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SOCIOLOGIA DA INFÂNCIA RURAL: ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES PARA SUA CONSOLIDAÇÃO

RURAL CHILDHOOD SOCIOLOGY: SOME CONTRIBUTIONS TO ITS CONSOLIDATION

Resumo

A partir de reflexões advindas de um estudo anterior, busca-se, aqui, chamar a atenção para a invisibilidade das crianças e as infâncias rurais nos estudos sociológicos. Considera-se que a elas foram dadas pouca atenção, não por sua total ausência dos espaços socioculturais, mas por uma falta de interesse das ciências nesse objeto de estudo. Na execução desta pesquisa, constata-se o estado embrionário em que ainda se encontram os estudos sobre a infância rural e destaca-se que as crianças habitantes de áreas rurais se encontram cada vez mais presentes nos espaços produtivos, carecendo, assim, de um olhar mais atento aos estudos sociológicos. Por fim, temos ainda o propósito de resgatar nomes e obras da tradição sociológica, cujas pistas analíticas possam contribuir com a construção da Sociologia da Infância Rural.

Palavras-chave:
Infância rural; Sociologia da infância rural; Teoria sociológica; Interdisciplinaridade; Representações sociais

Abstract

Based on reflections from a previous study, this work seeks to draw attention to the invisibility of children and rural childhoods in sociological studies. We consider that little attention has been paid to them, not due to their total absence from sociocultural spaces, but due to a lack of interest on the part of the sciences in this object of study. In carrying out this research, we found the embryonic state in which studies on rural childhood are still found and we emphasize that children living in rural areas are increasingly present in productive spaces, thus lacking a closer look at sociological studies. Finally, we also have the purpose of rescuing names and works from the sociological tradition, whose analytical clues can contribute to the construction of the Sociology of Rural Childhood.

Keywords:
Rural childhood; Rural childhood sociology; Sociological theory; Interdisciplinarity; Social representations

INTRODUÇÃO

Este artigo faz parte de um estudo maior realizado entre 2016 e 2020 cujo objetivo foi compreender as mudanças geracionais nas representações da infância em uma área rural do município de Orobó, agreste de Pernambuco. A partir do trabalho empírico, busca-se, neste texto, descrever a emergência dos estudos da infância e o desafio latente imposto na consolidação da sociologia da infância rural. A delimitação do objeto de estudo foi realizada após contato com as comunidades camponesas de Orobó, que gerou, em campo, atenção sobre a forma como os adultos se referiam à infância. Nesse sentido expresso: “Não tive infância”; “Minha infância foi o cabo da enxada”; “Foi em cima da gamela”. Nesse contexto, os camponeses sinalizaram que a vivência da infância, no mundo rural onde cresceram, estava relacionada com a atividade econômica, social e cultural dessas comunidades, pois, assim como já declararam Moura (1988Moura, Clóvis. (1988). Sociologia do Negro Brasileiro. São Paulo: Ática.) e Marques (2008Marques, Marta Inez Medeiros. (2008). Agricultura e campesinato no mundo e no Brasil: um renovado desafio à reflexão teórica. Campesinato e territórios em disputa. São Paulo: Expressão Popular.), a centralidade familiar na organização da produção, os costumes da herança e o trabalho com a terra são elementos comuns da cultura camponesa.

Na execução empírica desta pesquisa, buscamos observar as atuais vivências da infância rural a partir do olhar das próprias crianças. Tal desafio implicou afiar a criatividade relativa aos instrumentos adequados para a coleta e a análise de dados empíricos, apesar das crianças serem capazes de responder a qualquer metodologia (Pires, 2007Pires, Flávia Ferreira. (2007). “Ser adulta e pesquisar crianças: explorando possibilidades metodológicas na pesquisa antropológica”. Revista de Antropologia, 50, p. 225-270.). Para tanto, entre outras estratégias metodológicas, como metodologia basilar da pesquisa, foram utilizadas a vivência etnográfica, a entrevista em profundidade, técnicas de observação participante e a análise de “cadernos de memórias”, escritos pelas próprias crianças. Nesses cadernos, as crianças registraram e expressaram suas vivências cotidianas por meio de linguagens como desenhos ou frases. Posteriormente, esses registros foram apresentados verbalmente para nós e, foi a partir deles que começamos a observar mais diretamente esses processos de mudanças na vivência da infância dessas crianças, sujeitos da pesquisa.

Nosso contato direto com as crianças, a partir de 2017, nos revelou um processo em curso de mudanças significativas nessas comunidades rurais, sobretudo quando comparamos seu cotidiano com as vivências da infância relatadas por seus pais e avós. Na atualidade, as vivências da infância envolvem cada vez mais a frequentação à escola, uma maior disposição de tempo para brincadeiras e a participação mais flexível nas atividades econômicas da família. Para as crianças de hoje, o trabalho na lavoura ou lidando com os animais não representa mais a ocupação principal, ocupando a escola cada vez mais esse lugar. Observamos que essa mudança na vivência da infância rural ocorreu pela influência de diversos marcadores sociais, entre os quais ganha destaque a implantação do programa Bolsa Família1 1 Programa de transferência de renda condicionada surge a partir da agregação de quatro programas previamente existentes (Bolsa Escola, Bolsa Alimentação, Cartão Alimentação e Auxílio Gás). Transformou-se na Lei nº 10.836 em 2004. na região, programa em que as crianças que participaram da pesquisa eram beneficiárias.

Essa imbricação da criança rural sendo parte importante na configuração de um programa social que transfere às famílias um benefício pecuniário atrelado às condicionalidades impostas pelo programa, coloca a criança em lugar social diferenciado do que ela tradicionalmente ocupava na família rural. Dessa forma, as crianças vêm se apresentando enquanto um ator social cada vez mais ativo nesse contexto, o que se apresenta também enquanto um meio para a compreensão de processos sociais mais abrangentes. Assim, essas mudanças observadas nos permitem repensar chaves importantes de pesquisas já realizadas sobre o mundo rural, como a organização social da família rural, as relações geracionais, a domesticidade, as relações de consumo e a própria relação de trabalho dos sujeitos rurais que tradicionalmente envolvia a família.

Na construção da agenda de pesquisa em prol da infância rural, deparamo-nos com um desafio relevante: a identificação de um referencial teórico adequado que nos permitisse analisar os dados coletados a partir de uma perspectiva sociológica, fato este já destacado também pela pesquisadora Eliana Felipe (2013Felipe, Eliana da Silva. (2013). Infância de assentamento e suas temporalidades históricas. In: Silva, Isabel de Oliveira et al. (orgs.). Infâncias do campo. Belo Horizonte: Autêntica.). No processo de exploração bibliográfica, observamos que os estudos da infância são realizados a partir de uma interlocução ampla com áreas diversas do saber. Nesses estudos, os diálogos dos saberes emergem da Antropologia, Educação, História, Psicologia, Sociologia, entre outras áreas do conhecimento. Nessa interdisciplinaridade, observa-se a relevância que a criança vai adquirindo na dinâmica da vida coletiva, nos diversos contextos e períodos da história. O destaque ou omissão da infância no pensamento social está relacionado com demandas econômicas, políticas e ideológicas que emergem em cada período histórico, por exemplo, as referências à infância nos clássicos da sociologia são sutis, dado que as análises desses pensadores foram voltadas à compreensão dos processos macroestruturais de mudança social. Mesmo entre os Estudos Rurais, campo de estudo de grande ênfase na sociologia, a criança, assim como a infância, parece não ter ocupado lugar de destaque para os pesquisadores, permanecendo acantonadas, ancoradas às margens de uma ciência que não as contemplaram de forma devida.

Em nossos dias, nos deparamos com estudos especializados sobre a infância que visam compreender práticas sociais como o lazer, a educação, o bullying, o esporte e outras tantas nas quais as crianças têm uma participação ativa. Apesar disso, como veremos a seguir, o conhecimento da infância rural na perspectiva sociológica se mostra enquanto um campo aberto que ainda não foi explorado de forma satisfatória. Nesse sentido, este trabalho busca refletir sobre as lacunas existentes em relação aos estudos dessa forma de infância, bem como apontar as possibilidades de sanar as lacunas que corroboram para a invisibilidade das infâncias rurais.

A INFÂNCIA RURAL

Antes de darmos continuidade ao debate proposto, se faz importante refletir sobre o que estamos compreendendo por “infância rural”. A infância é tradicionalmente compreendida enquanto uma construção sócio-histórica, uma invenção da modernidade, mas também é uma categoria social que se inscreve na pluralidade de práticas culturais. Nesse sentido, perfilhamos que, ao falarmos de infâncias, assim mesmo no plural, reconhecemos a multiplicidade de modos de vida e práticas culturais que transcorrem a vida das crianças em diferentes contextos sociais, geográficos e políticos. Essa forma de compreender a infância impossibilita “estabelecermos uma trajetória ‘ideal-típica‘ capaz de englobar todas as infâncias, de dissolvê-las em enquadramentos conceituais à margem dos contextos sociais e culturais em que se encontram e das transações/relações que realizam” (Silva, 2012Silva, Ana Paula Soares da; Felipe, Eliana da Silva; Ramos, Márcia Mara. (2012). Infância do campo. In: Caldart, Roseli Salete (org.). Dicionário da educação do campo. São Paulo: Expressão Popular.: 419), posto que as diferenças estruturais incidem diretamente sobre as diferenças culturais das crianças.

Quando falando sobre infâncias rurais ou infância do campo, estamos nos referindo especificamente às crianças que moram em áreas rurais, um grupo de crianças cujas famílias tradicionalmente possuem modos de vida e práticas sociais vinculadas ao campo; estamos nos referindo a como vivem as crianças que habitam em áreas rurais, ou seja, estamos falando de crianças que integradas a esses lugares partilham essa forma de viver no mundo, seus sabores e dissabores, seus sonhos e medos.

O uso da “infância” como categoria de análise social é recente. Sua concepção esteve relacionada com estudos como os de religião, política, pedagogia ou geração; no entanto, essas abordagens desconsideravam aspectos como sexo, classe social, cultura ou espaços de interação nos quais a criança incorpora e afeta valores que articulam os modos de vida coletiva. Essa visão que preza pela dimensão estrutural tirou das crianças sua condição de agentes e as colocaram numa perspectiva homogênea, em uma categoria na qual as peculiaridades se diluem em prol de uma visão universal, massificante do ser criança. Nessa perspectiva, acreditava-se que o que se observa em um grupo de crianças serviria para todas elas, tornando invisível a singularidade das crianças.

Como revelam os estudos de Woodhead (2004Woodhead, Martin. (2004). Foreword. In: Kehily, Mary Jane (ed.). An introduction to childhood studies. Maidenhead: Open University Press.), é a partir da década de 1990 que começam a aparecer trabalhos que descrevem a singularidade dos diversos modos de viver a infância e do impacto destes na estruturação da sociedade: “A sua emergência coincide com mudanças sociais importantes em grande parte do mundo ocidental” (Silva et al., 2013Silva, Isabel de Oliveira et al. (orgs.). (2013). Infâncias do campo. Belo Horizonte: Autêntica.: 13). Apesar disso, em relação ao nosso objeto de estudo, a infância rural, no âmbito das Ciências Sociais, consideramos que os estudos ainda são precários. Tal fato evidencia que se as crianças, de modo geral, foram marginalizadas nas pesquisas científicas, podemos dizer, assim como já destacou Celeste de Marco (2021De Marco, Celeste. ¿Qué es la niñez rural para la historia?: una revisión y una propuesta desde Argentina. Historia Caribe, 16/39, p. 189-223.) “que o sujeito criança rural passou despercebido [de modo que] poucos textos nos falam sobre eles” (De Marco, 2021De Marco, Celeste. ¿Qué es la niñez rural para la historia?: una revisión y una propuesta desde Argentina. Historia Caribe, 16/39, p. 189-223.: 193, tradução nossa)2 2 No original: [...] que el sujeto infantil rural ha pasado inadvertido [de modo que] pocos textos nos hablan de ellos. . No caso das crianças que residem em áreas rurais, os trabalhos que encontramos não abordam o microcosmo social das crianças, mas as condições de vida precária ou de exclusão social em que, segundo o olhar dos adultos, vivem as crianças.

Embora outros campos do saber - como a Educação, a Psicologia e, em menor grau, também Antropologia, com o aporte dos estudos etnológicos sobre as crianças indígenas - tenham contribuído para uma emergência dos estudos sobre a infância rural, para a Sociologia, esse parece ser um campo de estudo ainda sensível. Talvez pelo que já afirmou José de Souza Martins (1993Martins, José de Souza. (1993). Regimar e seus amigos: a criança na luta pela terra e pela vida. In: O massacre dos inocentes: a criança sem infância no Brasil. São Paulo: Hucitec (vol. 1, p. 81-116).: 51) ao destacar que “as ciências sociais têm, num certo sentido, uma concepção definida de quais as fontes aceitáveis e respeitáveis do dado sociológico”, de maneira que se privilegiava outros sujeitos de investigação em detrimento da criança. Isso pode ser evidenciado quando pensamos, por exemplo, em subcampos teóricos, como a Sociologia Rural. Embora a Sociologia Rural constitua uma área de estudos bem consolidada no Brasil, com destaque para os estudos geracionais sobre juventude rural, os trabalhos sobre a infância no meio rural são inexpressivos mesmo nesse campo de saber, apesar de se considerar, como destacou Stropasolas (2011Stropasolas, Valmir Luiz. (2011). Redefinições no processo de socialização das crianças rurais. Raízes, 31/2, p. 54-67.), que a compreensão da origem dos problemas que afetam os jovens rurais deve ser buscada ainda na infância.

A pesquisa de Prado (2017Prado, Renata Lopes Costa. (2017). O silêncio de grupos específicos de crianças em pesquisas. Educar em Revista, 64, p. 215-230.) pode iluminar a compreensão desse fato, por ter analisado 179 artigos das áreas de Antropologia, Sociologia, Educação e Psicologia publicados em revistas avaliadas com conceitos A1 e A2 pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Esses trabalhos relatavam a realização de pesquisas com crianças na década de 2000. Nas publicações analisadas, foi percebido que crianças pequenas e que vivem em áreas rurais são invisíveis às análises científicas. Analisando a agenda de congressos de sociologia relevantes, como Asociación Latinoamericana de Sociología (ALAS), Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS) e os Grupos de Trabalho (GT) que se organizam nesses eventos, observamos que não há espaços que debatam sobre a infância rural.

Alguns trabalhos sobre a temática no campo das ciências sociais parecem ser mais bem acolhidos mais uma vez no campo da antropologia, como se observa algumas apresentações, presentes no GT Antropologia da Criança (33ª RBA, 2022, coordenado por Emilene Leite de Sousa e Flávia Pires, e 30ª da Reunião Brasileira de Antropologia RBA, 2016, coordenado por Levi Pereira e Flávia Pires) e no GT Antropologia da Criança: Conjugando Direitos e Protagonismo Social (31ª RBA, 2018; XIII RAM, 2019, coordenado por Fernanda Rifiotis et al.), mas ainda ausentes no campo sociológico.

Essa ausência de debates evidencia a precariedade de pesquisas sobre as infâncias vividas em áreas rurais na área sociológica. Parece que essa ausência confirma a marginalização que ainda sofre o mundo rural, onde as crianças se apresentam como sujeitos sociais multimarginalizados: “Deveras porque são crianças, do campo, em sua maioria numérica também empobrecida, por viverem processos de exclusão (escolar, monetária, cultural, de locomoção, de saúde, de políticas públicas)” (Santos et al., 2018Santos, Patrícia Oliveira S. dos.; Silva, Antonio Luiz da.; Pires, Flávia Ferreira. (2018). Apresentação Infância rurais: diálogos interdisciplinares. Dossiê Revista Temáticas, 51, p. 1-12.: 13). Mesmo nos trabalhos historiográficos, as crianças de classes populares permaneceram invisibilizadas; e, no caso das crianças rurais, isso se coloca de forma ainda mais acentuada, pois elas ainda se encontram na periferia das ações das políticas públicas (Dias et al, 2016Dias, Adelaide Alves; Soares, Maria do Carmo de Moura Sillva; Oliveira, Maria Roberta de Alencar. (2016). Crianças do campo: da invisibilidade ao reconhecimento como sujeito de direito. Revista Psicologia e Política. 16/37, p. 379-396.). Sobre isso, Stropasolas (2011Stropasolas, Valmir Luiz. (2011). Redefinições no processo de socialização das crianças rurais. Raízes, 31/2, p. 54-67.: 55) já chamou atenção sobre “a invisibilidade das crianças rurais e a precária e insuficiente abordagem da infância rural na literatura [sociológica] e nas iniciativas das instituições que atuam nas comunidades rurais”.

No campo da literatura, as representações da infância rural são mais expressivas, mas Rocha (2013Rocha, Maria Isabel Antunes. (2013). Prefácio. In: Oliveira e Silva, Isabel de. Infâncias do campo. Belo Horizonte: Autêntica.) destaca que essas representações são realizadas de duas formas: ora depreciativa, ora idealizadora. Na perspectiva idealizadora, a infância rural é retratada a partir da imagem de crianças puras, inocentes, envolvidas com a natureza, distante de todo aquele caos que evoca a vida urbana. Na perspectiva depreciativa, essa imagem retrata as precariedades que envolvem o meio rural, ganhando destaque o sofrimento causado pela ausência de políticas públicas relativas à saúde, educação, moradia, assistência social, locomoção ou carência de serviços públicos. Essa perspectiva, no dizer de Tassara (2007Tassara, Eda Terezinha de Oliveira. (2007). Urbanidade e periurbanidade(s): reflexões sobre dimensões psicossociais das dinâmicas históricas. Série Documenta, 17, p. 1-19.), é a que mais se destaca. Em razão disto, constata-se, no senso comum, que a vida no campo continua sendo percebida como atrasada, rude, não civilizada. De fato, a ênfase dada aos estudos rurais recai sobre o aspecto “negativo”, sobre aquelas manifestações da vida coletiva que destoam do que se acredita ser mais expressivo da modernidade.

No dizer de Martins (2000Martins, José de Souza. (2000). O futuro da sociologia rural e sua contribuição para a qualidade da vida rural. Revista Estudos Sociedade e Agricultura, 15/43, p. 5-12.), a falta de entusiasmo no estudo da vida rural não decorre de aquilo que as populações rurais são, mas sim de aquilo que os sociólogos gostariam que elas fossem. Em muitos trabalhos, se observa um esforço por deixar em evidência certo contraponto entre o urbano e o rural, considerado o urbano como espaço da civilização, do progresso e da modernidade, enquanto ao rural cabe o estigma do atraso, da tradição patriarcal, do estático. No dizer de Stotz (2008Stotz, Eduardo Navarro. (2008). Memória social sobre saúde e ambiente: um projeto de pesquisa-ação com agricultores familiares de Sumidouro-RJ. Relatório Final de Pesquisa apresentado ao CNPq, Brasília, DF.), os preconceitos alistados aos estereótipos sociais, presentes tanto no senso comum como em instituições acadêmicas, têm prevalecido nos estudos sobre o mundo rural, se estendendo aos estudos sobre infância rural; mas, advogamos que tanto as crianças como a infância no mundo rural não devem mais ser consideradas como nos tempos de outrora. Conforme buscamos destacar, a pesquisa empírica que privilegiou o ponto de vista das crianças nos mostrou como as crianças vêm ocupando cada vez maior centralidade nesse contexto social e como merecem ser estudas a partir delas mesmas.

Nos primeiros contatos que estabelecemos com as crianças dos sítios, observamos que elas possuíam um capital cultural que as colocavam em um lugar de destaque dentro da comunidade. Por exemplo, a facilidade para lidar com aparelhos eletrônicos ou o domínio sobre redes sociais obrigava os adultos a recorrerem, com bastante frequência, à assessoria das crianças. Fatos como esse nos permitiram captar o contraste das representações da infância dos adultos e das crianças. Observamos que a vida social que decorre no mundo rural tem um dinamismo singular. Os três anos de vivência da nossa pesquisa nos permitiram constatar a pertinência das observações de Carneiro (2012Carneiro, Maria José. (2012). Ruralidades contemporâneas: modos de viver e pensar o rural na sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Mauad X; FAPERJ.). Para a autora, a ruralidade está em constante construção e, por isso, deve ser percebida através da interação entre os atores sociais e os sistemas culturais aos quais eles estão referidos. Concordando com Carneiro (2012Carneiro, Maria José. (2012). Ruralidades contemporâneas: modos de viver e pensar o rural na sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Mauad X; FAPERJ.) e destacamos apenas que no conjunto desses atores sociais estudados deve-se também incluir as crianças. O meio rural é o espaço de trabalho no qual as famílias produzem seu sustento, reproduzem modos de vida, cujas peculiaridades divergem dos padrões da vida urbana. Como afirma Silva (2013Silva, Isabel de Oliveira et al. (orgs.). (2013). Infâncias do campo. Belo Horizonte: Autêntica.), no campo as famílias vivem seus dramas, efetivam seus sonhos, realizam desejos, produzem relações sociais, econômicas, culturais e geracionais, envelhecem e criam seus filhos. É nesse contexto de socialização onde as crianças vivenciam sua infância de modo peculiar. Essas vivências da infância são um dos desafios que as ciências sociais pouco priorizaram.

As afirmações anteriores não se referem à omissão das crianças nos estudos rurais e nem a sua exclusão nos mesmos, mas sugerem um tipo de abordagem que dispensa a agência das crianças. Observamos, com frequência, nos estudos sobre o trabalho ou sobre educação, a ênfase sobre a precariedade do sistema escolar ou sobre a ocupação das crianças no trabalho. Essas são questões que de fato existem, e nos foram em alguns momentos mencionadas, a exemplo de um diálogo exposto entre duas crianças dos sítios que questionavam a ausência do ônibus escolar para transportá-las, de modo que na precariedade do transporte em Toyotas, muitas vezes elas (as crianças) eram as únicas a serem transportadas no colo, simplesmente pelo fato de serem crianças. Destarte, consideramos que essas análises ganhariam mais força se realizadas do ponto de vista das crianças.

Os questionamentos sobre o uso do tempo das crianças, por parte dos pesquisadores, destoam da lógica das práticas sociais da população camponesa. Observamos, em nossa pesquisa, que, para o pequeno agricultor familiar, o trabalho constitui um aspecto essencial da própria vida. No dizer de Marin (2008Marin, Joel Orlando Bevilaqua. (2008). Infância camponesa: processos de socialização. In: Neves, Delma Pessanha & Silva, Maria Aparecida de Moraes (orgs.). Processos de constituição e reprodução do campesinato no Brasil: formas tuteladas de reprodução camponesa. São Paulo: Editora Unesp (vol. 1).), o trabalho na terra não é apenas uma condição social imposta aos camponeses, cuja finalidade é a de prover os meios necessários à subsistência familiar. O cotidiano vivenciado na lavoura é também uma forma de gerar um modo de vida que se produz e reproduz entre as gerações. Para o pequeno agricultor familiar camponês, o trabalho com a terra e a vida não são dimensões sociais excludentes, elas se complementam. Nesse sentido, a família, e posteriormente o trabalho, se apresentam como as primeiras instituições de socialização na vida das crianças. A infância é uma fase da vida dedicada ao aprendizado dos principais conhecimentos e significados da vida camponesa, mas, como nos revelaram as próprias crianças, a escola vem ocupando cada vez mais lugar em suas vidas, de forma que, em suas palavras elas “trabalham apenas quando não têm escola”.

Quando as crianças partilhavam conosco seus registros no “caderno de memórias”, observamos que com frases, ou com desenhos, elas revelavam essa representação peculiar da vida no campo. Como os adultos, as crianças também percebem que é no contato com o espaço, com a terra de onde advém a força para persistir no trabalho, o entusiasmo para fortalecer os elos de unidade coletiva com a família e com a comunidade, conforme revela o depoimento de uma das crianças que nos confidenciou como, para ela, morar no sítio é bom e proporciona às famílias mais economia do que aquelas vivem em áreas urbanas, pois, em seus dizeres “no sítio, a gente come do que planta, não precisa comprar!”.

Diversos depoimentos nos fizeram compreender que o trabalho da criança no meio rural diverge da definição que encontramos no pensar da área do direito, que preconiza, de forma geral, o trabalho da criança no sentido de exploração do trabalho infantil, como também já demonstrou Sousa (2004Sousa, Emilene Leite de. (2004). “Que trabalhais como se brincásseis”: trabalho e ludicidade na infância Capuxu. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa.) ao afirmar o lúdico no trabalho das crianças camponesas. O trabalho das crianças rurais pode ser entendido como uma prática que faz parte do processo de socialização através do qual as crianças contribuem com seu núcleo social como agentes ativos de processos de reprodução de representações coletivas. Engajados nas atividades rotineiras da agricultura familiar, a criança participa do processo ritual que transforma a menina em mulher e o menino em homem, o que também faz parte de seu processo de socialização, mas que vem se transformando pelas mudanças que as políticas sociais com foco direto e indireto nas crianças vêm acarretando no mundo rural.

O trabalho ainda é algo presente na vida das crianças dos sítios, mas vem ocupando cada vez menor centralidade em decorrência de uma maior presença das crianças na escola, com o advento do Bolsa Família. A partir dessa constatação, consideramos que as pesquisas sobre as vivências da infância rural precisam mudar de orientação. Dos dados quantitativos, por vezes economicistas, poderiam passar para uma abordagem mais qualitativa, para uma abordagem que observe o trabalho no âmbito da agricultura familiar nas suas peculiaridades, como uma ação social que possibilita a manutenção do modo de vida das sociedades camponesas, uma prática interativa social cotidiana. As vivências da infância rural podem ser compreendidas a partir das relações que tecem as crianças entre si, com os adultos, com a cultura e com a sociedade. Como afirma Stropasolas (2011Stropasolas, Valmir Luiz. (2011). Redefinições no processo de socialização das crianças rurais. Raízes, 31/2, p. 54-67.), as crianças que residem nas comunidades rurais não podem mais ser pensadas com as mesmas categorias com que se formula a noção genérica de “infância”. Elas devem ser estudadas enquanto atores sociais e não como seres passivos totalmente dependentes dos adultos no processo de socialização e inserção na sociedade. É possível que, através das crianças, os estudiosos do mundo rural possam mergulhar em um grande e vasto território que revele as mudanças em curso nas comunidades rurais, que eles possam captar as mudanças sociais, culturais, demográficas ou econômicas que ocorrem no campo.

A demanda pela consolidação dos estudos da infância rural nos coloca também um desafio: a percepção de múltiplas formas de infância no campo. Em nossa convivência com a comunidade de Feira Nova e os sítios, percebemos a existência de diversas vivências da infância. Nossa pesquisa nos permitiu constatar que o substantivo “criança” remete aos agentes sociais, aos sujeitos que no exercício de sua agência contribuem com a construção de modos peculiares de vida coletiva. Para analisar esses modos de vida coletiva, tendo como eixo articulador as vivências da infância, é necessário construir ou deixar-se conduzir com um arcabouço teórico e metodológico apresentado em campo.

A SOCIOLOGIA DA INFÂNCIA RURAL

Até a década de 1990, a infância era um fenômeno transversal dos estudos sobre religião, política, direito ou economia. Esses estudos desconsideravam aspectos importantes como sexo, classe social, cultura, espaço físico e geográfico onde, porventura, a criança poderia se encontrar, bem como o conjunto de relações das quais eles participavam com os adultos e com os aspectos próprios da época em que se era criança (Peloso, 2015Peloso, Franciele Clara. (2015). Infâncias do e no campo: um retrato dos estudos pedagógicos nacionais. PPPGE/Universidade Federal de São Carlos.). Essa abordagem desfocada da infância colocava as crianças em condição de agentes invisíveis, apresentava a infância em categorias universais. Segundo Sousa (2017Sousa, Emilene. (2017). Umbigos enterrados: corpo, pessoa e identidade Capuxu através da infância. Florianópolis: EdUFSC.), esse tipo de abordagem passa a considerar a relevância da criança quando esta já não é mais criança, quando se alcançou a maturidade e a completude da vida adulta.

O fortalecimento da sociologia da infância rural pressupõe uma abordagem qualitativa, que supera o olhar englobante, uniformizante, que rotula os pequenos como “crianças” sem distinção alguma entre si. São muitas as crianças e as infâncias rurais, bem como as formas de nos referirmos a elas: crianças rurais, do/no campo, camponesas ou campesinas etc. Tais denominações podem estar relacionadas às crianças assentadas, Sem Terrinhas, quilombolas, ribeirinhas, indígenas, ciganas, entre outras, todas vivenciando esse contexto de ruralidade e cada uma em sua especificidade.

É possível que a carência de estudos focados nas especificidades das crianças rurais decorra de padrões culturais definidos pelo capitalismo. Como já destacado por Santos et al. (2018Santos, Patrícia Oliveira S. dos; Paulo, Maria de Assunção Lima de. (2018). Invertendo a ordem geracional: a relação das crianças da zona rural de Orobó (PE) com as novas TIC’s. Revista DESidades, 21/6, p. 70-82.), as crianças rurais têm sido tratadas como sujeitos socialmente multimarginalizados. Segundo os autores, em sua grande maioria, as crianças rurais vivenciam condições de exclusão escolar, financeira, cultural, de locomoção, de saúde ou de atenção por parte das políticas públicas. No campo da pesquisa sociocientífica, mesmo ganhando destaque nos últimos anos, as crianças que moram em áreas rurais, consideradas do campo ou que residem no campo, ainda são pouco estudadas; sua presença, como afirmamos anteriormente, ainda tem se mostrado tímida nas pesquisas científicas.

O pouco interesse em se pesquisar as crianças e as infâncias vividas em áreas rurais revela a marginalização sofrida pelo próprio mundo rural. Nas palavras de Martins (2000Martins, José de Souza. (2000). O futuro da sociologia rural e sua contribuição para a qualidade da vida rural. Revista Estudos Sociedade e Agricultura, 15/43, p. 5-12.), a maior parte dos estudos realizados têm focado no “lado negativo”, em aquilo que parecia incongruente com as fantasias da modernidade, não no que as populações rurais são ou eram e, sim, em aquilo que os sociólogos gostariam que elas fossem. Tal asseveração é confirmada quando comparamos a abundante produção científica sobre a vida urbana com a precária produção de estudos sobre a vida rural. A vida no asfalto parece ser mais interessante por ser considerada civilizada. A cidade é vista como o espaço do progresso e da modernidade, enquanto o rural é revestido pelo estigma do atraso, da tradição e do estático (Carneiro, 2012Carneiro, Maria José. (2012). Ruralidades contemporâneas: modos de viver e pensar o rural na sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Mauad X; FAPERJ.). Segundo Stotz (2008Stotz, Eduardo Navarro. (2008). Memória social sobre saúde e ambiente: um projeto de pesquisa-ação com agricultores familiares de Sumidouro-RJ. Relatório Final de Pesquisa apresentado ao CNPq, Brasília, DF.), as instituições acadêmicas não foram imunes aos preconceitos que emergem dos estereótipos sociais, bastantes presentes no senso comum3 3 Segundo Stropasolas (2011), os estudos sobre a juventude rural são volumosos, talvez, porque os processos migratórios do campo para a cidade sejam um foco atrativo para os pesquisadores, no sentido em que estes constituem um aspecto relevante da globalização. No entanto, os problemas que assolam a juventude rural não serão resolvidos se as crianças continuarem sendo excluídas dos estudos sociais que fundamentam a construção de políticas públicas para a população do campo. .

Esse olhar, que finda na marginalização da sociedade rural, parece esquecer que o mundo rural tem seu dinamismo próprio, que sua abordagem pode fornecer subsídios importantes para compreender e visualizar possíveis soluções dos problemas mais prementes da vida contemporânea. Individualismo exacerbado, consumo, contaminação ambiental, aquecimento global, dependência química, saúde coletiva, e tantos outros atuais problemas sociais, poderiam encontrar pistas de solução nos estudos rurais. Na execução da nossa pesquisa, comparamos a representação da infância dos adultos e das crianças. Os depoimentos nos mostraram como a vida no campo é dinâmica. Observamos que, em menos de duas décadas, as vivências das crianças mudaram significativamente, e seu lugar de socialização tem passado assim do roçado, como era para as gerações anteriores, vindo a se estabelecer na escola, lugar de socialização da atual geração de crianças.

Os dados coletados nos mostraram que o mundo rural está em constante construção e, por isso, deve ser percebido através da interação entre os atores sociais e os sistemas culturais aos quais eles estão vinculados. É preciso perceber a ruralidade em sua dinamicidade. É preciso compreender o meio rural como um lugar em que famílias produzem seu sustento, recriam modos de vida em continuidade e/ou tensionamento com os padrões da vida urbana; como o contexto no qual grupos sociais vivem seus dramas, efetivam seus sonhos, realizam desejos, produzem relações sociais, econômicas, culturais e geracionais, envelhecem e criam seus filhos (Silva et al., 2013Silva, Isabel de Oliveira et al. (orgs.). (2013). Infâncias do campo. Belo Horizonte: Autêntica.: 16). Para abordar a vida coletiva que se desenvolve no campo, na tentativa de consolidar a sociologia da infância rural, os sociólogos dispõem de pistas analíticas bastante inspiradoras, como são as formuladas no Pensamento Social Brasileiro e na extensa tradição sociológica.

O PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO E A SOCIOLOGIA DA INFÂNCIA RURAL

No Pensamento Social Brasileiro, identificamos alguns trabalhos que fornecem algumas pistas analíticas para os estudos da infância rural. Segundo Jucirema Quinteiro (2003Quinteiro, Jucirema. (2003). A emergência de uma sociologia da infância no Brasil. In: Anais da 26ª Reunião Anual da ANPED, Caxambú, MG.), nesses trabalhos, as crianças são inseridas como parte de processos econômicos, jurídicos ou como destinatários de políticas públicas que tratam sobre moradia, saúde, educação ou segurança pública. Em 2010, Silva et al. (2010Silva, Isabel de Oliveira et al. (2010). Grupos de pesquisa sobre infância, criança e educação infantil no Brasil: primeiras aproximações. Revista Brasileira de Educação, 15/43, p. 84-97.: 18) destacaram que, no Brasil, havia 322 grupos que pesquisavam infância, criança e educação infantil, desses, 182 eram da área da educação, 105 da psicologia, treze da sociologia, onze da história, oito da antropologia, dois da filosofia e um da teologia. Os mesmos pesquisadores também destacaram que nas ciências políticas, na geografia e na arqueologia, não foi localizado um único grupo de pesquisa sobre essas temáticas. Isso nos mostra o campo da educação, ainda que não exclusivo, como predominante no que se refere aos estudos da infância.

Nascimento (2013Nascimento, Maria Letícia Barros Pedroso. (2013). Infância e sociologia da infância: entre a invisibilidade e a voz. Relatório Científico, FEUSP; CNPq.) publica um mapeamento referente aos grupos de pesquisas que trabalham com sociologia da infância no Brasil, destacando que a sociologia da infância é tomada ora como referencial teórico, ora como campo de interlocução. A autora identificou 23 grupos, dos quais dezesseis encontram-se no campo da educação, quatro na psicologia e três na sociologia. Nesse sentido, Nascimento (2013Nascimento, Maria Letícia Barros Pedroso. (2013). Infância e sociologia da infância: entre a invisibilidade e a voz. Relatório Científico, FEUSP; CNPq.: 118) afirma que “a relação entre sociologia da infância e educação infantil no Brasil foi estabelecida na própria origem dos estudos nacionais da temática”.

Diversas evidências nos permitem observar que a sociologia da infância pressupõe uma interlocução estreita com o amplo campo das ciências humanas. Na França, por exemplo, observamos que a sua consolidação foi possível em decorrência do estreito diálogo com a sociologia da educação, enquanto na Inglaterra e nos Estados Unidos o impulso maior adveio dos estudos feministas e da antropologia. No Brasil, a sociologia da infância, como campo, área de estudo específica, começou a se constituir a partir da década de 1990, sob confluência de pedagogos e sociólogos (Abramowicz & Oliveira, 2010Abramowicz, Anete & Oliveira, Fabiana. (2010). A sociologia da infância no Brasil: uma área em construção. Educação, 35/1, p. 39-52.: 41). Uma importante contribuição do campo da educação foi dada pelo professor Marcos Cezar de Freitas, com a publicação dos livros História social da infância no Brasil (1997) e Os intelectuais na história da infância (Freitas & Kuhlmann Jr., 2002Freitas, Marcos Cézar & Kuhlmann Jr., Moysés. (2002). Os intelectuais na história da infância. São Paulo: Cortez.).

Nessa mesma linha de raciocínio, é pertinente lembrar os trabalhos realizados pela historiadora Mary Del Priore. Recordamos a relevância das contribuições para o estudo do nosso tema duas coletâneas: História da criança no Brasil (1991Del Priore, Mary (orgs.). (1991). História da Criança no Brasil. São Paulo: Contexto.) e História das crianças no Brasil (1999Del Priore, Mary. (1999). História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto.). Nesses trabalhos, Del Priore apresenta uma compilação de textos sobre o tema, os quais resultam do entrecruzamento de olhares de sociólogos e educadores que buscaram apresentar as crianças como sujeitos históricos. Gouvêa (2003Gouvêa, Maria Cristina Soares de. (2003). A infantilização da criança pelo adulto vs. o infantil na experiência de ser criança. Belo Horizonte: Infância na Ciranda da Educação.), também do campo da história, destaca a pouca produção referente às crianças enquanto sujeitos das práticas escolares. Por sua vez, Warde (2007Warde, Mirian Jorge. (2007). Repensando os estudos sociais da história da infância no Brasil. Perspectiva, 25/1, p. 21-39.: 22) afirma que “a infância no Brasil está circunscrita e sujeita aos discursos institucionais e às práticas familiares, escolares, asilares e correcionais”.

Sob influência desses debates, as ciências sociais, na década de 1980, estabeleceram a infância como campo teórico que era, até então, de maior domínio por outras áreas do conhecimento, como a psicologia, a educação ou a medicina. Nesse sentido, ganham destaque os trabalhos de Fúlvia Rosenberg, Saboia Lima, Rosilene Alvim, Lúcia Valladares, José de Souza Martins, entre outros. A ênfase nesses estudos recai sobre a descrição das condições de vida de crianças pobres ou que se encontram em situação de vulnerabilidade. Sob o título O massacre dos inocentes (1993Martins, José de Souza. (1993). Regimar e seus amigos: a criança na luta pela terra e pela vida. In: O massacre dos inocentes: a criança sem infância no Brasil. São Paulo: Hucitec (vol. 1, p. 81-116).), o livro de Martins dá centralidade à criança e passa a tratá-la como agente, como protagonista do processo histórico. De acordo com o autor, foram as crianças que participaram da sua pesquisa as que forneceram os dados para sua análise. Para ele, essas crianças não podem ser vistas como sujeitos passivos nos processos sociais, elas “são na verdade os filhos da dívida externa, os filhos do estado oligárquico-desenvolvimentista, os filhos da ditadura. Gerações inteiras foram e continuam sendo irremediavelmente comprometidas pela supressão de sua infância” (Martins, 1993Martins, José de Souza. (1993). Regimar e seus amigos: a criança na luta pela terra e pela vida. In: O massacre dos inocentes: a criança sem infância no Brasil. São Paulo: Hucitec (vol. 1, p. 81-116).: 15). As crianças devem ser abordadas na sua condição de sujeitos do processo histórico. No planejamento de uma pesquisa, Martins observa:

A tendência é o cientista social interessar-se por informantes que estão no centro dos acontecimentos, que têm um certo domínio das ocorrências, que têm, supostamente, uma visão mais ampla das coisas, que são os arquitetos da cena e da encenação social. Basicamente, essa opção tende a selecionar informantes que têm poder ou que têm, ao menos, algum poder: o líder local, os dirigentes, o chefe de família, o adulto [...]. As ciências humanas, com a possível exceção da antropologia, não têm sido capazes de decifrar o silêncio daqueles que não foram eleitos pelo saber acadêmico como informantes válidos dos pesquisadores (Martins, 1993Martins, José de Souza. (1993). Regimar e seus amigos: a criança na luta pela terra e pela vida. In: O massacre dos inocentes: a criança sem infância no Brasil. São Paulo: Hucitec (vol. 1, p. 81-116).: 53-55).

Com insights como esse, Martins contribuiu para questionar o “adultocentrismo” como regra da pesquisa sociológica. Nesse sentido, um destaque especial merece ser dado ao pioneirismo das áreas da psicologia e da educação.

Com exceção da publicação Primeira Infância (IBGE, 2000IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. 2000. Pesquisas sobre padrões de vida 1996-1997: primeira infância. Rio de Janeiro: IBGE.), não dispomos de trabalhos atuais que tratem das múltiplas esferas da condição de vida das crianças pequenas do mundo rural. Para o estudo desse grupo etário, a bibliografia é relativamente abundante no que diz respeito a abordagens sobre fatos relativos à educação infantil, à mortalidade infantil e à desnutrição. A produção acadêmica sobre esses assuntos encontra-se dispersa, publicada predominantemente em revistas de Educação, Psicologia, Serviço Social, História e Saúde Pública. A infância mais tardia e a adolescência têm ocupado mais a atenção de educadores e assistentes sociais, ao tempo que a sociologia e a antropologia têm evidenciado menor interesse.

Desde uma perspectiva antropológica, ganha destaque a dissertação intitulada A Sociedade das crianças A’uwe-Xavante: por uma antropologia da criança, de Ângela Nunes (1997Nunes, Ângela. (1997). A sociedade das crianças A’uwe-Xavante: por uma antropologia da criança. Dissertação de Mestrado. PPGA/Universidade de São Paulo.). Da mesma forma, pode-se mencionar as contribuições de Clarice Cohn (2000Cohn, Clarice. 2000. Crescendo como um Xikrin: uma análise da infância e do desenvolvimento infantil entre os Kaayapó-Xikrin do Bacajá. Revista de Antropologia, 18/2, p. 195-222.), com seu trabalho Antropologia da criança. Nessa obra, Cohn afirma que o maior desafio existente para os estudos da infância é o de “reconhecer na criança um objeto legítimo de estudo”. Para tanto, segundo a autora, se faz necessário não mais olhar a criança como um ser incompleto, “treinando para a vida adulta, encenando papéis sociais enquanto são socializados ou adquirindo competências e formando sua personalidade” (Cohn, 2005Cohn, Clarice. 2005. Antropologia da criança. Rio de Janeiro: Zahar.: 21). A criança passa a ser vista sob um novo ângulo, sendo reconhecida como ator social que possui um papel ativo na definição de sua própria condição, reconhecendo que ela não é um “adulto em miniatura”, ou alguém que “treina para a vida adulta”. A criança, onde quer que esteja, interage ativamente com os adultos e com as outras crianças, com o mundo, sendo parte importante na consolidação dos papéis que assume e das relações que tece.

Outra obra marcante para os estudos da infância, na área da Antropologia, foi o livro Crianças indígenas: ensaios antropológicos, organizado por Aracy Lopes da Silva, Ana Vera Lopes da Silva Macedo e Ângela Nunes (2002Lopes da Silva, Aracy et al. (orgs.). (2002). Crianças indígenas: ensaios antropológicos. São Paulo: Global.). A obra foi um estudo pioneiro na área no Brasil e reuniu diversos trabalhos resultados de pesquisas sobre etnias indígenas brasileiras, abarcando temas variados. Essa obra se tornou referência na área para os pesquisadores que trabalham com concepções e vivências de crianças em contextos socioculturais diversos. Além dos trabalhos sobre as crianças indígenas, trabalhos sobre crianças afro-brasileiras, crianças de rua e moradoras de favelas também foram temas que prevaleceram nesse início de jornada (Delgado, 2011Delgado, Ana Cristina Coll. (2011). Estudos socioantropológicos da infância no Brasil: caminhos, problematizações e diálogos. In: Prado, Patrícia Dias & Martins Filho, Altino José (orgs.). Das pesquisas com crianças à complexidade da infância. Campinas: Autores Associados, p. 181-210 (vol. 1).). Da mesma forma, quando pensamos nas abordagens mais focadas na relação das crianças com seus contextos sociais específicos ganham destaque os trabalhos realizados por Fúlvia Rosenberg (1976Rosenberg, Fúlvia. (1976). Educação: para quem? Ciência e Cultura, 12/28, p. 1467-1470.; 2006Rosenberg, Fúlvia. (2006). Criança pequena e desigualdade social no Brasil. In: 2º Congresso de Educação Infantil, São Paulo, Sindicato de Educação Infantil, Mimeografado.). No entanto, como relatam Castro e Kosminsky (2010Castro, Lúcia Rabello de & Kosminsky, Ethel V. (2010). Childhood and Its Regimes on Visibility in Brazil: An Analysis of the Contribution of the Social Sciences. Current Sociology, 58/2, p. 206-231.: 213), foi Florestan Fernandes um dos pioneiros na abordagem das crianças como agentes sociais e objetos de conhecimento. Segundo as autoras, sob o conceito de culturas infantis, o trabalho de Fernandes vai de encontro aos estudos que apresentavam as crianças como objetos de proteção, cuidado e controle, vitimizadas ou não pelas circunstâncias.

As contribuições à sociologia da infância no Brasil, por parte de Florestan Fernandes, são o resultado de uma pesquisa realizada por ele na década de 1940. Uma primeira versão desse trabalho foi publicada em 1944, sob o título de “As trocinhas do Bom Retiro”. Nesse texto, Fernandes apresenta as crianças como agentes relevantes dos processos de socialização. O trabalho versa sobre alguns grupos de crianças que moram em bairros operários paulistas e que depois do período escolar se reuniam nas ruas para brincar. O lócus dessa pesquisa, o bairro do Bom Retiro, foi escolhido pelo autor em razão de identificar diversas fontes de informação para a elaboração de seu trabalho. O autor descreve como ocorre o processo de socialização das crianças, como seus espaços de sociabilidade vão sendo construídos e como se constituem as culturas infantis, termo que, aliás, ganhou destaque desde então. A partir de uma abordagem sociológica, Florestan Fernandes faz uma análise do folclore infantil. Ele toma a criança como participante ativo da vida social e critica a teoria da imitação dos adultos pelas crianças.

De acordo com a descrição do autor, a condição básica para a formação das “trocinhas” é a vizinhança, uma vez que a proximidade espacial das famílias, embora não crie, facilita o arranjo social dos indivíduos. Dessa forma, as “trocinhas” ainda se encontravam ligadas à vontade do adulto, o que demonstra que a autonomia do universo infantil se dá de forma relativa. Para Fernandes, a causa do agrupamento das “trocinhas” ocorre devido aos elementos folclóricos que definem a própria estrutura do grupo em ação. Destarte, o autor declara analisar a base da cultura infantil, definindo que:

Cultura infantil, aqui, significa, aproximadamente, o mesmo que folclore infantil. A diferença entre “folclore infantil” e “cultura infantil” é pouco sensível. A segunda abrange alguns elementos ou complexos culturais de natureza não folclórica, como o futebol ou a natação, quanto às atividades lúdicas das “trocinhas” de meninos; e certos trabalhos caseiros (confecção de roupinhas para as bonecas, preparação de doces simples, que as crianças aprendem a fazer com maior rapidez etc.), quanto às “trocinhas” de meninas. A expressão “cultura infantil” é mais adequada, na medida em que traduz melhor o caráter da subcultura que nos preocupa no momento. Ela é mais inclusiva que “folclore infantil” e traz consigo a conotação específica, concernente ao segmento da cultura total partilhado, de modo exclusivo, pelas crianças que constituem os grupos infantis que acabamos de descrever (Fernandes, 2004Fernandes, Florestan. (2004). As trocinhas do Bom Retiro: contribuição ao estudo folclórico e sociológico da cultura e dos grupos infantis. In: Folclore e mudança social na cidade de São Paulo. São Paulo: Martins Fontes.: 245).

Face ao exposto, fica claro que, para o autor, “há uma cultura infantil, cujo suporte social consiste nos grupos infantis, nos quais as crianças adquirem, no desenrolar em interação, os diversos elementos do folclore infantil” (Fernandes, 2004Fernandes, Florestan. (2004). As trocinhas do Bom Retiro: contribuição ao estudo folclórico e sociológico da cultura e dos grupos infantis. In: Folclore e mudança social na cidade de São Paulo. São Paulo: Martins Fontes.: 246). Apesar disso, na obra, é apontado o seguinte questionamento: de onde vêm os elementos da cultura infantil? A maior parte deles deriva da cultura do adulto.

São traços diversos da cultura animológica que, abandonados total ou parcialmente, transferem-se para o círculo infantil, por um processo de aceitação, incorporando-se à cultura do novo grupo. O mecanismo, pois, é simples: são elementos da cultura adulta, incorporados à infantil por um processo de aceitação e nela mantidos com o correr do tempo (Fernandes, 2004Fernandes, Florestan. (2004). As trocinhas do Bom Retiro: contribuição ao estudo folclórico e sociológico da cultura e dos grupos infantis. In: Folclore e mudança social na cidade de São Paulo. São Paulo: Martins Fontes.: 246).

O autor reconhece esse processo como “socialização”. Apesar disso, existem outros elementos presentes na cultura do grupo infantil: as crianças, ao mesmo tempo em que recebem, produzem parte dos elementos de seu patrimônio cultural. Muito mais do que imitar os adultos, o que ocorre é uma aquisição das suas funções, não é o adulto, mas o papel social que ele desempenha é o que é tomado pelas crianças. Ao analisar as regras de sociabilidade e o que chamou de cultura infantil, Fernandes demonstra que estudar a criança e a infância “por ‘mérito próprio’ significa resgatá-la desta invisibilidade; não deduzi-la simplesmente de instituições como a escola e a família ou de seus agentes, pais e professores, que têm sido os únicos socialmente habilitados - ao lado dos próprios analistas - para falar sobre e em nome das crianças e da infância” (Marchi, 2003Marchi, Rita de Cássia. (2003). As crianças e o “vício da rua”: uma etnografia do cotidiano. Revista de Divulgação Cultural, 25/80, p. 727-746.: 88).

Como bem destacou Qvortrup (1995Qvortrup, Jens. (1995). Childhood in Europe: A New Field on Social Research. In: Chisholm, Lynne et al. (orgs.). Growing Up in Europe: Contemporary Horizons in Childhood and Youth Studies. New York: De Gruyter.: 6), a família e a escola não são apenas “uma concepção ideológica acerca do lugar que as crianças devem ocupar, mas também um modo metodológico de despojar as crianças do seu direito a serem notadas”.

Ouvir o que as crianças têm a dizer, considerá-las sobre suas próprias vidas e sobre temas diversos, considerá-las como sujeitos portadores de agência é, sem dúvida, uma forma de dar voz às crianças para que elas, por si mesmas, conquistem seu espaço na vida coletiva. Ao mesmo tempo é uma forma de contribuir para ampliar os horizontes da pesquisa social, “pois não se trata apenas de ampliar o número de pessoas ouvidas, mas de considerar outros saberes e de contemplar perspectivas que se diferenciam daquelas dos adultos pesquisadores” (Prado, 2017Prado, Renata Lopes Costa. (2017). O silêncio de grupos específicos de crianças em pesquisas. Educar em Revista, 64, p. 215-230.: 216). A necessidade de abordar as crianças nas produções acadêmicas deve se dar não só por questões teóricas, mas também por aspectos políticos e sociais, a exemplo de transformações mais amplas de práticas institucionais. Nesse sentido, buscaremos mostrar como as crianças foram tomadas na perspectiva sociológica.

AS CRIANÇAS NA TRADIÇÃO SOCIOLÓGICA

Nos estudos sobre a sociedade, a noção de infância emergiu de forma tardia. É possível que a invisibilidade da criança decorra das precárias condições sanitárias, sob as quais vivia a maior parte da população nos séculos passados. Segundo Heywood (2004Heywood, Colin. (2004). Uma história da infância: da Idade Média à época da história contemporânea no Ocidente. Porto Alegre: Artmed.), a indiferença em relação às crianças era o sentimento que prevalecia até o século XIX. Nos registros históricos, consta que os bebês abaixo de dois anos, em particular, em muitos casos eram abandonados pelos adultos. Esses consideravam que não compensava investir tempo e esforço em dar assistência a um “pobre animal suspirante”, cujas probabilidades de sobrevivência eram mínimas (Heywood, 2004Heywood, Colin. (2004). Uma história da infância: da Idade Média à época da história contemporânea no Ocidente. Porto Alegre: Artmed.: 87). Só as crianças que conseguiam sobreviver à primeira infância eram inseridas no mundo dos adultos.

As crianças, segundo os estudos iconográficos de Philippe Ariès (1981Ariès, Philippe. (1981). História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Zahar.), eram inseridas na dinâmica da vida coletiva como se fossem réplicas do adulto. Cada criança era percebida como uma espécie de adulto em miniatura. A descoberta da infância viria apenas no século XIX como consequência das mudanças estruturais ocorridas com o avanço do capitalismo. Em decorrência da especialização funcional demandada pela atividade econômica e da sensibilidade social decorrente da mudança dos padrões culturais, ações como a escolarização e a “paparicação” das crianças se tornaram, gradualmente, ações coletivas. De maneira processual, as crianças começaram a ser tratadas de forma diferente à dos adultos, elas foram adquirindo um mundo cada vez mais próprio, acorde com o que a sociedade entendia ser adequada a essa fase da vida, denominada “infância”. Foi, sem dúvida, a escola a instituição social que definiu os critérios através dos quais a criança seria definitivamente separada do mundo dos adultos. Foram essas mudanças culturais as que suscitaram o sentimento de infância. Nas palavras de Ariès:

Trata-se de um sentimento inteiramente novo: os pais se interessavam pelos estudos dos seus filhos e os acompanhavam com solicitude habitual nos séculos XIX e XX, mas outrora desconhecida. [...] A família começou a se organizar em torno da criança e a lhe dar uma tal importância que a criança saiu de seu antigo anonimato, que se tornou impossível de perdê-la ou substituí-la sem uma enorme dor, que ela não pôde mais ser reproduzida muitas vezes, e que se tornou necessário limitar seu número para melhor cuidar dela (Ariès, 1981Ariès, Philippe. (1981). História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Zahar.: 12).

Essas mudanças nos modos de pensamento e sentimento começaram a disseminar a ideia de que a mente pode apreender o universo e suborná-lo às necessidades humanas. A fé na razão e na ciência impulsionou uma mudança de pensamento, cuja ênfase recaiu no humanismo, otimismo e confiança no futuro. A escola tornou-se a instituição creditada para promover esse novo pensamento. Do núcleo familiar, a aprendizagem da criança passou a ser dada especialmente pela escola. Uma instituição transformadora, percebida como instrumento de disciplina severa, protegida pela justiça e promovida pela política (Ariès, 1981Ariès, Philippe. (1981). História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Zahar.: 227). Esse novo modo de pensamento é lembrado sob o rótulo de Iluminismo.

A tradição sociológica se alicerça nos fundamentos filosóficos do Iluminismo. Esse movimento intelectual promoveu a crença na perfectibilidade do homem e não razão como medida de adequação do mundo social à natureza humana. Em termos analíticos, o problema que ocupou os pensadores modernos do século XIX foi a mudança social, a compreensão da dinâmica da vida coletiva, em razão de ajudar a traçar o itinerário da história que deveria se manter nos trilhos da “ordem e do progresso”. Nessa agenda de análise, as crianças não foram percebidas como força social. Tal fato pode justificar-se porque, nesse mundo industrializado e liberal que emerge, a criança é entendida como “o que não fala (infans), o que não tem luz (a-luno), o que não trabalha, o que não tem direitos políticos, o que não tem responsabilidade parental ou judicial, o que carece da razão” (Sarmento, 2003Sarmento, Manuel Jacinto. (2003). Imaginário e culturas da infância. Cadernos de Educação, 12/21, p. 51-69.: 53). Essa percepção faz com que as crianças apareçam de forma tangencial nos trabalhos teóricos de maior envergadura. A seguir, apresentamos algumas observações de Marx, Weber, Durkheim e Mauss, que poderiam ser iluminadores para os atuais estudos em torno da infância.

Karl Marx, no volume I de O Capital (2017Marx, Karl. (2017). O capital. Rio de Janeiro: Zahar.), afirma que a exploração da força de trabalho de mulheres e crianças é um dos impactos sociais do modo de produção capitalista. Na sua visão, com a Revolução Industrial e a adoção de máquinas por parte das grandes indústrias, o capital promoveu a divisão manufatureira do trabalho. O emprego das máquinas fez com que a força física muscular não fosse tão essencial como era antes e, por sua vez, aumentou o número de trabalhadores assalariados, entre os quais podiam encontrar-se famílias inteiras, cujos membros eram trabalhadores operários. Com essa mudança, houve uma homogeneização da condição do operário, na qual também mulheres e crianças passaram a vender sua força de trabalho. Tal fato aumentou de forma significativa a taxa de mortalidade entre os filhos pequenos da classe operária (Marx, 2017Marx, Karl. (2017). O capital. Rio de Janeiro: Zahar.).

A mão de obra de crianças e mulheres se tornava vantajosa para o empresário capitalista, dado o baixo custo que ela demandava. Para se ter uma ideia, em 1860, enquanto um operário adulto custava ao empresário capitalista entre dezoito e 45 xelins por semana, três meninos com idade de treze anos lhes custavam entre seis e oito xelins pelo mesmo período. Por isso, nesse período, “não obstante o número muito maior de teares, a comparação de 1862 com 1856 mostra que o número global de operários ocupados diminuiu e o de crianças exploradas aumentou” (Marx, 2017Marx, Karl. (2017). O capital. Rio de Janeiro: Zahar.: 601).

Como registro histórico, é pertinente destacar as características e os efeitos do trabalho infantil subsequente da Revolução Industrial. Marx (2017Marx, Karl. (2017). O capital. Rio de Janeiro: Zahar.) apresenta o depoimento de duas crianças, uma de nove anos e outra de doze anos, sobre suas jornadas de trabalho. Comenta que o uso da mão de obra infantil era tão grande e tão comum nessa época que, em 1857, o Parlamento inglês decretou que toda a fábrica que fizesse uso da mão de obra infantil, para que pudesse continuar atuando legalmente, teria que prover a escolarização de todas as crianças menores de quatorze anos de idade durante trinta dias ou 150 horas no período de seis meses ao ano. Nos registros de Marx, encontramos a descrição de uma espécie de divisão sexual do trabalho infantil. Meninos abaixo dos treze anos e meninas menores de dezoito anos são incorporados às forças de trabalho, e “trabalham também no turno da noite com o pessoal masculino” (Marx, 2017Marx, Karl. (2017). O capital. Rio de Janeiro: Zahar.: 330).

Em 1865, Marx escreve uma carta à Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), na qual faz referência ao trabalho desenvolvido pelas crianças e jovens. Menciona a questão da educação que, segundo ele, seria ideal que a criança passasse por esse processo antes dos nove anos de idade. Da mesma forma, sugere que o trabalho infantil seja realizado em combinação com a educação mental, física e politécnica das crianças. Por isso, Marx (1998) chama a atenção para a necessidade de uma escola pública, gratuita e universal, na qual os filhos da classe proletária aprendam sobre os meios possíveis para poder transformar sua realidade histórico-social. Para Marx, as crianças deveriam ter seus direitos sociais garantidos e era a sociedade quem deveria ir em busca disso, pois, segundo ele, as crianças não eram capazes de agir por si próprias (Marx, 1983Marx, Karl. (1983). Instruções para os delegados do Conselho Geral Provisório: as diferentes questões. In: Obras escolhidas. Lisboa: Avante! (t. 2, p. 79-88).). Como pode observar-se nesses registros, o interesse de Marx era o de descrever a forma como a sociedade capitalista explorava a força de trabalho do proletariado, denunciar uma exploração desmesurada que não poupava as crianças e a necessidade da intervenção do Estado para que elas pudessem ser instruídas.

Como Marx, Max Weber não analisa as crianças de forma específica em suas obras. É nas notas sobre a família onde podemos encontrar algumas observações sobre as crianças. A família é descrita como sendo a primeira sociedade do homem. Sua estrutura estaria regida pelo tipo de dominação tradicional. Desde tempos remotos, a configuração da família reflete essa estrutura, a qual é uma das componentes de legitimação do poder do Estado sobre os homens, dado que a autoridade estatal é colocada em uma relação simbólica com a autoridade do pai sobre o filho, a qual, pela força da tradição, se tornou inquestionável.

Nesse quadro de pensamento, a criança seria aquele indivíduo que estaria sob o jugo do tipo mais puro de dominação. Ela se encontraria sob os escudos da dominação patriarcal, que seria, segundo o pensamento weberiano, o tipo de dominação tradicional. A criança, na concepção weberiana, não seria capaz de compreensão e se encontraria distante do que o autor denomina de tipo ideal de “ação racional com relação a fins”. Para Weber, a criança é compreendida como um ser incapaz, cuja orientação depende do tipo mais puro de dominação tradicional, a dominação patriarcal. Em termos analíticos, as crianças pequenas pouco poderiam contribuir, dado que elas não apresentam um sentido lógico nem objetivo de orientação em relação às regras e ao comportamento. Os comportamentos das crianças trazem elementos incompreensíveis, informações de pouca monta para a análise social, cujo foco é o sentido racional da ação. Weber afirma: “É muito imprecisa a transição do tipo ideal do relacionamento provido de sentido do comportamento próprio ao de um terceiro, incluindo o caso em que este terceiro seja quase nada mais do que um objeto - como, por exemplo, uma criança pequena” (Weber, 1992Weber, Max. (1992). Metodologia das ciências sociais. São Paulo: Cortez; Editora da Unicamp (v. 2).: 324). Em razão dessa percepção da criança como não sujeito, as relações estabelecidas socialmente com as crianças, na perspectiva do autor, são relações pautadas na autoridade, dominação, submissão e subestimação do adulto em relação às crianças.

Em Émile Durkheim, encontramos uma percepção diferente das crianças. As crianças aparecem em suas obras como parte de processos que ele denominou de “socialização”. É através desses processos que as crianças são vinculadas nos grupos sociais. Sujeitas a um processo social e disciplinador, as crianças se transformam em seres sociais. A infância, por sua vez, seria um devir, passiva de socialização e dirigida por instituições. É nessa linha de raciocínio que a educação, para Durkheim, exerce um papel fundamental na vida da criança.

Durkheim apresentou um interesse especial pela questão da educação na constituição da sociedade moderna. Em razão desse fato, a criança surge como um dos focos de sua análise. O autor reconhece a importância da educação e que essa assume um papel privilegiado na formação da criança. Devendo ser estabelecida ainda na infância, a criança seria, portanto, produto dessa educação. Educação e socialização se apresentam como sinônimos, por isso, quando Durkheim fala em educação, em geral, o autor refere-se à “socialização metódica da jovem geração” em qualquer sociedade (Durkheim, 2007Durkheim, Émile. (2007). Educação e sociologia. Lisboa: Edições 70.). A socialização se apresenta como um processo de transmissão de conhecimentos, os quais são produzidos socialmente e recepcionados pelas crianças na interação ininterrupta entre aqueles indivíduos que ensinam e aqueles que aprendem. A infância, para Durkheim, é um devir e, portanto, é passível de socialização e governada por instituições. Logo, é através da educação que as crianças assimilam a cultura em que vivem. Para Durkheim (2007Durkheim, Émile. (2007). Educação e sociologia. Lisboa: Edições 70.: 41), a educação é “a ação exercida, pelas gerações adultas, sobre as gerações que não se encontram ainda preparadas para a vida social, tem por objetivo suscitar e desenvolver, na criança, certos números de estados físicos intelectuais e morais, reclamados pela sociedade política no seu conjunto, e pelo meio espacial a que a criança, particularmente se destine”.

A socialização é assim entendida como um processo de repartição e assimilação de valores, o qual permite o fortalecimento da integração coletiva. O maior objetivo a ser alcançado, nesse sentido, é o da preparação da criança para a vida adulta, quase não sendo relevantes as especificidades que se apresentavam no transcorrer da infância.

Do que se considera como o período clássico da Sociologia, no que tange aos estudos da infância, Marcel Mauss, sobrinho e discípulo de Émile Durkheim, é o pensador que melhor formulou um primeiro esboço do que poderíamos considerar como sociologia da infância. Em 1937, Mauss foi convidado a participar de uma conferência para a qual escreveu um pequeno ensaio que não foi concluído, mas que foi publicado com o título de “Três observações sobre a sociologia da infância” (2010Mauss, Marcel. (2010). Três observações sobre a sociologia da infância. Pro-Posições, 21/3, p. 237-244.). Recuperado por Marcel Fournier, o texto foi publicado em 1996 pela Gradhiva, revista francesa de antropologia e história da arte. Depois de ser traduzido para diversas línguas, a publicação em português veio a lume em de 2010, na Pro-Posições. Nesse texto, pode-se perceber o embate existente entre Mauss e Piaget em torno da educação na infância, pois Mauss apresenta as relações entre os problemas sociológicos, antropológicos, psicológicos e biológicos na compreensão das crianças. O autor reconhece que existem diferentes tipos de crianças e diferentes formas de infância. Em razão desse fato, recomenda-se que sejam realizadas pesquisas com crianças de diferentes contextos antes de formular impressões conclusivas e generalizantes. Tendo como interlocutor o psicólogo Jean Piaget, Mauss questionava a restrição do conceito de “criança” à criança contemporânea, “civilizada”, à criança europeia de sua sociedade, como se nessa se exprimisse de forma plena todas as vivências da infância. Sendo inconcluso, esse ensaio nos permite afirmar que foi Marcel Mauss, na década de 1930, o pioneiro da sociologia da infância. Mauss considera a infância como um meio social para a criança, articulando essa abordagem à sociologia geral. Dessa forma, ele resgata a criança do anonimato e a eleva à condição de ator social.

As observações anteriores nos permitem concluir que a presença ou a ausência das crianças nos estudos sociológicos reflete, em certa medida, o lugar que as crianças ocupam no seio da vida social. A relação com elas tem sido acoplada com os objetos sociológicos sobre os quais os pesquisadores se debruçavam. Por outras palavras, a criança é percebida na medida em que faz parte de manifestações estruturais com as quais a prática científica da Sociologia se ocupa nas diversas conjunturas históricas.

A partir da década de 1980, os estudos sociais da infância começaram a se consolidar no campo científico. Como coloca Sarmento (2015Sarmento, Manuel Jacinto. (2015). Uma agenda crítica para os estudos da criança. Currículo sem Fronteiras, 15/1, p. 31-49.):

O sentido desse desenvolvimento decorre da crítica ao conhecimento institucionalizado tradicional que a ciência moderna erigiu sobre as crianças e a infância. Esse conhecimento assenta numa tripla falácia: a visão de uma criança universal, que percorre as mesmas etapas de desenvolvimento e que cresce e se assume como sujeito independente do contexto social e cultural em que nasce; a referência ao contexto cultural europeu e norte-americano como espaço balizador dessa pretensa universalidade da criança; a postulação da ideia de que a infância não tem identidade autônoma, mas é a idade “natural” das crianças enquanto seres em transição para a idade adulta sendo deste modo as crianças consideradas como seres em transição (“becoming”) e não seres sociais autônomas e completos (“being”). (Sarmento, 2015Sarmento, Manuel Jacinto. (2015). Uma agenda crítica para os estudos da criança. Currículo sem Fronteiras, 15/1, p. 31-49.: 32).

Essa mudança contribuiu para o surgimento de estudos catalogados como sendo do campo da sociologia da infância, campo que preza pelo diálogo multidisciplinar e que possibilita que a criança se torne objeto de estudo científico e que a infância constitua uma categoria de análise social. A infância se apresenta, portanto, como uma estrutura social permanente, cujos membros integram os diversos processos de mudança social. Esse novo status de ator social conferido às crianças ocasiona uma ruptura com a imagem tradicional na qual a criança é percebida como um indivíduo incompleto, passivo, frágil, submisso, totalmente dependente e em processo de socialização (Sarmento & Marchi, 2008Sarmento, Manuel Jacinto & Marchi, Rita de Cássia. (2008). Radicalização da infância na segunda modernidade: para uma sociologia da infância crítica. Configurações, 4, p. 91-113.).

Na atualidade, observamos o empenho de diversos cientistas sociais, procurando construir referenciais teóricos e instrumentos metodológicos que possibilitem a compreensão da infância (Woodhead, 2004Woodhead, Martin. (2004). Foreword. In: Kehily, Mary Jane (ed.). An introduction to childhood studies. Maidenhead: Open University Press.). É possível que esse fato decorra do avanço da racionalização e do individualismo, dois traços marcantes da contemporaneidade. A emergência dos novos modelos de família fez com que caíssem os índices de natalidade e, consequentemente, que o número de crianças se reduza drasticamente. É possível que esse fenômeno torne a infância um objeto caro às ciências sociais. Nas três últimas décadas, observamos que os estudos da infância estão conquistando espaço no campo científico e político. Esse fato se confirma pelos trabalhos realizados, pelo caminho traçado, pela riqueza metodológica que se reverbera na ampliação da produção acadêmica dos últimos anos. Em termos teóricos, foi reconhecida a capacidade de agência das crianças, subentendendo-se, assim, que ela interage e que sua inserção no mundo social contribui com o processo de mudança da vida coletiva (Nunes & Carvalho, 2007Nunes, Ângela & Carvalho, Maria Rosário de. (2007). Questões metodológicas e epistemológicas suscitadas pela Antropologia da Infância. In: Anais do 31º Encontro Anual da ANPOCS, Caxambú, MG.: 4). Essas constatações sinalizam que a sociologia da infância é um campo de estudos que vem ganhando espaço no mundo acadêmico.

ANOTAÇÕES FINAIS

Observamos que a emergência dos estudos da infância é definida pela combinação de diversos fatores. Demandas sociais, condicionamentos econômicos e orientações intelectuais marcaram o compasso da construção do que hoje denominamos como sociologia da infância. Um campo do saber que destaca um agente social por muito ignorado, deixado de lado nos estudos sociológicos, destaca ainda um novo objeto de conhecimento portador de agência. As fontes de conhecimento da vida coletiva se ampliam com a inclusão das crianças como fontes de informação. No dizer de Martins (1993Martins, José de Souza. (1993). Regimar e seus amigos: a criança na luta pela terra e pela vida. In: O massacre dos inocentes: a criança sem infância no Brasil. São Paulo: Hucitec (vol. 1, p. 81-116).: 16), “os mudos da história, os deserdados, banidos e excluídos, os sucateados pelas conveniências do poder e do grande capital, são cada vez mais sujeitos do processo histórico”. A pouca visibilidade dada a esses atores pequeninos levou alguns cientistas sociais a afirmar que, durante muito tempo, as crianças foram ignoradas, silenciadas e colocadas de lado pelas ciências sociais. Essas ciências foram acusadas por interessar-se apenas pelo que se considera serem as fontes aceitáveis e respeitáveis, por indagar informantes que estão no centro dos acontecimentos, que têm um certo domínio das ocorrências, que têm, supostamente, uma visão mais ampla das coisas; em outras palavras, por se deixarem direcionar pelo senso comum e privilegiarem o adulto como a única via de acesso para o conhecimento da vida coletiva (Martins, 1993Martins, José de Souza. (1993). Regimar e seus amigos: a criança na luta pela terra e pela vida. In: O massacre dos inocentes: a criança sem infância no Brasil. São Paulo: Hucitec (vol. 1, p. 81-116).).

Reconhecemos que a sociologia da infância tem se fortalecido nas últimas décadas, mas sinalizamos alguns indicadores relativos à precariedade dos estudos sobre a sociologia da infância rural. Apesar dos trabalhos ainda tímidos no âmbito de outras áreas das ciências sociais, no campo sociológico, eles ainda se mostram insuficientes. Para executar adequadamente esses estudos, é preciso reconhecer que a compreensão das vivências da infância rural perpassa pelo trabalho familiar agrícola, uma atividade envolve todo o grupo de parentesco, o pai, a mãe, os filhos e os avós, mas também por outras instituições cada vez mais presentes em suas vidas como a escola.

Não foi fácil identificar pistas analíticas que nos orientem na compreensão de fenômenos relativos a um problema de ordem histórica e estrutural na sociedade brasileira, qual seja a pobreza no meio rural e a precária presença ou total ausência do Estado, fatos que afetam a vida dessas comunidades e colocam em risco o futuro das crianças. Procuraremos publicar em outro momento a análise dos dados coletados em nossa pesquisa; no entanto, fazemos questão de registrar a pertinência e a viabilidade dos estudos sobre a sociologia da infância rural. Como Hirschfeld (2016Hirschfeld, Lawrence A. (2016). Por que os antropólogos não gostam de crianças? Latitude, 10/1, p. 171-216.), reconhecemos a necessidade de outorgar a importância necessária aos modos de ação e as manifestações das crianças na tentativa de compreender a formação da cultura mais geral. É preciso que, nos estudos sociocientíficos, as crianças sejam resgatadas dessa posição de subalternidade onde têm sido colocadas. Consideramos que o adulto e a criança são agentes relevantes na construção de um corpo social. Essa convicção é resultado da nossa interação com as crianças que participaram de nossa pesquisa.

As crianças rurais de Orobó demarcaram nosso itinerário de trabalho. Foi a partir do olhar dessas crianças que identificamos as pistas necessárias para mergulhar em suas vivências da infância e, a partir delas, compreender as mudanças nas representações da infância nesse contexto social específico. Foram as crianças que descreveram para nós seus modos de vida, suas reivindicações, seus saberes, suas dúvidas, seu conhecimento sobre “como é viver no Sítio” (Leite, 1996Leite, Maria Izabel Ferraz Pereira. (1996). Crianças do campo: os mudos da história? Revista Estudos Sociedade e Agricultura, 10/1, p. 170-191.: 175). A criança, de forma geral, brinca e se relaciona com seus pares ao mesmo tempo em que executa os outros papéis que lhe são atribuídos, realiza suas funções dentro da comunidade familiar, cumpre as suas tarefas. Ela constrói e vive o hoje, vive a sua história. Consideramos, como afirmou Walter Benjamin (2005Benjamin, Walter. (2005). Reflexões: A criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34.: 94), que “as crianças não constituem nenhuma comunidade isolada, mas antes fazem parte do povo e da classe a que pertencem”. As falas das crianças se apresentaram para nós como fragmento de um enredo mais amplo, de uma história de vida coletiva que elas protagonizam com os outros. Desejamos, por fim, que nosso estudo possa contribuir para dar mais visibilidade às infâncias rurais, da mesma forma, advogamos por uma maior presença das crianças rurais nas pesquisas sociológicas.

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  • 1
    Programa de transferência de renda condicionada surge a partir da agregação de quatro programas previamente existentes (Bolsa Escola, Bolsa Alimentação, Cartão Alimentação e Auxílio Gás). Transformou-se na Lei nº 10.836 em 2004.
  • 2
    No original: [...] que el sujeto infantil rural ha pasado inadvertido [de modo que] pocos textos nos hablan de ellos.
  • 3
    Segundo Stropasolas (2011Stropasolas, Valmir Luiz. (2011). Redefinições no processo de socialização das crianças rurais. Raízes, 31/2, p. 54-67.), os estudos sobre a juventude rural são volumosos, talvez, porque os processos migratórios do campo para a cidade sejam um foco atrativo para os pesquisadores, no sentido em que estes constituem um aspecto relevante da globalização. No entanto, os problemas que assolam a juventude rural não serão resolvidos se as crianças continuarem sendo excluídas dos estudos sociais que fundamentam a construção de políticas públicas para a população do campo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    27 Set 2021
  • Revisado
    17 Ago 2022
  • Aceito
    12 Jan 2023
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