Resumo
Este artigo foi originalmente publicado em 1981. Ele discute questões éticas e metodológicas envolvidas no trabalho de campo com pessoas da mesma sociedade da antropóloga, mas de grupos subalternos, indagando: o que legitima os métodos científicos de investigação da vida dos outros, fazendo com que pareçam aceitáveis, ao invés de questionáveis? O estudo baseia-se na análise de Foucault sobre regimes de saber-poder nas ciências sociais, para entender o que molda diferentes metodologias de pesquisa e as práticas da autora. Considera que a pesquisa de campo é estruturada no contexto de um regime de produção de conhecimento científico que legitima relações de poder nas quais um pede para saber tudo e o outro se sente obrigado a dizer a verdade que, no entanto, só quem pergunta será capaz de revelar. O artigo argumenta que o que é apresentado como verdade ou em entrevistas ou no texto da análise é produto de uma certa relação, marcada por diferenças de poder e desigualdade social. Além disso, sugere que a relação de trabalho de campo é produtiva: o que é dito não existia antes para ser revelado, mas foi construído nessa relação desigual. Assim, a interpretação de dados de campo sempre tem que considerar as condições de sua produção.
Palavras-chave: Trabalho de Campo; Conhecimento e Relações de Poder; Saber-Verdade; Entrevistas; Pesquisa Qualitativa
Abstract
This article was originally published in 1981. It addresses ethical and methodological questions involved in fieldwork among people from the anthropologist’s own society, but from a subaltern social group. It asks: What does legitimate the scientific methods of investigating other people’s lives, making them appear as acceptable instead of as object of resistance? It uses Foucault’s analysis of social sciences’ regimes of power-truth to understand what frames different methodologies of research and the author’s practices. It considers that field research is structured in the context of a certain regime of production of scientific knowledge that legitimates relationships of power in which one asks to know everything and the others feel obliged to tell the truth that, however, only the questioner will be able to reveal. The article argues that what is presented as truth either in interviews or in the text of the analyst is the product of a certain relationship shaped by power imbalances and social inequality. Moreover, it suggests that the field relationship is productive: What is said did not exist before ready to be revealed, but was constructed in this uneven relationship. Therefore, the interpretation of field data must always consider the conditions of its production.
Keywords: Fieldwork; Knowledge and Power Relations; Power-Truth; Interviews; Qualitative Research
Uma incursão pelo lado “não-respeitável” da pesquisa de campo1
“It seems to me curious, not to say obscene and thoroughly terrifying, that it could occur to an association of human beings drawn together through need and chance and for profit into a company, an organ of journalism, to pry intimately into the lives of an undefended and appallingly damaged group of human beings, an ignorant and helpless rural family, for the purpose of parading the nakedness, disadvantage and humiliation of these lives before another group of human beings, in the name of science, of “honest journalism” (whatever that paradox may mean), of humanity, of social fearlessness, for money, and for a reputation for crusading and for unbias which, when skillfully enough qualified, is exchangeable at any bank for money (and in politics, for votes, job patronage, abelincolnism, etc.); and that these people could be capable of meditating this prospect without the slightest doubt of their qualification to do an “honest” piece of work, and with a conscience better than clear, and in the virtual certitude of almost unanimous public approval. It seems curious, further, that the assignment of this work should have fallen to persons having so extremely different a form of respect for the subject, and responsibility toward it, that from the first and inevitably they counted their employers, and the Government likewise to which one of them was bonded, among their most dangerous enemies, acted as spies, guardians and cheats, and trusted no judgment, however authoritative it claimed to be, save their own: which in many aspects of the task before them was untrained and uninformed. It seems further curious that realizing the extreme corruptness and difficulty of the circumstances, and the unlikelihood of achieving in any untainted form what they wished to achieve, they accepted the work in the first place. And it seems curious still further that, with all their suspicion of and contempt for every person and thing to do with the situation, save only for the tenants and for themselves, and their own intentions, and with all their realization of the seriousness and mystery of the subject, and for the human responsibility they undertook, they so little questioned of doubted their own qualifications for this work. All of this, I repeat, seems to me curious, obscene, terrifying, and unfathomably mysterious.”
( Agee; Evans, 1969 , p. 7)
Pode parecer curioso também que tenha sido um jornalista a fazer essas reflexões, e não um cientista social, principalmente um daqueles que se dedicam ao “trabalho de campo”, ou seja, que apoiam grande parte do seu trabalho no esmiuçamento da vida alheia. Mas, quem sabe seja exatamente esse fato que nos dê a primeira pista para entender o espanto e o assombro de James Agee: talvez, por não estar muito comprometido com as regras do “método científico”, não veja como muito natural e legítimo esse esmiuçamento da vida alheia, ao passo que, para os cientistas sociais, essa prática seria tão corriqueira que não lhes ocorreria com frequência questioná-la.
O que será que, em nossa sociedade, sustenta e legitima essa prática de investigação2 ao ponto de fazer com que ela apareça como natural?
Foucault já se encarregou de nos mostrar de que modo o nascimento das ciências sociais está ligado ao desenvolvimento das práticas disciplinares e como poder e saber encontram-se interligados em nossa sociedade. Creio que a prática concreta da pesquisa de campo, mais especificamente a relação que se estabelece entre o investigador e o informante, serve de exemplo à maneira pela qual esse regime de poder-saber e de produção de verdade encontra-se disseminado.
Não me parece demasiado supor, por exemplo, que se apenas o pesquisador julgasse importante inquirir sobre a vida dos outros, teria grandes chances de receber em resposta um número espantoso de recusas. Mas, como não é isso o que realmente acontece, somos obrigados a pensar que estamos frente a um mecanismo mais propagado pela sociedade, que faz com que as pessoas vejam como natural o inquérito e a sujeição a ele, desde que, e sobretudo se, em nome da Ciência. Senão, o que explicaria que alguns, por falarem e agirem em nome da Ciência, se julgam no direito de perguntarem sobre tudo, de submeterem seus “objetos” a horas de aplicação de maçantes questionários,3 de se irritarem quando um informante se recusa a oferecer respostas, de preverem estatisticamente qual seria o índice “esperado e razoável” de recusas e assim por diante? Mas, além disso, o que explicaria que outros, ao serem colocados na posição de “objeto”, se prontificassem a responder esses extensos questionários a um desconhecido que bate à sua porta; que se dispusessem a relatar sua vida, ano a ano, com todos os detalhes? Imagino que a resposta para isso seja a de que estamos na presença de um dispositivo disseminado pela sociedade e com funcionamento semelhante àquele descrito por Foucault, que faz com que cada um ponha em discurso os mais íntimos detalhes sobre sua própria sexualidade.
Creio que esse dispositivo é o que legitima, no ocidente, o saber científico como a única forma de saber reconhecido, é o que dá ao produto de uma reflexão ou pesquisa classificada como científica o status de verdade inquestionável, é o que dá poder a esse saber. Estaríamos, portanto, frente a um dispositivo de poder-saber-verdade que sustentaria e possibilitaria a prática da pesquisa científica. Seria esse dispositivo que, por um lado, leva um pesquisador a ter interesse em conhecer tudo o que for possível a respeito de determinado objeto; faz com que julgue que o conhecimento que puder obter pelos métodos científicos assemelhe-se à verdade (ou seja a própria verdade); acredite que tem nas mãos os instrumentos mais eficazes para obter as informações que necessite, e que estas devem ser as mais abrangentes e detalhadas; considere que, por falar e agir em nome da Ciência, os “outros”, os “pesquisados” estão na obrigação de lhe prestar as informações que julgar necessárias. E seria esse dispositivo que, do lado oposto, leva outros a se prontificarem a dar depoimentos ou mesmo a acharem que é sua obrigação fazê-lo, já que se trata de uma pesquisa científica (mesmo que não saibam bem o que é isso); e que faz com que se esforcem por relatar toda a verdade, já que algo lhes diz que o que se procura é exatamente uma verdade.
Creio, em suma, que é a associação entre poder e saber científico que possibilita e sustenta a relação que se estabelece entre o pesquisador e o informante, que dá a um condições de exercer seu trabalho (seu poder) e a outro a ideia da obrigatoriedade e da necessidade de se sujeitar. Isso implica em ver, portanto, que a relação que se estabelece no campo entre o pesquisador e o seu informante é uma relação de poder:4, relação em que um requer um depoimento e outro se vê na contingência de responder; em que um pede que tudo seja dito nos mínimos detalhes, e o outro se esforce por dizer a verdade que, no entanto, só o primeiro poderá revelar.
Certamente, não imagino que tal mecanismo funcione nesses termos de forma consciente, mesmo porque é o fato de ser percebido como “natural” que permite seu funcionamento. Não estou imaginando, por exemplo, que todos os cientistas sociais queiram, consciente e deliberadamente, saber detalhes para dominar, nem que o entrevistado se julgue tão culpado e em suspeita ao ponto de ser obrigado a confessar tudo: certamente, ao nível da prática consciente, a relação que se estabelece entre o pesquisador e o pesquisado assume uma quantidade de outros aspectos. No entanto, não me parece possível negar a atuação desse dispositivo poder-saber-verdade, do mesmo jeito que não se pode esconder a interferência da mais variada gama de fenômenos, tanto objetivos quanto subjetivos (e aqui também do pesquisador, por suposto). Todos esses fatores estão presentes na relação pesquisador-informante, interferem no seu andamento e imprimem sua marca nas informações obtidas e com as quais o cientista trabalhará. Creio que faz parte da responsabilidade dos cientistas sociais não só pensar a sua prática profissional em termos das repercussões do trabalho intelectual na sociedade como um todo, mas também questionar o seu trabalho, ali mesmo onde ele se exerce, ou seja, na relação imediata com o seu “objeto” - as pessoas e grupos sociais a quem estuda. Creio que de pouco servirá denunciar apenas as relações de poder e de exploração mais gerais existentes na sociedade como um todo; práticas de poder existem de maneira difusa por todo o tecido social e o passo inicial para os cientistas sociais talvez deva ser denunciar sua própria prática e tomá-la como realmente é, ou seja, uma relação de poder e uma relação que não é neutra.
II
A questão que está por trás de toda a investigação científica é a questão da verdade. Pode-se dizer que o cientista, ao iniciar uma pesquisa, está à procura de descobrir uma verdade que é ignorada ou que está oculta (cabendo-lhe, portanto, revelá-la). E, ao que parece, também os entrevistados - e estou pensando basicamente na pesquisa “qualitativa” - compartilham dessa ideia, preocupam-se em fornecer uma verdade, selecionando o que é e o que não é conveniente informar. Talvez um exemplo nos ajude a entender melhor este aspecto.
Um antropólogo, interessado em saber quais representações os moradores da periferia de uma grande cidade têm do poder e da sociedade, depois de ter decidido que a melhor técnica para começar a obter suas informações era a realização de entrevistas abertas nas quais se procuraria obter a história da vida, chega à casa de um informante e faz o seguinte discurso:
Eu trabalho na Universidade e estou realizando uma pesquisa aqui no bairro onde o sr. mora, estou falando com várias pessoas, pois gostaria de saber o que estão pensando sobre uma série de questões. Queria saber de onde elas vieram, o que acham da vida aqui no bairro e na cidade, o que estão achando da atuação do governo, da questão do emprego, enfim, uma série de coisas. O sr. é uma das pessoas com as quais eu gostaria de conversar, seria possível? Bem. Será que a gente poderia começar, então, com o sr. me contando sua vida: onde o sr. nasceu, como o sr. veio parar aqui nesta cidade, os trabalhos que o sr. já fez, tudo que o sr. tenha vontade de falar?.
O informante, senhor de meia-idade já aposentado, depois de ter concordado em conversar, talvez para quebrar o desconforto e o mal-estar que estava sentindo, começou falando o seguinte:
“Então eu vou contar o causo das minhas fazendas lá no Norte”.
Foi, então, interrompido por sua mulher:
“Olha que ele vai mentir, vai contar mentira”.
Também para aliviar o clima, o pesquisador falou, em tom de brincadeira:
“Não pode contar caso não, hein.”
E ouviu a resposta:
“Eu vou mentir. Se eu falar a verdade, eu vou me complicar, então eu vou mentir. Eu tenho que mentir pra me defender”.
O pesquisador:
“Por que o sr. acha que vai se complicar se falar a verdade?”
“Bom, não tem nada, não tem nada que complique...”
“O sr. acha que se falar a verdade complica?”
“Não, acho que não, se eu mentir, complica”.
“Ah, bom, mas nós vamos falar a verdade. O sr. nasceu onde?”
Digamos que se trata de um diálogo um tanto quanto excepcional em que, logo de saída, as regras do jogo foram explicitadas, a relação de força colocada na mesa. No entanto, de várias outras formas, esse é um tema que sempre volta à tona nas relações de entrevista. Das mais diversas maneiras, o que parece estar sempre presente na cabeça dos informantes é que, por se tratar de uma situação de pesquisa científica, sua obrigação é “dizer a verdade”.
Mas acontece que a verdade não é algo que existe de maneira pronta e objetiva e que, para ser descoberta, basta o entrevistado a pôr em palavras e o pesquisador a registrar. Pela própria natureza de uma situação de entrevista, esta verdade é produzida a partir de uma relação. E como já vimos, não se trata de uma relação neutra, mas sim uma na qual está presente o exercício de poder. Além disso, não é uma relação entre coisas, entre objetividades, mas entre dois sujeitos, e que pode sofrer variadas interferências. Tentemos identificar quais os elementos que interferem nessa relação, dos mais objetivos aos mais subjetivos.
Voltemos à entrevista citada anteriormente. Em poucas frases o informante deixou transparecer ao pesquisador o que provavelmente o angustiou durante todo o tempo que durou a entrevista: a sensação de que corre um risco tanto no caso de falar a verdade, quanto no caso de mentir e que, portanto, o melhor que tem a fazer é tratar de se defender. E nessa defesa está a margem de exercício da liberdade de quem se submeteu à relação, está aí o espaço para o exercício de poder por parte do entrevistado. A maior defesa da pessoa a quem é solicitada a entrevista certamente é recusar-se à relação. Mas, se não consegue ou não quer furtar-se a ela, encontra ainda outros mecanismos de defesa: pode selecionar, ocultar, enganar.
Estabelece-se, então, um jogo cujo resultado dependerá não só da ação do entrevistado, mas também da do entrevistador. Tudo pode acontecer, desde a produção de um discurso absolutamente fantasioso, mas que não é tão fantasioso assim, na medida em que pode estar sendo dito o que se julga que é conveniente falar, até a produção de um discurso absolutamente “verdadeiro”.
Para falar francamente, o que mais me chamou atenção na minha experiência de pesquisadora não foram os discursos fantasiosos, mas aqueles verdadeiros. Antes de mais nada, foram muito raras as vezes em que me senti frente a um entrevistado que, ao invés de se referir a dados concretos de sua vida, referia-se a uma fantasia. Em segundo lugar, creio que não é muito difícil entender o que faz uma pessoa tentar ocultar a sua verdadeira história a um desconhecido. O que sempre me pareceu espantoso é que as pessoas fizessem um grande esforço para apresentar os dados de um modo real. A impressão era de que se sentiam obrigadas a fornecer um depoimento verdadeiro e isso acabava marcando o discurso com um caráter de importância e de confissão e, não raro, transformando-o em um desabafo. Mas será que apenas a obrigação de “dizer a verdade” despertada pelo fato de se tratar de uma pesquisa científica é suficiente para explicar que muitos entrevistados se veem obrigados a revelar aspectos extremamente desagradáveis ou dolorosos de suas vidas, mesmo sem terem sido solicitados a fazer isso?
É comum, por exemplo, a seguinte situação: depois de terminada a entrevista, e estando o pesquisador por se retirar, satisfeito com as informações obtidas, ser chamado pelo entrevistado com frases do tipo: “sabe, tem uma coisa que eu preciso dizer, eu não sou mesmo casada com ele e ele não é o pai dessa menina”. E, a partir daí, brota todo um relato do descasamento, da marginalização, do segundo casamento e da ocultação do fato. Como é comum que, a certa altura do relato, o marido volta-se para a mulher que estava assistindo à entrevista e pergunta: “tem que dizer a verdade, não é? Então nós vamos ter que contar tudo como foi, direitinho”.
Situações como essa deixaram-me bastante embaraçada. Por um lado, não sabia o que fazer com o relato, geralmente desagradável e muito carregado emocionalmente (voltarei a esse aspecto mais adiante, quando estiver discutindo as emoções do pesquisador). Por outro lado, continuava sem entender o porquê do relato, uma vez que estava longe de mim solicitá-lo diretamente (embora nada me garanta que o simples fato de sentar com um gravador ligado e com a apresentação da universidade já não estivesse fazendo a solicitação). Mesmo sem entender muito bem, e com uma sensação crescente de mal-estar, continuei a colher histórias de vida. O mal-estar vinha, por um lado, porque começava a me perguntar sobre a pertinência de se solicitar histórias de vida, que é quando há mais claramente uma invasão da vida alheia (muito mais do que no caso em que solicitasse opiniões objetivas, por exemplo, sobre a cidade) - será que não é uma técnica tão usada apenas porque se tem uma obsessão em esquadrinhar tudo? Mas o mal-estar vinha também por outro lado. Comecei supondo que as histórias de vida predispunham a situações embaraçosas pelo fato de envolverem um balanço da própria vida, um reviver; no entanto, as situações persistiam em entrevistas sobre assuntos objetivos e durante a aplicação do rápido questionário de um survey. Algumas vezes, as perguntas do questionário (cuja aplicação demorava 15 minutos e era feita geralmente na rua, do lado de fora da casa), que a meu ver eram absolutamente inócuas, como o número de moradores na casa, número de cômodos, origem, religião, escolaridade e trabalho dos moradores, foram suficientes para desencadear longos relatos, lamentações e até choros. Foi ficando claro que a resposta para as situações embaraçosas e de detalhamento deveria ser buscada em outros aspectos. Foram as entrevistas com mulheres, nas quais era mais comum esse tipo de situação (provavelmente pelo fato de eu ser mulher), que começaram a me fornecer algumas indicações para tentar explicar o que se passava.
Várias vezes, quando estava entrevistando mulheres, a conversa encaminhou-se rapidamente para a discussão dos complicados - e muitas vezes dramáticos - problemas do casal, sem que eu nem de longe fizesse qualquer menção ao assunto. O fato é que, quando pedia a uma mulher para me contar a sua vida, foi frequente que ela desprezasse todos os demais aspectos como secundários e passasse a falar longamente dos problemas conjugais que, com toda certeza, são os que mais dão pretexto para angústia. Eram relatos aflitos, tristes, quase que invariavelmente acompanhados de crises de choro (foram raríssimas as entrevistadas que não choraram ao contarem suas vidas) e frequentemente entremeados por perguntas sobre assuntos muito concretos (por exemplo, uso de anticoncepcionais), por busca de informações. Mas a pergunta continua: por que falar de assuntos tão íntimos e que no cotidiano são praticamente intocáveis com uma estranha? Acho que justamente por isso: falar com as vizinhas é arriscado, pois pode-se ver sua vida comentada no bairro inteiro de um dia para o outro. Ou seja, em primeiro lugar, meu distanciamento assegurava as possibilidades de uma aproximação, de um desabafo, de um pedido de conselho. Além disso, por ser eu uma “antropóloga” (o que não deve significar praticamente nada aos moradores da periferia, mas apenas marcar uma importância, um distanciamento e uma posição superior, de quem sabe), poderia vir a dar informações mais precisas do que as de uma vizinha que estaria nas mesmas condições do que elas. Frequentemente, as respostas a perguntas que eu havia feito durante uma entrevista eram interrompidas e os entrevistados me pediam que lhes explicasse algo ou lhes informasse sobre os mais variados assuntos: desde por que existem eleições, qual o partido a que pertencia Adhemar de Barros, onde se conseguem os papéis para aposentadoria do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS); até se é ou não conveniente informar às filhas adolescentes a existência da menstruação ou qual o método anticoncepcional mais adequado (as perguntas mais frequentes eram sobre educação dos filhos e sexualidade feminina); chegando a situações como a de uma mulher que me perguntou o que significava “cardíaco”, dizendo que queria saber pois seu pai, cuja morte ocorrera há 19 anos, causando grande impacto em sua vida, havia morrido porque era “cardíaco”.
Creio que existe ainda mais um motivo para a entrevista se transformar numa conversa íntima e densa: ela é uma oportunidade de falar, de parar para refletir um pouco sobre algo que vai além do tanque de roupa e do fogão, para ordenar um pouco o mundo. É, em suma, uma ocasião excepcional que, ao colocar um distanciamento do cotidiano vivido, permite ordenar um pouco pedaços de experiências que foram sendo acumuladas com o correr do tempo, sob a forma de fragmentos dispersos, que ficaram sem conexões nem explicações. Por isso, é comum que a entrevista se transforme em uma relação catártica que termina, frequentemente, num tom nostálgico e triste - de quem, por exemplo, defrontou-se com o seu passado, pensou o presente, imaginou o futuro - em agradecimentos e alívio, quando não em choro. Uma entrevistada falou-me disso:
a gente fica pondo tanta porcaria na cabeça, que a gente para pra pensar, chega uma coisa, distrai a gente, a gente começa a viver novamente. Agora, como eu estou conversando com você, a gente parece que desabafa um pouco, fica mais aliviada, não sei. Tem horas que a gente não pode conversar, tem muitos vizinhos aqui, a gente não pode conversar com eles a vida da gente, tem uns que fica rindo na cara da gente, leva aquilo de brincadeira, fica dando pouco caso até. Então, tem hora que a gente se fecha [...]. Tanta coisa, às vezes muita gente que a gente podia ter a cabeça da gente mais leve, e a cabeça da gente fica cheia de confusão.
Apesar de acreditar que a situação de falta de informação e de interlocutores é presente tanto para os homens quanto para as mulheres, creio que é mais grave no caso destas que, em grande parte, ficam mesmo restritas ao universo doméstico. A problemática que aparece nas entrevistas com mulheres é um dos reflexos da vivência cotidiana de uma situação específica: a da condição de mulher, e mais do que isso, da condição de mulher pobre, para quem os condicionamentos sociais certamente pesam mais do que para uma mulher de classe média. Muitas delas chegam a intuir seu deslocamento no mundo e relacioná-lo com o fato de serem mulheres. A mesma entrevistada citada anteriormente afirmou:
A mulher não precisa aprender nada, só os homens. A mulher, não sei por que a mulher tem sempre que ficar prá trás. Também não sei o que é isso, que defeito que a mulher tem que a mulher nunca pode fazer nada? Não tem explicação para isso.
Em suma, o fato de as mulheres terem menos instrumentos para pensarem o mundo (exterior ao universo doméstico) e a sua posição nele são elementos que, a meu ver, permitem compreender a maior carga de angústia contida em suas entrevistas e também o caráter mais intimista e “verdadeiro” do relato.5
Mas há ainda outros aspectos envolvidos em uma situação de entrevista e de relato de história de vida que podem ajudar a compreender tanto o aspecto verdadeiro do relato, quanto a concordância em fazê-lo.
É bastante comum que se agradeça a oportunidade de falar, que se manifeste o contentamento e o alívio causado pela situação de entrevista, como se pode despedir o pesquisador com a frase: “foi uma honra poder falar com o senhor”. Creio que aparece aí um elemento bastante comum nas pesquisas de campo realizadas junto às populações pobres: conceder a entrevista é um privilégio, é uma marca de distinção. Muitas vezes, no bairro da periferia de São Paulo onde realizei uma pesquisa, era chamada por pessoas que me perguntavam: “a sra. não vai querer fazer uma palestra comigo também?”; “e lá em casa, a sra., não vai chegar?”; ou era obrigada a enfrentar situações desagradáveis com pessoas que se mostravam ofendidas porque havia ido à casa de seus vizinhos e não às suas próprias.
Distinção, importância, identidade são elementos que o pesquisador e a situação de entrevista conferem aos entrevistadores, e esses aspectos se tornam mais presentes quando se trata de membros das camadas dominadas da população. As sociedades relegam ao silêncio aqueles que são dominados: suas vidas passam-se no anonimato, eles não têm voz, não se lhes reconhece uma identidade, a não ser em situações muito específicas - em geral, são apenas um entre outros (na fábrica, na fila do INPS ou do ônibus, na hora de colocar o voto na urna e assim por diante). No ato de solicitar a alguém que relate a sua vida está contido (para o entrevistado, mesmo que o entrevistador possa não estar consciente disso ou não ser sua intenção fazê-lo) um reconhecimento da individualidade, um respeito àquela vida; afinal, não é qualquer vida que se está pedindo para relatar, mas uma vida particular, a sua vida. E a entrevista dá voz, tira do anonimato uma vida marcada pelo sofrimento, pela angústia, pela luta: é uma vida cujo relato só pode ser marcado pelo sofrimento pois, além de ser sua parte integrante, é ele que, de alguma maneira, lhe confere dignidade.
Em que outras situações um membro das camadas dominadas tem reconhecida a sua identidade? Em que outras situações são conferidos importância, respeito e dignidade à sua vida? Em que outras situações é chamado pelo nome e suas queixas são ouvidas e consideradas? Em nossa sociedade essas situações não são muito comuns. Esse reconhecimento pode aparecer no discurso político, sobretudo nos de caráter populista - o tapinha nas costas, o aperto de mão e a frase “conto com o seu voto”; pode estar presente também na prática e nos rituais de religiosidade popular. Mas o mais frequente é que se reconheça a identidade de um membro das camadas dominadas apenas quando ele ameaça a ordem - ao cometer um crime, um pobre é interpelado como indivíduo; parte da violência que se exerce contra ele é exatamente a de, ao julgá-lo culpado, identificá-lo pela classe e pelo nome, e fazê-lo responder individualmente.6
Creio que esse reconhecimento de identidade é um dos aspectos presentes na situação de entrevista e que podem conferir satisfação ao entrevistado, explicando, inclusive, sua disposição para a relação. Ela transparece frequentemente na fala dos informantes. Por exemplo, o mesmo senhor que começou falando sobre a questão da verdade e da mentira, terminou o relato de sua vida com a seguinte observação: “é um prazer conversar. Você sabe que dava prá fazer um livro se contar a minha vida tudo direitinho? Tim-tim-por-tim-tim”.
Mas não é sempre que esse tipo de reconhecimento pode ser expresso, ou, antes, pode ser compreendido. Quantas vezes fui obrigada a responder à pergunta: “mas por que a sra. quer saber a minha vida? Eu sou uma pessoa qualquer, nem sei falar direito!” Contra-argumentar era difícil. Como convencer de que a sua vida era importante? Certamente é mais fácil acreditar que se está sob suspeita (o maior problema que enfrenta o pesquisador ao chegar a um bairro pobre é convencer seus moradores de que não é um fiscal ou da polícia). E como convencer alguém sem voz que sabia falar? Inúmeras vezes no final da entrevista ouvi as desculpas “por alguma coisa, a sra. sabe, a gente não entende das coisas” e por aí fora. No entanto, creio que essas desculpas, que muitas vezes são daquelas frases formais que se fala por falar, são ditas num tom suficientemente ambíguo a ponto de não conseguirem esconder uma ponta de satisfação. Fica patente, por exemplo, num diálogo ocorrido entre um entrevistador e um entrevistado, depois que este havia pedido desculpas por tudo de errado que poderia ser dito, por não saber falar, por não entender das coisas, etc:
“se tem algum erro, o sr. corrige, que nós não estamos acostumados a falar assim” (entrevistado).
“Imagine! Gostei muito das coisas que o sr. falou, o sr. tem umas ideias muito bonitas” (pesquisador).
“O sr. achou mesmo? Que o sr. sabe, né, eu nunca estudei, eu não tenho leitura, tudo o que eu falo é dom da natureza” (entrevistado).
Acho que comentários como esses, onde está presente a ambiguidade - no caso, do reconhecimento simultâneo da inferioridade e da importância, da dignidade pessoal - são o retrato mais claro que se pode ter de uma relação de pesquisa. Não há uma relação que seja unívoca, há sempre uma relação de forças em que ora prevalece um aspecto, ora prevalece outro. Mesmo a posição de saber/poder do entrevistador é vivida ambiguamente, tanto por ele próprio, que sabe, mas pergunta, quanto pelo entrevistado, que não sabe, mas informa. Isso aparece, por exemplo, em situações como a seguinte. Cheguei com dois colegas à casa de uma pessoa que havíamos contatado e com a qual deveríamos conversar. Essa pessoa não estava, mas havia deixado com sua avó um recado com a indicação de que estaria em outro local, o qual sabíamos onde era. A senhora nos transmitiu o recado e perguntou se conhecíamos o local indicado. Dissemos que sim, agradecemos e saímos. Quando estávamos na rua, a senhora nos disse: “a senhora desculpe de eu perguntar se a senhora sabe onde é. Uma gente como a senhora sabe tudo, né, mas tem horas...”
Em suma, o que gostaria de sugerir é que a relação de entrevista é uma relação complexa onde estão todo o tempo influindo elementos variados e frequentemente opostos. O depoimento de uma senhora feito à Ecléa Bosi ilustra de maneira exemplar a multiplicidade de aspectos que podem estar presentes:
- “Eu conto tudo pra você, pois o que a gente é, é... São coisas que já passaram, depois, tive tanta felicidade!”
- “Mas contando para você os pedaços difíceis, aquela luta, parece que estou contando para uma pessoa muito querida, conto com todo prazer, gostaria de fazer aqueles comentários ... sei lá ... dizer coisas muito importantes para você ...”
- “Quando a gente se confessa tem que falar toda a verdade. Então, como eu estou falando toda a verdade pra você, eu não tive Natal na minha casa”
- “Aquela noite, vou contar para você, nem no confessionário a gente fala com tanta franqueza assim, eu chorei a noite inteirinha sem parar”
- “Quem diria que um dia eu ia abrir o livro de minha vida e contar tudo? E agradeço por isso: é bom a gente lembrar. Deus te abençoe”. (Bosi, 1979, p. 53, 60, 66, 74, 76)
Depoimento/Verdade/Confissão/Desabafo/Ajuda (ao outro ou a si próprio)/Informação. Todos esses elementos se misturam no discurso de um informante e o caracterizam. A situação de poder do pesquisador, além de servir para desencadear o discurso, marca alguns de seus aspectos, mas não dá conta de tudo o que ocorre na relação - a partir de um momento ela assume um outro caráter, o entrevistado imprime o seu tom. O que diz não é um depoimento que vai ter um significado apenas para quem o solicita a fim de descobrir algo; ele é significativo - e em certo sentido também uma descoberta - para quem o fornece, para quem o vive (e revive).
Creio que esse aspecto esclarece uma das principais características de uma relação de pesquisa em ciências sociais. O “objeto” da investigação não é por nada um objeto neutro e passivo que possa ser simplesmente observado: seu depoimento é, antes de mais nada, uma ação significativa para si mesmo, é uma ação vivida, e uma ação vivida não de forma isolada, mas numa relação com um outro, aquele que desencadeou a ação. Mas tampouco o pesquisador é neutro e passivo nessa relação, apenas um observador que recolhe o seu material. Ele é a todo instante incluído na ação que transcorre. Em primeiro lugar, é a ele que é dirigido o relato, a confissão, o desabafo. Mas talvez a sua participação e inclusão fique mais clara quando o entrevistado lhe solicita esclarecimentos, informações, opiniões, lhe exige, enfim, uma resposta. Estabelece-se uma relação de troca e é razoavelmente comum o surgimento de situações em que, no final da entrevista, o informante fala: “acabou? Bom, agora eu vou fazer uma entrevista com o senhor, o senhor agora vai me responder umas perguntas”.
O entrevistado fornece o depoimento que lhe é solicitado, mas recebe coisas em troca, que vão desde a oportunidade de falar sobre dúvidas e angústias, até informações sobre assuntos objetivos. Mas não é só isso. O depoimento não existia pronto para ser dito; ele é construído à medida em que vai sendo dito. Tudo isso faz com que a relação da entrevista seja, basicamente, uma relação de aprendizado: tanto o pesquisador quanto o entrevistado descobrem, aprendem, refletem. A informação produzida - a entrevista gravada, por exemplo - é o resultado dessa troca, dessa aprendizagem comum onde podem ter interferido os mais variados elementos, e não pode ser produzida duas vezes da mesma maneira, uma vez que é resultado de uma relação e da maneira como ela se dá.
A relação de troca e aprendizagem está presente, com toda clareza, em situações de entrevistas abertas e de observação participante e, a meu ver, isso acaba amenizando um pouco a violência do exercício do poder que se estabelece sobre o entrevistado. No entanto, isso não acontece na aplicação de questionários ou na realização de surveys. Nessas circunstâncias, a rigidez das perguntas, a ordem pré-estabelecida, o leque de alternativas, não permitem ao entrevistado praticamente nenhuma participação ativa na relação. Creio que é a situação em que a violência do exercício do poder na prática da pesquisa em ciências sociais apresenta-se de forma mais crua: ao entrevistado não é permitido nada a não ser submeter-se a responder aquilo que lhe é solicitado; o que for dito além não interessa, não é anotado e não é levado em consideração.
Bem, mas há que olhar agora do ângulo do pesquisador. Como, afinal, ele se comporta nessa relação? Como reage? Como maneja esses aspectos?
III
Centrando a atenção no pesquisador, creio que há dois aspectos a serem considerados: de um lado, suas reações subjetivas durante a situação de permanência no campo e de relacionamento com os informantes; de outro, sua atitude frente ao material coletado que, como já foi visto, inclui uma série de aspectos subjetivos e íntimos do entrevistado, que foram produzidos numa relação científica e por nada neutra.
Começando pela subjetividade do pesquisador, o que parece haver é uma tendência geral por parte dos cientistas sociais em tratar como indesejáveis ou como “folclore” da pesquisa de campo as emoções e os mal-estares que sentem ao tentar perceber e vivenciar o universo dos “outros” com os quais estão se relacionando. São frequentes nos cadernos dos antropólogos as descrições de situações desse tipo, e Roberto Da Matta (1978, p. 4) já chamou atenção para a importância de se “incorporar no campo mesmo das rotinas oficiais, já legitimadas como parte do treinamento do antropólogo, aqueles aspectos extraordinários ou carismáticos, sempre prontos a emergir em todo o relacionamento humano”. Esta seria a área dos anthropological blues, “aquela do elemento que se insinua na prática etnológica, mas que não estava sendo esperado. Como um blues cuja melodia ganha força pela repetição das suas frases de modo a cada vez mais se tornar perceptível. Da mesma maneira que a tristeza e a saudade (também blues) se insinuam no processo de trabalho de campo, causando surpresas ao etnólogo” (Da Matta, 1978, p. 6).
Por que não considerar as vezes em que o pesquisador ficou absolutamente deprimido e sem ação frente a um relato desesperado e entrecortado por choro? Ou as vezes em que, depois de ouvir um desabafo angustiado de uma mulher sobre o relacionamento com seu marido, que bebia e lhe batia quase que diariamente, teve vontade de simplesmente dizer-lhe: “minha filha, vá à luta, largue esse homem e vá cuidar da sua vida!”, e as vezes em que disse isso. Ou a desagradável sensação de solidão ao fechar a porta de sua casa e sentar para escrever as observações do dia, sem conseguir digerir o que havia acontecido e sem ter com quem comentar. Ou então sua raiva quando se sentiu envolvido a contragosto em uma briga de grupos políticos da comunidade em que estava estudando. Ou mesmo a pergunta constante: por que não tomar diretamente um partido nessa briga, já que tem uma posição muito clara, ao invés de ficar fingindo para todos que acha que todos estão certos? Como entrevistar com a mesma “neutralidade” um dedo-duro e um militante de base, se se tem desprezo por um e admiração pelo outro?
Em geral não se trata todo esse tipo de questões e, a bem da verdade, não podem mesmo ser consideradas se o que se pretende é manter a crença na “neutralidade científica” do pesquisador. Ela o obriga a ser objetivo, a não se envolver, a distanciar-se do seu objeto de pesquisa e a deixar claro para ele esse distanciamento, a não interferir nunca, a criar uma situação o mais neutra possível. Com isso, fica impossível considerar que não é tão simples assim e que a omissão e o distanciamento são, antes de mais nada, formas específicas de participação.
Mesmo que não se pretenda fazer uma consideração psicológica, não custa lembrar que a relação que fornece os dados para o conhecimento em ciências sociais é uma relação entre pessoas que se enfrentam como subjetividades e onde todas as atitudes de um têm reflexos no outro e são levadas em consideração. Por isso mesmo, creio que as tentativas de distanciamento e de assepsia recomendadas por muitos manuais de pesquisa de campo não têm os resultados que são delas esperados, ou seja, objetividade, não interferência. O silêncio do entrevistador frente a dúvidas e perguntas do entrevistado, a sua negativa em fornecer-lhe respostas e opiniões não são atitudes que isolam elementos, mas que, ao isolarem, incluem. Assim, o silêncio e as reticências do pesquisador, além de serem embaraçosos para ele e provocarem grande angústia no entrevistado, podem contribuir, por exemplo, para desencadear uma série de fantasias e desconfianças a seu respeito ou para a produção de um discurso “culposo”, defensivo ou “mentiroso”. Não acredito, em suma, que manter o distanciamento e o silêncio interfira menos do que aproximar-se, emitir opinião e fornecer respostas. Participar ou negar-se a participar têm, sob um aspecto, os mesmos efeitos sobre os pesquisados: são atitudes que interferem e são levadas em consideração. Pode-se optar por fazer uma coisa ou outra, até considerando os efeitos que se quer alcançar, mas o que não se pode é imaginar que uma situação isola a produção de efeitos. Acredito que o silêncio pode ser uma ótima técnica de pesquisa quando se deseja, por exemplo, ver como determinada população reage à angústia, ao desconhecido (o que não significa que não seja uma técnica violenta). Mas com certeza silêncio e objetividade/neutralidade não são a mesma coisa.
Mas creio que a questão da objetividade e da “neutralidade científica” do pesquisador vai ainda mais longe. De alguma maneira, também o pesquisador - e principalmente ele - é tratado como um objeto, e não como um sujeito que se relaciona com outras pessoas e que, por ser humano, tem emoções, sensações, sentimentos. Exige-se que ele esqueça e desconsidere como entraves ao verdadeiro conhecimento todo seu lado, digamos, emocional. E a verdade é que, para quem acredita que para se fazer uma pesquisa é necessário neutralidade e objetividade permanentes, e que estas são possíveis, deve ser muito difícil colocar suas emoções em observação. É preferível negá-las. Quem sabe até porque o consenso sobre o que seja a prática científica tenha tanta força que qualquer pessoa levemente comprometida com ela prefere deixar algumas questões para os bastidores ao invés de torná-las públicas.
Talvez fosse mais saudável e produzisse resultados mais efetivos se os cientistas sociais, ao invés de ficarem pedindo desculpas e tentando acertar as contas com a metodologia e os procedimentos das ciências exatas e com a objetividade e a exterioridade que lhe são possíveis, admitissem de maneira mais contundente que a natureza de seu objeto de estudo é outra e que, portanto, os procedimentos de pesquisa devem ser outros. Trata-se de uma relação humana de um lado, e de uma relação de laboratório entre uma pessoa e um objeto, de outro. E aqui, a própria linguagem herdada pelas ciências humanas já é incômoda: me é difícil, por exemplo, designar um informante como “objeto” de estudo.
Apesar da afirmação dessas diferenças ser uma espécie de lugar comum nos trabalhos de metodologia de ciências sociais, creio que não foi levada às últimas consequências, pelo menos na maioria das vezes. O que parece ocorrer de modo mais frequente é fazer-se um grande esforço no sentido de adaptar as técnicas e métodos da pesquisa e observação de um laboratório para uma situação em que os “objetos” são pessoas, a vida social ou a cultura, ao invés de procurar outros métodos. Se não for isso, por que a insistência na neutralidade do investigador, em negar suas emoções, em afastar toda uma quantidade de aspectos que possam “interferir” nos resultados”?
Acredito que as emoções do investigador nunca devem ser negadas (mesmo porque estão sempre presentes). Mas, além disso, creio que devem ser atentamente consideradas, pois podem converter-se em um importante instrumento para o conhecimento. O que imagino que pode consistir na especificidade e na originalidade do método de pesquisa de campo em ciências sociais é exatamente o fato de o pesquisador utilizar a si mesmo como um instrumento de pesquisa e uma fonte de observação. É o considerar, por exemplo, as situações que ele pode provocar e as emoções e sensações que sente como sendo importantes fontes de informação. É se esforçar por identificar os elementos que estão entrando em cena (inclusive os de sua própria subjetividade) ao invés de tentar afastá-los como indesejáveis. É incluir os anthropological blues na rotina observação.
Mal-entendidos, choques e desconfortos - sempre desagradáveis do ponto de vista subjetivo e emocional - talvez sejam das situações mais frequentes para se entender o universo dos “outros”. Mas para que cheguem a ser elaborados, é necessário que o pesquisador esteja sempre prestando atenção nas suas próprias emoções e sensações, considerando sua angústia, sua tristeza e seu espanto como significativos. Poderia multiplicar aqui exemplos em que o acaso me levou a entender aspectos da vida cotidiana da periferia que dificilmente captaria em uma entrevista por falta de referencial: o presenciar de uma brincadeira de duas crianças, uma mãe repreendendo o filho, o fuxico de duas vizinhas, a conversa de dois amigos no bar depois do trabalho ou o espanto de um homem face a uma observação que para mim era óbvia, mas que ele não conseguia entender. Ou, então, como o choque que me causaram algumas atitudes permitiram captar aspectos do modo de vida sobre os quais não se fala, pois não são conscientes ao ponto de se poder colocar em palavras. Por exemplo, a percepção de que o relacionamento entre as pessoas que moram na periferia de São Paulo é rude, áspero, direto, sem nuances, e que tem no silêncio uma das características mais marcantes. Silêncio que significa a ausência de troca de opiniões e de ideias e a aceitação incondicional de um padrão de relacionamento, aquele transmitido pela tradição (no que se refere a papéis sexuais e a papéis etários). Poder-se-ia dizer que é um relacionamento marcado por uma violência, que não é a física, mas uma violência muda, a violência do silêncio, da omissão, do interdito, do desconhecimento. No entanto, o que quero chamar a atenção é que a classificação de violência quem faz sou eu, na proporção do meu choque e do contraste com o que reconheço como relacionamento aceitável ou desejado: para as pessoas que o vivem é apenas o padrão normal, natural.
IV
Depois de considerar todos esses aspectos, cabe perguntar: o que resta, então, como matéria-prima para o trabalho de interpretação do cientista social? Qual deve ser a sua atitude depois de abandonar o campo e se sentar no seu escritório com entrevistas e observações para serem analisadas? Acho que essas questões podem ser enfrentadas pelo menos sob dois aspectos, que gostaria de considerar, ainda que rapidamente: do ponto de vista ético e do ponto de vista teórico e metodológico.
Antes de mais nada, creio que é na hora da interpretação e publicação dos dados que o pesquisador pode exercer de maneira mais violenta o seu poder. Nesse estágio, as pessoas que deram as entrevistas, que forneceram os dados, já não têm nenhuma interferência, cabendo apenas ao investigador decidir o que fazer com elas. Fica reservada ao pesquisador a opção de, por exemplo, tornar público um desabafo ou uma confissão, que lhe foram feitos por motivos absolutamente pessoais, embora isso possa não ter sido dito; cabe a ele decidir pela utilização ou não de dados íntimos da vida dos entrevistados. Não acredito que o fato de o entrevistado saber que o pesquisador estava colhendo informações para uma pesquisa seja suficiente para servir como justificativa para a publicação desse tipo de dados, como não acredito na veracidade da frase: “afinal, ele falou porque quis”. As coisas não são tão simples assim: o entrevistado certamente pode ter falado porque quis, mas não se pode esquecer do contexto de poder da entrevista, nem do fato de que, muitas vezes, seu caráter não é outro além do de uma pessoa que pede ajuda a uma outra que ela acredita que possa lhe auxiliar. Desabafos e confissões surgem nesse contexto e têm um caráter significativo e subjetivo para aquele que os faz, que nada tem a ver com a prestação de informações ou explicações. Creio, por isso, que as longas confissões, desabafos, relatos íntimos e o grosso dos dados fornecidos durante uma história de vida são elementos que fazem parte de e caracterizam uma relação pessoal e íntima, uma relação de amizade e confiança (não de investigação), cujo significado se esgota nela mesma e, para o informante, no instante em que ocorre; são informações pessoais e não científicas. O pesquisador deve assumir a responsabilidade de não se esquecer da posição de poder em que se encontra e da quantidade de situações que podem se desencadear a partir daí. Por tudo isso, publicar dados que foram fornecidos em situações de confissão, desabafo, pedido de ajuda ou algo do gênero, creio ser uma atitude antiética.
Não quero com isso chegar ao ridículo de dizer que o pesquisador deveria esquecer aquilo que ouviu em confissão ou fingir que situações como essas não existiram. Essas são circunstâncias que fazem parte de sua relação pessoal com os informantes e são dados que o ajudam a compreender sua vida e seu universo; mas daí a publicar relatos pessoais creio que há uma grande diferença: uma coisa é usar como dado, outra como texto. Incluir emoções e sentimentos na rotina da observação de pesquisa creio que é uma atitude necessária, uma vez que realmente fazem parte da relação que se estabelece no campo e considerá-las contribui para o entendimento da realidade que está sendo estudada. Mas, volto a insistir, levar em consideração dados para a interpretação e o entendimento não significa publicá-los.
Finalmente, haveria que se pensar sobre a interpretação dos dados. Embora considere necessária e urgente uma discussão mais aprofundada do ponto de vista teórico e metodológico, no que se refere à análise de discursos e de representações (dados “qualitativos”), não é objetivo deste trabalho seguir por essa linha. O que pretende fazer é apenas fornecer algumas indicações sobre a “natureza” dos dados coletados em pesquisa de tipo “qualitativo”, que acredito que possam contribuir para essa discussão.
Antes de mais nada, não custa lembrar que as entrevistas, depoimentos e observações de campo, por mais ricos que possam ser, não constituem em si mesmos uma evidência ou uma explicação. São dados, ou seja, a matéria bruta a ser trabalhada. Para que adquiram um significado para o conhecimento, eles necessitam ser interpretados e explicados, requerem um trabalho que é inseparável de um esforço teórico e que em nada se assemelha à compilação de dados ou à descrição pura e simples.
Além disso, creio que é imprescindível, quando se inicia a interpretação, ter clareza sobre a “natureza” dos dados que se tem nas mãos. Não são dados “objetivos”, externos e unívocos: não são lineares e produtos de um experimento onde se isolaram interferências, mas resultantes de uma quantidade de fatores que não podem ser desprezados. Tanto o que foi dito (e que pode estar gravado ou escrito), quanto o que foi observado e sentido, são dados que foram produzidos em diversos momentos de uma relação na qual entraram em jogo os mais variados elementos. Entre estes, encontram-se um pano-de-fundo fornecido pelo dispositivo saber-poder com todos os desdobramentos que tentamos descrever; o fato de se tratar de uma relação complexa da qual fazem parte as situações que produzem a confissão, o desabafo, o pedido de ajuda e de informação; e o fato, enfim, de se tratar de uma relação entre seres humanos, melhor seria dizer, de uma inter-relação, onde obviamente estão presentes aspectos subjetivos e pessoais.
Considerando já o contexto em que foram produzidos os dados, não fica difícil perceber que se trata de discursos multifacetados, fragmentários, contraditórios, multideterminados. Ignorar na hora da análise essas características pode significar um empobrecimento, quando não um desvirtuamento. Provavelmente toda a interpretação que se faça a partir desse tipo de dado é uma camisa-de-força a que o investigador submete o discurso; provavelmente cada discurso pode ser lido e pontuado de diferentes maneiras.7 Não creio que se possa escapar a essa armadilha na hora da análise, mas talvez seja possível evitar alguns riscos mais frequentes. O maior deles, e quem sabe o mais comum, é o de tentar buscar nos discursos uma coerência que não podem ter, porque não lhes pertence, mas sim à interpretação. Ou então o risco inverso, tão comum quanto o anterior, que é o de negar aos dados qualquer coerência própria e submeter-lhes (muitas vezes depois de terem sido picotados e divididos em itens) a um modelo pré-estabelecido e construído de fora, que se pretende comprovar ou refutar.
Creio que um caminho possível para evitar os riscos mencionados é, por um lado, respeitar os dados como são, tentar lê-los em toda sua heterogeneidade e sem desvirtuá-los com uma fragmentação imposta de fora (que pode ser lógica, mas não necessariamente real); e, por outro lado, ir buscar em suas fissuras e contradições pistas para a interpretação.
Referências
- AGEE, J.; EVANS, W. Let Us Now Praise Famous Men. Boston: Houghton Mifflin Co, 1969.
- BOSI, E. Memória e Sociedade - Lembranças de Velhos. São Paulo: T. A. Queiroz, 1979.
- CARDOSO, R. Notas Para Discussão - Comunicação apresentada no “Seminário Sobre Análise de Discursos”, realizado no Departamento de Ciências Sociais, USP, 1979. Posteriormente publicado. In: CARDOSO, R. Obra Reunida. São Paulo: Mameluco, 2011, p. 197-202.
- DA MATTA, R. “O Ofício de Etnólogo, ou Como Ter Anthropological Blues. Boletim do Museo Nacional, Rio de Janeiro, n. 27, 1978.
- FOUCAULT, M. História da Sexualidade - I -A Vontade de Saber. Rio de Janeiro: Graal, 1977a.
- FOUCAULT, M. (Org.). Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã, meu irmão. Rio de Janeiro: Graal, 1977b.
- FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
- INVESTIGAR. In: NOVO DICIONÁRIO de Aurélio Buarque de Hollanda. Curitiba: Positivo, 2008.
- INVESTIGAÇÃO. In: NOVO DICIONÁRIO de Aurélio Buarque de Hollanda. Curitiba: Positivo, 2008.
- MARTINS RODRIGUES, A. Operário, Operária. São Paulo: Símbolo, 1978.
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1
Apresentado no IV Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, Grupo de Trabalho “Cultura Popular e Ideologia Política”, Rio de Janeiro, 29 a 31 de outubro de 1980. Publicado originalmente em Ciências Sociais Hoje 1 - Trabalho e Cultura no Brasil. Anpocs - CNPq, Recife/Brasília, p. 332-354, 1981.Nota da autora, junho de 2023. Este artigo está sendo republicado sem nenhuma edição. A única mudança é a epígrafe de James Agee, que foi previamente publicada na tradução francesa, mas que aparece aqui no original em inglês. Obviamente, muita coisa mudou nesses mais de 40 anos. A antropologia mudou e com ela mudaram concepções sobre o trabalho de campo, a autoria, e a escrita etnográfica. Mais importante, contudo, os moradores das periferias e suas relações com pessoas de outras classes sociais mudaram significativamente, expondo e desafiando vários aspectos das relações de poder que antes ficavam basicamente sem ser questionadas. Analiso essas mudanças num texto recente: Teresa P. R. Caldeira. Desigualdade e Legitimidade: Problematizando a Produção de Conhecimento Social. Tempo Social, São Paulo, v 33, n3, p 21-45, 2021. Mas apesar de todas as mudanças, os dispositivos de poder subjacentes à produção de pesquisa qualitativa continuam a operar e moldar o que ainda chamamos de dados.
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2
O primeiro incômodo para aqueles que se detenham em questionar a prática de pesquisa já pode ser causado pela própria língua. Em português e em outros idiomas emprega-se o mesmo vocábulo para designar a pesquisa científica e o inquérito policial. Segundo o Novo Dicionário de Aurélio Buarque de Hollanda, ‘Investigação’ é o “ato ou efeito de investigar; busca, pesquisa; indagação minuciosa, indagação, inquirição” e ‘Investigar’ significa “seguir os vestígios de; fazer diligências para achar: pesquisar, indagar, inquirir; examinar com atenção; esquadrinhar”.
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3
Outra questão pertinente, mas que não se pretende discutir aqui por ter toda uma outra ordem de implicações, é a da eficácia de cada uma das várias técnicas de pesquisa em ciências sociais, no sentido de um aprofundamento do conhecimento.
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4
Obviamente não estou fazendo referência a nenhuma concepção jurídica de poder, nem o entendo como imanando do Estado ou relacionado a uma unidade global de dominação; a concepção de poder a que me refiro é aquela desenvolvida por Foucault (1977a) no seu livro A Vontade de Saber, especialmente Parte IV, Cap. 2. O central dessa concepção é entender o poder não como algo que se possa deter e que se exerce a partir de um lugar determinado, mas como o efeito de uma relação de forças.
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5
Arakcy Martins Rodrigues (1978) também enfrentou situações semelhantes às que descrevi na realização de sua pesquisa de campo. Seu estudo - Operário, Operária - além de ser um dos poucos que conheço que procura discutir a problemática da realização de entrevistas abertas, apresenta, ainda, uma excelente análise da vivência de papéis sexuais por um grupo de operários. O que acabei de afirmar sobre a situação da mulher pobre coincide com os resultados de seu estudo.
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6
Sobre a relação crime-reconhecimento de identidade-obtenção de voz, ver a nota escrita por J.P.Peter e Jeanne Favret. O Animal, o Louco, a Morte, que segue a apresentação do dossiê de Pierre Riviêre em Foucault (1977b).
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7
Ver, nessa linha, as observações feitas por Ruth Cardoso em um manuscrito intitulado: Notas para Discussão, apresentado no Seminário Sobre Análise de Discursos - USP - 1979 (Cardoso, 1979).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
15 Jan 2024 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
05 Jul 2023 -
Aceito
17 Ago 2023