Resumo
Este estudo teve como objetivo analisar a associação entre raça/cor da pele e estadiamento clínico em mulheres com câncer de mama em um hospital de referência para tratamento oncológico do Sistema Único de Saúde. Trata-se de estudo seccional com 863 mulheres de 18 anos de idade ou mais, com câncer de mama incidente e estadiamento clínico até IIIC, matriculadas em um hospital de referência no Rio de Janeiro e entrevistadas entre novembro de 2016 e outubro de 2018. Foram coletadas variáveis sociodemográficas, de hábitos de vida e clínicas. Utilizou-se o escore de propensão com a técnica de ponderação para balancear os grupos de comparação quanto aos potenciais confundidores. A associação entre raça/cor da pele e estadiamento clínico foi analisada por meio das equações de estimação generalizada após balanceamento. O nível de significância de 5% foi adotado em todas as análises. Observou-se que 35,9% das mulheres se declararam brancas; 21,3%, pretas; e 42,8%, pardas. Mulheres de cor da pele preta apresentaram 63% mais chance de ter estadiamento II e III quando comparadas com as brancas (OR=1,63; IC95% 1,01-2,65). Conclui-se que mulheres pretas são diagnosticadas com tumores mais avançados quando comparadas com mulheres brancas.
Palavras-chave: Raça e Saúde; Fatores Socioeconômicos; Câncer de Mama; Escore de Propensão
Abstract
This study sought to analyze the association between race/skin color and clinical staging in women with breast cancer at a referral hospital for cancer treatment of the Brazilian National Health System. This is a cross-sectional study of 863 women aged 18 or more, with incident breast cancer and clinical staging up to IIIC enrolled at a cancer referral hospital in Rio de Janeiro, Brazil, and interviewed between November 2016 and October 2018. Sociodemographic, lifestyle and clinical variables were evaluated. We used the propensity score with the weighting technique to balance comparison groups for potential confounders. The association between race/skin color and clinical staging was analyzed using generalized estimation equations after balancing. A significance level of 5% was adopted in all analyzes. We observed that 35.9% of women declared themselves white; 21.3%, black; and 42.8%, brown. Black women were 63% more likely to have stage II and III when compared to white women (OR=1.63; 95% CI 1.01-2.65). In conclusion, black women are diagnosed with more advanced tumors when compared to white women.
Keywords: Ethnicity and Health; Socioeconomic Factors; Breast Neoplasms; Propensity Score.
Introdução
Dados recentes revelam que, mundialmente, o câncer de mama é a neoplasia mais incidente nas mulheres, com mais de oito milhões de casos em 2018 e risco estimado de 182,6 casos a cada 100 mil mulheres.2 Nos Estados Unidos, são esperados 281.550 novos casos em 2021, representando 30% dos tumores diagnosticados na população feminina americana (Siegel; Miller; Jemal, 2021).
No Brasil, o Instituto Nacional de Câncer aponta 66.280 casos novos de câncer de mama para cada ano do triênio 2020-2022, com risco estimado de 61,6 casos a cada 100 mil mulheres, sendo este também o câncer mais frequente nas brasileiras, excluindo-se os casos de câncer de pele não melanoma (INCA, 2019).
Devido à sua relevância epidemiológica, o câncer de mama é prioridade na agenda de saúde do país no que diz respeito às doenças crônicas não transmissíveis. Sendo assim, o Ministério da Saúde recomenda diagnosticar a doença em estágios iniciais por meio de estratégias de detecção precoce (INCA, 2015).
Além dos aspectos clínicos do tumor, as características sociodemográficas, em especial as desigualdades étnicas entre essas mulheres, podem influenciar o acesso às tecnologias para detecção precoce (Santos; Chubaci, 2011; Talley; Williams, 2015; Wyatt; Pernenkil; Akinyemiju, 2017). As desigualdades de acesso aos serviços de saúde segundo raça/cor da pele têm sido apontadas por alguns autores (Bailey; Loveman; Muniz, 2013; Faro; Pereira, 2011; Lopes, 2005).
Werneck (2016) observa que os grupos vulneráveis à desigualdade racial estão sujeitos a ofertas de saúde pública ou privada precárias. Além disso, menciona baixas probabilidades de acesso por usuários de grupos raciais discriminados aos diversos níveis de atenção em saúde, incluindo medidas preventivas, de diagnóstico e tratamento.
Um estudo utilizando dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2002 para todo o Brasil relatou que mulheres autodeclaradas brancas apresentaram maior chance de consumir serviços de saúde quando comparadas às não brancas (OR=1,14; IC95% 1,03-1,26), sendo a variável de desfecho mensurada a partir da resposta afirmativa sobre a utilização de qualquer tipo de serviço de saúde nos 15 dias que antecederam a entrevista (Travassos et al., 2002).
Silva et al. (2013), em estudo incluindo 2.930 mulheres com câncer de mama de diferentes faixas etárias em uma instituição de referência para o tratamento do câncer no Espírito Santo, observaram, em relação à variável raça/cor da pele, que mulheres que se classificaram como pretas (OR=2,52; IC95% 1,40-4,52) e pardas (OR=1,54; IC95% 1,27-1,87) apresentaram maior chance de estadiamento avançado ao diagnóstico quando comparadas com as brancas.
Esses achados despertaram o interesse em analisar as interrelações entre variáveis sociodemográficas e estadiamento clínico do câncer de mama em mulheres assistidas em um hospital de referência para tratamento oncológico do Sistema Único de Saúde (SUS) no Rio de Janeiro, Brasil.
Métodos
Trata-se de estudo seccional com dados oriundos de um projeto de pesquisa que investiga o nível de atividade física, estado nutricional e qualidade de vida de mulheres em tratamento para o câncer de mama. O projeto foi aprovado pelos Comitês de Ética em Pesquisa do Instituto Nacional de Câncer e da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz.
Eram elegíveis mulheres com câncer de mama incidente matriculadas para tratamento no Instituto Nacional de Câncer do Rio de Janeiro e entrevistadas entre abril de 2016 e outubro de 2018. O recrutamento foi realizado de forma individual e consecutiva à medida que as mulheres compareciam à consulta da definição do tratamento sistêmico com o oncologista ou no dia da internação para a cirurgia. Aquelas que atenderam os critérios e concordaram em participar assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido e foram entrevistadas por auxiliares de pesquisas treinados com base em um questionário semiestruturado desenvolvido para o projeto.
Os critérios de inclusão para o presente estudo foram: mulheres com 18 anos ou mais, e com diagnóstico de câncer de mama incidente com estadiamento clínico ao diagnóstico até IIIC (com intenção de tratamento curativo). Foram excluídas mulheres classificadas com baixo peso pelo índice de massa corporal (IMC), as que se autodeclararam amarelas ou indígenas por apresentarem baixas frequências relativas, o que dificultaria a ponderação dos dados, e aquelas que apresentavam valores omissos para variáveis sociodemográficas importantes na construção do escore de propensão.
Neste estudo foram avaliadas as seguintes variáveis relacionadas à condição sociodemográfica: idade (forma contínua e categorizada em “abaixo de 50 anos”, “de 50 a 69 anos” e “70 anos ou mais”); raça/cor da pele (autodeclarada pelas pacientes em “branca”, “preta” e “parda”); renda (renda familiar no último mês de forma contínua em números de salários mínimos e categorizada em “abaixo de 1 salário mínimo”, “de 1 a 2,99 salários mínimos”, “de 3 a 4,99 salários mínimos” e “5 ou mais salários mínimos”; foi utilizada a média dos valores de salários mínimos em reais dos anos de 2016, 2017 e 2018); estado conjugal (categorizada em “casada/vive com companheiro”, “divorciada/separada”, “viúva”, “solteira”); escolaridade (“analfabeta”, “ensino fundamental incompleto”, “ensino fundamental completo”, “ensino médio incompleto”, “ensino médio completo”, “superior incompleto” e “superior completo”); trabalho no momento do diagnóstico (formal ou informal, dicotomizada em “sim” ou “não”); local de procedência (categorizada em “capital”, “região metropolitana”, “interior”).
Quanto às variáveis de hábitos de vida, foram coletadas: tabagismo (no momento do diagnóstico e categorizada em “nunca fumou”, “ex-tabagista” e “tabagista atualmente”); consumo de bebida alcóolica (no momento do diagnóstico e dicotomizada em “sim” ou “não”); prática de exercício físico em lazer (dicotomizada em “sim” ou “não” pela pergunta “você pratica ou praticou exercício físico ou esporte na época do diagnóstico?”); status menopausal (dicotomizado em “pré-menopausa” ou “pós-menopausa”).
Já para as variáveis clínicas, foram coletadas: estadiamento clínico ao diagnóstico (estadiamento evoluído pelo médico na primeira consulta segundo o TNM proposto pelo Ministério da Saúde (INCA, 2004) em tamanho do tumor, número de linfonodos comprometidos e presença de metástase a distância, classificado em: 0, I, IIA, IIB, IIIA, IIIB e IIIC); tipo histológico (avaliado no laudo da revisão de lâmina realizada pelo hospital, dicotomizada em “carcinoma ductal invasivo (CDI)” e “demais tipos histológicos”); peso (aferido no dia do recrutamento em balança digital com capacidade até 180kg); altura (medida no dia do recrutamento em estadiômetro compacto fixo na parede); IMC (pela fórmula peso/altura2 e classificação segundo a proposta da Organização Mundial da Saúde (WHO, 1997): entre 18,5kg/m2 e 24,9kg/m2, eutrofia; entre 25,0kg/m2 e 29,9kg/m2, sobrepeso; acima de 30,0kg/m2, obesidade); comorbidade (avaliada pela Escala de Avaliação de Doenças Cumulativas em Geriatria (CIRS-G), elaborada por Miller et al. (1992); foi utilizada a classificação de comorbidade pelo escore total, que representa a soma da pontuação obtida em cada sistema orgânico e categorizado segundo Zelada Rodríguez et al. (2012) em quatro estratos: sem comorbidade, comorbidade leve - entre zero e dois pontos -, comorbidade moderada - entre três e oito pontos - e comorbidade grave - maior ou igual a nove pontos).
A análise descritiva da população de estudo foi efetuada pela determinação de frequências e de medidas de tendência central e de dispersão para variáveis categóricas e contínuas, respectivamente.
Para averiguar a associação entre raça/cor da pele e estadiamento clínico ao diagnóstico foi utilizado o método do escore de propensão com a técnica de ponderação para balancear os grupos. O cálculo desse escore resulta na probabilidade de um indivíduo ter o desfecho mantendo as demais variáveis balanceadas, exceto pela presença ou não da exposição, e é útil para aumentar a robustez das medidas de associação em estudos observacionais. Além disso, o uso do escore de propensão objetiva corrigir a estimativa do efeito do tratamento no desfecho, reduzindo os vieses quando não é possível randomizar, como no caso dos estudos observacionais (Moraes et al., 2011).
Neste artigo, a variável-exposição foi a raça/cor da pele das mulheres com câncer de mama que se autodeclararam brancas, pretas e pardas. Foi considerado desfecho o estadiamento clínico dicotomizado em: 0/I e II/III (Day; Williams; Khaw, 1989). Ademais, para a criação do escore, categorizamos a variável “escolaridade” como: “baixa escolaridade” (analfabeta/ensino fundamental incompleto); “média escolaridade” (ensino fundamental completo/ensino médio incompleto); “alta escolaridade” (ensino médio completo/superior incompleto/superior completo). As covariáveis “estado conjugal” e “Tabagismo” foram dicotomizadas em: “sem companheiro” ou “com companheiro” e “nunca fumou” ou “ex-tabagista/tabagista atualmente”, respectivamente.
Foram realizadas duas análises separadamente: brancas (grupo controle) vs. pretas (grupo tratamento), e brancas (grupo controle) vs. pardas (grupo tratamento). Para verificar as possíveis covariáveis desbalanceadas entre os grupos controle e tratamento foram realizados testes de hipóteses com a determinação dos valores da estatística qui-quadrado, por se tratar de variáveis categóricas. Após a seleção das covariáveis desbalanceadas para as duas comparações, utilizou-se o modelo de regressão logística para a criação dos escores de propensão por meio do método de máxima pseudoverossimilhança.
Após a criação dos escores, optou-se pela técnica de ponderação para estimar o efeito no tratamento devido ao número pequeno de observações em cada estrato da variável raça/cor da pele. Os pesos para cada indivíduo do estudo foram calculados a partir do inverso do escore de propensão, sendo: Grupo Tratamento=[1/escore de propensão] e Grupo Controle=[1/(1-escore de propensão)]. Logo, as mulheres que tiveram maior probabilidade de exposição apresentaram peso menor, e aquelas com menor probabilidade de exposição, peso maior.
Por fim, para calcular as odds ratios (OR) foi utilizado o método de equações de estimação generalizada, uma classe de modelos que permite estimar parâmetros na presença de correlação entre os dados. O programa computacional SPSS versão 22.0 para Windows foi utilizado para realizar as análises, considerando o nível de significância de 5%.
Resultados
Do total de 942 mulheres que eram elegíveis para o estudo, foram excluídas 27 (2,8%) autodeclaradas amarelas ou indígenas, 10 (1,1%) que apresentavam baixo peso e 42 (4,5%) com dados faltantes em variáveis importantes para a construção do escore. A população do estudo foi constituída por 863 mulheres, sendo 35,9% delas autodeclaradas brancas; 21,3%, pretas; e 42,8%, pardas.
A média de idade foi de 53,98 ±± 11,72 anos, e a renda média foi de 2,59 ±± 2,55 salários mínimos. A maioria das mulheres era casada ou vivia com companheiro (50,8%), tinha ensino médio completo (31,7%), morava no município do Rio de Janeiro (54,9%) e trabalhava na época do diagnóstico (62,6%) (Tabela 1).
Quanto à prática de exercício físico, 62,7% não praticavam atividade física no lazer, a maioria não fumava e não consumiu bebida alcóolica na época do diagnóstico. A média de peso da população foi de 72,87± ± 14,77kg (41,6-147,8kg) e 76,2% foram classificadas com sobrepeso/obesidade segundo o IMC. O tipo histológico mais prevalente foi o CDI, e 51,7% da população apresentava comorbidade moderada. Quanto ao estadiamento clínico ao diagnóstico, 18,9% apresentavam estadiamento entre 0 e I e 81,1% acima de II (Tabela 2).
As seguintes variáveis se encontravam desbalanceadas entre brancas vs. pretas: escolaridade (p=0,05), local de procedência (p=0,05), trabalho no momento do diagnóstico (p=0,02) e consumo de bebida alcóolica (p=0,03). Já para as brancas vs. pardas, as variáveis renda (p<0,01), escolaridade (p=0,04), consumo de bebida alcóolica (p=0,02) e prática de atividade física (lazer) (p=0,05) estavam desbalanceadas e foram levadas para a construção do escore de propensão (Tabela 3).
O balanceamento das covariáveis foi testado novamente após ponderação, mostrando-se satisfatório, exceto para as variáveis local de procedência para brancas vs. pretas (p<0,01) e renda para brancas vs. pardas (p<0,01) (Tabela 3). Entretanto, optou-se por manter tais covariáveis na criação do escore de propensão.
Mulheres autodeclaradas pretas tinham 63% mais chance de apresentar estadiamento clínico avançado (II e III) quando comparadas com aquelas autodeclaradas brancas (OR=1,63; IC95% 1,01-2,65). Já as autodeclaradas pardas possuíam 40% mais chance de apresentar estadiamento clínico avançado quando comparadas com as brancas, porém o achado não apresentou significância estatística (OR=1,40; IC95% 0,95-2,06) (Tabela 4).
Discussão
Nesta pesquisa, após a aplicação do escore de propensão com a técnica de ponderação, os resultados demonstraram que mulheres que se autodeclararam pretas apresentaram mais chance de apresentar estadiamento clínico avançado quando comparadas com aquelas que se autodeclararam brancas.
O estudo de Silva et al. (2013) apresentou resultados semelhantes, embora a associação tenha perdido significância estatística quando ajustada por escolaridade, estado conjugal e origem do encaminhamento. Lipscomb et al. (2016), em sua investigação com 7.503 mulheres de 20 anos de idade ou mais recém-diagnosticadas com câncer de mama em sete cidades do Estados Unidos, relataram que mulheres de cor preta apresentavam chance 81% maior de serem diagnosticadas em estágios mais avançado de doenças (IIIB, IIIC e IV) quando comparadas com as de cor branca (p<0,001). Outros estudos apontam resultados semelhantes (Abrahão et al., 2015; Cabral et al., 2019).
Apesar das diferenças metodológicas entre os estudos, seus resultados corroboram os achados da presente investigação. Vale ressaltar que as informações utilizadas neste estudo foram obtidas a partir de entrevistas realizadas por entrevistadores treinados, o que pode sugerir melhor qualidade dos dados em comparação com dados coletados de registros hospitalares.
Embora o Brasil não possua um programa de rastreio efetivo de base populacional, o Ministério da Saúde, por meio da publicação Diretrizes para a detecção precoce do câncer de mama no Brasil, orienta a mamografia bienal para as mulheres entre 50 e 69 anos (INCA, 2015). Todavia, a falta de informações sobre a doença, a dificuldade no acesso aos serviços de saúde - seja por questões geográficas ou socioculturais, principalmente para as mulheres dependentes do SUS - e dificuldades no apoio social podem constituir barreiras para o bom funcionamento dos programas de rastreio e detecção precoce dessa neoplasia (Abrahão et al., 2015; Stapleton et al., 2011).
Portanto, depois de balancear os escores de propensão pela técnica de ponderação, infere-se que a associação entre raça/cor da pele e estadiamento avançado (II e III) sugere uma possível iniquidade para as pretas quanto ao acesso às tecnologias de rastreio e diagnóstico (Bickell, 2002; Goes; Nascimento, 2013; Ogunsina et al., 2017; Schneider; D’Orsi, 2009).
Nesse sentido, mulheres pretas realizariam menos exames de rastreamento e por isso seriam diagnosticadas em estágios mais avançados da doença. Chor et al. (2011), com base nos dados da PNAD de 2008, analisaram a realização de pelo menos uma mamografia ao longo da vida de mulheres de 40 anos de idade ou mais. Os autores apontaram que, entre aquelas com baixa escolaridade, mulheres autodeclaradas pretas apresentaram chance 30% menor (OR=0,70; IC95% 0,60-0,82), e as pardas, 24% menor (OR=0,76; IC95% 0,69-0,84) de realizar o exame, respectivamente, comparadas às mulheres brancas no Brasil.
Goes e Nascimento (2013), com objetivo de analisar as desigualdades raciais e os níveis de acesso de mulheres maiores de 25 anos aos serviços preventivos de saúde na Bahia, utilizando também dados da PNAD, apontaram que somente 7,9% das mulheres negras consideraram o nível de acesso como bom, ou seja, realizaram todos os exames preventivos (clínico das mamas, mamografia e colo de útero) e utilizaram plano de saúde ou serviços do SUS. As autoras ainda descrevem que o racismo institucional constitui uma barreira no acesso aos serviços preventivos de saúde para as mulheres negras.
Além de dificultar o diagnóstico precoce, a desigualdade racial pode aumentar o risco de adoecimento por câncer, pois grupos étnicos menos favorecidos poderiam estar mais expostos aos fatores de risco para a neoplasia, como sedentarismo, excesso de peso, uso do tabaco, consumo de bebidas alcoólicas, predisposição genética, entre outros (INCA, 2019; Silva et al., 2015). Neste estudo, as mulheres pretas e pardas apresentaram maiores prevalências para excesso de peso, uso do tabaco e consumo de bebidas alcoólicas.
Outra explicação sugerida para a associação entre raça/cor da pele e estadiamento clínico de câncer de mama mais avançado ao diagnóstico é que mulheres pretas apresentam tumores maiores, e a mamografia, quando realizada, pode apresentar baixa especificidade em comparação com as mulheres brancas (Yankaskas; Gill, 2005). Entretanto, os estudos sobre eficácia da mamografia nesta população apresentam achados inconsistentes e podem resultar somente das desigualdades raciais no acesso aos serviços de saúde.
Outro resultado do presente artigo que merece destaque é que, apesar da indicação de mamografia bienal para mulheres entre 50 e 69 anos, a variável “idade” não se mostrou desbalanceada em nenhum dos dois modelos aplicados neste estudo. Embora a maior prevalência desta faixa etária seja de mulheres brancas (56,1%), não houve diferença estatisticamente significante no teste de hipóteses.
Uma pesquisa realizada com 98 idosas de três Centros de Convivência localizados na Zona Leste da cidade de São Paulo apontou que 22,4% relataram não conhecer a existência de exame para detectar o câncer de mama precocemente (Santos; Chubaci, 2011). Esses dados indicam a importância de aprofundar o conhecimento disponível sobre o perfil sociodemográfico das mulheres usuárias desses serviços e explorar as iniquidades que possam ocorrer durante o processo de atenção à sua saúde, de forma a contribuir para melhorias na implementação e na efetividade das políticas públicas para o câncer de mama.
Apesar do uso do escore de propensão com a técnica de ponderação para controle do confundimento em estudos com mulheres com câncer de mama, até o momento não foram localizados artigos que utilizassem essa abordagem mais robusta na temática de desigualdades raciais e câncer de mama.
Este estudo apresenta limitações, entre elas a falta da análise de variáveis relacionadas à data dos exames de diagnóstico e do início do tratamento, que são importantes na temática estudada. Algumas covariáveis não apresentaram bom ajuste após o balanceamento por ponderação devido ao pequeno tamanho amostral. A exclusão de pacientes com estadiamento IV dificultou a comparabilidade com a literatura. Além disso, devido à miscigenação brasileira, é possível que pacientes autodeclaradas pardas tenham sido influenciadas por questões subjetivas que não se adequam às definições oficiais dessa cor de pele. Por fim, é necessário ter cuidado ao generalizar os achados, já que o estudo foi realizado com uma população oriunda de um hospital de referência para o tratamento do câncer de mama.
Por outro lado, é possível destacar pontos fortes, como o uso da ponderação para a criação do escore de propensão, uma técnica mais robusta comparada ao pareamento, sendo assim uma alternativa para reduzir vieses e aumentar a precisão de estudos observacionais; a padronização da equipe de pesquisa para entrevistas e coletas de dados em diversos treinamentos, evitando possíveis vieses de informação; e a oportunidade de resgatar e ampliar o debate das iniquidades sociais no atual cenário do país.
Considerações finais
Neste estudo foi possível identificar associação entre raça/cor preta e estadiamento clínico avançado (II e III) quando comparada com a branca após ponderação pelas variáveis “local de procedência”, “escolaridade”, “trabalho no momento do diagnóstico” e “consumo de bebida alcóolica” (OR=1,63; IC95% 1,01-2,65).
Tais achados podem ser justificados por disparidades raciais no acesso aos serviços de saúde e à detecção precoce do câncer de mama, tornando-se necessário priorizar grupos raciais mais vulneráveis em políticas sanitárias públicas. Para futuras investigações, recomenda-se analisar outras covariáveis importantes para a temática estudada, como a trajetória e o intervalo de tempo percorrido entre a realização dos exames de biópsia e o início do tratamento para o câncer de mama.
Agradecimentos
Agradecemos à Faperj, pela bolsa concedida a Graziele Marques Rodrigues, e a todos os , auxiliares de pesquisa e pacientes do hospital de referência para o câncer de mama do Sistema Único de Saúde.
Referências
- ABRAHÃO, K. S. et al. Determinants of advanced stage presentation of breast cancer in 87,969 Brazilian women. Maturitas, Limerick, v. 82, n. 4, p. 365-370, 2015.
- BAILEY, S. R.; LOVEMAN, M.; MUNIZ, J. O. Measures of “race” and the analysis of racial inequality in Brazil. Social Science Research, New York, v. 42, n. 1, p. 106-119, 2013.
- BICKELL, N. A. Race, ethnicity and disparities in breast cancer: victories and challenges. Women’s Health Issues, New York, v. 12, n. 5, p. 238-251, 2002.
- CABRAL, A. L. L. et al. Vulnerabilidade social e câncer de mama: diferenciais no intervalo entre o diagnóstico e o tratamento em mulheres de diferentes perfis sociodemográficos. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 24, n. 2, p. 613-622, 2019.
-
CHOR, D. et al. Desigualdade socioeconômica afeta a chance de realizar mamografia no Brasil. In: CONFERÊNCIA MUNDIAL SOBRE DETERMINANTES SOCIAIS DA SAÚDE, 2011, Rio de Janeiro. Anais… Rio de Janeiro: Centro de Estudos, Políticas e Informação sobre Determinantes Sociais da Saúde, 2011. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/3tpwoi3 >. Acesso em: 20 jan. 2020.
» https://bit.ly/3tpwoi3 - DAY, N. E.; WILLIAMS, D. R.; KHAW, K. T. Breast cancer screening programmes: the development of a monitoring and evaluation system. British Journal of Cancer, London, v. 59, n. 6, p. 954-958, 1989.
- FARO, A.; PEREIRA, M. E. Raça, racismo e saúde: a desigualdade social da distribuição do estresse. Estudos de Psicologia, Natal, v. 16, n. 3, p. 271-278, 2011.
- GOES, E. F.; NASCIMENTO, E. R. Mulheres negras e brancas e os níveis de acesso aos serviços preventivos de saúde: uma análise sobre as desigualdades. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 37, n. 99, p. 571-579, 2013.
-
INCA - INSTITUTO NACIONAL DE CÂNCER JOSÉ ALENCAR GOMES DA SILVA. TNM: classificação de tumores malignos. 6. ed. Rio de Janeiro, 2004. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/32hHXw0 >. Acesso em: 10 jan. 2020.
» https://bit.ly/32hHXw0 - INCA - INSTITUTO NACIONAL DE CÂNCER JOSÉ ALENCAR GOMES DA SILVA. Diretrizes para a detecção precoce do câncer de mama no Brasil. Rio de Janeiro, 2015.
- INCA - INSTITUTO NACIONAL DE CÂNCER JOSÉ ALENCAR GOMES DA SILVA. Estimativa 2020: incidência de câncer no Brasil. Rio de Janeiro, 2019.
- LIPSCOMB, J. et al. What predicts an advanced-stage diagnosis of breast cancer? Sorting out the influence of method of detection, access to care, and biologic factors. Cancer Epidemiology, Biomarkers & Prevention, Philadelphia, v. 25, n. 4, p. 613-623, 2016.
- LOPES, F. Para além da barreira dos números: desigualdades raciais e saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 21, n. 5, p. 1595-1601, 2005.
- MILLER, M. D. et al. Rating chronic medical illness burden in geropsychiatric practice and research: application of the Cumulative Illness Rating Scale. Psychiatry Research, Limerick, v. 41, n. 3, p. 237-248, 1992.
- MORAES, J. R. et al. Relação entre plano de saúde e a realização do exame Papanicolaou: uma aplicação de escore de propensão usando um inquérito amostral complexo. Revista Brasileira de Epidemiologia, São Paulo, v. 14, n. 4, p. 589-597, 2011.
- OGUNSINA, K. et al. Sequential matched analysis of racial disparities in breast cancer hospitalization outcomes among African American and white patients. Cancer Epidemiology, Amsterdam, v. 49, p. 138-143, 2017.
- SANTOS, G. D.; CHUBACI, R. Y. S. O conhecimento sobre o câncer de mama e a mamografia das mulheres idosas frequentadoras de centros de convivência em São Paulo (SP, Brasil). Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 5, p. 2533-2540, 2011.
- SCHNEIDER, I. J. C.; D’ORSI, E. Sobrevida em cinco anos e fatores prognósticos em mulheres com câncer de mama em Santa Catarina, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 25, n. 6, p. 1285-1296, 2009.
- SIEGEL, R. L.; MILLER, K. D.; JEMAL, A. Cancer statistics, 2021. CA: A Cancer Journal for Clinicians, Hoboken, v. 71, n. 1, p. 7-33, 2021.
- SILVA, L. B. et al. O serviço social na residência multiprofissional em oncologia no Instituto Nacional de Câncer - INCA. Serviço Social e Saúde, Campinas, v. 11, n. 1, p. 51-66, 2015.
- SILVA, P. F. et al. Associação entre variáveis sociodemográficas e estadiamento clínico avançado das neoplasias da mama em hospital de referência no estado do Espírito Santo. Revista Brasileira de Cancerologia, Rio de Janeiro, v. 59, n. 3, p. 361-367, 2013.
- STAPLETON, J. M. et al. Patient-mediated factors predicting early- and late-stage presentation of breast cancer in Egypt. Psycho-Oncology, Chichester, v. 20, n. 5, p. 532-537, 2011.
- TALLEY, C. H.; WILLIAMS, K. P. Impact of age and comorbidity on cervical and breast cancer literacy of African Americans, Latina, and Arab women. Nursing Clinics of North America, Philadelphia, v. 50, n. 3, p. 545-563, 2015.
- TRAVASSOS, C. et al. Utilização dos serviços de saúde no Brasil: gênero, características familiares e condição social. Revista Panamericana de Salud Pública, Washington, DC, v. 11, n. 5/6, p. 365-373, 2002.
- WERNECK, J. Racismo institucional e saúde da população negra. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 25, n. 3, p. 535-549, 2016.
- WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. Obesity: preventing and managing the global epidemic: report of a WHO Consultation on Obesity. Geneva, 1997. (WHO Technical Report Series 894).
- WYATT, T. E.; PERNENKIL, V.; AKINYEMIJU, T. F. Trends in breast and colorectal cancer screening among U.S. adults by race, healthcare coverage, and SES before, during, and after the great recession. Preventive Medicine Reports, New York, v. 7, p. 239-245, 2017.
- YANKASKAS, B. C.; GILL, K. S. Diagnostic mammography performance and race: outcomes in black and white women. Cancer, Hoboken, v. 104, n. 12, p. 2671-2681, 2005.
- ZELADA RODRÍGUEZ, M. A. et al. Fiabilidad interobservador de los 4 índices de comorbilidad más utilizados en pacientes ancianos. Revista Española de Geriatría y Gerontología, Madrid, v. 47, n. 2, p. 67-70, 2012.
-
1
Este artigo foi apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) com recursos financeiros por meio da concessão da bolsa DSC-10 - Doutorado Nota 10 a Graziele Marques Rodrigues. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública (CAAE: 57040216.6.0000.5240) e do Instituto Nacional de Câncer (CAAE: 51100615.7.0000.5274).
-
2
GCO - GLOBAL CANCER OBSERVATORY. Tables by cancer. World Health Organisation, Lyon, 2018. Disponível em: <http://globocan.iarc.fr/>. Acesso em: 1 dez. 2020.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
08 Ago 2021 -
Data do Fascículo
2021
Histórico
-
Recebido
28 Dez 2020 -
Aceito
18 Jan 2021