Open-access Apontamentos para se pensar ações de prevenção à violência pelo setor saúde

Notes on the prevention of violence by the health sector

Resumos

A violência tem sido um dos fenômenos contemporâneos que, além da inquietude social que provoca, causa um contingente substancial de vítimas todos os anos. Medidas de prevenção da violência e de promoção de uma cultura da paz têm sido propostas pelos organismos internacionais como a Organização Mundial da Saúde e a Unesco. O Brasil tem investido esforços nos últimos anos em uma série de legislações e normativas na área da saúde, direcionadas para a prevenção da violência e promoção da saúde, que atendem às recomendações internacionais e avançam de forma mais substancial do que vinha sendo proposto até então pelo setor saúde. Este artigo apresenta essas proposições e suas recomendações e reflete sobre os desdobramentos dessas medidas, diante do questionamento da necessidade de o setor saúde melhorar a humanização do cuidado oferecido por seus profissionais. Levanta os desafios para a capacitação de os profissionais de saúde atenderem as medidas propostas e aproveita para, a luz de Hannah Arendt, refletir sobre os conceitos de violência, poder, autoridade, força e vigor.

Violência; Políticas; Prevenção; Promoção à saúde


Violence is one of the contemporary phenomena which has provoked social restlessness and caused a substantial number of victims every year. International organizations, such as WHO and Unesco, have proposed violence prevention measures and the promotion of a culture of peace. For some years now Brazil has been making efforts in creating new legislation in the health sector which may contribute to violence prevention and health promotion, fulfilling international recommendations and advancing substantially if compared with previous initiatives. This paper presents these propositions and their recommendations and discusses the consequences in regard to demands for the humanization of health care provided by practitioners. It points out the challenges for human resources training and, according to Hannah Arendt's ideas, discusses concepts of violence, power, authority, force and strength.

Violence; Policies; Prevention; Health Promotion


ARTIGOS

Apontamentos para se pensar ações de prevenção à violência pelo setor saúde

Notes on the prevention of violence by the health sector

Sandra Maria Galheigo

Doutora em Ciências Sociais. Professora do Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional da Faculdade de Medicina da USP. Rua Cipotânea 51, Cidade Universitária, CEP 05360-000, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: sandramg@usp.br

RESUMO

A violência tem sido um dos fenômenos contemporâneos que, além da inquietude social que provoca, causa um contingente substancial de vítimas todos os anos. Medidas de prevenção da violência e de promoção de uma cultura da paz têm sido propostas pelos organismos internacionais como a Organização Mundial da Saúde e a Unesco. O Brasil tem investido esforços nos últimos anos em uma série de legislações e normativas na área da saúde, direcionadas para a prevenção da violência e promoção da saúde, que atendem às recomendações internacionais e avançam de forma mais substancial do que vinha sendo proposto até então pelo setor saúde. Este artigo apresenta essas proposições e suas recomendações e reflete sobre os desdobramentos dessas medidas, diante do questionamento da necessidade de o setor saúde melhorar a humanização do cuidado oferecido por seus profissionais. Levanta os desafios para a capacitação de os profissionais de saúde atenderem as medidas propostas e aproveita para, a luz de Hannah Arendt, refletir sobre os conceitos de violência, poder, autoridade, força e vigor.

Palavras-chave: Violência; Políticas; Prevenção; Promoção à saúde.

ABSTRACT

Violence is one of the contemporary phenomena which has provoked social restlessness and caused a substantial number of victims every year. International organizations, such as WHO and Unesco, have proposed violence prevention measures and the promotion of a culture of peace. For some years now Brazil has been making efforts in creating new legislation in the health sector which may contribute to violence prevention and health promotion, fulfilling international recommendations and advancing substantially if compared with previous initiatives. This paper presents these propositions and their recommendations and discusses the consequences in regard to demands for the humanization of health care provided by practitioners. It points out the challenges for human resources training and, according to Hannah Arendt's ideas, discusses concepts of violence, power, authority, force and strength.

Keywords: Violence; Policies; Prevention; Health Promotion.

A Questão da Violência

Atração e repulsa, fascínio e medo: de forma polarizada e ambivalente convive-se com a violência na vida contemporânea. Não seria o caso de se apontar na linha do tempo o momento de seu surgimento, os locais de sua presença, as variações de sua intensidade. A violência sempre existiu entre os homens, assim como a cada local e tempo sempre existiram mecanismos sociais para sua compreensão e controle (Zaluar, 1996). Seguindo esse curso de pensamento, não seria o caso de se buscar, no passado, os precursores históricos da violência na contemporaneidade como se houvesse uma linearidade evolutiva, que, ao ser conhecida, pudesse ser interrompida, devolvendo todos a inocência e tranquilidade originais, ou à paz, enquanto estado absoluto.

A violência sempre fez parte do real e do imaginário da humanidade, mas temos que admitir que sua constante presença no cotidiano da vida contemporânea tem ganhado novos contornos, manifestos na forma de ódio cristalizado, em atos violentos fortuitos, na banalização e espetacularização midiáticas e na construção de um medo que ora aparece sob a forma de resignação ora, de angústia.

Na medida em que a vida social ocidental contemporânea ressalta a individualidade como valor soberano, mas acirra as desigualdades sociais a limites intoleráveis, estilos de vida, crenças, escolhas pessoais e a luta pela sobrevivência concreta e simbólica tornam-se fontes de produção de conflito e demandam constante negociação. Afinal, se a alteridade é o ponto de partida para o estabelecimento das relações sociais, a diferença é tanto a origem da vida social como do conflito (Velho, 1996). Ao longo da história da humanidade, a troca entre pessoas, grupos, clãs e nações constituiu-se num mecanismo eficaz da garantia de períodos de paz. A reciprocidade, portanto, pode ser vista como a força e a expressão da vida social e sua impossibilidade a origem dos impasses que, na ausência da comunicação, podem resultar em episódios violentos entre pessoas, grupos e sociedades. Isso explica como a religião, a etnicidade, o gênero, a orientação política e a desigualdade social são aspectos importantes na geração de conflitos (Velho, 1996).

Outros fatores são também considerados importantes no acirramento da violência contemporânea: as vivências de violência e negligência desde a tenra idade; a convivência com a desigualdade social (James, 1995); as mudanças nos mecanismos de controle social nas sociedades contemporâneas (Adorno, 1998); o fortalecimento da violência infrapolítica, tais como as do crime organizado e do tráfico de drogas (Wieviorka, 1997); e a manipulação dos imaginários violentos vista nas guerras étnicas e entre facções criminosas (Schmidt e Schröder, 2001). Portanto, não há como se abordar a questão da violência fora da sociedade que lhe provê contexto e inteligibilidade, já que ela se alimenta dos fatos sociais, econômicos, políticos e culturais que se estabelecem nas macro e microestruturas sociais (Minayo, 2003).

Assim, as narrativas da violência nas diferentes culturas e sociedades são criadas e recriadas como velhos e novos estigmas, fazendo com que o tecido social mostre com mais nitidez seus esgarçamentos. As trocas sociais, a reciprocidade e a solidariedade, que formam os alicerces das relações sociais, ficam cada vez mais prejudicados, e percebe-se um aumento da intolerância e uma crescente diminuição das possibilidades de resolução de conflitos de forma dialógica.

Em síntese, as experiências de violência retroalimentam a produção de mais violência, numa espiral de difícil ruptura. A todo instante tem se contato com a violência seja pelas imagens das guerras e disputas, pelas histórias de violência nas cidades e nos campos ou por meio da sua silenciosa presença intrafamiliar, coletiva e institucional. Visibilidade e invisibilidade fazem contraponto, deixando rastros de sua insidiosa presença no cotidiano mais corriqueiro e na forma paroxística que assume nos eventos brutais. Daí decorre uma crescente percepção da violência como o grande Leviatã de nossos tempos, que parece subjugar sistemas políticos, minar os espaços públicos, desacreditar a capacidade de governabilidade de um povo, medrar os projetos coletivos ou abalar a confiança das relações de afeto. Para um monstro tão grande, "um aparato repressivo mais forte", clamam alguns. Para um medo e sofrimento tão grande, a resignação e a reclusão, preferem outros. Para os envolvidos com as práticas de educação e cuidado e com a formulação de políticas públicas, resta o desafio de pensar e implementar práticas resolutivas que deem conta, no mínimo, da redução de seus danos e, no melhor dos casos, na redução de sua constante presença ou na prevenção de sua disseminação como prática social.

O entendimento da violência varia conforme o tempo, o lugar, a cultura e a sociedade; conforme o arcabouço teórico de quem a estuda; conforme os simbolismos que a sociedade e seus sujeitos lhe atribuem e a forma com que a enfrentam. Vítimas, perpetradores e espectadores conferem-lhe sentidos singulares, que proveem do grau de proximidade, convivência e sofrimento vivido e, do instrumental usado para seu entendimento, seja a experiência direta com o fenômeno, a explicação que o senso comum lhe atribui ou a construção midiática de seu significado (Minayo e col., 1999; Njaine e Minayo, 2003; Njaine, 2006). Educadores, profissionais da saúde e da assistência social, pesquisadores, implementadores e gestores de projetos sociais, agentes do aparato de segurança pública buscam também o entendimento da violência, e, em igual medida, pensam e formulam estratégias para seu enfrentamento.

No Brasil, nas últimas três décadas, muito tem se produzido em termos de reflexão, pesquisa e debate sobre violência. Foi no início dos anos 1980, com o esgotamento do regime militar, que depois de duas décadas e meia de dissimulação sobre sua existência, a violência começou a ganhar visibilidade (Ferreira, 1979; Luppi, 1981; Paoli e col., 1982; Pinheiro, 1983; Pinheiro e Braun, 1986; Junqueira, 1986). Então, a violência policial, os esquadrões da morte e os linchamentos contra a população pobre, e, em particular, contra crianças e adolescentes, começou a ser divulgada e debatida. À época, poder, violência, autoridade e força eram como sinônimos.

Após os anos 1990, com a reestruturação das políticas públicas, novas intervenções descentralizadas puderam ganhar corpo, fazendo com que um número significante de organizações não-governamentais começasse a desenvolver iniciativas de enfrentamento do fenômeno. Com o conceito de cidadania se tornando eixo discursivo na sociedade brasileira, ele passou também a fazer parte dos discursos sobre prevenção da violência. Eventos para a discussão da temática tornaram-se mais frequentes e iniciativas governamentais e sociais começaram a ser relatadas e discutidas. Iniciativas para a prevenção da violência e a sedimentação de uma cultura da paz passaram a ser entendidas como medidas fundamentais no âmbito dos setores: educação, assistência social, saúde e segurança pública.

Ações intersetoriais de prevenção da violência têm sido compreendidas como as mais pertinentes para lidar com a questão; entretanto, o escopo de ação das propostas em andamento é ainda limitado aos setores específicos. O que se encontra com frequência é a implementação de programas e projetos isolados em escolas e programas comunitários, em geral, para crianças e jovens, sem que haja qualquer plano de ação intersetorial que norteie e agregue essas ações em âmbito local, regional e nacional. Vem daí a importância de melhor se estabelecer diretrizes nacionais e locais de prevenção da violência, para que se possa avaliar as ações programáticas existentes e substanciar propostas de ações futuras.

Prevenção da Violência e Construção de uma Cultura da Paz: propostas dos organismos internacionais

O setor saúde sempre foi mais preocupado em atender as vítimas da violência do que em se debruçar sobre o estudo das causas e do planejamento de estratégias para sua prevenção. A mudança de enfoque, passando do plano curativo para o preventivo, é, portanto, recente. Ela é norteada pelas ideias de proteção e promoção da saúde, vistas em sua significação mais ampliada de bem-estar individual e coletivo.

Nessa direção que a Organização Mundial da Saúde (OMS) deflagrou uma Campanha Global para a Prevenção da Violência e, em outubro de 2002, lançou o primeiro Relatório Mundial sobre Violência e Saúde, cujo objetivo foi descrever a magnitude e o impacto da violência no mundo. O relatório apresenta os fatores de risco para a violência, sumariza tipos de intervenção, políticas que têm sido tentadas e sua eficácia e faz recomendações para ações no plano local, nacional e internacional (Krug e col., 2002).

Ele utiliza o modelo ecológico para abordar a violência enquanto fenômeno multifacetado. Propõe abordagens de prevenção da violência a partir de quatro níveis - individual, relacional, comunitário e social - que, de fato, não são entendidos como níveis estanques, mas que, ao contrário, se sobrepõem e interferem um no outro. Assim, parte do princípio de que vários níveis precisam ser abordados ao mesmo tempo para se obter alguma resolutividade na prevenção da violência, cuja abordagem deve ser dirigida simultaneamente a fatores de risco individual, relacionamentos pessoais, desigualdade social e de gênero, aspectos sociais e culturais e o monitoramento dos lugares públicos prováveis de apresentar eventos violentos (Krug e col., 2002).

A partir do modelo ecológico, as abordagens individuais em programas educacionais, terapêuticos e de desenvolvimento social devem encorajar atitudes saudáveis em crianças e jovens e ajudar aqueles que já praticam atos violentos. As abordagens relacionais devem focar principalmente as interações pessoais que podem ser a causa de situações de violência e devem ser dirigidas tanto às vitimas como aos perpetradores de atos violentos. Seu alvo, portanto, são prioritariamente os relacionamentos íntimos e familiares. As abordagens comunitárias devem ampliar a consciência local no que se refere à violência e prover cuidado e suporte para as vitimas. Devem também promover a ação comunitária e a corresponsabilização na prevenção da violência e desenvolver atividades tais como campanhas, melhorias ambientais e treinamento policial. As abordagens sociais são aquelas dirigidas aos aspectos sociais, culturais, políticos e econômicos mais amplos de alguma forma relacionados à violência. Elas são constituídas de medidas legislativas e judiciais nacionais, a adesão à implementação de tratados internacionais, de políticas de redução de pobreza e os esforços para modificação de normas e costumes sociais e culturais que possam ser danosos às pessoas.

O Relatório Mundial sobre Violência e Saúde traça recomendações que demandam ação conjunta e intersetorial e, consequentemente, o engajamento de organizações governamentais (nacionais, regionais e locais), organizações não-governamentais e segmentos populacionais interessados no assunto. As recomendações envolvem nove pontos principais. O primeiro é a criação, implementação e monitoramento de um plano nacional para a prevenção contra a violência, que deve levar em conta o ponto de vista dos diferentes setores governamentais e não-governamentais. Esse plano deve incluir elementos como a revisão das leis e políticas, o desenvolvimento de capacidade de pesquisa e de coleta de dados, o fortalecimento dos serviços para as vítimas e o desenvolvimento e a avaliação dos programas de prevenção. A coordenação do plano deve considerar a metodologia de organização das ações e favorecer a interação entre os diversos setores, como educação, trabalho, segurança pública e assistência social já que a resolutividade das medidas de prevenção da violência depende da articulação intersetorial (Krug e col., 2002).

A segunda recomendação visa o aprimoramento da capacidade de coleta de dados sobre violência, considerado essencial para o estabelecimento de prioridades e diretrizes para os programas de prevenção da violência e promoção da saúde e, posteriormente, para sua avaliação. A confiabilidade nos dados coletados no nível local é crucial para a formulação de políticas e para pesquisas comparadas. O estabelecimento de padrões internacionais mostra-se também interessante para melhor se compreender o fenômeno nas diferentes nações e culturas.

A terceira recomendação enfatiza a importância da definição de prioridades na abordagem das causas e consequências da violência e os custos de sua prevenção. Recomenda-se a realização de pesquisas comparadas dirigidas ao impacto da globalização nas relações sociais, a identificação de fatores de risco e proteção comuns às diferentes culturas e sociedades.

A quarta recomendação aponta para a importância da atenção básica à saúde, do desenvolvimento de programas para crianças e adolescentes do pré-natal à inclusão escolar, da garantia de equalização de oportunidades sociais, das melhorias na infraestrutura urbana, do controle ao acesso às armas de fogo, do suporte ao cuidado parental, e das campanhas educativas para a mudança de atitudes violentas. Esses programas são conhecidos pelo seu bom impacto na redução do abuso infantil, da negligência e da violência juvenil e adulta.

A quinta recomendação trata do fortalecimento da atenção às vitimas da violência. Envolve, portanto, a melhora das respostas do setor saúde à violência, no pronto reconhecimento dos sinais de maus-tratos, no suporte adequado às vitimas de atos violentos, no atendimento de urgência aos programas de reabilitação, no provimento de garantias contra a re-vitimização e na capacitação dos profissionais de saúde para lidar com esse tipo de atenção.

A sexta recomendação aborda a importância da integração das políticas sociais e educacionais e a promoção da igualdade social e de gênero. A desigualdade social tem sido extensivamente correlacionada à violência e recomenda-se fazer esforços para a redistribuição da riqueza e a manutenção de políticas de proteção social. A recomendação enfatiza que a qualidade das políticas sociais de saúde, educação e assistência social devem ser preservadas a todo custo e que pessoas em desvantagem devem receber suporte especial, educacional e econômico.

A sétima recomendação destaca a necessidade de maior colaboração e troca de informações relacionadas à prevenção da violência entre agências nacionais e internacionais, governos, pesquisadores, redes e organizações não-governamentais. A colaboração otimiza esforços e evita a duplicação desnecessária de projetos e recursos.

A oitava recomendação refere-se à promoção e ao monitoramento à adesão aos tratados, às leis e a outros mecanismos internacionais para a proteção de direitos humanos. A última recomendação foca sua atenção no comércio de drogas e armamentos e recomenda que se busquem respostas consensuadas para seu controle.

Em 2006, a Organização das Nações Unidas lançou o relatório sobre a violência contra crianças, realizado por um especialista independente, abordando o fenômeno em ambientes variados como na família, nas escolas, em organizações sociais alternativas, em instituições de cumprimento de medida de privação de liberdade, em locais de trabalho e nas comunidades (Assembleia Geral das Nações Unidas, 2006). As recomendações traçadas corroboram às do Relatório Mundial sobre Violência e Saúde sendo apenas dirigidas à população infanto-juvenil. Apresentam recomendações específicas para o lar, a família e a comunidade, para escolas e outros ambientes educacionais e para os sistemas assistenciais e de justiça. Ressalta a importância da proibição de qualquer forma de violência contra crianças, da disseminação de valores condizentes com uma cultura da paz e da garantia da participação da criança e do jovem nos fóruns de discussão.

As iniciativas da OMS vêm se somar aos esforços da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), que tem coordenado atividades de fomento à Cultura da Paz. Tal como definida pelas Nações Unidas, a Cultura da Paz é "um conjunto de valores, atitudes, modos de comportamento e formas de vida que rejeitam a violência e previnem conflitos ao lidar com suas causas e resolver problemas pelo diálogo e negociação entre indivíduos, grupos e nações" (United Nations, 1998, 1999).

A Unesco declarou o ano 2000 o Ano Internacional para a Cultura da Paz, lançando uma mobilização global para década (2001-2010), considerada a Década Internacional para a Cultura da Paz e da Não-Violência para as Crianças do Mundo. As recomendações das Nações Unidas para que a paz e a não-violência prevaleçam incluem: o fomento da cultura da paz pela educação; a promoção do desenvolvimento econômico e social autossustentável; a promoção ao respeito aos direitos humanos; a garantia da igualdade entre homens e mulheres; o fomento da participação democrática; e o avanço da compreensão, da tolerância e da solidariedade (United Nations, 1998, 1999).

A análise das diretrizes propostas pelos organismos internacionais acima descritos e de suas diretrizes, recomendações e estratégias são importantes para os que trabalham em programas locais na medida em que possibilita ampliar a compreensão da problemática em nível mundial, identificar os esforços e as tendências internacionais no combate à violência, fundamentar e qualificar as ações desenvolvidas, aprender novas estratégias e entender os pontos de convergência e divergência existentes entre o que é proposto pelos organismos internacionais e o que é feito no país.

A Violência e o Setor Saúde no Brasil

Apenas a partir dos anos 1990, a violência, enquanto categoria distinta das causas externas, passou a fazer parte da agenda de discussão dos organismos internacionais da saúde (OMS e OPAS). Em 1997, a OMS convocou uma reunião com Ministros da Saúde de todos os países membros da Organização das Nações Unidas, colocando a violência entre as primeiras cinco prioridades das Américas. Em 1998, o Ministério da Saúde criou um grupo de trabalho para a formulação de uma política no assunto (Minayo, 2006a, 2006b). Em 2001, foi publicada a Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências, estabelecida pela portaria nº 737/GM de 16 de maio de 2001. Essa política foi criada no intuito de estabelecer diretrizes e estratégias para a redução da morbimortalidade por violência, que envolvem a promoção da adoção de comportamentos e de ambientes seguros e saudáveis; a monitorização da ocorrência de acidentes e de violências; a sistematização, ampliação e consolidação do atendimento pré-hospitalar; a assistência interdisciplinar e intersetorial às vitimas de acidentes e de violências; a estruturação e consolidação do atendimento voltado à recuperação e à reabilitação; a capacitação de recursos humanos; e o apoio ao desenvolvimento de estudos e pesquisas (Brasil, 2001; Minayo, 2006a, 2006b).

Essa política tem em sua fundação os princípios da promoção da saúde e destaca a importância do "fortalecimento da capacidade dos indivíduos, das comunidades e da sociedade em geral para desenvolver, melhorar e manter condições e estilos de vida saudáveis. Esse fortalecimento inclui a criação de ambientes saudáveis, a reorganização dos serviços de saúde, o reforço da ação comunitária e o desenvolvimento de aptidões pessoais". (Brasil, 2001, p. 24).

A Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências inaugura assim a adoção de medidas de saúde preventivas no país, no sentido amplo do termo, passando a envolver a promoção da saúde, a prevenção da recorrência dos eventos, o tratamento das vítimas e de suas sequelas. Baseia-se no pressuposto da eficácia do investimento na prevenção primária, com menor custo e maior impacto, já que a violência e os acidentes são passíveis de prevenção.

A esta política segue-se um conjunto de regulamentações semelhantes: o Plano Nacional de Redução de Acidentes e Violências e uma série de portarias e normas técnicas específicas. O Ministério da Justiça publicou também planos de enfrentamento da violência sexual, da violência contra a pessoa idosa, garantindo uma cobertura maior das políticas no assunto. (Minayo, 2006b).

Das regulamentações recentes do Ministério da Saúde, destacam-se duas portarias, que convergem para uma implementação mais efetiva das ações preventivas contra a violência:

a) Portaria nº 936, de 18 de maio de 2004, que dispõe sobre a estruturação da Rede Nacional de Prevenção da Violência e Promoção da Saúde e a Implantação e Implementação de Núcleos de Prevenção à Violência em Estados e Municípios (Brasil, 2004a).

b) Portaria nº 687, de 30 de março de 2006, que aprova a Política de Promoção da Saúde (Brasil, 2006).

A Rede Nacional de Prevenção da Violência e Promoção da Saúde tem como objetivos: a articulação da gestão de conhecimento no desenvolvimento de pesquisas com a formulação de indicadores e a disseminação de conhecimentos e práticas; a implementação da troca de experiências em vários níveis (de gestão e formulação de políticas públicas intersetorias e intrassetoriais, de práticas de atenção integral às pessoas vivendo situações de violência, das formas de participação social nas várias esferas de gestão); e acompanhar o desenvolvimento das ações do Plano Nacional de Prevenção da Violência e Promoção da Saúde nas várias esferas de gestão (Brasil, 2004a).

A Política de Promoção da Saúde apresenta um quesito específico para a prevenção da violência e estímulo à cultura de paz, que se propõe a: contribuir para ampliação e fortalecimento da Rede Nacional de Prevenção e para o incentivo e monitoramento dos Planos Estaduais e Municipais de Prevenção da Violência; investir na sensibilização e capacitação dos gestores e profissionais de saúde na identificação e encaminhamento adequado de situações de violência intrafamiliar e sexual, com a implementação da ficha de notificação de violência interpessoal e a implantação de Serviços Sentinela; e o estímulo à articulação intersetorial (Brasil, 2006).

Essas medidas registram um avanço significativo na implementação de políticas de prevenção da violência no Brasil e indicam uma consonância com o que tem sido proposto pelos organismos internacionais. O desafio, portanto, é sobre a efetivação de tais planos em âmbito nacional. Um aspecto que conta a favor é que o setor saúde tem sido aquele cujas formulações políticas têm mais resistido às mudanças governamentais e as intempéries da política partidária. É comum em outros setores a implantação de projetos que se mantêm apenas durante a gestão política que o implementou. O aspecto preocupante é se há fôlego no setor saúde para realizar as capacitações de recursos humanos necessárias para a garantia do enfrentamento da questão da violência de forma sensível, humanizada e não estigmatizante. A complexidade do enfrentamento das questões da violência exige um grau de reflexão e preparo dos trabalhadores da saúde diferenciado, na medida em que, contrário aos processos saúde-doença usuais, nesse caso, "cuidadores" e "cuidados" estão envolvidos em um fenômeno compartilhado, podendo alternar seus papéis entre vítimas e vitimizadores.

Assim, se os trabalhadores da saúde pretendem trabalhar com a prevenção da violência e com a construção de uma cultura da paz, eles terão que aprender a lidar com a resolução de conflitos e ampliar sua capacidade de comunicação e diálogo. Lidar com a diferença, manifestar solidariedade, tolerância e respeito, prover um cuidado atento e acolhedor, e aceitar o direito a autodeterminação do sujeito sobre sua vida não são qualidades frequentemente disponíveis no setor saúde. A Política Nacional de Humanização (PNH), o HumanizaSus, tem exatamente se proposto a investir na melhoria da qualidade do atendimento oferecido pelo sistema. O documento oficial apresenta em sua justificativa que uma política de humanização do sistema mostrou-se essencial, a partir de um diagnóstico da insatisfação dos usuários no relacionamento com os profissionais de saúde (Brasil, 2004b). Deslandes aponta que "essa avaliação ratifica o imaginário social e a opinião pública ao confirmar que, em 'número significativo', não seriam só precários, mas desrespeitosos e mesmo violentos os cuidados dispensados nos serviços públicos de saúde"(2004, p. 9).

Deslandes, ao analisar o discurso da PNH, aponta como eixo discursivo a humanização como oposição à violência, seja física e psicológica, que se expressa nos "maus-tratos", seja simbólica, que se apresenta pela dor de não ter a "compreensão de suas demandas e suas expectativas" (Deslandes, 2004, p. 9). A autora sinaliza que a violência física é pouco confirmada pela literatura da área, gerando dificuldade em seu dimensionamento. Deslandes lembra que violência simbólica faz parte da própria história do hospital moderno, que impõe o isolamento do convívio familiar, a submissão ao poder médico enquanto nega a autodeterminação do doente sobre seu corpo. Assim, a proposta de humanização seria uma proposição de resgate da comunicação e do diálogo entre usuários, profissionais e gestores.

Considerações Finais

Por fim, cabe refletir sobre o entendimento que o setor tem tido sobre o fenômeno da violência. Para a OMS, violência é "o uso intencional da força física ou do poder, real ou ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, grupo ou comunidade, que resulte ou tenha grande possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação" (Krug e col., 2002, p. 5). A Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências conceitua violência como "o evento representado por ações realizadas por indivíduos, grupos, classes, nações, que ocasionam danos físicos, emocionais, morais e/ou espirituais a si próprio ou a outros" (Brasil, 2001).

Ambas as definições avançam no sentido de entender violência não pelo resultado, mas pelo o ato, a ação em sua intencionalidade. Para a OMS, o evento é considerado violência mesmo que não resulte em dano real, desde que haja um potencial de dano significativamente alto. Entretanto, são limitadas conceitualmente para lidar com a complexidade do fenômeno e as diferentes violências que se apresentam. Ampliar o debate acerca dos conceitos e das confusões em torno do papel da violência na sociedade é essencial para resolver certos mal-entendidos.

Herdeira dos tempos do autoritarismo militar, a violência no Brasil veio a discriminar insuficientemente os termos, vigor, força, autoridade, poder e violência. Como Hannah Arendt (1994) aponta em seu trabalho Sobre a violência, apesar de próximos, esses conceitos são de fato distintos. Vigor, para Arendt, é uma propriedade individual, inerente a uma pessoa ou objeto e refere-se a seu caráter. Fenomenologicamente, é próximo de violência já que os artefatos desta são usados com o propósito de multiplicar o vigor natural e quiçá substituí-lo. Portanto, o vigor é uma propriedade humana usada na violência, mas não é violência.

A força, conceito empregado cotidianamente em substituição à violência, deveria, segundo a autora, ser reservado para as forças da natureza ou das circunstâncias, dos eventos sociais. Ela indica "a energia liberada por movimentos físicos e sociais" (Arendt 1994, p. 37). A autoridade, para Arendt, é o respeito, o reconhecimento inquestionável, sem necessidade de coerção ou persuasão, de alguém que mostra sabedoria e liderança. Portanto, confundir autoridade e violência é um equívoco.

O poder é a capacidade humana para agir e para fazê-lo em concerto, isto é, de forma conjunta. Ele nunca é individual, mas de um grupo. "Estar no poder" significa ter sido empossado por um determinado grupo de pessoas para agir em seu nome, e, para tal, precisa de legitimidade. Embora apareçam com frequência juntos, violência e poder são distintos; de fato opostos. "A violência é por natureza instrumental; como todos os meios, ela sempre depende da orientação e da justificação pelo fim que almeja" (Arendt 1994, p. 41). Assim não dependendo da opinião e da legitimidade; a violência se impõe; ela aparece onde o poder está em risco. A violência "pode servir para dramatizar queixas e trazê-las à atenção pública", mas não muda o mundo, podendo apenas torná-lo mais violento (Arendt 1994, p. 58).

A realidade brasileira sugere, olhando por esta perspectiva, que a violência tem consistido numa explosão de força, que se dá pelo desperdício do vigor, físico e criativo, da população, em especial dos jovens. A falta de oportunidades, a desigualdade extrema e descabida, a invisibilidade das condições de vida e do sofrimento de largos segmentos populacionais e o descaso das elites têm levado a um recrudescimento da insatisfação e a explosão de um ódio que fica sem continente. O esvaziamento do poder, pensando nesta perspectiva do esvaziamento de um "agir em concerto", leva a um "salve-se quem puder" e a um "vale tudo existencial". A ausência da autoridade, enquanto figura que inspira respeito, dificulta ainda mais a oferta de continentes e alternativas.

A ideia do empoderamento como forma de prevenção da violência pode advir também desse entendimento. Cada vez que se tem o poder de mudar as circunstâncias, de se fazer ouvir, as práticas violentas diminuem seu apelo. Cada vez que uma situação insatisfatória e injusta é dada como definitiva, sem direito a argumento, acolhida ou mudança, mas se supõe que ela poderia ser mudada, o ódio e a violência irrompem com força e vigor. Caso se deixe uma sociedade viver nesses termos, restará apenas colher tempestade. Que os profissionais da saúde, educação e assistência social, assumam o desafio...

Recebido em: 30/08/2007

Aprovado em: 20/07/2008

Referências bibliográficas

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Set 2008
  • Data do Fascículo
    Set 2008

Histórico

  • Recebido
    30 Ago 2007
  • Aceito
    20 Jul 2008
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