Resumo
O objetivo deste artigo foi identificar os principais desafios da promoção da vigilância em saúde em uma região de tríplice fronteira da Amazônia Legal brasileira. Foi realizado um estudo de caso único, explicativo, com abordagem qualitativa, que utilizou dados documentais e entrevistas. Os resultados demonstram que a vigilância em saúde é fundamental para o controle de doenças na região. Além disso, as diferenças dos sistemas de saúde dos três países que compõem a tríplice fronteira (Brasil, Colômbia e Peru) se mostraram o principal desafio para o estabelecimento de políticas sanitárias.
Palavras-Chave: Áreas de Fronteira; Saúde na Fronteira; Vigilância em Saúde Pública; Gestão em Saúde; Cooperação Internacional
Abstract
The objective of This article was to identify the main challenges of promoting health surveillance in a triple border region of the Brazilian legal Amazon. A single explanatory case study was carried out, with a qualitative approach, which used documentary data and interviews. The Results demonstrate that health surveillance is essential for disease control in the studied region. In addition, the differences between the health systems of the three countries that make up the triple border (Brazil, Colombia, and Peru) showed to be the main challenge for establishing health policies.
Keywords: Border Areas; Border Health; Public Health Surveillance; Health Management; International Cooperation
Introdução
Historicamente, as regiões de fronteiras internacionais são consideradas barreiras que apresentam divisões sólidas e características únicas. Porém, ao longo dos anos, essa definição vem passando por um processo de ressignificação, ganhando novos conceitos (Fabriz et al., 2021). Assim, as fronteiras internacionais representam uma zona de contato entre os diferentes domínios territoriais constituídos por esferas governamentais particulares e com modelos próprios de gestão (Andrade; Granziera, 2021; Fabriz et al., 2021).
As regiões de fronteiras internacionais apresentam diferentes formas de controle migratório, que regulam o fluxo populacional de entrada e saída de pessoas entre países. Esse processo de mobilidade humana estabelecido em regiões de fronteiras internacionais é o principal responsável pelas interrelações políticas, sociais, culturais e econômicas que definem as características de determinado território fronteiriço (Londoño Niño, 2020).
No campo social, a fronteira internacional deve ser analisada não apenas como uma região geográfica, mas, também, como um espaço que envolve questões sociais e humanas. Portanto, esses espaços devem ser compreendidos tanto pelo conceito fechado de fronteira política quanto pelas peculiaridades dos movimentos migratórios que nela acontecem (Pereira; Cunha; Rosa, 2020).
Em fronteiras internacionais caracterizadas pela porosidade territorial e elevada mobilidade humana, observadas, sobretudo, em cidades gêmeas, as pessoas que ali estão situadas estabelecem relações e convivem entre si. Nesse cenário, ocorre a migração pendular, em que indivíduos se deslocam de seu país para outro vizinho por motivos de trabalho, estudos, etc. (Fabriz et al., 2021; Santos-Melo et al., 2019).
No Brasil, o atrativo principal para que esse fenômeno aconteça é a existência de um sistema nacional de saúde gratuito e universal, que atende diversas populações de forma íntegra e igualitária (Fabriz et al., 2021). Por conta disso, a migração tem evidenciado um importante problema de saúde, no qual o sistema torna-se sobrecarregado, o que dificulta o controle e a eliminação de doenças e aumenta o custo orçamentário, considerando que a população estrangeira não é contabilizada (Granada et al., 2017).
Os debates governamentais e não governamentais sobre o direito à saúde nas regiões de fronteiras internacionais são pautados, visando o entendimento dos deveres e responsabilidades de cada país diante dos seus aspectos políticos de gestão em saúde. O tema demonstra grande impacto nas diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), pois não há uma avaliação criteriosa no trânsito entre o próprio sistema de saúde nacional e a atuação dos gestores de áreas transfronteiriças (Nogueira; Fagundes, 2015).
Fatores como mobilidade humana, oferta de atendimento de saúde a estrangeiros e migração pendular são realidades em regiões de fronteiras internacionais em todo Brasil (Fabriz et al., 2021; Ferreira; Mariani; Braticevic, 2015), podendo incidir nas condições de saúde das populações que vivem nesses limites territoriais. Nesse cenário, a vigilância em saúde (VS) é uma ferramenta fundamental para o controle de doenças, ainda que represente um desafio para a gestão local de saúde (Aikes; Rizzotto, 2018).
Conforme a Política Nacional de Vigilância em Saúde (PNVS), a VS é caracterizada como o processo contínuo e sistemático que visa o planejamento e a implementação de ações em saúde pública para promoção, prevenção e controle de riscos à saúde (Brasil, 2018). Em regiões de fronteira internacional, apesar da VS seguir as mesmas normatizações impostas aos demais territórios nacionais, ela depende de estratégias que se amparam em políticas internacionais e nacionais para o controle e prevenção de doenças. Estudos demonstram que termos de cooperação firmados entre governos federais de países fronteiriços possibilitam o desenvolvimento de ações conjuntas para elaboração de políticas de VS e controle de eventos em saúde para regiões de fronteiras internacionais (Aikes; Rizzotto, 2018; Santos-Melo; Andrade; Ruoff, 2018).
O estabelecimento de limites entre as ações locais permanece um grande desafio para a VS, considerando a ausência de instruções e normativas quanto às atribuições de cada lado, além dos recursos humanos, os materiais e o próprio financiamento regional. Dessa forma, os questionamentos sobre as obrigações e os deveres relacionados à saúde nas regiões de fronteiras internacionais ficam evidentes e passam a sugerir um insuficiente acúmulo gerencial da VS em nível organizacional (Albuquerque et al., 2021).
Diante dessas peculiaridades, este artigo pretende identificar os principais desafios de promover VS em uma região de tríplice fronteira da Amazônia Legal brasileira.
Método
Esta análise faz parte de um estudo de caso único, explicativo, com abordagem qualitativa (Yin, 2015), realizado na região da tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru, no município de Tabatinga, Amazonas, Brasil. O município de Tabatinga, localizado a 1.105 quilômetros da capital do estado do Amazonas, faz fronteira com Colômbia e Peru, formando assim fronteira seca com a cidade de Letícia, no departamento de Amazonas, na Colômbia; e fronteira úmida pelo Rio Solimões, com a Ilha de Santa Rosa do Yavarí, província de Mariscal Ramón Castilla, Departamento de Loreto, no Peru.
Neste artigo foram utilizados dados documentais e entrevistas como fontes de evidências. A coleta das informações aconteceu entre março de 2017 e janeiro de 2018, em arquivos físicos da Secretaria Municipal de Saúde de Tabatinga, Amazonas, e em websites da Secretaria de Estado de Saúde do Amazonas. Foram incluídos atos administrativos, decretos, decretos-lei, instruções normativas, leis, normas técnicas, portarias, resoluções, atas de reuniões, todos produzidos entre os anos de 2005 e 2017. Esse recorte temporal foi considerado a partir da implantação do programa de Sistema Integrado de Saúde das Fronteiras no Brasil (Brasil, 2005). A busca de documentos gerou um banco de dados com 98 documentos.
Por sua vez, as entrevistas aconteceram entre os meses de abril a novembro de 2017 e contou com a participação de 12 gestores de saúde da Secretaria Municipal e Conselho Municipal de Saúde de Tabatinga, Amazonas e Secretaria de Estado de Saúde do Amazonas. A efetivação dos encontros foi realizada pelo agendamento prévio com os gestores. No momento das entrevistas foram utilizados gravador de voz digital e roteiro semiestruturado de entrevista.
A organização dos dados se deu por meio de utilização de software MaxQDA12®, com a criação de códigos, subcódigos e análise dos dados. A proposição teórica do estudo de caso foi utilizada como estratégia analítica e a construção de explicações como técnica de análise, o que possibilitou o apontamento das relevâncias sobre o fenômeno estudado.
Esta pesquisa respeitou a Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde (Brasil, 2012), sendo previamente aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Federal de Santa Catarina, com parecer n° 2.047.137. Para manter a confidencialidade de documentos apresentados e identidade dos entrevistados, os documentos levantados foram caracterizados por DOC1 a DOC23 e os entrevistados por G1 a G12.
Resultados e discussão
As evidências apresentadas por meio da análise dos dados possibilitaram a criação de duas categorias que retratam a importância e os desafios de promover VS no lado brasileiro da região fronteiriça estudada.
A importância da Vigilância em Saúde em região de Fronteira Internacional
A VS é um fator fundamental para todos os níveis de atenção em saúde (Costa et al., 2020). Essa ferramenta desenvolve habilidades de programação, planejamento e implementação de políticas públicas, tal qual a PNVS, que compreende ações relacionadas à vigilância epidemiológica, vigilância em saúde ambiental, vigilância em saúde do trabalhador e vigilância sanitária, todas alinhadas ao SUS, visando promoção, prevenção e recuperação da saúde da população, sem deixar de lado a transversalidade das ações sobre a determinação do processo saúde doença (Brasil, 2018).
Em regiões de fronteira internacional, a VS apresenta especial relevância tanto na perspectiva socioeconômica quanto na fomentação dos processos integrativos entre países transfronteiriços da América do Sul (Aikes; Rizzotto, 2020). Na região analisada neste artigo, a VS foi destacada pelos participantes como um fator relevante para a promoção e prevenção de doenças. Com efeito, os gestores defendem que investir em VS em áreas de fronteiras internacionais é fundamental para manutenção da saúde local. As falas dos entrevistados descrevem que as estratégias relacionadas à VS adotadas na região vão além das normatizadas para outras regiões do Brasil.
esses dias o secretário de saúde esteve no Peru, do outro lado do rio, e ele teve uma conversa com alguns médicos peruanos, para verificar a questão do agravo zika vírus e chikungunya, porque o município tem recebido uma grande demanda de pessoas estrangeiras infectadas com esses vírus. (G8)
Segundo os gestores, atitudes como essas são necessárias na região estudada, pois o território entre Brasil e Colômbia é contíguo e a entrada do Peru se dá por meio da travessia de um rio, com tempo estimado em menos de 15 minutos. Isso facilita a entrada de doenças no município, assim como a livre circulação de possíveis vetores, conforme sugerem dois entrevistados. “os agravos de saúde não respeitam fronteiras, por exemplo, os vetores, os mosquitos, as viroses como dengue, zika, chikungunya e outras, elas não respeitam fronteiras” (G3). “No período da cólera, foram identificados mais de 20 casos dentro do município de Tabatinga proveniente da Colômbia, do Peru, sendo que foram casos que migraram de lá para cá, não foi daqui para lá” (G7).
A entrada de doenças em países ocorre por diversos mecanismos, por exemplo, os fluxos migratórios de pessoas que atravessam a fronteira para o Brasil (Antunes et al., 2021). O atual cenário econômico do país, nas últimas décadas, tornou-se atrativo para estrangeiros, elevando, portanto, a mobilidade humana nas regiões de fronteira internacional, com consequente elevação das demandas relativas às doenças e acesso à saúde para essas populações (Granada et al., 2017).
Não diferente do que acontece em outras regiões fronteiriças do país, pode-se observar que os gestores, além das ações normativamente estabelecidas, promovem ações específicas em VS para controle de doenças nessa região fronteiriça. No DOC3 é possível visualizar uma dessas ações, já que, “no plano de ação mostram as ações da Vigilância Sanitária referente ao controle de produtos estrangeiro que entram em nosso Município sem que haja nenhum controle” (DOC3).
As ações da VS costumam são estabelecidas por um processo de coleta, consolidação, análise dos dados e disseminação de informações relacionadas à saúde, pretendendo, dessa forma, o planejamento e implementação de medidas de saúde pública, por exemplo, a atuação em condicionantes e determinantes da saúde, a fim de assegurar a promoção da saúde da população, bem como a prevenção de doenças e seus agravos (Brasil, 2018)
No entanto, em regiões de fronteira internacional, outras ações se fazem necessárias, uma vez que o Brasil tem uma fronteira cuja extensão territorial é superior a 15.500 quilômetros, ladeando outros dez países da América do Sul (Brasil, 2017). Essa extensa faixa é caracterizada pela intensa mobilidade humana que interfere diretamente no processo saúde-doença dos residentes fronteiriços tanto no padrão de ocorrência de doenças quanto na circulação de patógenos e no funcionamento do SUS (Peiter et al., 2013).
Na região fronteiriça estudada, essa mobilidade humana ocorre por diversos fatores, entre eles, a compra e venda de produtos industrializados ou hortifrutigranjeiros que são comercializados em pequenos estabelecimentos informais (Santos-Melo et al., 2019). Esses fatores tendem a aumentar o risco de agravo de saúde da população residente no município, que compram produtos sem saber a origem e procedência e desafiam as autoridades de saúde do local.
Nesse contexto, quando algum agravo relacionado aos produtos dessa natureza ocorre, os gestores locais não podem proceder de acordo com as normativas sanitárias nacionais, conforme a fala de um dos gestores entrevistados, pois esses produtos não são regulados pela legislação brasileira.
O problema ele (o estrangeiro) já deixou no nosso município, e esse problema acaba não sendo identificado, não sendo encaminhado para conhecimento do Ministério da Saúde, nem para a Secretaria de Estado de Saúde para que esses órgãos tomem uma providência, porque a gente não sabe que produto é esse. (G1)
A circulação de produtos na fronteira Brasil, Colômbia e Peru é uma realidade já evidenciada em estudos anteriores, que destacam a entrada de peruanos e colombianos no Brasil em busca de fonte de renda por meio dos comércios informais de produtos alimentícios, produtos de vestuários e variedades em geral (Santos-Melo et al., 2019). No entanto, vale ressaltar que, apesar de área fronteiriça, a região analisada segue condutas de controle de agravos nacionais, nas quais são definidas que produtos alimentícios devem ser registrados, e que esse registro deve ser feito por solicitação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), passando, ainda, por uma série de etapas antes da comercialização (Brasil, 2018).
A partir desse cenário - e já amparados por experiências passadas -, a VS da região fronteiriça estudada trabalha com a perspectiva de prevenção dos agravos de saúde, consoante fala de um dos participantes.
Com a entrada da cólera no Estado pela região de Tabatinga, em 1992, e agora mais recentemente com a entrada de Haitianos, a Fundação de Vigilância em Saúde trabalhou um plano de contingência para as questões das doenças que estavam sendo reinseridas no Brasil através da fronteira e dos agravos que fogem da questão epidemiológica do Brasil. (G11)
Para isso, o município conta com o Laboratório de Fronteira de Tabatinga (Lafron) que busca realizar o diagnóstico de doenças para toda a região. A existência do Lafron, na região estudada, é necessária para o desenvolvimento do diagnóstico precoce e de ações de prevenção de doenças por meio de acordos cooperativos informais entre Brasil, Colômbia e Peru, principalmente voltados para troca de informação em saúde, como a ocorrência de casos de doenças em um dos três países limítrofes (Santos-Melo et al., 2020).
Diante desse cenário, é evidente a importância da VS para a manutenção da saúde da população residente no território fronteiriço, destacando que fatores territoriais são determinantes para adoção das ações de vigilância, uma vez que tais ações devem ser pautadas segundo as particularidades locais para organização de um sistema de saúde que atenda as especificidades dessa população (Cardoso; Costa; Silva, 2020).
Desafios da vigilância em saúde em região de fronteira internacional
Atualmente, a PNVS opera em todas as regiões do Brasil de modo planejado e hierarquizado por intermédio das Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde. Além disso, é pautada nos ordenamentos técnicos da Portaria GM/MS de nº 1.378 9 de julho de 2013, que regulamenta as suas responsabilidades e define as diretrizes para a execução e financiamento de suas ações (Brasil, 2013).
Em regiões de fronteira internacional, as regras que normatizam a VS são desafiadas a partir do contexto de território fronteiriço (Nascimento; Andrade, 2018). Na região fronteiriça estudada, observou-se que os principais desafios estão voltados para a diferença entre os sistemas de saúde dos três países. O que impacta diretamente na prevenção e controle de agravos à saúde, consoante a fala de um entrevistado: “Com relação à malária, eu posso ter casos importados do lado colombiano onde o foco é o Brasil, pode acontecer porque os sistemas de saúde dos dois países não se conversam” (G5).
Os sistemas de saúde dos três países que formam a tríplice fronteira Brasil, Colômbia e Peru são diferentes. O Brasil adota o SUS como política pública institucionalizada pela Lei nº8080/90, garantindo, a todas as pessoas, acesso aos serviços de saúde pertencentes à rede pública (Brasil, 1990). Esse sistema se baseia nos princípios de equidade, universalidade e integralidade como forma de assegurar aos seus usuários atendimento universal e humanizado, garantindo assistência em todos os níveis de atenção à saúde (Silva; Machado, 2020). Já nos outros dois países que compõem essa tríplice fronteira, o acesso à saúde se dá por meio de sistemas contributivos e subsidiados (Cárdenas; Pereira; Machado, 2017; Tineo, 2016).
Na Colômbia, desde 2016, foi implantado um modelo de atenção integral em saúde com propostas que envolvem a atenção primária, com foco na família e comunidade. Esse modelo tem por intuito aprimorar o acesso e a qualidade dos serviços ofertados de saúde no país. Nesse sentido, a Colômbia reconhece que o sistema de saúde do país deve preconizar o indivíduo como alvo central, alterando o modelo científico biomédico de tratamento das doenças para o cuidado integral do sujeito (Arias-Murcia et al., 2021).
No entanto, esta determinação não aparece na totalidade dos serviços de VS ofertados na região estudada, sendo que ainda são evidentes alguns problemas de iniquidade de acesso aos serviços de saúde para a população colombiana, conforme a fala do G1, quando o entrevistado afirma que, do lado colombiano da fronteira, o tratamento de algumas doenças não acontece como no Brasil, fazendo com que a população do país vizinho adentre a fronteira brasileira em busca de tratamento. “A Colômbia não trata os pacientes deles que tem tuberculose, quem trata é o Brasil aqui necessita de fiscalização, aqui se necessita de vigilância” (G1).
Quanto à terceira unidade dessa tríplice fronteira, o Peru apresenta um sistema de saúde com duas categorias que prestam serviços de saúde à população, o público e o privado. O governo oferece o serviço público em forma de regime contributivo subsidiado por entidades governamentais e regime contributivo direto pelos empregadores de forma direta e obrigatória. A oferta dos serviços de saúde à população é feita por intermédio do seguro integral de saúde aos indivíduos na linha da extrema pobreza e em condições precárias, de modo subsidiado referente às prestações de serviços (Campos; Kirsten 2021).
Segundo os participantes do estudo, o sistema de saúde do Peru oferece poucas ações de saúde para a população residente na ilha de Santa Rosa, ou seja, do outro lado da fronteira com o Brasil, conforme pode ser observado na fala de um dos participantes. “Têm muitas doenças que estão entrando no Brasil pelo Peru, porque lá não de faz controle de doenças, a vigilância pouco existe lá” (G3).
As idiossincrasias apresentadas nos sistemas de saúde dos três países culminam em condutas diferentes para situações de saúde semelhantes. Segundo os participantes, os agravos à saúde, quando ocorrem do lado Peruano ou Colombiano, nem sempre são tratados com os mesmos critérios quando ocorre do lado brasileiro. Isso culmina em um acúmulo de ações de VS que são desenvolvidas do lado brasileiro da fronteira, mas que, por uma questão de território, necessita alcançar os municípios dos países vizinhos. “Hoje se um paciente colombiano ou peruano tem uma situação de exposição animal e vem buscar o serviço brasileiro, nós ficamos sem ação, porque aqui a normativa é diferente” (G2).
nós precisamos discutir, por exemplo, a questão das endemias, porque eu não posso discutir somente o lado brasileiro, pois eu tenho que discutir a fronteira, a região, todos que habitam aquela região. Então é necessário que se construa um protocolo que normatize as ações. (G7)
Os participantes citam que não é negado atendimento a nenhum estrangeiro que atravesse a fronteira em busca de atendimento de saúde, incluindo ações que fazem parte dos programas do governo federal do Brasil, como é o caso da tuberculose e do vírus da imunodeficiência humana (HIV). “Aqui nós atendemos todos que nos procura, independente de qual a queixa” (G5).
No entanto, também destacam que, quando os atendimentos são prolongados, pode acontecer da perda da continuidade desse tratamento, pois a vigilância do lado brasileiro da fronteira não consegue fazer a busca pelo paciente estrangeiro que não retornou para o acompanhamento, uma vez que o paciente se encontra fora do território nacional, conforme a fala do entrevistado: “a organização em relação à vacinação antirrábica é: o que é de lá não pode ser feito aqui e o que é daqui não pode ser feito lá, a gente tem que encaminhar o paciente, para a gente garantir a orientação na origem” (G2).
A completude de tratamento para doenças infectocontagiosas é de suma importância para o controle das enfermidades, pois a descontinuidade no tratamento acarreta um agravamento dos casos existentes (Basta et al., 2013), já que o tratamento descontinuado contribui para o aumento da propagação de casos que podem ser evitados (Peiter et al., 2013).
Em regiões de fronteira internacional, essa condição pode afetar as ações de VS, ainda que existam acordos informais que possibilitem a realização conjunta de algumas estratégias. Nessa esteira, os participantes entendem que essas ações são necessárias no município, pois eles partem do princípio de que tratar certas doenças de residentes fronteiriços, independentemente de qual lado da fronteira, trarão resultados favoráveis, minimizando possíveis complicações para o lado brasileiro da fronteira. “A gente faz o fumacê do nosso lado e às vezes, se precisar, empresta para o outro lado também, porque se não passa um pouquinho de tempo, já está aqui o mosquito de volta” (G1). “Em doenças transmissíveis não faz sentido eu só fazer um trabalho do meu lado e não fazer do outro lado, porque o mosquito não reconhece a fronteira” (G9).
Tais acordos possibilitam que os gestores locais definam ações pontuais para controle de doenças. No entanto, essas definições não são amparadas legalmente, assim, a decisão de quais ações deve ser compartilhada entre os países que compõem a tríplice fronteira Brasil, Colômbia e Peru ainda é baseada no posicionamento ético político dos gestores locais (Santos-Melo et al., 2020).
Logo, o ordenamento de políticas públicas que possibilitem a integração em VS para regiões fronteiriças, sobretudo, as mais afastadas dos grandes centros, como é o caso da região estudada, é de suma importância para minimização dos desafios enfrentados pelos gestores de saúde dessas regiões.
Considerações Finais
Este artigo possibilitou a criação de duas categorias que embasam a importância e os desafios enfrentados por gestores de saúde de um município brasileiro de fronteira internacional para promover a VS em uma região repleta de peculiaridades.
O estudo demonstrou que, na região fronteiriça estudada, o intenso fluxo, não apenas de pessoas, como de animais e produtos são vetores que facilitam a disseminação de doenças e agravos à saúde. Sendo que esses fatores são agravados pelas diferenças entre os sistemas de saúde locais, no qual somente do lado brasileiro existe um sistema único e integrado que promove ações de VS com intuito de proteger os residentes fronteiriços daquela região.
Ressalta-se que os desafios enfrentados pelos gestores locais, para promover VS naquela região, vão além das encontradas em outros territórios brasileiros, pois essas regiões servem como corredor de entrada para migração, não apenas para aquela região, como para todo Brasil.
Dessa forma, investir em VS em fronteiras internacionais com territórios contíguos é de fundamental importância para a promoção da saúde e prevenção de doenças, que podem facilmente ser inseridas ou reinseridas no território brasileiro por meio da intensa mobilidade humana observada nessas regiões.
Nesse contexto, os gestores da região fronteiriça estudada articulam ações integradas entre os municípios limítrofes, sobretudo, no sentido de promover a comunicação em casos de doenças ocorridas em um dos três municípios. Ações como essas tentam estreitar as relações entre os serviços de saúde dos três países e abrem precedentes para acordos formais de integração político-sanitária.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
15 Dez 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
-
Recebido
12 Abr 2023 -
Revisado
25 Jan 2023 -
Revisado
12 Abr 2023 -
Aceito
18 Abr 2023