139). Sem a aceitação da pretensão de dominação por parte dos subjugados não pode existir uma dominação legítima e, com isso, também nenhuma chance de permanência e criação de ordem. Em relações genuinamente carismáticas, porém, os "motivos de submissão" específicos não podem ser encontrados em interesses de fins racionais nem na ação habitual do cotidiano. Pelo contrário, o que age de forma decisiva aqui são motivos específicos de valores racionais, ou seja, a dedicação irracional ao exagerado valor próprio de ideais ético-morais, sociais ou políticos. Weber fala nesse contexto também de uma "comoção" causada pela pregação.
A obrigação de obediência em relação ao portador do carisma resulta, de um lado, da devoção ao absolutismo, a mensagem proclamada e, de outro, da fé nas qualidades espirituais e físicas da pessoa de seu portador, da qual o sucesso da missão parece depender essencialmente. É por isso que justo a personalidade do indivíduo carismaticamente qualificado assume uma posição tão predominante dentro da comunidade carismática dos fieis - mesmo que o carisma como dimensão de sentido e experiência do extracotidiano seja, naturalmente, um fenômeno de emergência da respectiva comunidade e de sua comunicação religiosa.6 6 Quanto à dimensão comunicativa da religião, ver Rippenberg (1991: 43). Resumindo, a dominação carismática é caracterizada em essência pela personificação das orientações de valores vinculadas à missão e pela relação de autoridade. A personificação se baseia em um processo psicológico de atribuição coletiva de faculdades extraordinárias. À pessoa carismaticamente qualificada é atribuída ou insinuada característica de personalidade "em virtude da qual se atribuem a uma pessoa poderes ou qualidades sobrenaturais, sobre-humanos ou, pelo menos, extracotidianos específicos ou então se a toma como enviada por Deus, como exemplar, e, portanto, como 'líder'" (Weber, 1991Weber, Max. Economia e sociedade. Brasília: Ed. UnB , 1991 (vol. 1).: 159).
Pelo que vejo, Weber não explica em nenhum lugar o processo que possibilita essa estrutura de atribuição e expectativa. Mas é fácil deduzir uma explicação plausível a partir da teoria da ação de Weber: fundamenta-se no poder de ação das ideias e na necessidade de criação e orientação de sentido (Weber, 1991: 3-ss). Sob determinadas condições sociais - já falamos da importância das crises -, da procura por sentido e do poder de ação emana uma força poderosa capaz de exercer tamanho fascínio sobre as pessoas ao ponto de vivenciarem uma conversão, reforçada pela simultaneidade coletiva e em conexão com a pretensão autoritária de liderança de uma personalidade considerada extraordinária, que seja capaz de dar um rumo completamente novo ao pensamento, sentimento e vida das pessoas "afetadas" nesse sentido. O núcleo "psicológico" da força revolucionária do carisma é uma radical "revalorização de todos os valores", como escreve Weber: "Diferentemente da força também revolucionária da ratio [...] o carisma pode ser uma transformação com ponto de partida íntimo, a qual, nascida de miséria ou entusiasmo, significa uma modificação da direção da consciência e das ações, com orientação totalmente nova de todas as atitudes diante de todas as formas de vida e diante do 'mundo', em geral" (Weber, 1991: 161). Em outro lugar, ele escreve: "A racionalização e a 'ordem' racional revolucionam 'de fora para dentro', enquanto o carisma, ao contrário, [...] manifesta seu poder revolucionário 'de dentro para fora', a partir de uma metanoia central do modo de pensar dos dominados" (Weber, 1999Weber, Max. Economia e sociedade. Brasília: Ed. UnB , 1991 (vol. 1).: 328).
Assim, por exemplo, encontramos no início da carreira missionária de Paulo, discípulo de Jesus da segunda geração e organizador mais importante das primeiras comunidades cristãs, uma vivência de conversão, um "renascimento". Também o Conselheiro de Canudos, percebe-se, teve uma vivência de conversão: após ter sido abandonado por sua mulher,
de repente, surge-lhe revés violento. O plano inclinado daquela vida em declive termina, de golpe, em queda formidável [...] [O] infeliz procura o recesso dos sertões, paragens desconhecidas, onde lhe não saibam o nome, o abrigo da absoluta obscuridade. Desce para o sul do Ceará. Ao passar em Paus Brancos [...] fere com ímpeto de alucinado, à noite, um parente, que o hospedara [...] Salva-se da prisão. Prossegue depois para o sul, à toa, na direção do Crato. E desaparece [...] O moço infeliz de Quixeramobim ficou de todo esquecido [...] Morrera por assim dizer [...] E surgia na Bahia o anacoreta sombrio, cabelos crescidos até aos ombros, barba inculta e longa; escaveirada; olhar fulgurante; monstruoso, dentro de um hábito azul de brim americano; abordoado ao clássico bastão em que se apoia o passo tardo dos peregrinos (Cunha, 2009Cunha, Euclides da. Os sertões: campanha de Canudos. São Paulo: Ateliê, 2009.: 146-147).
Em ambos os casos, a vivência da conversão não foi consequência de um lento processo de purificação, mas uma transformação súbita das convicções, uma mudança interna da personalidade (Schluchter, 1988 ______. Umbildung des Charismas: Überlegungen zur Herrschaftssoziologie. In: Religion und Lebensführung Studien zu Max Webers Religions: und Herrschaftssoziologie. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1988, p. 535-554 (vol. 2).: 208).
A referência de Weber à metanoia deixa claro que o carisma toca uma esfera existencial de vivência e sentido dos sujeitos afetados. No nível subjetivo de sentido, os processos carismáticos questionam, nos termos da fenomenologia, os padrões de interpretação da "atitude natural do sujeito que se deixa levar pelo dia a dia" e inicia uma "mudança de atitude" radical (Schütz & Luckmann, 1984 ______ & Luckmann, Thomas. Strukturen der Lebenswelt. Frankfurt Am Main: Suhrkamp, 1984 (vol. 2).: 143). Mesmo que, na obra de Alfred Schütz, o conceito do carisma ocupe apenas um papel de importância marginal, suas reflexões sobre as "experiências-limite" (Schütz & Luckmann, 1984: 142-ss) subjetivas podem ser esclarecedoras em nosso contexto de discussão, porque chamam atenção para uma dimensão implícita e fundamentalmente significativa da experiência carismática, ou seja, para a qualidade religiosa da vivência. Schütz, portanto, nos permite interpretar o carisma como "experiência-limite" subjetiva, porque nela os respectivos indivíduos assumem "uma visão de mundo religiosa", mas sem que eles mesmos tenham que compreender esse processo como expe riência religiosa. Então, "nada mais nos impede de acreditar que uma transcendência extraterrestre possa se revelar ao ser humano de forma imediata. E uma vez que se assume essa posição, a própria realidade do cotidiano é questionada radicalmente, de forma que as contradições que, para uma atitude natural, seriam intransponíveis, se apresentam como irrelevantes" (Schütz & Luckmann, 1984 ______ & Luckmann, Thomas. Strukturen der Lebenswelt. Frankfurt Am Main: Suhrkamp, 1984 (vol. 2).: 143). A experiência do carisma é, portanto, sempre uma experiência religiosa, no sentido fenomenológico, mesmo quando os conteúdos da missão e do movimento se manifestam externamente como orientações de ação seculares, políticas ou sociais. É essencialmente essa nova codificação íntima, alimentada por motivos "religiosos" e que age "de dentro", das estruturas relevantes do mundo de vivência, que confere ao carisma sua formidável dinâmica também em suas condições externas.
Agulhagens seculares
Como vimos acima, as "ideias" assumem, segundo Weber, a função de agulha ferroviária em um sentido duplo: de um lado, em um sentido soteriológico, de outro, em um sentido secular. O segundo aspecto diz respeito à determinação dos trilhos dos interesses cotidianos. No caso do carisma, esse segundo aspecto se deve principalmente à instabilidade estrutural desse tipo de dominação. A permanência dos movimentos carismáticos está sempre particularmente ameaçada por causa de seu caráter fortemente subjetivo. Isso se deve, primeiramente, ao fato de dependerem de um intenso e intrínseco apoio motivador de todos os envolvidos que, ao longo do tempo, só pode ser mantido em casos muito raros. Além disso, padecem de uma fraqueza estrutural, porque a dominação carismática é determinada exteriormente pela vida individual do portador carismático e, com isso, é naturalmente suscetível aos riscos comuns da vida. Doença, caducidade ou morte do líder carismático ameaçam também o grupo ou o movimento.
Mas a relação de dominação também é instável devido à necessidade de a personalidade carismática precisar provar sempre de novo a sua pretensão de poder espiritual e/ou política perante seus seguidores e discípulos. Jesus, por exemplo, precisou dos milagres mágicos, enquanto Hitler criou uma fachada de justificação principalmente através dos seus sucessos militares no "Blitzkrieg", propagados pelas mídias de massa, e através da criação de uma comunidade emocional na "comunidade popular" nacional."Se por muito tempo não há provas do carisma, se o agraciado carismático parece abandonado por seu Deus ou sua força mágica ou heroica, se lhe falha o sucesso de modo permanente e, sobretudo, se sua liderança não traz nenhum bem-estar aos dominados, então há a possibilidade de desvanecer sua autoridade carismática" (Weber, 1991Weber, Max. Economia e sociedade. Brasília: Ed. UnB , 1991 (vol. 1).: 159).
É claro que "o bem-estar dos dominados" não se refere prioritária e limitadamente a gratificações materiais. Muito mais importante é a satisfação de expectativas soteriológicas criadas pela motivação carismática. Estas podem ser o alívio de aflições espirituais, o nivelamento de "dissonâncias cognitivas" e a afirmação dos valores, a coesão interna do coletivo como comunidade particular de convicções, um fortalecimento da identidade individual e coletiva, como também, por exemplo, a vitória sobre situações de crise ideais ou materiais.
A necessidade de provas, porém, também aponta para o paradoxismo da dominação carismática. Os dominados podem, diante da ausência de êxito e da falta de bem-estar, reclamar seu crédito de legitimação e destituir a pretensão de liderança do indivíduo carismaticamente qualificado de seu fundamento."O princípio carismático de legitimidade, em seu sentido original como autoritário, pode ser reinterpretado como antiautoritário, pois a vigência efetiva da autoridade carismática repousa, na realidade, inteiramente sobre o reconhecimento dos dominados, [...] que, no entanto, constitui um dever para com a pessoa carismaticamente qualificada e por isso legitimada" (Weber, 1991Weber, Max. Economia e sociedade. Brasília: Ed. UnB , 1991 (vol. 1).: 175-ss).
Como resultado intermediário, podemos, portanto, resumir: o conceito de carisma de Max Weber não se esgota em um conceito tipológico descritivo para diferenciar formas de dominação especificamente extracotidianas e formas tradicionais e legal-burocráticas que apresentam um caráter cotidiano. Antes, pode ser interpretado também como modelo de explicação para a gênese e o desenvolvimento explosivos de mudanças sociais, cuja força motriz é uma revolução de atitudes, motivada por razões internas, que transformam a personalidade. O efeito especial do carisma se manifesta no modo com que consegue suspender a validade de ordens e instituições tradicionais, legais ou burocráticas por meio da personalização de relações autoritárias e da reinterpretação das estruturas de relevância do cotidiano, de acordo com ideias "revolucionárias" de valores, e substituí-las por novas concepções de ordem e princípios de legitimidade. O ponto de partida analítico se encontra no significado da racionalidade de valores no sentido da teoria da ação, desenvolvida por Weber em Conceitos básicos de sociologia. O modelo carismático, porém, não segue uma simples causalidade; apresenta, antes, o padrão de uma estimulação circular, sendo que os efeitos agem sobre as causas e, assim, os próprios efeitos se transformam em causa dos acontecimentos, o que pode levar a resultados cumulativos. Portanto, o modelo de desenvolvimento esboçado até aqui também pode ser revertido e assumir como ponto de partida as ações atributivas do coletivo como momento causal. Sob essa perspectiva, é o coletivo dos dominados que produz e reafirma a carismatização, de certa forma projetando expectativas de poderes "sobre-humanos" sobre uma pessoa e sujeitando constantemente o crédito de legitimação a ela concedida a uma análise de solvência segundo o critério da comprovação. No caso de uma reinterpretação livre de dominação (democrática) do carisma, os dominados reconhecem o indivíduo carismaticamente qualificado, não porque este pudesse reclamar legitimidade para si mesmo, mas porque e enquanto eles o reconhecem. O reconhecimento pelos dominados é, então, "considerado fundamento, em vez de consequência, da legitimidade" (Weber, 1991: 176). Nessa reversão peculiar de sentido do carisma, o poder explosivo do extracotidiano e do irracional se manifesta novamente de forma muito clara: ele age sobre a estrutura carismática e a transforma de modo fundamental. A "reinterpretação alheia à dominação" coloca o carisma em novos trilhos, determinados por eleição, da racionalização (Breuer, 2006Breuer, Stefan. Max Webers tragische Soziologie: Aspekte und Perspektiven. Tübingen: Mohr Siebeck, 2006.: 119-ss). Outras importantes formas de transição em direção a estruturas racionais são vinculadas à "cotidianização" do carisma, sobre as quais falarei a seguir.
O CICLO DO CARISMA: DESRACIONALIZAÇÃO E RACIONALIZAÇÃO
O processo carismático não revela apenas um padrão de desenvolvimento circular, que determina sua gênese e libera sua força revolucionária na (transitória) superação do tradicionalismo de modo cumulativo. Além disso, o processo carismático, como fenômeno de transição no campo de tensão entre isolamento do cotidiano e pressões estruturais cotidianas, apresenta também uma dinâmica especificamente cíclica. O primeiro caso se deve, como tentei demonstrar anteriormente, ao fato de que o cotidiano tradicionalista, assim como o cotidiano racional, é instável e permeado de experiências-limite, que remetem a transcendências, e de disposições carismáticas (Schütz & Luckmann, 1984 ______ & Luckmann, Thomas. Strukturen der Lebenswelt. Frankfurt Am Main: Suhrkamp, 1984 (vol. 2).; Seyfarth, 1979Seyfarth, Constans. Alltag und Charisma bei Max Weber: Eine Studie zur Grundlegung der "Verstehenden Soziologie". In: Sprondel, Walter S. & Grathoff, Richard (orgs.). Alfred Schütz und die Idee des Alltags in den Sozialwissenschaften. Stuttgart: Ferdinand Enke, 1979, p. 155-177.: 164). O segundo caso está relacionado com o fato de que também as comunidades de atitudes carismáticas, cujo momentum é sua característica extracotidiana, não podem se desligar totalmente das estruturas de sentido e comunicação cotidianas nem, principalmente, das estruturas da especialização social do trabalho e da subsistência econômica. O carisma permanece sempre e de forma irrevogável, mesmo em suas formas extremas de expressão extáticas e ascéticas, uma experiência social dentro da sociedade e, portanto, deste mundo. O ciclo do carisma, que agora analisaremos em seus pormenores, se dá através de um processo social de dinâmica própria, que Weber chamou de "cotidianização".
Em sua forma genuína, a dominação carismática é de caráter especificamente extracotidiano e representa uma relação social estritamente pessoal, ligada à validade carismática de determinadas qualidades pessoais e à prova destas. Quando esta relação não é puramente efêmera, mas assume o caráter de uma relação permanente - "comunidade" de correligionários, guerreiros ou discípulos, ou associação de partido, ou associação política ou hierocrática - a dominação carismática, que, por assim dizer, somente in statu nascendi existiu em pureza típico-ideal, tem de modificar substancialmente seu caráter: tradicionaliza-se ou racionaliza-se (legaliza-se), ou ambas as coisas, em vários aspectos (Weber, 1991Weber, Max. Economia e sociedade. Brasília: Ed. UnB , 1991 (vol. 1).: 161-ss).
A dominação carismática em sua forma pura, portanto, possui relevância na prática social apenas como fenômeno efêmero de transição. Ela sempre existe apenas em sua fase inicial e está sujeita a um dinamismo interno da autodissolução e do fracasso. Os "poderes do cotidiano", acima de todas as obrigações econômicas e estruturas de poder, mas também estruturas de sentido na vivência do mundo, exigem que se pague seu tributo de imediato.
Por isso, "o movimento que arrancou o grupo carismaticamente dirigido do circuito da vida cotidiana (reflui)". Nisso, "no mínimo a dominação pura do carisma vê-se rompida, transferida ao 'institucional' e aí refratada. É então como que mecanizada, ou é imperceptivelmente substituída por outros princípios estruturais" (Weber, 1999 ______. Economia e sociedade. Brasília: Ed. UnB, 1999 (vol. 2).: 332).
Mas como se impõem os critérios de relevância do mundo de vivência, contra o distanciamento do cotidiano da missão carismática nas consequências das ações práticas? O que "rompe" frequentemente as formações de comunidades e os limites cognitivos a elas vinculados? E o que as reconduz à normalidade do cotidiano e do profano? Segundo Weber, é em primeiro lugar a força da racionalização da ação social e, em específico, a racionalidade do cotidiano. Mas como podemos definir melhor o "cotidiano" em termos sociológicos?
Apesar de Weber, a meu ver, nunca ter definido o "cotidiano" de forma mais precisa, o termo, mesmo assim, significa algo mais do que apenas um "conceito indeterminado de trabalho", como pressupõe Seyfahrt (1979: 159)Seyfarth, Constans. Alltag und Charisma bei Max Weber: Eine Studie zur Grundlegung der "Verstehenden Soziologie". In: Sprondel, Walter S. & Grathoff, Richard (orgs.). Alfred Schütz und die Idee des Alltags in den Sozialwissenschaften. Stuttgart: Ferdinand Enke, 1979, p. 155-177.. Para Weber, o "cotidiano" é, em termos gerais, um código para a esfera do mundo de vivência social, em que existe uma regularidade e previsibilidade da dinâmica social das ações; em que, portanto, as estruturas de expectativas dos atores apresentam uma medida relativamente grande de estabilidade e "naturalidade" - ou em que isso, pelo menos, pode ser presumido. Sob essas condições, e além de uma garantia de sustento e uma contínua satisfação de necessidades econômicas, também se tornam possíveis a diferenciação e a institucionalização das posições de poder e status.
Mas também no nível cognitivo encontramos no cotidiano uma qualidade de experiência, isto é, a certeza relativa a perguntas de sentido, portanto uma segurança normativa de orientação. Podemos interpretar com Alfred Schütz o mundo de vivência cotidiano como aquela esfera do mundo social em que as estruturas de relevância social (Schütz, 2004Schütz, Alfred. Der sinnhafte Aufbau der sozialen Welt: Eine Einführung in die verstehende Soziologie. Konstanz: UVK, 2004.) possuem validade inquestionada, fazendo com que os atores se apercebam e interpretem a realidade no modo da "atitude natural". Isso não só permite perseguir seus interesses de forma regular, como também uma criação de sentido suficiente e a sustentação das estruturas sociais. Nas dimensões do cotidiano, a ênfase, portanto, sempre está na continuidade e regularidade de estruturas de ação. O cotidiano é, portanto, a essência (Inbegriff) da ordem social. Essa regularidade implica a preexistência de estruturas sociais no sentido de institucionalizações, cuja validade permanece inquestionada no nível social e no mundo de vivência e que oferecem uma estrutura para expectativas de normalidade estáveis e normativas. Dentro dessa estrutura, assegura-se uma busca regular e, portanto, previsível, isto é, racional de interesses em praticamente todas as áreas da vida, principalmente, no campo de ação econômico.
O carisma como fenômeno especificamente extracotidiano consegue, portanto, irritar, as estruturas do cotidiano; não, porém, destituí-las de sua posição de predominância. Não são apenas as experiências de transposição de limites, causadas por "excitações" religiosas, políticas, estéticas, eróticas, mas em todos os casos pronunciadamente emocionais que conseguem se impor durante pouco tempo. Os interesses econômicos também perdem importância temporariamente. Segundo Weber, isso se deve ao fato de a dominação carismática ser alheia à economia. "Constitui, onde existe, uma 'vocação', no sentido enfático da palavra: como 'missão' ou 'tarefa' íntima [...] O que todos eles desdenham - enquanto existe o tipo carismático genuíno - é a economia cotidiana tradicional ou racional, a obtenção de 'receitas' regulares por meio de uma atividade econômica contínua dirigida para esse fim" (Weber, 1991Weber, Max. Economia e sociedade. Brasília: Ed. UnB , 1991 (vol. 1).: 160-161).
São, porém, justamente os interesses econômicos, que apresentam uma persistência praticamente insuperável e um poder dificilmente vencido na realidade do cotidiano. Por isso, o carisma tempestuoso-emocional e alheio à economia se encontra, "em cada hora de sua existência", a caminho de uma "lenta morte por asfixia sob o peso dos interesses materiais" (Weber, 1999 ______. Economia e sociedade. Brasília: Ed. UnB, 1999 (vol. 2).: 331).
Paradoxalmente, a predominância dos interesses materiais é reinstaurada em primeiro lugar pelos seguidores mais próximos ao portador do carisma, por seus discípulos e devotos. O círculo mais próximo ao portador do carisma se transforma, segundo Weber, na força impulsionadora da "cotidianização". A entourage do líder procura principalmente colocar sobre um "fundamento cotidiano duradouro" a própria posição dentro da comunidade carismática e as oportunidades de poder e/ou sustento vinculados a ela. Assim, interesses racionais adquirem já no estado de exceção carismático imediato uma força interpretativa para parte dos envolvidos. As lógicas de apropriação, ligadas a benesses, cargos e feudos, vindicações, títulos e poderes legais de acesso, voltam a prevalecer sobre o carisma alheio a economia, regras e cargos. A suspensão do racional é assim anulada, o momento irracional é sustado, e a normalidade novamente instaurada - e isso justamente por aqueles seguidores e discípulos que mais se aproveitam de forma imediata do estado de exceção carismático. Através de seus interesses econômicos e de status, a dominância do cotidiano é restaurada e a dinâmica revolucionária do carisma é convertida em seu oposto. Dessa forma e nesse sentido, a dominação carismática é "tradicionalizada".
Os interesses cotidianos dos seguidores e discípulos se tornam agudos quando, no mais tardar, surge a questão da sucessão. Aqui não é o lugar para explicar em detalhes a casuística weberiana da designação sucessorial, da legalização e objetivação do carisma em virtude dos processos de cotidianização (Schluchter, 1988). Basta dizer aqui que, para o processo da cotidianização, são típicos, em termos bem gerais, uma institucionalização, ou seja, "objetivação" da dominação e, com isso, um enfraquecimento da dimensão pessoal. Procedimentos formais - como, por exemplo, regras para a designação sucessorial, normas para o recrutamento dos "quadros administrativos" ou também as eleições que surgem da "redefinição do carisma como antiautoritário" (Weber, 1991Weber, Max. Economia e sociedade. Brasília: Ed. UnB , 1991 (vol. 1).: 177) - e estruturas regradas (legalidade) substituem, como motivos de legitimação tradicionais, burocráticos ou também legais, a revelação alheia a regras e o decisionismo jurídico pré-legal do carisma ("Está escrito, eu, porém, vos digo!"). Nesse sentido, a cotidianização do carisma também pode ser descrita, com Weber, como exclusão social racional. Pois em última consequência, os "quadros administrativos" carismaticamente qualificados procuram limitar sistematicamente a participação de outros atores ou comunidades e construir barreiras de acesso correspondentes. Os recursos materiais e ideais, que se encontram à sua disposição e, com isso, as oportunidades para a formação de poder e privilégios, são assim monopolizados.
Portanto, podemos concluir como segundo resultado intermediário: a dominação carismática é concebida por Weber como fenômeno de transição social específico. O poder "revolucionário", que lhe é próprio, é contrastado por uma duração apenas efêmera. O carisma, portanto, consegue causar uma perturbação passageira da realidade cotidiana, mas não romper o seu domínio estrutural de forma duradoura. O carisma genuíno rapidamente desvanece sob a pressão dos interesses e poderes cotidianos, ele é cotidianizado. Assim, o imenso potencial provocativo do carisma e as transposições de limites possibilitadas por seu surgimento são reintegrados ao cotidiano e a ele confinados. Na terminologia de Weber, isso equivale à racionalização.
CARISMA E RACIONALISMO: CONCLUSÕES GERAIS
O ciclo do carisma, portanto, conflui com as trajetórias do racionalismo. Ele é tradicionalizado, legalizado ou objetivado e assim se torna apto a ser racionalizado segundo critérios específicos - econômicos, jurídicos, burocrático-administrativos ou também puramente procedimentais. O que se apresenta como retorno do mesmo, condiz, porém, apenas com o lado externo ou formal da racionalização, pois com isso nada de concreto foi dito sobre os agulhamentos materiais causados. Quanto aos valores e ideais, quanto às inovações institucionais em relação à forma de organização social ou também quanto ao "novo tipo humano" criado e instaurado pelos movimentos carismáticos - isso só a pesquisa comparativa empírica pode revelar. Com seu estudo sobre o protestantismo, Weber apresentou uma análise histórico-empírica exemplar nesse sentido. "Racionalização" e "racionalismo" não são, para Weber, categorias normativas, nem representações de estruturas de imagem do mundo. Pelo contrário, através deles Weber conceitua processos específicos da institucionalização de configurações de ação e ordem sociais (Schluchter, 1998 ______. Die Entstehung des modernen Rationalismus: Eine Analyse von Max Webers Entwicklungsgeschichte des Okzidents. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1998.: 65-ss).
Para Weber, o racionalismo de forma alguma se limita ao Ocidente moderno. O racionalismo sempre existiu em todas as culturas, mesmo que com direções e consequências diferentes para as ordens sociais. Além disso, as mais diversas áreas da vida - economia, engenharia, ciência, educação, técnicas bélicas, direito, administração etc. - podem ser racionalizadas de "últimos pontos de vista e propósitos altamente diversos", sendo que algo "que é considerado 'racional' por um ponto de vista, [...] [pode] ser considerado 'irracional' por outro" (Weber, 1988: 11-s). Mas o racionalismo - na história das religiões, da dominação e das culturas - sempre parte de constelações irracionais. O irracional - por exemplo, das práticas mágicas ou também do carisma - muitas vezes é incorporado a institucionalizações e diferenciações racionais. Estas, porém, nunca são imunes à virada para o irracional e à desdiferenciação e desracionalização. Elas sempre acabam desembocando novamente em racionalizações. Esse é, portanto, um processo "dialético", cuja tensão básica foi conceituada teoricamente por Weber pelo par terminológico polar "carisma versus racionalismo". As manifestações da racionalização sempre se defrontam com manifestações da desracionalização, o que, ao ver de Weber - apesar de suas utopias negativas de pessimismo cultural, postura expressa, por exemplo, na metáfora da "férrea cápsula da vassalagem" (Weber, 1988Weber, Max. Gesammelte Aufsätze zur Religionssoziologie. Tübingen: J. C. B. Mohr, 1988 (vol. 1).: 203) - mantém a história dinâmica e "aberta". Assim, o carisma pode ser compreendido como cifra sociológica para aqueles processos sociais que, muitas vezes de forma inesperada e explosiva, interrompem a tendência aparentemente evolucionária e unidimensional do racionalismo, suspendendo validades institucionais e possibilitando que personalizações conquistem o domínio em novos contextos coletivos intensamente vivenciados durante um período de transição. Na obra tardia de Weber, o conceito do carisma possui, portanto, não apenas um status residual e reservado para a descrição de epifenômenos e anomalias sociais. Antes, Weber usa o carisma para denotar uma tensão fundamental que sempre está presente no cosmo contraditório do racionalismo.
Na introdução deste artigo, falei do monumento literário, que Euclides da Cunha construiu para a comunidade religiosa de Canudos em sua obra Os sertões, como um estudo de caso ante litteram sobre a formação de uma comunidade carismática no nordeste brasileiro nos tempos da primeira República. Euclides da Cunha não dispunha do conceito sociológico de carisma. Ele interpretou a força peculiar, que partia do carisma do Conselheiro e de sua seita anticlerical, como um fenômeno social-religioso que lembrava a era apostólica e, assim, com um padrão de interpretação positivista, que vê a religiosidade e a modernidade como diametralmente opostos. Para ele, a modernidade era representada pelos batalhões da República, que lutavam contra um inimigo supostamente atávico e que, finalmente, graças à sua superioridade técnico-militar e à inesperada solidariedade da jovem nação, conquistaram uma vitória duvidosa contra a inexplicável resistência espiritual-ascética das pessoas de Canudos. Com Weber - e menciono isso apenas para indicar um possível programa de pesquisa -, a guerra no sertão, porém, poderia ser interpretada como conflito entre o carisma e o racionalismo que se passou no contexto contemporâneo da modernidade. Para Weber, a dominação carismática não é apenas um fenômeno histórico que desaparece com a modernização. Pelo contrário: o carisma, como movimento irracional contrário ao racionalismo, pode surgir a qualquer instante também na sociedade moderna e desenvolver a sua força "revolucionária". Isso, porém, apenas durante um período de transição, pois o carisma é, como vimos, sempre uma manifestação efêmera; no processo da "cotidianização", o extracotidiano reflui às vias do cotidiano. Quais vias do racionalismo a seita carismática de Canudos teria seguido se os ferozes vencedores não tivessem provocado fome e massacre extremamente brutais? Esta pergunta naturalmente não podemos responder. Mas para uma análise sociológica da resistência dos fiéis de Canudos, aumentada até o extremo ao ponto de uma autodestruição coletiva que inquietou profundamente a sociedade brasileira tanto quanto o próprio Euclides da Cunha, o tipo ideal de dominação carismática de Max Weber, sem dúvida alguma, pode ser usado como modelo de explicação frutífero.
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Tradução de Markus A. Hediger
NOTAS
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1
Desconsidero aqui o esboço, de Vilfredo Pareto, de uma sociologia da ação não lógica, publicado em 1916. Pareto não dispõe de nenhum conceito que possa ser comparado com o paradigma do carisma de Weber. Além disso, tudo indica que Max Weber não conhecia a obra de Pareto (Bach, 2004Bach, Maurizio. Jenseits des rationalen Handelns: Zur Soziologie Vilfredo Paretos. Wiesbaden: VS Verlag für Sozialwissenschaften, 2004.).
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2
Quanto à acusação do "anatomismo dos tipos", ver Schluchter (1998: 20) ______. Die Entstehung des modernen Rationalismus: Eine Analyse von Max Webers Entwicklungsgeschichte des Okzidents. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1998..
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3
O conceito do carisma conquistou uma posição de impor tância sistemática na obra de Weber apenas a partir de, mais ou menos, 1910 (Kroll, 2001Kroll, Thomas. Max Webers Idealtypus der charismatischen Herrschaft und die zeitgenössische Debatte. In: Hanke,Edith & Mommsen, Wolfgang J. (orgs.). Max Webers Herrschaftssoziologie. Tübingen: Mohr Siebeck , 2001, p. 47-72.; Hanke, 2005Hanke, Edith. Einleitung. In: Max Weber Gesamtausgabe. Tübingen: Mohr Siebeck , 2005, p. 37-91 (vol. I/23).).
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4
Ver, para o Brasil, Pereira de Queiroz (2006)Pereira de Queiroz, Maria Isaura. O messianismo no Brasil e no mundo. São Paulo: Alfa-Ômega, [1965] 2006.; Facó (2009)Facó, Rui. Cangaceiros e fanáticos: gênese e lutas. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2009..
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5
Também no surgimento do movimento sectário do Conselheiro de Canudos e em semelhantes movimentos socialreligiosos posteriores (como, por exemplo, o movimento do Padre Cícero Romão Batista, no Cariri do Ceará) o papel exercido por manifestações de crise social em decorrência da transformação estrutural nos latifúndios após a abolição da escravidão e da dramática perda de legitimação da Igreja Católica foi de importância fundamental, como demonstra de forma convincente Rui Facó (2009: 25-ss)Facó, Rui. Cangaceiros e fanáticos: gênese e lutas. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2009..
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6
Quanto à dimensão comunicativa da religião, ver Rippenberg (1991: 43).
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Jan-Jun 2011