Resumo
O objetivo deste artigo foi analisar quais violências acometem as mulheres que vivem em contextos rurais. Foi realizada uma revisão integrativa nas bases BVS, SciELO, Medline, Web of Science, Scopus, Embase, Redalyc e Redib, sem restrição de idioma e período, de artigos brasileiros, com os termos: violência contra a mulher, violência entre parceiros íntimos, violência doméstica, violência de gênero e rural. Os 23 artigos incluídos foram analisados de forma qualitativa e organizados em duas categorias: as múltiplas violências contra as mulheres em contextos rurais (18 artigos) e a violência invisibilizada e silenciada contra as mulheres em contextos rurais (cinco artigos). Observou-se uma multiplicidade de violências, como doméstica, de gênero, entre parceiros íntimos e institucional. Destacam-se as violências física, psicológica, sexual, moral, patrimonial, além de feminicídio, desvalorização do trabalho, dependência financeira, privação e controle de liberdade, jornadas de trabalho intensas e falta de acesso a financiamentos públicos, potencializadas próprio contexto rural. As mulheres rurais, portanto, são sistematicamente silenciadas diante da opressão de gênero e violência que vivem. Além disso, o silenciamento também ocorre pela falta de pesquisas na área e até mesmo a não diferenciação entre rural e urbano nos registros e dados coletados.
Palavras-chaves: Violência contra a Mulher; Violência de gênero; Zona Rural; Revisão
Abstract
The objective of this article was to analyze which violence affect women living in rural contexts. An integrative review was carried out in the databases VHL, SciELO, MEDLINE, Web of Science, Scopus, EMBASE, Redalyc, and REDIB, without restriction of language and period, of Brazilian articles, with the terms: violence against women, intimate partner violence, domestic violence, gender-based and rural violence. The 23 articles included were analyzed qualitatively and organized into two categories: the multiple violence against women in rural contexts (18 articles) and the invisible and silenced violence against women in rural contexts (five articles). A multiplicity of violence was observed, such as domestic, gender, intimate partner, and institutional. Physical, psychological, sexual, moral, patrimonial violence, as well as femicide, devaluation of work, financial dependence, deprivation, and control of freedom, intense working hours, and lack of access to public funding, potentiated by the rural context itself, stand out. Rural women are, therefore, systematically silenced in the face of the gender oppression and violence they experience. In addition, the silencing also occurs due to the lack of research in the area and even the non-differentiation between rural and urban in the records and collected data.
Keywords: Violence Against Women; Gender-Based Violence; Rural Areas; Review
Introdução
Os movimentos feministas, no decorrer da história, tiveram um papel fundamental ao trazer à tona questões sobre as violências contra as mulheres, fazendo com que se se tornassem visíveis, ou seja, que não fossem uma questão restrita a esfera privada, mas estivessem também na pública. Dessa maneira, amplia-se a discussão e o enfrentamento das violências contra as mulheres como um problema político, de saúde pública e de direitos humanos (Bandeira, 2019).
Para Scott (1995), a categoria gênero se faz essencial para a compreensão das violências contra as mulheres, pois é uma construção social, política, cultural, relacional das identidades subjetivas dos homens e das mulheres. Ao definir gênero a autora propõe que “o núcleo essencial da definição baseia-se na conexão integral entre duas proposições: o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder”(Scott, 1995, p. 21). Dentro das relações sociais, a autora destaca que o gênero tem quatro elementos: a cultura, as normalizações, a política e a identidade subjetiva, esses elementos estão interrelacionados entre si.
Para Saffioti (2001), a violência de gênero é um conceito amplo que abrange o poder exercido em função dos arquétipos baseados no sistema patriarcal. Nesse sentido, os homens detêm o poder de determinar a conduta das categorias sociais nomeadas, recebendo autorização ou, pelo menos, tolerância da sociedade para punir o que para eles se apresenta como desvio. A Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, nomeada como Lei Maria da Penha, tem sido um instrumento fundamental para coibir, punir e prevenir a violência praticada contra mulheres, a norma “configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial” (Brasil, 2006).
Conforme o Feminismo Camponês e Popular, os sistemas do patriarcado, racismo e capitalismo fazem com que as violências sejam naturalizadas e banalizadas, favorecendo a sua permanência e o apagamento dos direitos sociais e políticos das mulheres (Mezadri, et al. 2020). Este Feminismo vem sendo forjado pela vivência e realidade das lutas e a organização das mulheres rurais, nele, entende-se que aquelas que vivem em contextos rurais estão sujeitas a violência nas suas mais diversas formas, sejam elas: física, psicológica, sexual, moral, patrimonial ou feminicídio. Outras formas de opressão e violência são a sobrecarga de trabalho, a não participação de decisões ligadas a propriedade onde mora, a discriminação quanto à posse, ao trato e ao manejo da terra, a falta de autonomia e dependência financeira, a invisibilidade de seu trabalho, dificuldade de exercer o direito a herança e a direitos sociais, a discriminação e desprezo por quem vive no campo e as violências institucionais como a não acolhida e a falta do devido encaminhamento quando uma mulher faz uma denúncia ou quando vai a alguma consulta na área de saúde (Daron, 2009; da Costa; Lopes; Soares, 2014; Lorenzoni; Rodrigues; Santos, 2020).
Segundo Bueno e Lopes (2018), a violência contra as mulheres em contextos rurais é complexa e encontra potencialização em adversidades. Essas mulheres encontram-se em situações de vulnerabilidade, percebidas no isolamento social em relação a serviços públicos de assistência, policial, jurídica e de saúde. Por vezes, é a distância que torna difícil a busca por ajuda, outras é como transpô-la. O acesso aos meios de comunicação, como os de telefonia e internet, a distância entre vizinhos, amigos(as) ou familiares, a dificuldade de locomoção por meio de transporte, seja público ou privado, são barreiras que impedem a busca de apoio e assistência em casos de violência (Bueno; Lopes, 2018; Honnef et al., 2017).
Uma pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) com 611 mulheres rurais, com média de idade em 42,6 anos, de todas as regiões brasileiras durante a Marcha de Margaridas de 2011, em Brasília, buscou identificar as múltiplas formas de violência que as afetam, tanto no âmbito doméstico quanto nos espaços públicos. Dentre as entrevistadas, 58% afirmaram ter sofrido violência psicológica/moral, 27% física e 23% sexual. Quando as mulheres recorreram ao atendimento de um serviço público, para fazer uso de um direito, a maioria se sentiu desrespeitada (56%), sendo o serviço mais procurado o de saúde (Ipea, 2013).
Outro estudo analisou a violência contra as mulheres rurais, segundo os dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), no período de 2010 a 2012, de todo o Brasil. As autoras encontraram 12.710 notificações envolvendo pessoas do sexo feminino residentes em área rural, destas, 56,6% (7.197) eram relativas a mulheres rurais adultas (18 a 59 anos de idade). Quanto aos tipos de notificações de violências em mulheres adultas, destacou-se a física (76,8%), seguida da psicológica/moral (38,4%) e sexual (7,4%). Os meios de agressão mais utilizados foram a força corporal/espancamento (49,5%) e a ameaça (22,3%). A residência mostrou ser o principal local de ocorrência da violência (67,1%) e a recorrência dos casos, em 42,3%, tendo como principal agressor o cônjuge (36,2%). Porém, os autores abordam a questão da subnotificação dos casos de violência, em razão da longa distância dos serviços de saúde, medo, vergonha e incompletude dos registros (Carneiro; Pessoa; Teixeira, 2017).
A violência contra as mulheres é reconhecida como um grave problema de saúde pública, bem como de violação dos direitos humanos e sociais. Percebe-se uma necessidade de maior conhecimento acerca das violências contra as mulheres em contextos rurais, dado que as próprias circunstâncias podem potencializar as situações de violências, dificultar seu enfrentamento e favorecer o seu silenciamento e invisibilidade. Sendo assim, o objetivo deste artigo é analisar as violências que acometem as mulheres que vivem em contextos rurais.
Métodos
Este estudo caracteriza-se como uma revisão da literatura, entendida como um estudo exploratório da produção do conhecimento acerca de um assunto ou tema. A revisão integrativa foi escolhida por ser um método que permite uma compreensão abrangente de um assunto. Esse tipo de revisão possibilita a síntese de vários estudos publicados anteriormente e faculta a inclusão de estudos com diversas metodologias (Botelho; Cunha; Macedo, 2011).
A revisão se baseou nas bases bibliográficas: Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), Scientific Eletronic Library Online (SciELO), Medical Literature Analysis and Retrieval System Online (Medline/PubMed), Web of Science, Scopus, Excerpta Medica database (Embase), Revistas Científicas de América Latina y el Caribe, España y Portugal (Redalyc) e Rede Ibero-americana de Inovação e Conhecimento Científico (Redib). Privilegiou-se o artigo científico como fonte de análise. Para as buscas, foram utilizados os seguintes termos em inglês: ‘Violence Against Women’ OR ‘Intimate Partner Violence’ OR ‘Domestic Violence’ OR ‘Gender-Based Violence’ AND Rural. A revisão foi baseada no levantamento de produções científicas nacionais, sem restrição de idioma ou período, abrangendo todas as publicações até agosto de 2022, mês da realização das buscas.
Para se adequarem aos critérios de inclusão, os artigos deveriam tratar do tema da violência contra as mulheres com idade a partir de 18 anos e basearem-se especificamente no contexto rural. Foram excluídos os estudos de outros tipos de publicações, como artigo de revisão, publicações de congressos, monografias, dissertações ou teses, livros, resenhas e documentos, bem como aqueles que não foram realizados no Brasil, ou que pertenciam a outras temáticas.
A Figura 1 descreve o processo da revisão, sendo iniciada pela identificação de 404 estudos nas bases supracitadas e 11 em busca manual. Os títulos inseridos a partir da busca manual foram identificados principalmente nas referências de artigos e através de dissertações e teses. Na etapa da seleção, retiraram-se os artigos duplicados (85) e foi realizada a leitura parcial dos estudos, ou seja, do título e resumo, aplicando os critérios de inclusão e exclusão. Desse modo, 297 estudos foram eliminados. Na elegibilidade, os estudos passaram pela leitura completa e foram avaliados quanto a permanência ou exclusão final. Foram excluídos 10 estudos, logo, houve 23 artigos incluídos na revisão.
Os dados foram analisados com base na técnica de Análise de Conteúdo de Bardin, que compreende o conceito como “[...] um conjunto de técnicas de análise de comunicação visando obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens” (Bardin, 1977, p. 42). Após leitura detalhada e síntese das respostas, organizou-se os artigos conforme duas categorias temáticas: (1) “As múltiplas violências contra as mulheres em contextos rurais” (18 artigos) e (2) “A violência invisibilizada e silenciada contra as mulheres em contextos rurais” (cinco artigos).
Resultados
Características dos artigos identificados
Em relação ao ano de publicação, dos 23 títulos identificados, predominaram 2018 e 2019, ambos com quatro artigos cada (17%); e 2017, com 3 (13%) publicações; os demais anos, 2007, 2013 a 2016, 2020 e 2021 variaram entre um ou dois artigos publicados. Ressalta-se que o Rio Grande do Sul (RS) abarcou a maior quantidade de estudos (11), totalizando 48%. Quanto aos aspectos metodológicos, 17 (74%) utilizaram abordagem qualitativa, quatro (17%) quantitativa e dois (9%), ambas as abordagens. Sobre a população/fonte dos dados, encontraram-se 12 (52%) artigos feitos com mulheres residentes e trabalhadoras em contextos rurais, assentadas e lideranças femininas de movimentos rurais, seis (26%) realizados com gestores, responsáveis e profissionais de serviços intersetoriais, de saúde e de proteção a mulher, três (13%) provenientes de mulheres em conjunto com profissionais da rede institucional, representantes do poder público e coordenadoras de movimentos e da rede de segurança feminina, gestoras dos Centros de Referência da Mulher, e dois (9%) a partir de análises de dados secundários, como Boletins de Ocorrência (BO), registros do Centro de Referência de Assistência Social (CREAS), Fórum da Vara Criminal e Sinan. Vale frisar o caráter multidisciplinar das revistas em que foram publicados os artigos, 11 (48%) relacionadas às ciências da saúde, como medicina, saúde coletiva e enfermagem, esta última com nove artigos. Os demais, em menor número, foram em diversos campos, como: gênero, feminismos e sexualidades, geografia, ciências humanas, sociais e aplicadas, políticas sociais e serviço social.
As múltiplas violências contra as mulheres em contextos rurais
Conforme o Quadro 1, pode-se observar uma síntese dos estudos sobre as múltiplas violências contra as mulheres em contextos rurais, de acordo com o local da pesquisa, abordagem metodológica, população/fonte dos dados e os principais resultados.
As autoras Griiboski, Guilhem e Moura (2015), ao descreverem a ocorrência de violências perpetradas por parceiros íntimos (VPI), entrevistaram 795 mulheres rurais participantes da Marcha das Margaridas, em Brasília, no ano de 2011. A entrevistadas relataram ter sofrido ao menos um episódio de VPI (41%) em algum momento da vida, sendo que 70% sofreram violência física, 63% psicológica e 14% sexual. As mulheres separadas/divorciadas tinham 5,25 vezes mais chance (p<0,000) de sofrer violência do que aquelas em outro estado civil; e as mulheres chefes de família tinham 3,39 vezes mais chance (p<0,000) de sofrer violência do que aquelas em outras posições familiares.
Alcântara et al. (2016), num estudo com 438 profissionais de saúde em municípios pertencentes às cinco Regiões Brasileiras, entre 2013 e 2014, constataram que a violência doméstica é a que mais demanda os serviços onde atuam (77%). Sobre as violências contra as mulheres rurais mais identificadas pelos profissionais, a agressão física foi a mais predominante (59,2%), seguida da verbal (52,2%), moral ou psicológica (48,7%), sexual (34,5%) e negligência/abandono (34,2%).
Um estudo realizado no Vale do Submédio São Francisco, Pernambuco, com 90 trabalhadoras rurais, a fim de verificar a percepção delas acerca do fenômeno da violência, evidenciou que grande parte considera como violência os eventos que deixam marcas corporais. Ao serem perguntadas sobre “o que é violência?”, 42,2% mencionaram a violência física, 38,9% física e psicológica; 11,1% apenas psicológicas; e 7,8% outras manifestações. No entanto, ao serem perguntadas sobre eventos violentos, como castigos na infância, humilhações, xingamentos e ter relações sexuais contra a vontade, a frequência aumentou para 78,9% em algum momento da vida e 60% considerando apenas a vida adulta (Siqueira et al., 2017).
Em 2019, uma pesquisa feita em uma comunidade do interior da Bahia buscou identificar situações de violências vivenciadas por mulheres rurais. Foram entrevistadas 20 mulheres que eram da raça/cor negra, com idades entre 18 e 40 anos, com baixo nível de escolaridade e renda. Todas referiram ter sofrido algum tipo de violência em determinado momento da vida. As participantes relataram casos de abuso sexual, violência psicológica, violência infantil, violência doméstica e institucional, bem como dependência financeira do parceiro/terceiros. (Nascimento et al., 2019)
Dias et al. (2020), através dos dados secundários do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), entre 2008 e 2017, buscaram caracterizar a violência contra as mulheres moradoras de zona rural de Minas Gerais. O ano de 2015 teve o maior número de notificações de violência contra mulheres entre 25 e 39 anos, negras e menos escolarizadas. As agressões foram principalmente na face (31,5%), por parte do sexo masculino (70,41%) e praticadas na residência da vítima (81%). A violência tinha frequência recorrente (45%) e, em 39% dos casos, o agressor fazia uso de álcool. A maioria dos casos de violência contra moradoras rurais foi física.
Oliveira et al. (2021), em estudo transversal com 971 mulheres residentes em zona rural do RS, no ano de 2017, buscaram estimar a prevalência e fatores associados à violência psicológica praticada por parceiro íntimo contra as mulheres rurais. A prevalência de violência psicológica encontrada foi de 17,2% (IC95% 14,9-19,7). Aquelas com diagnóstico de depressão (RP=2,23 - IC95% 1,70-2,91) e que consumiram álcool na última semana (RP=1,53 - IC95% 1,07-2,17) tiveram maior probabilidade de referir violência psicológica; e as solteiras apresentaram maior probabilidade dessa forma de violência, comparadas às casadas (RP=1,86 - IC95% 1,32-2,63).
Bonfim, Costa e Lopes (2013), num texto reflexivo em que se analisam as situações de vulnerabilidade à violência e danos à saúde na perspectiva de mulheres em cenários rurais, constataram que as mulheres que vivem nesse meio apresentam maior vulnerabilidade social e violência, expressa pela desigualdade de acesso aos serviços públicos, ao mercado de trabalho e à posse da terra, que se reflete em desigualdades nas condições de saúde. Nesse sentido, Honnef et al. (2017), ao pesquisarem sobre as Representações Sociais da violência doméstica em cenários rurais, na perspectiva de mulheres e homens rurais, observaram que a violência doméstica nesses cenários estava ancorada nas relações desiguais entre mulheres e homens manifestadas na divisão do trabalho, na sobrecarga das mulheres; na violência psicológica, como o domínio masculino; e na perpetração da violência física. Para as autoras, nas relações familiares e geracionais, as crianças e idosos também estão suscetíveis a violência, especialmente pela figura masculina como detentora do poder.
Suave e Neves (2020) utilizaram Registros de Boletim de Ocorrência (BO) e entrevistas com lideranças femininas que atuavam com mulheres camponesas, em Rondônia, no ano de 2020. As autoras observaram que as múltiplas violências contra as mulheres rurais foram: ameaças, espancamentos, xingamentos, humilhações, desvalorização de seu trabalho, não acesso a financiamentos públicos, abusos sexuais e feminicídio. As ameaças e a violência física apareceram como as maiores violações, entre 2017 e 2019. Nos BO, 33% eram referentes às violações de gênero no âmbito da Lei Maria da Penha, principal política pública para o enfrentamento à violência de gênero, porém, as autoras enfatizaram que o acesso a esse tipo de serviço se dá apenas a partir do deslocamento até a cidade.
Através do método de história de vida, Franco e Tavares (2019), entrevistaram uma mulher idosa residente em comunidade rural do interior da Bahia, em 2018, ressaltam que a vida da entrevistada foi marcada por violência transgeracional, desencadeada por homens, quando investidos de poder, desde a infância até a vida adulta, atingindo-a ainda na velhice com o feminicídio de uma filha. A entrevistada relatou situações de violências múltiplas, como patrimonial, moral e psicológica, e que chegou a denunciar o agressor, que depois agrediu e assassinou sua filha. Outra pesquisa, que também teve participação especificamente de idosas (12) em áreas rurais, foi publicada em 2013, realizada em um município do RS, com a temática das Representações Sociais da violência contra mulheres rurais. Para essas senhoras, a representação social da violência, quando extrema (morte ou estupro), era distante de sua realidade e seria situação mais registrada na zona urbana. Por outro lado, sinalizaram que a violência estava presente nas relações de vida e trabalho, por exemplo, na privação de estudo quando crianças, na dependência financeira de seus companheiros, demostrando-se assim vulneráveis à dominação dos homens no contexto de vida e trabalho (Hirt et al., 2018).
Silva, Dimenstein e Dantas publicaram, em 2018, uma pesquisa sobre violência contra a mulher entre moradoras de um assentamento rural de reforma agrária, participaram nove mulheres assentadas no interior do Rio Grande do Norte. Entre os achados, as autoras enfatizaram a questão do cotidiano das mulheres nos assentamentos rurais, que era permeado pelo controle da liberdade de ir e vir. As mulheres sofriam violência física, psicológica, moral e sexual, e a busca por serviços de saúde, delegacias ou a assistência social realizava-se somente em situações agravadas.
Costa, Narvaz e Camargo (2018) entrevistaram duas mulheres rurais que sofreram violência de gênero, três moradores rurais e sete representantes de organizações relacionadas ao tema em um município do RS, em 2015, com o foco em estudar a violência de gênero no meio rural. As autoras encontraram muitos relatos de casos de violência de gênero ocorridos nas localidades rurais do município, sendo que a maioria não foi denunciada. As autoras destacam que as mulheres rurais que sofreram violência por parte de seus maridos precisaram de vários anos para romper com a relação abusiva e as marcas psicológicas perduravam mesmo depois da separação.
Duas publicações continham entrevistas com profissionais, gestores e/ou responsáveis rede de atendimento e profissionais de saúde da Unidade Saúde da Família (USF), (Broch et al. 2017; Bervian et al. 2019) de quatro municípios do estado do RS, entre 2013 e 2014 e outras duas, com gestores municipais, profissionais e trabalhadores da saúde de oito municípios do mesmo estado em 2010 (Costa; Lopes; Soares 2014; Costa; Lopes; Soares 2015), pesquisaram sobre a violência contra as mulheres rurais. Segundo as autoras, os participantes da pesquisa reconhecem a violência contra as mulheres rurais como destino de gênero que induz o consentimento, resignação, culpa e medo, bem como resulta em naturalização e banalização do fenômeno social da violência (Costa; Lopes; Soares, 2014). Os entrevistados mencionaram que a mulher rural é vista, no meio em que vive, sob a ótica da relação de serviço, subordinação e obediência. A presença de preconceitos e desigualdades de gênero estimula as práticas discriminatórias, justifica a violência doméstica e limita os direitos das mulheres (Costa; Lopes; Soares, 2015). Nas Representações Sociais sobre violência contra as mulheres rurais, os profissionais das áreas urbanas e rurais observaram uma conotação negativa do objeto e elementos comuns: “agressão” e “covardia” e entre apenas os da zona rural, a “submissão” das mulheres, “falta de diálogo” nos lares e a “revolta” pela impunidade (Bervian et al. 2019). Para Broch et al. (2017), os profissionais relacionavam a violência contra as mulheres rurais a aspectos culturais, geracionais e heterogeneidades de gênero, que naturalizam a violência. Apontam para os diferentes tipos de violência, como a física, psicológica, moral, sexual, dependência financeira, privação de liberdade e até as jornadas de trabalho intensas.
Recuperou-se um único artigo que analisou o feminicídio a partir dos BO de 2006 a 2010, assim como entrevistas em 2012 com os familiares das vítimas, em oito municípios da metade sul do RS. As análises reconstituíram o cenário da morte das mulheres e as categorizou em “circunstâncias do feminicídio - descrição das situações de morte”, que discorre sobre as histórias de homicídio das mulheres rurais e “violência de gênero - configuração do feminicídio”, que aborda as vulnerabilidades das mulheres vitimadas. O autor salientou que as mortes estavam associadas à violência decorrente de contextos de isolamento social, à condição de pobreza, às ausências de oportunidades de empregos e outros fatores coadjuvantes que se constituíram em vulnerabilidade das mulheres à situação de morte (Paz, 2016).
A violência invisibilizada e silenciada contra as mulheres em contextos rurais
Conforme o Quadro 2, pode-se observar uma síntese dos estudos sobre a violência invisibilizada e silenciada contra as mulheres em contextos rurais de acordo com o local da pesquisa, abordagem metodológica, população/fonte dos dados e os principais resultados.
Observa-se que o silenciamento é uma questão crucial na permanência da violência. Lorenzoni publicou, em 2007, os resultados de uma pesquisa com 170 mulheres rurais no RS, destacando que as camponesas sofriam múltiplas violências, como: física, moral, psicológica, doméstica, institucional, de gênero, sobrecarga de trabalho, condição social, uso de agrotóxicos, crimes na luta pela terra. A vergonha, dependência financeira, culpa, medo, questões culturais ou religiosas as impediam de romper o silêncio para saírem da condição de violência. Nesse sentido, a autora Franco (2018), em sua pesquisa com mulheres trabalhadoras rurais, realizada a partir de um grupo focal, no interior da Bahia, descreve como as mulheres se encontravam invisíveis como sujeito e objeto de suas histórias de vidas, bem como carregavam a submissão, opressão, negação de direitos e isolamento intelectual em sua trajetória assimétrica de gênero. A autora enfatizou que se faz necessário visibilizar a história das mulheres e dar voz às ‘silenciadas’, pois “suas evocações, livremente, redesenharam suas histórias de vida, reatualizadas numa fase de maturidade política, que lhes possibilita interpretar a opressão masculina vivida por anos nas trajetórias cotidianas” (Franco, 2018, p. 260).
Em um município tradicional de colônia alemã e católica de Santa Catarina, Schmitz (2013) entrevistou 17 camponesas, com o propósito de demonstrar os aspectos relevantes e que geram violência contra as mulheres; conhecer as diferentes formas de violência que as afetam; e entender o seu silêncio sobre a questão da violência. Aspectos como a exclusão das mulheres nas discussões e decisões públicas ou referente a propriedade familiar, bem como a submissão feminina foram levantados e entendidos como dificultadores na superação da violência de gênero. Das mulheres entrevistadas, 100% sofreram violência verbal, 25% física, 25% assédio, 25% censura e 18,7% ameaça de morte. Entre os fatores que mais inibiam ações contra o agressor estavam: o medo (80%), a insegurança financeira (70%), a vergonha (60%) e o medo de prejudicar os filhos. Observou-se que 70% das mulheres já sentiram, em algum momento, vergonha de ser do campo,ou seja, preconceitos contra o próprio trabalho na roça. A educação que determinava que elas deviam servir, depender do marido para tomar decisões e sofrer em silêncio acabou influenciando a busca de ajuda para o rompimento da violência.
Gehlen e Cherfem (2021), a partir de dados provenientes de registros do CREAS e Fórum da Vara Criminal em uma cidade do Paraná, apontaram que as mulheres rurais guardam silenciosamente a vivência da violência no campo, sozinhas e distantes. No serviço de apoio psicológico do CREAS, apenas 7,8% das mulheres com histórico de violência doméstica, entre 2016 e 2018, eram camponesas. Outro silenciamento indicado pelas autoras é a falta de diferenciação entre meio rural e urbano nos dados dos processos judiciais do Fórum, que consequentemente dificulta a compreensão da necessidade de realizar políticas públicas específicas para as mulheres camponesas.
Grossi et al., em uma publicação em 2014, a partir de entrevistas com mulheres rurais, coordenadoras de movimentos, da rede de segurança feminina e gestoras dos Centros de Referência para Mulheres de 30 municípios do RS, observaram que um fator relacionado à falta de denúncia da violência foi a própria naturalização dela. Apesar de existir divulgação e implementação de algumas políticas para coibir a violência, as mulheres que moram em contextos rurais ainda faziam parte de um grupo de vítimas que nem constava nas estatísticas nacionais. Para as autoras, isso pode ser pelo fato de a mulher rural estar inserida em um contexto de anonimato e invisibilidade, sem informação e sem acesso a redes de apoio, a violência contra elas, então, é invisível, pautada pela falta reconhecimento do trabalho feminino e transporte para acessar a rede de serviços. Além disso, as autoras enfatizaram que são necessárias ações que desafiem a cultura patriarcal e políticas públicas voltadas para a promoção da autonomia das mulheres.
Discussão
A partir dos resultados desta revisão, pode-se notar um avanço nas publicações, em especial nos anos 2017 a 2018, de pesquisas sobre a temática da violência contra as mulheres em contextos rurais. O número de artigos recuperados na busca (23), à primeira vista, pode parecer bastante, porém deve-se levar em conta que não houve restrição temporal nas buscas e que o mais antigo deles é do ano de 2007, ou seja, temos uma discussão sobre o tema apenas há 14 anos. Deve-se considerar que 11 artigos foram encontrados em busca manual por estarem publicados em revistas não indexadas às bases de dados mais frequentadas e utilizadas em buscas, o que diminui a visibilidade do assunto. Daron (2009) observa que o silenciamento e invisibilidade das mulheres rurais também se encontram nas reflexões sobre as correntes teóricas ou nas linhas de orientação teórico-metodológicas feministas, orientadoras dos estudos sobre a violência de gênero ou violência contra as mulheres. Para Carvalho (2019), a produção científica acerca da temática da violência contra as mulheres em contextos rurais é insuficiente e está restrita a lugares específicos.
Nesse sentido, ao se referir a diversidade de local onde foram realizadas as pesquisas, constata-se que o RS abarca uma grande quantidade de estudos. Vale mencionar que a pesquisadora Marta Cocco da Costa foi a autora principal ou coautora de seis artigos que estão nesta revisão. A maioria deles em razão da temática de sua tese de doutorado abordar a violência contra mulheres rurais, bem como por ser professora do curso de Enfermagem na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) do RS desde 2009 e ter inúmeros projetos voltados para a pesquisa em áreas rurais.
Com relação aos aspectos metodológicos, os estudos qualitativos formam a maioria. Percebe-se com isso uma preocupação por parte das autoras na busca da compreensão do fenômeno da violência, dado que o método qualitativo se aplica ao estudo da história, relações, representações, percepções, opiniões entre outros aspectos e são produtos das interpretações que os seres humanos fazem a respeito de como vivem, sentem e pensam (Minayo, 2014). Em menor número aparecem os estudos quantitativos, que têm, entre outros aspectos, uma importância na análise da magnitude dos fenômenos (Minayo, 2014). Pensando neste tipo de estudo na temática das violências contra as mulheres em contextos rurais, percebe-se diversos desafios para a pesquisa, como a dificuldade de acesso aos locais e grandes distâncias entre residências, falta de transporte público regular, segurança em razão do isolamento, dificuldade no georreferenciamento das moradia, inexistência ou instabilidade de sinal telefônico, entre outros, além do custo financeiro para a realização da pesquisa e no tempo de execução do estudo (Gonçalves et al., 2018).
Mesmo com dificuldades na realização de pesquisas quantitativas no meio rural, há maneiras de contorná-las e tornar a pesquisa possível. Medidas como reconhecer o seu ambiente de forma detalhada, traçar diversas estratégias para chegar aos domicílios, para complementar os dados e compreender melhor o contexto e o cotidiano dos moradores - por exemplo: elaboração de um diário de campo, observação participante e recursos fotográficos (Dantas et al., 2018; Gonçalves et al., 2018). Outro meio de trabalhar com dados quantitativos é utilizar os dados secundários disponíveis nos sistemas abertos, como de saúde e segurança, pois grande parte das informações apresenta a divisão entre a população rural e urbana (Kühn, 2017). Porém, nesse caso, é importante considerar que nem todos os registros de dados secundários têm a diferenciação de rural e urbano, como mencionaram as autoras Gehlen e Cherfem (2021), ao se referirem às denúncias feitas por mulheres no Fórum da Vara Criminal. Essa limitação obstaculiza o entendimento quanto a necessidade de realizar políticas públicas específicas para as mulheres que vivem em contextos rurais.
A multiplicidade de violências vividas pelas mulheres em contextos rurais chama a atenção, pois as próprias opressões que vivem as limitam na busca de ajuda e apoio. Para as autoras Silva, Coelho e Caponi (2007), a violência psicológica, em especial, é silenciosa e contribui para reduzir a autoestima da mulher, essa violência, em geral, acontece primeiro, depois se intensifica e ocorre em concomitância com a física e/ou sexual. Segundo Saffioti (2015), as violências não ocorrem de forma isolada e a psicológica e moral estão sempre presentes, em qualquer que seja a forma da agressão. Para a autora, a violência ocorre como expressão da dominação masculina advinda do patriarcado, em suas palavras “paira sobre a cabeça de todas as mulheres a ameaça de agressões masculinas, funcionando isto como mecanismo de sujeição aos homens, inscrito nas relações de gênero” (Saffioti, 2015, p. 75). Nessa mesma lógica patriarcal, as mulheres são sobrecarregadas de atividades, não têm tempo para si mesmas, para o lazer, participação política e em movimentos, bem como o próprio reconhecimento como sujeitas políticas de direitos. Por exemplo, os homens sempre tiveram a identidade socialmente reconhecida de “agricultores”, “homens do campo”, enquanto as mulheres, por estarem atreladas às atividades não remuneradas (serviço doméstico, lidas no entorno da casa e “ajuda” no trabalho com o parceiro), não são reconhecidas socialmente como agricultoras e companheiras na tomada de decisões ligadas a propriedade e a questões financeiras, o que acaba colaborando para que elas próprias não se reconheçam e se identifiquem como tal (Santana; Silva; Pessoa, 2020).
Outros aspectos que convém sublinhar a partir dos achados são questões relativas à discriminação quanto a posse, o trato e o manejo da terra, bem como a sobrecarga de trabalho, falta de autonomia e dependência financeira dos parceiros (Costa; Lopes; Soares, 2014). Segundo Brumer (2004), o trabalho feminino no contexto rural tem como base a divisão sexual entre as atividades domésticas e as de lavoura. Para a autora, o trabalho realizado pelas mulheres é caracterizado por atividades domésticas, como cuidar da educação dos filhos(as), limpeza da casa, cuidado com pequenos animais, hortas, pomares e o processamento de produtos agrícolas. Em conjunto com as atividades domésticas, trabalham também nas atividades agrícolas acompanhando os companheiros. Porém, elas não se envolvem com a gestão da propriedade, cabendo apenas aos homens a administração dos produtos provindos das vendas, bem como da compra de insumos, máquinas ou equipamentos para a propriedade, além de serviços de banco, como investimentos, depósitos etc.
Apenas um artigo tratava da questão do feminicídio de mulheres em contextos rurais. O número reduzido de artigos que abordam o tema pode ser atribuído ao fato de não utilizarmos o termo feminicídio como descritor (o termo atual que se encontra nos Descritores em Ciências da Saúde é homicídio, feminicídio está como termo alternativo), somado ao fato de serem realmente poucos. Segundo Leal et al. (2009), as mulheres rurais estão em situação de vulnerabilidade social juntamente com a falta de políticas públicas específicas para o contexto rural e a desigualdade de gênero, dessa maneira, as mulheres são afetadas em sua saúde e na capacidade de enfrentamento das violências, o que pode resultar em mortalidade e morbidade.
Outros pontos importantes trazido por Lorenzoni (2007), Schmitz (2013), Grossi et al. (2014), Franco (2018) e Gehlen e Cherfem (2021) são o silenciamento e invisibilidade das mulheres rurais. As autoras destacam que é preciso ter ações que desafiem a cultura patriarcal e machista, bem como ter políticas públicas voltadas para a promoção da autonomia das mulheres. Para Daron (2009), o silenciamento da mulher rural perpassa vários âmbitos. Conforme a autora, nas análises feministas, a violência contra as mulheres tem ocupado um lugar importante nas discussões, mas, quando se refere especificamente aos contextos rurais, ainda há silêncio que precisa ser rompido e a realidade mais bem conhecida se dá através de estatísticas, características, processos de subjetivação, potências de vida perdidas, cenários de saúde-doença, assim como mortes e lesões perpetradas. O silenciamento invisibiliza as mulheres rurais, enfraquecendo o enfrentamento a violência e a garantia de direitos sociais. Um exemplo disso, citado pela autora, é o trabalho feminino, pelo fato de que ser visto como uma “ajuda” ao marido/pai, embora ocorra na roça/lavoura da mesma maneira que o dos homens. Deve-se considerar também que o reconhecimento constitucional da ocupação de trabalhadora rural foi promulgado apenas em 1988, assim como o benefício previdenciário rural ocorreu em 1991 (Brasil, 1991) e a lei para o salário maternidade sancionada somente em 1994 (Brasil, 1994).
A violência contra as mulheres rurais precisa ser mais estudada, discutida e enfrentada. Algumas iniciativas, como discutir violência de gênero no espaço rural e organizar atividades de formação para os profissionais que integram a rede de atendimento para a mulher; disponibilizar carro adequado às condições das estradas rurais para os profissionais dos centros de referência da mulher realizarem atividades no espaço rural; criar delegacias da mulher e centros de acolhimento a elas; treinar profissionais para atendimento de forma ágil e discreta; garantir a continuidade do atendimento para mulheres, seus filhos e agressor; intensificar atividades de extensão voltadas ao tema em centros comunitários rurais e em escolas rurais, entre outras atividades (Costa; Narvaz e Camargo, 2018). Nesse sentido, Costa e Lopes (2012), que investigaram práticas de cuidado de profissionais de saúde às mulheres rurais vítimas de violência, enfatizam que questões como o vínculo criado pelos Agentes Comunitários de Saúde durante as visitas domiciliares colabora no desvelamento da violência vivida; atividades com grupos de saúde, grupos de geração de renda desenvolvidas em parceria com associações locais colaboram para a autonomia financeira das mulheres rurais, assim como para a autoestima e relações mais simétricas e de confiança entre usuárias e profissionais de saúde.
Pode-se apontar como limitação as buscas serem restritas a artigos científicos que não abrangeram a literatura cinzenta, como publicações de teses ou dissertações, bem como resumos expandidos publicados em congresso. Um aspecto que minimizou perdas de artigos foi a busca manual que, através dos conteúdos de teses e dissertações encontradas nas bases da Biblioteca Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD) e no Portal Brasileiro de Publicações Científicas em Acesso Aberto (OASIS), encontrou algumas publicações, bem como as referências dos artigos recuperados.
Considerações finais
Este artigo ofereceu um breve panorama sobre as violências contra as mulheres em contextos rurais. Observou-se que há multiplicidade desse tipo de violência, como a doméstica, de gênero, entre parceiros íntimos e institucional. Destacam-se, entre essas, a física, psicológica, sexual, moral, patrimonial, feminicídio, desvalorização de seu trabalho, dependência financeira, privação e controle de liberdade, jornadas de trabalho intensas, falta de acesso a financiamentos públicos, a serviços de saúde e segurança. Estas violências são potencializadas pelo próprio contexto rural, de gênero, aspectos culturais e geracionais que a naturalizam e a banalizam, através de elementos como subordinação, resignação, culpa, medo, vergonha.
As mulheres são sistematicamente silenciadas e invisibilizadas diante da opressão e violência que vivem. Além disso, o silenciamento também ocorre pela falta de pesquisas na área e até mesmo a não diferenciação entre rural e urbanos nos registros e dados, impossibilitando análises específicas e limitando a discussão e consequentemente a criação e fortalecimento de políticas públicas voltadas para as mulheres em contextos rurais, visando sua integridade, saúde, segurança e bem-estar.
Aquelas que vivem em contextos rurais convivem com desigualdades advindas da condição de gênero. A dependência econômica e a não participação das decisões de administração da propriedade; as longas distâncias até a cidade para acessar os serviços de saúde ou segurança, a locomoção para sair de casa por falta de transporte público no meio rural, por não ter carro ou não saber dirigir e depender do próprio agressor para se dirigir a cidade; a falta de capacitação dos profissionais de saúde para lidarem com questões relacionadas a violência; ou mesmo o isolamento geográfico que diminui a convivência com amigas, familiares ou parentes são alguns dos elementos constitutivos da permanência das mulheres nas situações de violência.
O enfrentamento da violência contra as mulheres que vivem em contextos rurais precisa perpassar pela conscientização dos profissionais de saúde e segurança para as receberem e as encaminharem para os profissionais corretos. Ter espaços comunitários onde as mulheres possam levar seus problemas, conversar em segurança, receber apoio e informação, bem como iniciativas que as auxiliem na busca de geração de renda, colaborando para sua autonomia financeira, investimento em políticas públicas relativas ao enfrentamento da violência contra as mulheres que vivem em contextos rurais para que possam exercer livremente sua cidadania e direitos sociais, sendo protagonistas de suas próprias vidas.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
23 Out 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
-
Recebido
04 Out 2022 -
Revisado
04 Out 2022 -
Aceito
13 Jan 2023