Open-access Contexto geográfico e HIV/SIDA: múltiplos olhares de saúde sobre as mulheres moçambicanas1

Resumo

O objetivo deste texto é compreender a vulnerabilidade de gênero experienciada pelas mulheres que vivem com HIV/Síndrome de Imunodeficiência Adquirida (SIDA) na Cidade de Maputo, Moçambique, através dos relatos de representantes e lideranças dos serviços de saúde que atuam diretamente sobre as questões dessas condições para o público feminino. Para isso, a pesquisa se embasou em metodologias qualitativas, visto que a produção dos dados foi respaldada por um roteiro semiestruturado que considera os seguintes temas: HIV/SIDA; gênero; cultura; e serviços de saúde. As interpretações são mediadas pela Análise do Discurso (AD), que possibilita a imersão nos recursos linguísticos por meio dos sentidos e conexões. Isso permite a interpretação da complexidade do contexto geográfico das mulheres que vivem com HIV/SIDA na região, evidenciando a necessidade de se empenhar mais ações voltadas às questões das doenças, uma vez que se faz premente estabelecer uma interpretação geográfica da saúde, sobretudo, no que diz respeito à realidade vivida pelas que experienciam dificuldades, opressões, estigmas e discriminações no cotidiano.

Palavras-chave: Contexto Geográfico; HIV/SIDA; Vulnerabilidade; Gênero; Mulheres

Abstract

The aim of this article is to understand the gender vulnerability experienced by women living with HIV/Acquired Immunodeficiency Syndrome (AIDS) in the city of Maputo, Mozambique, according to the reports of representatives and leaders of the health services who work directly on the issues of these conditions for the female public. To this end, the research was based on qualitative methodologies, since the production of the data was supported by a semi-structured script that considers the following themes: HIV/AIDS; gender; culture; and health services. The interpretations are mediated by Discourse Analysis (DA), which enables immersion in linguistic resources through meanings and connections. This allows us to interpret the complexity of the geographical context of women living with HIV/AIDS in the region, highlighting the need to promote actions toward the issues surrounding the disease, since it is urgent to establish a geographical interpretation of health, especially considering the reality lived by women who experience difficulties, oppression, stigma, and discrimination on a daily basis.

Keywords: Geographical Context; HIV/AIDS; Vulnerability; Gender; Women

Introdução

Atualmente, o HIV/SIDA (ou HIV/AIDS) é uma das doenças que mais tem afetado a população mundial, acumulando o número aproximado de 37,9 milhões de pessoas vivendo com ela no mundo, fato que evidencia tal situação como uma problemática que transpassa diferentes escalas e atinge diversos segmentos que vão desde o local ao global (UNAIDS, 2019).

Em algumas localidades, a situação do HIV/SIDA se mostra muito agravada, devido à rápida difusão da doença e a falta de subsídios para contenção, prevenção e tratamento, o que complexifica as diferentes realidades. Assim, cabe compreender que sua disseminação está relacionada às condições de espaço-tempo em que se realiza como fenômeno, dado que os elementos sociais, econômicos, políticos e culturais configuram a produção do espaço geográfico que caracteriza a multiplicidade da epidemia (Bastos; Barcellos, 1995).

Nesse sentido, convém reforçar que a magnitude e o desenvolvimento do problema do HIV faz com que as suas manifestações patogênicas adquiram o caráter de pandemia. Esse é o caso de grande parte do continente africano, em específico a África Subsaariana, que continua a apresentar os mais elevados níveis de HIV/SIDA do mundo (UNAIDS, 2019). Isso se deve ao conjunto de fatores que envolvem a complexidade encontrada nas inúmeras faces da epidemia, visto que a manifestação da doença se ajusta ao contexto geográfico (Pedroso, 2017).

Considerando os elementos anteriormente mencionados, direcionamos esforços para nos aproximar da realidade vivida acerca do HIV/SIDA em Moçambique, dado que esse é um dos países que maior expressa necessidade de interpretação devido às suas condições no âmbito mundial (Allison; Harpham, 2002). À vista disso, a gravidade da situação do HIV/SIDA em Moçambique se torna uma das mais agudas, pois o país possui uma realidade muito delicada - sendo a oitava prevalência nacional mais alta do mundo -, ao ponto que o desenvolvimento social e econômico fica ameaçado pois mais de um quarto dos adultos apresentam-se infectados pelo vírus do HIV ou acometidos pela SIDA em algumas regiões (Cau, 2014).

Muitas dessas complexidades presentes na realidade moçambicana dizem respeito às mulheres. É necessário apresentar as diferentes relações que se configuram dentro desse contexto sob a perspectiva de gênero, pois a relação dos sujeitos e das suas vivências possuem ligações estritas com o espaço em que vivem e produzem (Alves; Pedroso; Guimarães, 2019).

Destacados os principais aspectos deste estudo, direcionamos esforços na interpretação da realidade experienciada pelas mulheres que vivem com HIV/SIDA na Cidade de Maputo, Moçambique, tendo como objetivo compreender qualificadamente a vulnerabilidade de gênero vivenciada por elas através dos relatos de representantes e lideranças dos serviços de saúde que atuam diretamente sobre as questões do HIV/SIDA para o público feminino. Essa proposta adentra uma seara complexa, que envolve inúmeros, distintos e importantes elementos atinentes às realidades das mulheres maputenses-moçambicanas devido a interlocução entre aspectos sociais, econômicos, políticos, educacionais, de gênero e culturais que situam essas mulheres em posições, majoritariamente, desfavoráveis (Estavela; Seidl, 2015). Exemplo disso são algumas tradições moçambicanas que organizam as linhagens familiares em patrilinear (Sul do país) e matrilinear (Centro e Norte do país). Segundo Maúngue (2015, p. 56) esses sistemas

ditam as formas como as mulheres e homens são socializados e, consequentemente, as posições que cada um ocupa na sociedade. São também aspectos culturais relevantes e parte da tradição o lobolo, a poligamia, casamentos prematuros, ritos de iniciação e rituais de purificação das viúvas pelo país todo. (2015, p. 56)

Ao considerarmos a realidade da Cidade de Maputo, capital localizada no extremo sul do país, compreendemos que a organização patrilinear é preponderante, bem como as sistematizações e as reflexões decorrentes dessa estrutura (Manuel, 2011). Tais relações, de forma conjunta, criam assimetrias como a submissão das mulheres aos homens, a instabilidade de segurança na comunidade a qual pertencem e situações de pobreza e prostituição (Estavela; Seidl, 2015) que agudizam a vida das mulheres, tornando-as vulneráveis à infecção pelo HIV/SIDA.

Destarte, tal problemática configura um processo geográfico dinâmico “que constrói e é construído pelas experiências e vivências cotidianas espaciais a partir de representações, [e que estas mesmas] são fundadas em uma ordem sócio-espacial específica” (Silva, 2003, p. 42, acréscimo nosso) de espaço-tempo, conteúdo e agência, o que para nós constitui o contexto geográfico enquanto um raciocínio interpretativo calcado no real (Pedroso, 2022).

Frente a isso, se faz premente evidenciar que o conceito de contexto geográfico contribui de forma significativa, uma vez que versa sobre a configuração de “[…] um conjunto de relações dialógicas, relacionais e dinâmicas, que tomam os sujeitos como princípio de ação e significação e, portanto, são passíveis de transformações que o configuram ao mesmo tempo que os conectam ao particular e ao universal” (Pedroso, 2022, p. 118). Esse aparato conceitual nos possibilita elucidar a complexidade de fenômenos reais, destacando os contornos que fundam a conformação de realidades específicas de espaço-tempo, conteúdo e agência que, majoritariamente, apresentam movimentos flexíveis de afetamentos, (des) continuidades e complementariedades interseccionais, principalmente no que tange as questões de gênero, saúde e doença (Guimarães et. al., 2023).

Por esses motivos, priorizamos investigar a realidade de Moçambique pelo contexto geográfico das mulheres que vivem na Cidade de Maputo, tornando possível averiguar as condições, a cultura, as políticas e as ações frente à epidemia do HIV/SIDA.

Ao partirmos desses pressupostos, passamos a interpretar as questões de gênero de modo relacional e temporalmente e espacialmente situado, enquanto uma construção social que parte dos elementos culturais, políticos, educacionais e econômicos específicos que, por sua vez, criam inúmeras possibilidades nas diferentes formas dos sujeitos experienciarem suas vidas, tratando-se dos respectivos contextos geográficos. São por esses caminhos que buscamos interpretar a realidade das mulheres maputenses-moçambicanas, ao ponto que outras conjunturas que se fazem associadas, que partam da realidade das mesmas e que considerem seus modos espaciais de existência em relação ao processo de saúde e doença sejam levadas em conta (Guimarães, 2019).

Materiais e métodos

A realidade do HIV/SIDA encontrada em Moçambique se torna cada vez mais expressiva para as mulheres (Estavela; Seidl, 2015), o que aguçou em nós a necessidade de aprofundamento teórico para a sua compreensão, altamente complexa. Isso fez com que buscássemos entender o contexto geográfico do HIV/SIDA por caminhos trilhados como passos metodológicos. Nesse sentido, foi necessário avançarmos para além das questões estatísticas, sendo necessário compreender os sujeitos que conjecturam esses elementos e, mais do que isso, buscar entender as configurações estruturantes dos contextos geográficos que são produzidos relacionalmente por essas pessoas (Guimarães, 2015; Pedroso, 2022; Guimarães et. al., 2023).

Ao partirmos dessas premissas, reforçamos a ideia de que é importante adentrar no contexto geográfico, de modo que haja a interação (sobretudo) com as pessoas e com os serviços de saúde, levando em conta as estruturas que dão base para a formação da realidade investigada. Foi necessário estabelecer um raciocínio pautado no agenciamento desses elementos e, partindo desse pressuposto, nos debruçamos sobre as iniquidades presentes na interação HIV/SIDA e gênero com enfoque na luta das mulheres maputenses-moçambicanas contra as estruturas condicionantes (Maúngue, 2020).

Este trabalho tomou como base a abordagem qualitativa de pesquisa que aconteceu a partir da triangulação metodológica (Tuzzo; Braga, 2016), vislumbrando a interpretação da realidade a partir das vivências e das experiências de representantes e lideranças dos serviços de saúde que se dedicam às questões do HIV/SIDA em mulheres na Cidade de Maputo. Para isso, foi necessário aplicar esforços na implementação de estratégias de investigações prévias à aproximação, com o reconhecimento, a testagem e o estabelecimento de contatos, sendo ações importantes para uma construção qualificada dos processos empíricos (Minayo, 1994).

Como? Quem? e Por que?: passos metodológicos e interação com o contexto

As ações empíricas foram materializadas por meio de inúmeros trabalhos de campo, de modo que tal processo permitiu de forma contínua o estabelecimento de reflexões ativas entre o teórico e o prático (Zusman, 2011). A respeito dos passos metodológicos, é preciso evidenciar as dificuldades iniciais de aproximação e estabelecimento de vínculos com as representantes e lideranças dos serviços de saúde. Tais dificuldades decorreram de uma excessiva burocratização documental, desencontros de agenda e certo estranhamento pelo fato de sermos pesquisadores do campo das ciências humanas interessados em temáticas atinentes ao HIV/SIDA, o que a priori foi interpretado como algo incomum.

Nesse âmago, cabe salientar que as ações exigidas foram de caráter formal e gradativo, levando em consideração que algumas instituições requereram a submissão do projeto de pesquisa, de cartas de apresentação e de ofícios institucionais tendo por finalidade a análise e aprovação para início das atividades. A partir dessas prerrogativas metodológicas, desenvolvemos por um período de quatro meses e meio as atividades de campo, permeadas por leituras, visitas técnicas, encontros de aproximação, participação de eventos e reuniões, bem como a realização das entrevistas.

As primeiras ações em campo estiveram lastreadas pela aproximação/interação, com os contatos iniciais se dando através de pesquisadoras(es) que já detinham conhecimento direto sobre a realidade por nós investigada. Essa relação criou estratégias e direcionamentos que garantiram a interlocução com pessoas-chave diretamente conectadas à proposta central. Assim, conseguimos adentrar uma rede de sociabilidade que garantiu indicações e apresentações de pessoas, sendo essas especialistas, funcionárias públicas de saúde e ativistas que lidam diariamente com as questões do HIV/SIDA em mulheres.

Durante a realização dessas etapas, fomos prontamente recebidos por todas as participantes que aceitaram compor a pesquisa de imediato, não exitando em oportunizar diálogos ricos e profundos sobre a realidade das mulheres que vivem com HIV/SIDA na Cidade de Maputo. Inicialmente, as ações supracitadas nos permitiram construir importantes vínculos de caráter contínuo, viabilizando a realização de entrevistas com as representantes dos serviços de saúde e ativistas com preocupação em estabelecer reflexões a respeito dos contextos geográficos de mulheres que vivem com HIV/SIDA na Cidade de Maputo, Moçambique. Nesse âmbito, vale evidenciar que efetuamos três encontros com cada participante da pesquisa, a saber: (1) o primeiro dedicado à apresentação/aproximação; (2) o segundo voltado à realização das entrevistas; e (3) o terceiro empenhado na devolutiva das análises realizadas enquanto resultados.

Para tanto, foi construído um roteiro contendo questões estruturadas por campos temáticos que nos serviram enquanto eixos norteadores das narrativas, uma vez que estiveram dedicados a temas estruturais como: o HIV/SIDA; gênero; cultura; e serviços de saúde. Esse processo foi gestado pelos pesquisadores tendo em vista a construção das entrevistas por meio de perguntas que compunham um roteiro semiestruturado (Manzini, 1991). Sob essas proposições, fizemos uso de recursos tecnológicos de gravação (áudio) para registar os relatos produzidos em campo, e esses foram transcritos buscando captar fielmente os detalhes presentes na entrevista. Também fizemos uso do diário de campo para o registro de dados não-graváveis (expressões, sentimentos, movimentos etc.).

Por meio dessa abordagem, salienta-se que não propomos uma análise amostral probabilística e/ou estatística prévia, pois compreendemos que o universo de pesquisa investigado, bem como as estratégias utilizadas, requeriam outros caminhos metodológicos. Frente a isso, priorizamos a realização das entrevistas pela acessibilidade e conveniência dos envolvidos, pois é por essa via que “o pesquisador seleciona os elementos a que tem acesso e admite que possam representar o universo” (Pessôa; Ramires, 2013, p. 122) investigativo, tanto o que versa sobre as potencialidades quanto aquilo que é atinente às limitações da pesquisa.

A partir de tais embasamentos teórico-metodológicos, garantimos a participação de seis entrevistadas que lidam diretamente com as questões do HIV/SIDA em suas ações de trabalho, atuação, pesquisa e militância, destacando o ponto de que as participantes apresentam contato direto com as questões atinentes a mulheres vivendo com HIV/SIDA residente na Cidade de Maputo, Moçambique, como pode ser observado no quadro 1, que apresenta o perfil das entrevistadas.

Quadro 1
Perfil das entrevistadas

Como acima mencionado, as entrevistas foram regidas tendo como instrumento operacional-metodológico os roteiros semiestruturados (Manzini, 1991), o que garantiu a articulação de inúmeras facetas acerca da vida das mulheres que vivem com HIV/SIDA na região abordada. Tais elementos possibilitaram um rico e plural diálogo com diferentes frentes de ação relacionadas ao combate dessa epidemia e suas respectivas relações de gênero, o que proporcionou trocas profundas por meio das narrativas construídas.

Cabe mencionar que as entrevistas foram realizadas a partir da promoção de constantes encontros com cada participante no período de setembro a dezembro de 2019. Ainda nesse âmago, se faz necessário salientar que as entrevistas individuais, em média, tiveram a duração aproximada de uma hora, o que rendeu intensos esforços no realizar das transcrições, já que consideramos esse processo metodológico como uma pré-análise dos dados produzidos.

Enfim, os processos acima mencionados nos permitiram centralizar esforços nas questões metodológicas atinentes à sistematização e à organização dos dados qualitativos. Para a realização dessa tarefa, foi necessário o aprofundamento na Análise do Discurso (AD), o que possibilitou imersão nos recursos linguísticos e nas distintas possibilidades de investigação dos materiais (Maingueneau, 1997). Essa estratégia metodológica visou a organicidade das falas, - enunciados e evocações - e a interpretação dos sentidos e conexões que são estabelecidos nos discursos dos sujeitos.

À vista disso, a AD configurou para esse trabalho a elaboração de um corpus discursivo que foi entendido por nós enquanto um arquivo que aglutina informações articuladas dialogicamente a outros elementos, outros discursos e diferentes sujeitos enunciadores em tempos distintos. Isso nos exigiu, enquanto pesquisadores, o protagonismo em assumir as interpretações construídas a partir dos textos, visto que tal exercício “só pode ser atingido por meio de movimentos hermenêuticos em espiral, que em cada nova retomada do fenômeno possibilitada uma compreensão mais radical e aprofundada” (Moraes, 2003, p. 201).

Por esse caminho, tivemos como pretensão central elucidar as consequências que a camada feminina da população moçambicana residente da Cidade de Maputo vem sofrendo com o acometimento dessa doença, visto que se mostra cada vez mais agressiva (Maúngue, 2020). Assim, é necessário levar em consideração as vivências das mulheres a partir da ótica dos serviços de saúde, uma vez que essa dimensão se faz de suma importância na composição do contexto geográfico das mulheres moçambicanas que vivem com HIV/SIDA pois compõe a esfera política de enfrentamento da pandemia.

Perspectivas e discursos acerca das mulheres vivendo com HIV/SIDA na Cidade de Maputo, Moçambique

Para iniciarmos esta reflexão, é necessário compreender que, majoritariamente, o perfil dos casos notificados de SIDA em mulheres está diretamente atrelado à fatores que corroboram à situação de vulnerabilidade, entendido que “a infecção pelo HIV e o adoecimento é resultado de um conjunto de características dos contextos político, econômico e socioculturais que ampliam ou diluem o risco individual” (Buchalla; Paiva, 2002, p. 118).

Isso leva em conta uma série de elementos que atravessam a vida dos sujeitos de diferentes formas. Um exemplo é a realidade experienciada por grande parte das mulheres moçambicanas, analisando que as notificadas com o HIV/SIDA apresentam menor grau de escolaridade que os homens sob as mesmas condições, relações de dependência econômica, responsabilização compulsória pela prole e seus cuidados etc. Esses elementos condicionam as mulheres a situações menos privilegiadas, tornando-as mais vulneráveis à infecção (Andrade; Iriart, 2015).

Nesse sentido, cabe destacar que o diálogo construído - quando pautado o recorte analítico da Cidade de Maputo - manteve lastro com as escalas geográficas que sustentam as respectivas análises, com as constituições dos discursos ora se dedicando à realidade geral de Moçambique, ora se aprofundando no contexto específico da capital, como podemos observar ao realizarmos a primeira indagação acerca da situação do HIV/SIDA no país.

Ao pensarmos tais movimentos como processos relacionais, as colocações da Entrevistada E se fazem pertinentes, visto que apresenta não só o contexto de Moçambique em relação aos outros países africanos, mas também evidencia a realidade vivida na Cidade de Maputo, o que possibilita uma interpretação geográfica entre o local- global (Massey, 2008) acerca do fenômeno do HIV/SIDA.

Em Moçambique no geral a situação do HIV tem estado a aumentar, apesar de que algumas províncias têm prevalências altas, outras têm prevalências baixas, mas concretamente para nós na Cidade de Maputo […] nossa prevalência é alta, porque é a grande cidade, onde todo mundo vem para aqui. E também tem a nossa vizinhança com outro país, com a África do Sul, e isso faz com que a nossa província tenha índices elevados de HIV/SIDA. (Entrevistada E, 2019)

As argumentações da Entrevistada E caracterizam as relações, fluxos e escalas que permeiam a complexidade do HIV/SIDA em Moçambique, mormente na Cidade de Maputo, uma vez que não despreza a realidade experienciada pela população moçambicana. Assim, tal complexidade é intrínseca do contexto geográfico moçambicano, o que acaba por conferir características que transitam entre o geral e o específico, dado que a realidade de Moçambique, bem como a da Cidade de Maputo, são expressivas frente aos registros e notificações dos casos ao longo dos anos.

Nesse sentido, também é preciso considerar outras problemáticas que fazem parte dessa conjuntura, como os valores sociais e culturais e os de gênero e sexualidade, assim como as questões da vulnerabilidade e os diversos estigmas e preconceitos atinentes ao HIV/SIDA. A tendência da feminização do HIV/SIDA “[…] é encontrada em toda a África subsaariana, onde as mulheres representam 58% do total de pessoas vivendo com HIV, e também em todas as regiões de Moçambique, tendo como via de transmissão predominante as relações heterossexuais” (Andrade; Iriart, 2015, p. 566).

Relações de gênero e seus contextos geográficos

É extremamente relevante refletir do ponto de vista espacial sobre a vulnerabilidade e as questões de gênero vivenciadas pelas mulheres moçambicanas em relação ao HIV/SIDA (Estavela; Seidl, 2015). Assim, é preciso focalizar as relações existentes entre a conceituação de vulnerabilidade, gênero e HIV/SIDA, já que se atravessam e se encontram no fenômeno da feminização da doença (Silva et. al, 2007; Passador, 2010), como nos explica as entrevistadas X e J:

Eu te digo que não é diferente dos outros países da África Austral, salvo que aqui a situação em termos da posição da mulher na sociedade, e na construção das relações sociais entre homens e mulheres, as relações de gênero é um bocadinho mais acentuado […] Acentuado em termos da discriminação e opressão que se faz ao entorno das mulheres. Por isso que tu tens uma feminização do SIDA, que em outras partes do mundo não estão […] (Entrevistada X, 2019)

A situação […] falando no contexto da mulher é uma situação que ainda precisa de muita luta, principalmente para nós mulheres que trabalhamos na comunidade. Então, ainda é um grande desafio porquê […] o HIV […] já vivemos há muitos anos esta epidemia, temos acima de vinte anos essa epidemia aqui em Moçambique, mas é como se fosse uma coisa nova. Então, existem ainda muitos desafios que é para se estancar, que é para manter as pessoas no tratamento, para que elas próprias aceitem esta condição de serem seropositivas. (Entrevistada J, 2019)

As contribuições das entrevistadas X e J trazem para a discussão a questão de gênero - com enfoque nas mulheres - para o debate da epidemia na região analisada, pois a feminização do HIV/SIDA se faz um grave problema (Maúngue, 2020). A partir das falas, é possível depreender que as reverberações acerca da epidemia mantêm estritos laços com as formas de estruturação da sociedade moçambicana, que, de modo geral, reproduz a concepção social-patriarcal e historicamente considera a população feminina subordinada e inferior aos homens, reforçando a ideia de dominante e dominado.

Essa construção parte das prerrogativas do poder, ou mesmo do exercício de poder entre os sujeitos (Foucault, 1979). Isso configura uma estruturação assimétrica em que os envolvidos passam a viver sob desigualdade, como nos explica Andrade e Iriart (2015) ao dizer que

as desigualdades de gênero e de poder entre os sexos fazem com que recaia sobre as mulheres, submetidas a julgamento moral, a culpa pela infecção do HIV. O desconhecimento de seus direitos leva a que muitas se vejam despossuídas de seus bens após a morte de seus maridos ou abandonadas por eles quando seu diagnóstico é revelado. (Andrade; Iriart, 2015, p. 572)

Assim sendo, a relação de dominação mantém laços inerentes à construção social a partir dos gêneros, sendo essa uma concepção que parte das diferenças entre os sexos e faz com que alguns estejam mais vulneráveis a situações do que outros. Um exemplo disso é a infecção do HIV/SIDA em mulheres moçambicanas. Essas lógicas estruturantes condicionam o processo de feminização do HIV/SIDA, estando esse concatenado à vulnerabilidade de gênero, como nos relata a Entrevistada A:

Apresenta um tipo de relação porque nós estamos a ver os níveis de infecção que tem se rebatido sobre as mulheres. Trata-se da vulnerabilidade ligada as mulheres, e não somente pela sua estrutura, pela sua fisiologia, mas pela vulnerabilidade em termos de a maioria não ter ido à escola, pelo seu nível de literacia ser muito inferior e algumas não serem alfabetizadas […]. Você vê também os casamentos que são prematuros, ou seja, elas têm que estar dotadas de conhecimento, sendo essa uma lacuna que nós encontramos, apesar de que na generalidade o moçambicano não tem muita informação sobre o HIV/SIDA, e isso se incide ainda mais nas mulheres porque nós temos uma fragilidade muito grande. (Entrevistada A, 2019)

As contribuições da Entrevistada A perpassam a esfera do social-coletivo e adentram a esfera da especificidade das mulheres, de modo que elenca pontos estruturantes que elucidam a vulnerabilização delas em relação ao HIV/SIDA, como a desigualdade educacional (Maúngue, 2020) e a dependência econômica e marital. Tais arranjos são resultantes da forma organizacional e cultural da sociedade moçambicana que, de modo geral, reforça a submissão da mulher (Estavela; Seidl, 2015) tornando mais complexa e dificultosa sua capacidade de resposta em situações de vulnerabilidade, como destacado nas falas das entrevistadas J e O:

Bem, certas mulheres ainda conseguem dialogar, mas as outras que em maioria estão nas zonas rurais acabam sendo dependentes, mesmo aqui na Cidade de Maputo […] é uma dependência financeira, não é?! Isso é o que faz com que as mulheres acabem aceitando a culpa, sofrendo humilhações porque não querem perder o marido, e também por causa do sustento dos filhos. (Entrevistada J, 2019)

Em relação a mulher é aquilo que eu havia falado, é um desafio para que essa mulher consiga de fato trazer o parceiro ou consiga negociar o uso do preservativo, tanto que mesmo para poderem negociar a vida sexual em casa é muito difícil porque aquilo que é a educação, o que é oferecido como educação a nível da família quando a mulher casa […]. Se nós conseguirmos esse exercício em que a mulher seja capaz de poder por si decidir já seria um passo enorme, porque ela vai poder negociar o preservativo. Se você não consegue negociar aquilo que é seu direito vai conseguir negociar preservativo? São poucas, são poucas as mulheres que conseguem negociar o preservativo com seu esposo em casa. (Entrevistada O, 2019)

As falas das entrevistadas J e O trazem elementos que são pertinentes para a discussão da realidade vivida pelas mulheres moçambicanas. É a partir desses aspectos que o contexto geográfico se torna preponderante na análise, uma vez que a forma que se debruça sobre as diferentes interfaces que compõem a realidade vivida pelos sujeitos sociais permite desempenhar uma interpretação situada e corporificada acerca do fenômeno experienciado (Pedroso, 2022).

Tal conjuntura passa a ter materialidade quando nos dedicamos a pensar a concepção de gênero e seus rebatimentos na sociedade moçambicana, sobretudo ao que se refere ao HIV/SIDA e seus aspectos culturais. Pensar essas configurações nos ajuda não somente a compreender o contexto geográfico vivido pelas mulheres, mas também a refletir ações que combatam o processo de vulnerabilização das mesmas, tendo uma vez entendido que esses fatores se perpetuam pela desigualdade social e de gênero que mantém conexões com as dimensões políticas, econômicas e culturais, corroborando com a manutenção crescente da feminização do HIV/SIDA (Cruz e Silva et. al, 2007). Desse modo, as colocações de Passador e Thomaz (2006) nos põem a refletir sobre a acurácia desta realidade evocada nas falas, pois questiona

a rápida associação que se faz entre “relações de gênero” ou “masculinidades” (dentro de um modelo normativo ocidental) e a expansão da epidemia [que] constitui, mais do que nunca, o resultado de uma visão etnocêntrica, preconceituosa e essencialista com relação a essas esferas da vida social moçambicana e, em menor medida, uma forma de se associar com a diminuta elite urbana existente no país e que, em grande medida, também desconhece o universo “rural” ou aquele que povoa as periferias das cidades moçambicanas. (Passador; Thomaz, 2006, p. 272-273)

Logo, entendemos que é imprescindível a compreensão do contexto geográfico produzido socialmente para entender os fenômenos espaciais que ocorrem por decorrência dos sujeitos. Isso se justifica porque essas relações são oriundas de um sistema opressor que, por vezes, condiciona as capacidades de respostas e ações das mulheres. Essa prerrogativa é destacada na fala das entrevistadas A e E, que alertam para questões que não necessariamente partem das mulheres, mas que estão diretamente concatenadas as condições experienciadas na especificidade do espaço-tempo, conteúdo e agência do contexto geográfico moçambicano, principalmente quando abordado o processo saúde-doença relacionado às questões de gênero e seus respectivos impactos, como vemos a seguir:

Para o homem perder algum tempo dentro da unidade sanitária para ele é perder alguma coisa, aquilo que é o sustento que tem que trazer, já que é ele que tem a responsabilidade sobre a sua família. O local de trabalho, seu trabalho, seja formal ou informal, tem que ter condições de informar sobre os serviços de HIV/SIDA para os homens. (Entrevistada A, 2019)

Essa parte sim, porque o homem é o tal provedor, principalmente em uma família que o homem trabalha, mesmo tendo o HIV, a mulher está aí para cuidar do seu marido, mas se é a mulher em um casal serodiscordante […] quando foi a mulher que foi testada e saiu positivo e o homem naquele momento é negativo […] cria muito impacto sim. (Entrevistada E, 2019)

Os relatos das entrevistadas A e E apresentam especificidades que contribuem para a caracterização do contexto geográfico através do plano vivido, no qual as relações acontecem no cotidiano. Para além desses elementos, é possível observar nas falas o peso e a importância do “papel do homem” na sociedade moçambicana, principalmente na perspectiva patrilinear, e como isso se torna um elemento estruturante na construção das masculinidades que acabam por impactar no processo de saúde-doença de homens e mulheres quando pautadas as questões do HIV/SIDA.

Esse conjunto acaba por ser resultado da estruturação social do contexto moçambicano, uma vez que o homem é tido como provedor econômico de todas as necessidades. Essas relações distanciam os homens dos serviços e cuidados em saúde, sobretudo os que são correlatos ao HIV/SIDA, fazendo com que recaia sobre as mulheres a responsabilidade desses cuidados, majoritariamente de si e das(os) filhas(os) (Cruz e Silva et. al, 2007).

HIV/SIDA: aspectos sociais e culturais nos contextos geográficos

A presente conjuntura abordada traz alguns elementos sociais e culturais que são pertencentes a realidade de Moçambique de modo geral, uma vez que há nuances e particularidades que podem ser acentuadas ou abrandadas conforme as características do contexto geográfico produzido.

As falas anteriores expressam o forte teor que a cultura desempenha nas relações de gênero em Moçambique, dado que acaba por ser um pilar estruturante para a compreensão do contexto geográfico das mulheres que vivem com HIV/SIDA na Cidade de Maputo. Ao considerarmos tais elementos na referida realidade, incorporamos a interpretação da cultura e as decorrentes influências sob o ponto de vista da saúde das mulheres, uma vez que a cultura se agrega a outros elementos que favorecem a epidemia do HIV/SIDA (Passador; Thomaz, 2006).

Nesse sentido, é preciso destacar que as contribuições acerca da cultura, do gênero e do HIV/SIDA são interconectadas, porque perpassaram a reflexão desempenhada pelas entrevistadas e permitem estabelecer diferentes conexões e interpretações sobre esses quesitos na realidade moçambicana, sobretudo o da Cidade de Maputo, de modo que podemos observar esses pontos quando colocada a questão sobre a construção social e cultural de Moçambique em relação ao HIV/SIDA.

Absolutamente, absolutamente, absolutamente porque o controle do corpo da mulher aqui em termos culturais é 500% […] é horrível porque o próprio rito de iniciação tem como objetivo fundamental estabelecer esse controle sobre a sexualidade, sobre a reprodução e força de trabalho das mulheres por parte dos homens […] esse é o objetivo fundamental, ou seja, esses ritos de iniciação são de alguma maneira normativos para a identidade masculina e feminina, em que esta identidade feminina deva ser culturalmente, porque assim é, e precisa- se manter oprimida por parte da identidade masculina. (Entrevistada X, 2019)

No referido trecho, a Entrevistada X relata sobre a realidade vivida pelas mulheres moçambicanas, de forma que enfatiza a inter-relação dos sujeitos por meio dos diferentes poderes que arregimentam a construção de gênero (Foucault, 1979) e salienta que eles ocorrem desde muito cedo, nos ritos de iniciação sexual que “doutrinam” as mulheres por meio do controle estabelecido pela valoração do que é ser homem e mulher na sociedade moçambicana.

Além dessa construção basal, são destacados outros elementos e práticas que se fazem presentes no contexto geográfico de Moçambique (Lobolo, Pitakufa, Kudjinga), como podemos observar nas falas das entrevistadas E e O, que retratam, sobretudo, os rituais de purificação.

Em alguns aspectos culturais sim, porque têm os casamentos prematuros, início precoce das relações sexuais, algumas tradições que nós temos como as cerimônias de purificação, estes todos proporcionam e facilitam o HIV. É comum você ver uma viúva que perdeu o marido por causa do HIV, mas ela tem de fazer a cerimônia de purificação […] e na cerimônia de purificação não é aceito o uso de preservativo, então a pessoa que vai fazer a cerimônia de purificação esta mais exposto a contrair o HIV. (Entrevistada E, 2019)

Em algum momento estabelece sim, digo isso em relação a alguns rituais, quando alguém perde o marido e depois tem que se ter um sucessor para fazer o ritual de purificação da viúva, em que tem que ter um contato sexual com o familiar mais próximo do falecido. A pessoa às vezes nem sabe, e quem vai se infectar pode ser até ele que vem para purificar, porque às vezes o senhor morreu de HIV e a mulher já esteja infectada. E essa purificação não se pode usar preservativo […]. E, como é que fica? Este que vai fazer a purificação sabe qual foi a doença que vitimou o outro?! (Entrevista O, 2019)

As contribuições das Entrevistadas E e O estão direcionadas sobre algumas práticas que se fazem presentes na cultura moçambicana que acontecem no Centro e Sul do país, nas quais, segundo a tradição, a mulher viúva deve aceitar ter relações sexuais sem proteção com um familiar do falecido marido (Pitakufa/Kudjinga). “Trata-se de uma prática tradicional moçambicana: quando o marido morre, a viúva deve fazer sexo não protegido com o cunhado para purificá-la. Se o ato for recusado pela viúva, ela pode perder os bens da família, retirados pelos familiares do falecido” (Estavela; Seidl, 2015, p. 571).

Algumas dessas práticas (como os rituais de purificação), embora possam não estar a ocorrer na Cidade de Maputo, de alguma forma a sua influência pode ser sentida nesse contexto geográfico, dado que o mesmo é parte da sociedade moçambicana. Vias de fato, algumas ações dentro dos ritos de iniciação e de purificação acabam por expor as mulheres a um maior risco à infecção ao HIV/SIDA, o que acaba por levantar um debate necessário e articulado ao contexto geográfico, considerando o espaço-tempo, a cultura e a saúde dos sujeitos que produzem e vivenciam essa realidade.

Ainda nesse âmbito, são importantes algumas chamadas de atenção pois não se pode estritamente culpabilizar ou mesmo criminalizar a cultura em relação ao HIV/SIDA. É necessário manter o respeito às tradições e aos costumes, cabendo um aprofundamento investigativo, pois uma das consequências reverberadas são as intervenções que “[…] tendem a criar desconfiança e descontentamento na população alvo, uma vez que esta sente que as suas crenças, os seus valores e as lógicas que definem o seu ser e um contexto social harmonioso estão a ser desrespeitados” (Manuel, 2011, p. 347).

Desse modo, é necessário criar ações orientadoras que reduzam e minimizem os danos em saúde sem interferir diretamente na construção social e cultural dos sujeitos. Esse debate toma corpo na fala das Entrevistadas A e S, que advogam por essa construção:

Sim, é aquilo que eu digo sempre […] existe aquilo que é a relação, mas nós não podemos ver certas coisas como negativas na nossa cultura. Nós temos que aceitar aquilo que vem dos nossos antepassados, mas temos que saber como nós abordamos esses aspectos. Por exemplo, temos o hábito de dizer que os ritos de iniciação são prejudiciais por causa do HIV/SIDA […]. O que é prejudicial dentro dos ritos de iniciação?! (pergunta retórica). É isso que nós temos que discutir […]. Agora, há algumas práticas dentro daquilo que são os ritos de iniciação. Essas que devem ser olhadas e analisadas, isso não é um aspecto médico, é um aspecto cultural, é um aspecto da sociedade, é antropológico do qual nós temos que estudar, do qual nós temos que analisar […]. Porque nós temos que entender, somos africanos e temos nossos aspectos, mas temos de ver o que é de negativo dentro desses aspectos. (Entrevistada A, 2019)

Nós temos aspectos culturais muito pessoais, nós temos a sociedade construída de certa forma e depois vem a doença em cima. Então, o serviço de saúde tem que vir moldando todas essas coisas.É claro que a saúde (serviços) não vai chegar e dizer que agora nós somos assim, mas é preciso que nós, através de tudo que já existe, ainda assim conseguirmos fornecer cuidados. Esse é o papel da saúde (serviços), dar um pacote de cuidados a todos independentemente das crenças de cada um […] e respeitando. (Entrevistada S, 2019)

Ambas as entrevistadas ressaltam em suas contribuições que os aspectos culturais devem ser cuidadosamente analisados quando intermediados pelas questões da saúde, porque todos esses elementos são importantes para a elaboração de uma resposta efetiva à epidemia do HIV/SIDA. E mais do que isso, chamam a atenção para que “tipo” de saúde deve ser construída e oferecida à população, uma vez que os relatos apontam para a necessidade de um serviço geograficamente contextualizado com a realidade que se situa, evidenciando que a proposta de saúde em si não deve ser hermética e cristalizada (Guimarães, 2019).

Assim sendo, as articulações destacadas em todos os relatos são de suma importância para a constituição de um serviço de saúde contextualizado à realidade pautada, uma vez que passa a considerar as questões de gênero junto aos valores culturais moçambicanos, enquanto parte da imprescindível resposta à epidemia do HIV/SIDA. Isso porque toma como ação a análise das práticas experienciadas pelas mulheres moçambicanas, bem como pela população em geral, o que pondera a necessidade de se manter um olhar geográfico na produção da saúde de diferentes grupos populacionais que permita, assim, uma leitura adequada do contexto geográfico do HIV/SIDA na Cidade de Maputo, bem como em toda a Moçambique.

Considerações finais

O debate acumulado criou possibilidades de estabelecermos outros olhares para a realidade das mulheres que vivem com HIV/SIDA na Cidade de Maputo, uma vez que o raciocínio estabelecido esteve sustentado pelas relações existentes entre as questões de gênero, cultura e saúde sob uma perspectiva geográfica de análise. Assumir tal posição prefigura uma destacada importância, bem como traz consigo grandes desafios, porque se debruça sobre aspectos reais da vida dos sujeitos, evidenciando a necessidade de aprofundamentos que partem de tensões entre a teoria e a prática.

O empreendimento dessa proposta esteve conectado a diferentes ações que, por sua vez, estiveram situadas em outros segmentos de compreensão, sendo eles de espaço-tempo, conteúdo e agência. Através desse movimento, foi possível interpretar a realidade das mulheres residentes da Cidade de Maputo à luz da compreensão dos serviços de saúde, e nos pautamos sobre a percepção das profissionais e/ou representantes de instituições que estão envolvidos diretamente com a temática do HIV/SIDA, uma vez que são esses que lidam diariamente com as demandas que atravessam a vida delas.

Por meio dessas articulações, construímos as interpretações acerca da vulnerabilidade de gênero vivida por essas mulheres em relação ao HIV/SIDA, com as entrevistas realizadas nos possibilitando debater as diferentes vulnerabilidades que se fazem presentes na vida das maputenses-moçambicanas. Essa interpretação se configura por acreditarmos que tais relações são intrínsecas na dinamicidade dos fenômenos de saúde e doença, o que corrobora para a compreensão das complexidades presentes nos contextos geográficos abordados.

Esse conjunto apresenta os avanços e dificuldades enfrentados em relação a epidemia do HIV/SIDA, tanto na Cidade de Maputo como também em Moçambique, reforçando a importância da temática do HIV/SIDA quando pautadas as vulnerabilidades de gênero, já que essas mulheres experienciam dificuldades e opressões que são distintas de outros sujeitos. Desse modo, acreditamos que os esforços aqui empenhados apontam para caminhos ainda pouco abertos e que carecem de novas investigações dedicadas a elementos como o processo histórico-geográfico de Moçambique, os fluxos migratórios, a saúde das mulheres jovens, a saúde materno-infantil, o acesso e a adesão ao tratamento, entre outros, que assim venham garantir a contemplação da saúde universal das mulheres nos mais diferentes contextos geográficos.

Ainda nesse âmago relacional, é possível destacar a necessidade de interpretação da realidade vivida pelos homens, dado que eles mantêm relações socioculturais majoritariamente hierarquizantes com as mulheres, principalmente como protagonistas das ações opressoras e dominadoras que as vulnerabilizam em relação ao HIV/SIDA. Por esse motivo, salientamos a importância de se criar oportunidades de estudos que visem a compreensão contextual geográfica sobre o processo de formação e construção das masculinidades e dos espaços heteronormativos, que acabam por apresentar rebatimentos significativos no processo de saúde-doença do HIV/SIDA em Moçambique.

Portanto, cremos que são essas perspectivas que devem ser incorporadas a políticas e práticas em saúde enquanto estratégias de intervenções (política de saúde), de modo que sejam capazes de retornar à população de forma eficaz ao estarem alinhadas às demandas específicas de espaço-tempo, conteúdo e agência do contexto geográfico em que se efetua o fenômeno. Logo, reforçamos a imprescindibilidade de fortalecer a interlocução entre os diferentes serviços de saúde e os movimentos sociais-ativistas dedicados as questões do HIV/SIDA, para que assim sejam evidenciadas as “diferentes vozes”, ou seja, o que as(os) moçambicanas(os) têm a dizer, promover e construir acerca das políticas que combatam a epidemia. Com isso, reiteramos que a organização dos serviços de saúde deve estar aparelhada em um movimento uníssono que considere os aspectos políticos, econômicos, sociais e culturais, de forma que haja a possibilidade de transformações efetivas em seus contextos geográficos.

Agradecimentos

Agradecemos em primeira instância a todas as participantes que compartilharam conosco suas experiências. É necessário também agradecer ao apoio institucional da Universidade Eduardo Mondlane (UEM), da Universidade Estadual Paulista (FCT/UNESP), do MISAU (Ministério da Saúde de Moçambique), da Direcção de Saúde da Cidade de Maputo, da Organização Women and Law in Southern Africa Research and Education Trust (WLSA), da Associação das Parteiras de Moçambique (APARMO) e da Associação Hixikanwe, que garantiram articulação à pesquisa. Também agradecemos a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) pelo financiamento da pesquisa nacional e internacional (2018/05706-2; 2019/05071-0).

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  • 1
    Financiamento: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) pelo financiamento da pesquisa nacional e internacional (2018/05706-2; 2019/05071-0).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    05 Maio 2023
  • Revisado
    01 Set 2023
  • Aceito
    13 Maio 2024
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