Resumo
A pandemia do novo coronavírus levou o trabalho para a residência de milhares de trabalhadores no mundo, de maneira compulsória. Portanto, este ensaio objetiva evidenciar os fatores psicossociais de riscos à saúde e o panorama do teletrabalho no primeiro ano da pandemia de covid-19 e, neste contexto, analisar a política do teletrabalho no Brasil. Apresentamos os diferentes conceitos do teletrabalho e discutimos sobre como não é uma modalidade ausente de riscos. Fatores psicossociais, como o isolamento social e profissional, a intensificação do trabalho e sobreposição de atividades profissionais e familiares são alguns dos destacados na literatura. A partir de dados secundários obtidos da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios e análises do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada durante a pandemia, revelou-se um panorama de desigualdade no perfil daqueles que tem acesso ao teletrabalho, além da acentuação das diferenças regionais. Por fim, identificamos um descompasso entre a regulamentação do teletrabalho e as necessidades dos trabalhadores, impactadas pela pandemia de covid-19. Assim, é necessária a elaboração, reformulação e implementação de políticas, visando garantir os direitos e saúde dos teletrabalhadores.
Palavras-chave:
Teletrabalho; Saúde do Trabalhador; Covid-19; Efeitos Psicossociais da Doença; Políticas públicas
Abstract
The new coronavirus pandemic compulsorily brought work into the homes of thousands of workers worldwide. Therefore, this essay aims to highlight the psychosocial factors of health risks and telework’s panorama in the first year of the COVID-19 pandemic and, in this context, to analyze the telework policy in Brazil. We presented the different concepts of telework and discuss how and why it is not a risk-free modality. The literature highlights psychosocial factors, such as social and professional isolation, work intensification and overlapping of professional and family activities. Secondary data obtained from the National Household Sample Survey and analyses by the Institute of Applied Economic Research during the pandemic revealed a panorama of inequality in the profile of those who have access to telework, in addition to the accentuation of regional differences. Finally, we identified a mismatch between the regulation of telework and the workers’ needs, impacted by the COVID-19 pandemic. Thus, it is necessary to elaborate, reformulate and implement policies, aiming to guarantee the rights and health of teleworkers.
Keywords:
Telework; Occupational health; COVID-19; Cost of illness; Public policies
Introdução
Dois anos de restrições e os reflexos da atual pandemia do novo coronavírus SARS-CoV-2 são, antes de tudo, sanitários, mas também econômicos, sociais e com impactos severos na saúde física e mental da população. Indicadores de trabalho no Brasil em 2020 mostraram que a pandemia reduziu o nível de empregos e agravou problemas sociais, como a acentuação da pobreza e da desigualdade. Não obstante, a crise ocasionada pela pandemia de covid-19 testa uma profunda reestruturação do espaço produtivo, que construiu novas regras no mundo do trabalho.
Em 2020, o Zoom Meetings, um programa de software de teleconferência de vídeo, chegou a superar a maior petrolífera americana, a ExxonMobil, na bolsa de valores, com 139 bilhões de dólares em valor de mercado, equivalente a 100 milhões de dólares de diferença (Zoom…, 2021)ZOOM divulga resultado: é hora de sair das ações do kit home office?. Exame invest, São Paulo, 22 nov. 2021. Mercados. Disponível em: <Disponível em: https://exame.com/invest/mercados/zoom-divulga-resultado-e-hora-de-sair-das-acoes-do-kit-home-office/ > Acesso em: 29 Jan 2021.
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. Esse resultado refere-se ao grande salto do teletrabalho, modalidade incentivada pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e adotada por organizações públicas e privadas em todo o mundo, com vistas ao enfrentamento da crise econômico-social. Assim, essa forma de trabalho tornou-se mais visível, como uma solução que, inicialmente, pensava-se como temporária para manutenção dos trabalhos e empregos, porém, no decorrer do tempo, somado ao custo-benefício financeiro para as organizações, houve um consenso de que “o teletrabalho veio para ficar”.
Trabalhar à distância ou em casa não são fenômenos novos, mas a relevância de estudá-los aumentou, sobretudo devido à pandemia. Nos locais tradicionais de trabalho, devemos estar atentos aos diversos aspectos que influenciam a saúde de trabalhadores, entre os diferentes tipos de atividade, como ponto de partida ou como referência para análise dos conhecimentos, bem como para a percepção na adequação das tarefas. Porém, como se dá essa necessária atenção às questões de saúde no teletrabalho domiciliar?
Esta mudança do local de trabalho pode ter um impacto a longo prazo em diferentes aspectos por suas especificidades, despertando cada vez mais a atenção do ponto de vista da saúde do trabalhador, convertendo sua discussão sob a perspectiva da agenda política nacional e internacional emergente. Diante desse cenário, este ensaio objetiva reunir e evidenciar os fatores psicossociais de risco à saúde e o panorama do teletrabalho durante a pandemia de covid-19 e, a partir deste contexto, analisar a política do teletrabalho no Brasil. Para tanto, o artigo está organizado em quatro seções.
Primeiramente, apresentamos as definições de teletrabalho e evidenciamos seus fatores psicossociais de risco à saúde do trabalhador. Por conseguinte, contextualizamos o panorama do teletrabalho no Brasil durante a pandemia a partir de dados secundários obtidos na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD COVID19), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e de análises do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Por fim, utilizando-se da análise documental, discutimos temporalmente a regulação do teletrabalho no Brasil no passado, presente e futuro. À vista disso, este ensaio crítico visa contribuir com a interpretação de conceitos de domínio público, oferecendo um olhar sobre uma questão científica de interesse atual e pautar a agenda das políticas públicas sobre teletrabalho.
Do teletrabalho ao “Smart Working”
Diversos termos são utilizados para se designar o trabalho mediado por Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs) e realizado no âmbito doméstico, tais como: home office, trabalho remoto, trabalho à distância e teletrabalho. Estes constituem formas de trabalho flexível, um conceito multidimensional usado como um guarda-chuva, porém, suas distinções se dão no aspecto legal. O teletrabalho consiste em outra modalidade trabalhista, pois não há apenas a mudança no local em que ocorre, mas também na sua forma de organização (Antunes; Fischer, 2020ANTUNES, E. D.; FISCHER, F. M. A justiça não pode parar?! Os impactos da COVID-19 na trajetória da política de teletrabalho do Judiciário Federal. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, v. 45, 2020. DOI: 10.1590/2317-6369000025920
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).
Na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT)CONSOLIDAÇÃO DAS LEIS DO TRABALHO- CLT e normas correlatas. Atualizada até dezembro de 2017. Senado Federal. Disponível em: Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/535468/clt_e_normas_correlatas_1ed.pdf . Acesso em 31 ago 2020.
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, o teletrabalho foi definido como a prestação de serviços preponderantemente fora das dependências do empregador, com a utilização de TICs que, por sua natureza, não se constituam como trabalho externo (Art. 75-B, Lei nº. 13.467/2017). Pode-se categorizar o teletrabalho de acordo com os diferentes locais de trabalho (residência, escritório e outros locais), assim como quanto à intensidade ou frequência do trabalho com TICs fora das instalações do empregador (Antunes; Fischer, 2020ANTUNES, E. D.; FISCHER, F. M. A justiça não pode parar?! Os impactos da COVID-19 na trajetória da política de teletrabalho do Judiciário Federal. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, v. 45, 2020. DOI: 10.1590/2317-6369000025920
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).
O teletrabalho não é normalmente definido de forma a incluir aqueles que trabalham na economia de plataforma ou GIG Economy; por exemplo, um freelancer que trabalha principalmente em casa pode não ser classificado como teletrabalhador, mas pode ser classificado como trabalhador domiciliar, nos termos da Convenção nº 177 da OITILO. Convenções não ratificadas. C177- Home Work Convention, 1996 ( No. 177). Disponível em: Disponível em: https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_242947/lang--pt/index.htm . Acesso: 31 ago 2020.
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sobre trabalho em casa (homeworking), não ratificada pelo Brasil.
Outras definições de trabalho flexível têm advindo, por exemplo, da Itália, como o “smart work” (trabalho inteligente). Esse tipo de trabalho se distingue do teletrabalho, pois é definido como um arranjo mais flexível, sendo parte nas instalações da empresa e parte no exterior, sem restrições em termos de local ou de tempo de trabalho, além dos limites de horas máximas estabelecidos na legislação ou negociação coletiva (Di Tecco et al., 2021)DI TECCO, C. et al. Implementing smart working in public administration: a follow up study. Medicina del Lavoro, Milan, v. 112, n. 2, p. 141-152, 2021. DOI: 10.23749/mdl.v112i2.10595
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A organização do teletrabalho se dá de diversas formas, por exemplo, estar trabalhando em casa exatamente no dia, hora e local determinado; cumprindo a jornada ou as metas; seguindo a atividade planejada, mas interagindo e discutindo quando necessário para interromper ou modificar os planos de atividades; registrando as atividades realizadas no mesmo dia de suas realizações, obtendo o feedback do supervisor; jornada comprimida; horários flexíveis; ou teletrabalho integral ou parcial.
Somados à falta de padrões estatísticos definidos, os diferentes conceitos que os países estão usando de forma intercambiável (definições ligeiramente diferentes e às vezes sobrepostas), e também às diversas modalidades de implementação do teletrabalho, os estudos científicos são dificultados no que diz respeito ao acompanhamento e sistematização dos impactos para a saúde de trabalhadores, especialmente em pesquisas longitudinais.
O que está submerso: fatores psicossociais de risco no teletrabalho
Ao compararmos o teletrabalho a um iceberg, diríamos que sua ponta mais visível e valorizada é a dos aspectos positivos (Figura 1). Destacam-se o favorecimento do transporte e planejamento urbano, que na verdade não é fator inovador ou motivador, uma vez que a questão de mobilidade nas cidades já era uma precariedade anterior ao teletrabalho pandêmico e, até mesmo, foi aspecto propulsor dos estudos desta modalidade. Ainda, a literatura identifica como fatores favoráveis a redução de custos da organização, a diminuição da poluição do meio ambiente, um maior equilíbrio entre a vida profissional e pessoal, flexibilidade de horários e a diminuição do tempo e custo com transportes. Alguns autores também indicam um aumento da produtividade, o que tem recebido muita atenção da literatura e se sobressaído durante a pandemia, especialmente no setor público brasileiro (Antunes; Fischer, 2020ANTUNES, E. D.; FISCHER, F. M. A justiça não pode parar?! Os impactos da COVID-19 na trajetória da política de teletrabalho do Judiciário Federal. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, v. 45, 2020. DOI: 10.1590/2317-6369000025920
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; Bridi, 2020BRIDI, M. A. (Coord.). Relatório técnico-científico da pesquisa: o trabalho remoto/home-office no contexto da pandemia Covid-19: trabalho docente, setores público e privado e questões de gênero. Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 2020. Disponível em: <Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/343263679_RELATORIO_TECNICO_DA_PESQUISA_O_TRABALHO_REMOTOHOME-OFFICE_NO_CONTEXTO_DA_PANDEMIA_COVID-19_PARTE_I_CURITIBA_2020 > Acesso em: 31 mar 2021.
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).
No entanto, um olhar mais atento e em profundidade revela que há mais para ser observado e discutido no que tangem os aspectos desfavoráveis do teletrabalho (Figura 1). O aumento da produtividade pode ter resultados ambíguos, dependendo das condições e dos arranjos de trabalho, das metas estabelecidas pelo empregador, aspectos da individualidade do trabalhador, do contexto familiar, da classe, cor e gênero (OECD, 2020)OECD - ORGANISATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION AND DEVELOPMENT. Productivity gains from teleworking in the post COVID-19 era: How can public policies make it happen?. Paris, 2020. Disponível em: <Disponível em: https://read.oecd-ilibrary.org/view/?ref=135_135250-u15liwp4jd&title=Productivity-gains-from-teleworking-in-the-post-COVID-19-era&_ga=2.70639699.2108351814.1634556242-260360379.1634556242 > Acesso em: 18 out 2021.
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. O crescimento dos resultados geralmente está relacionado a um ritmo acelerado e ao aumento da jornada diária e semanal, ou seja, a um cenário de intensificação do trabalho impulsionado pelo uso das TICs (Bathini; Kandathil, 2019BATHINI, D. R.; KANDATHIL, G. M. An orchestrated negotiated exchange: trading home-based telework for intensified work. Journal of Business Ethics, Berlin, v. 154, n. 2, p. 411-423, 2019. DOI:10.1007/s10551-017-3449-y
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). Dada a multiplicidade e complexidade das interações entre os fatores relacionados, até o momento não há consenso na literatura sobre o impacto do trabalho remoto na produtividade (Samek Lodovici et al., 2021)SAMEK LODOVICI, M. (2021). The impact of teleworking and digital work on workers and society. Geneva: European Parliament, 2021. Disponível em: < Disponível em: https://www.europarl.europa.eu/thinktank/en/document/IPOL_STU(2021)662904 > Acesso em: 13 set 2021.
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Além da intensificação do trabalho, outras características merecem atenção. Sistematizamos as evidências de uma abordagem multidimensional a partir da revisão sistemática elaborada por Charalampous et al. (2019CHARALAMPOUS, M. et al. Systematically reviewing remote e-workers’ well-being at work: a multidimensional approach. European Journal of Work and Organizational Psychology, Abingdon, v. 28, n. 1, p. 51-73, 2019. DOI: 10.1080/1359432X.2018.1541886
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), que construíram cinco macro dimensões para compreender a associação entre o teletrabalho (com uso de TICs) e o bem-estar relacionado ao trabalho. As dimensões apresentadas são: afetiva, cognitiva, social, profissional e psicossomática e podem influenciar de maneira positiva ou negativa a saúde de trabalhadores (Figura 2) (Charalampous et al., 2019)CHARALAMPOUS, M. et al. Systematically reviewing remote e-workers’ well-being at work: a multidimensional approach. European Journal of Work and Organizational Psychology, Abingdon, v. 28, n. 1, p. 51-73, 2019. DOI: 10.1080/1359432X.2018.1541886
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. Cada dimensão considerada compreende diversos aspectos que foram pesquisados, sendo alguns de maneira individual e outros combinados, o que favorece o nosso debate.
Os resultados do estudo indicam que sabemos mais sobre os fatores afetivos, sociais e profissionais do que sobre o funcionamento cognitivo e o bem-estar psicossomático, além de apontar a necessidade de mais pesquisas longitudinais e de maior compreensão da cultura e clima organizacional do teletrabalho (Charalampous et al., 2019CHARALAMPOUS, M. et al. Systematically reviewing remote e-workers’ well-being at work: a multidimensional approach. European Journal of Work and Organizational Psychology, Abingdon, v. 28, n. 1, p. 51-73, 2019. DOI: 10.1080/1359432X.2018.1541886
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). Percebemos que os efeitos para saúde de teletrabalhadores a longo prazo não são totalmente conhecidos, pois dependem de dimensões de impacto multidimensionais e de aspectos pouco explorados que, portanto, necessitam de maiores esclarecimentos. Algumas vezes, os fatores positivos podem ser percebidos como estratégias pelos trabalhadores para promover o equilíbrio entre o trabalho e a vida pessoal, porém, a médio e longo prazo, a consequência dos aspectos desfavoráveis pode impactar a saúde e o bem-estar do trabalhador e fazer os resultados decrescerem. Sabemos que o trabalho é um determinante social de saúde e doença, portanto, devemos estar atentos aos fatores psicossociais negativos que são previamente reconhecidos no trabalho presencial e que podem ser acentuados no trabalho à distância (Giacomello et al., 2022GIACOMELLO, L. B. A.; GIONGO, C. R.; RIBEIRO, B. C.; PEREZ, K. V. Teletrabalho na Pandemia de Covid-19: Impactos na Saúde Mental de Trabalhadores. Trabalho (En)Cena, [S. l.], v. 7, p. e022029, 2022. DOI: 10.20873/2526-1487e022029.
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).
De acordo com a OIT, as dimensões dos fatores psicossociais se dão a partir das interações com o meio ambiente de trabalho, o conteúdo do trabalho, as condições organizacionais, as capacidades, necessidades e experiências de trabalhadores, hábitos e cultura, considerações pessoais extra ambiente de trabalho, entre outros fatores que podem influenciar no desempenho, satisfação e saúde de trabalhadores.
Quanto ao teletrabalho, os desequilíbrios entre trabalho e vida pessoal têm sido exaustivamente destacados. A sobreposição de atividades profissionais e familiares é favorecida por fatores relacionados à família, presença de filhos, trabalho realizado fora do horário e o uso da tecnologia, que estão associados à subjetividade no controle do tempo. Ao refletirmos sobre o teletrabalho vivido durante a pandemia, é evidente que, entre as famílias com presença de filhos ou pessoas dependentes, houve uma intensificação do trabalho compulsória e não subjetiva (Durães; Bridi; Dutra, 2021DURÃES, B.; BRIDI, M. A. C.; DUTRA, R. Q. O teletrabalho na pandemia da covid-19: uma nova armadilha do capital? Sociedade e Estado, Brasília, DF, v. 36, n. 3, p. 945-966, 2021. DOI: 10.1590/S0102-6992-202136030005
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). O “eu trabalho” entrelaçou-se imediatamente às vidas dentro e fora do trabalho.
Inferimos que, em função de maiores demandas de trabalho, mesmo o trabalhador tendo teoricamente “maior controle do seu tempo”, diante das excessivas demandas não há outra forma de conseguir alcançar as metas e exigências, a não ser prolongando sua jornada de teletrabalho. Anteriormente à pandemia, estudos já indicavam que a experiência de reorganização temporal e espacial do trabalho em domicílio comumente levam a sua intensificação, uma vez que o comando e o controle sobre o tempo passam para os trabalhadores (Alemão; Barroso, 2012ALEMÃO, I.; BARROSO, M. R. C. O teletrabalho e o repensar das categorias tempo e espaço. Enfoques, Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 73-88, 2012. ). Portanto, as jornadas flexíveis e o teletrabalho tornaram-se síntese de intensificação do trabalho, o que podemos caracterizar como uma contradição à busca do equilíbrio trabalho-vida pessoal dos trabalhadores (Messenger, 2017MESSENGER, J. Working anytime, anywhere: the effects on the world of work. Luxembourg: Publications Office of the European Union; Geneva: International Labour Office, 2017. DOI: 10.2806/372726
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).
Destaca-se, na literatura, o isolamento profissional e social, o que pode favorecer a individualização e afetar negativamente as interações sociais e de amizade. Por sua vez, a separação espacial interfere no compartilhamento de conhecimento somada à virtualidade das tarefas, que influenciam os sentimentos, percepções e atitudes individuais nas organizações. Esse aspecto não é novidade. Nilles, precursor dos estudos sobre o teletrabalho nos Estados Unidos na década de 1980, definiu em seus comentários como uma das possíveis “barreiras para aceitação” do teletrabalho: “Quando comecei a estudar o teletrabalho em 1971[…] e durante os anos seguintes de pesquisa sobre o tema, acreditei que havia uma série de possíveis barreiras para a aceitação do teletrabalho” (Nilles, 1985, p. 136, tradução nossa)NILLES, J. M. (1985). Commentary. In: NILLES, J. M. Office Workstations in the Home (pp. 133-144). Washington, DC: The National Academies Press, 1985. p. 133-144. DOI: 10.17226/168
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No entanto, o que Nilles nomeia como barreiras, nós entendemos como fatores psicossociais de risco. O isolamento não é passível de ser eliminado, considerando que depende de diversas variáveis, tais como: condições de vida, habitação e trabalho, relações sociais e políticas da empresa, gestores e colegas de trabalho. Durante a pandemia, uma pesquisa da Microsoft (Spataro, 2020SPATARO, J. The future of work-the good, the challenging & the unknown. Redmond: Microsoft, 2020. Disponível em: <Disponível em: https://www.microsoft.com/en-us/microsoft-365/blog/2020/07/08/future-work-good-challenging-unknown/ > Acesso em: 12 nov 2021.
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) em seis países sugeriu que este fator foi amenizado, uma vez que grande parte dos trabalhadores vivenciaram o teletrabalho simultaneamente, resultando em um sentimento de empatia coletiva. Porém, a médio e longo prazo, com o retorno das atividades presenciais e com equipes em teletrabalho parcial ou total, será possível evitá-lo? Questionamos, ainda: como amenizar a vulnerabilidade da representação coletiva pela falta de interação? Como impedir a desvalorização do ‘saber fazer’, a individualização, a fragmentação da atividade e a perda de sentido no trabalho?
Outros fatores recentemente identificados e intensificados pela pandemia foram a presença da telepressão e do tecnoestresse. Mesmo quando os trabalhadores não estão em seu horário regulamentar de trabalho mas se encontram em casa, podem sentir a necessidade de responder a mensagens relacionadas ao trabalho. A telepressão no local de trabalho pode representar conceitualmente a combinação de preocupação e urgência em responder imediatamente às mensagens mediadas pelas TICs relacionadas ao trabalho. A desorganização temporal e a extensão das jornadas trabalhistas geram um sentimento e uma expectativa de trabalhadores “estarem sempre disponíveis”, promovidos pela invasão das ferramentas de comunicação e interação online.
Agrega-se o tecnoestresse, que versa sobre um processo que, pela presença de condições ambientais tecnológicas, promove uma ativação crônica do sistema de estresse humano, resultante do fator de risco proximal para várias doenças, incluindo mentais (tecnologia como estressor). Muitas pessoas vivenciaram o tecnoestresse durante a pandemia, por serem obrigadas subitamente a conectar computadores em suas casas, aprender a instalar softwares e utilizar novas plataformas de trabalho e comunicação (Molino et al., 2020MOLINO, M. et al. Wellbeing costs of technology use during Covid-19 remote working: an investigation using the italian translation of the technostress creators scale. Sustainability. Basel, v. 12, n. 15, p. 5911, 2020. DOI: 10.3390/SU12155911
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). Artefatos que eram presentes em nosso cotidiano do local de trabalho “invadiram” as casas, tornando-se um padrão.
A mudança na comunicação entre os colegas de trabalho passou a se dar no espaço formal, nas plataformas, ligações, mensagens, ferramentas que não foram pensadas para os processos de cooperação e aprendizado coletivos, levando a um sentido de desumanização do trabalho. O espaço informal deixa de existir, assim como a interação face-a-face. Finda-se, por exemplo, “a hora do cafezinho”, um dos momentos que permitia o alívio das tensões organizacionais e o compartilhamento de conhecimento, para além da socialização tão necessária ao fazer do trabalho.
Um novo fenômeno aparece, sendo batizado de “Zoom fatigue”. Refere-se ao sentimento de exaustão associado ao uso de vídeoconferências (como o programa Zoom). Pesquisadores de Stanford, nos Estados Unidos, verificaram que a fadiga é maior em mulheres, provavelmente pela “atenção autocentrada” desencadeada pela visão de si mesma em videoconferências e pela necessidade de estar fisicamente “presa”, centrada no campo de visão da câmera (Fauville et al., 2021FAUVILLE, G. et al (2021). Nonverbal mechanisms predict zoom fatigue and explain why women experience higher levels than men. Rochester: SSRN, 2021. DOI: 10.2139/ssrn.3820035
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). Possivelmente, as longas e repetidas reuniões, muitas vezes desnecessárias, acentuam a ansiedade e a exaustão não apenas de mulheres como também dos homens.
Além disso, estudos da faculdade de medicina de Harvard identificaram outro fenômeno chamado de “dismorfia do Zoom”. As pessoas podem estar olhando durante horas e examinando uma imagem distorcida de si mesmos na tela e desenvolverem, como resultado, uma autopercepção negativa, desencadeando ou agravando um distúrbio dismórfico corporal (Rice et al., 2021RICE, S. M. et al. Zooming into cosmetic procedures during the COVID-19 pandemic: The provider’s perspective. International Journal of Women’s Dermatology, Amsterdam, v. 7, n. 2, p. 213-216, 2021. DOI: 10.1016/J.IJWD.2021.01.012
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).
Percebemos que o uso de ferramentas de comunicação online demanda esforços adicionais, altera os espaços de trabalho, a forma e os fluxos, nos fazendo pensar sobre como será nossa vida futura. Viver de maneira tecnocêntrica ou encontrar formas de regulá-la? A desorganização temporal, a extensão das jornadas de trabalho, a intensificação do trabalho, o aumento das cargas de trabalho, a invasão das ferramentas de comunicação e a interação online no domicílio, além da participação compulsória (estar sempre disponível), nos leva a indagar se estamos caminhando para uma maior precarização do trabalho.
No caso brasileiro, este fator também pode estar associado à retirada da proteção da duração da jornada no teletrabalho (inciso III, Art. 62, Lei Nº. 13.467/2017). O legislador, ao desconsiderar os avanços tecnológicos que permitem aos empregadores controlar a localização do trabalhador, as atividades que estão desempenhando e os horários de início e fim do expediente, retira o direito à proteção da jornada de 8 horas diárias e 44 horas semanais prevista no art. 7º da Constituição Brasileira.
A substituição da jornada tem se dado por meio de metas e resultados, por exemplo, no setor judiciário federal (Antunes; Fischer, 2020ANTUNES, E. D.; FISCHER, F. M. A justiça não pode parar?! Os impactos da COVID-19 na trajetória da política de teletrabalho do Judiciário Federal. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, v. 45, 2020. DOI: 10.1590/2317-6369000025920
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). A flexibilidade de horário não significa liberdade, uma vez que os trabalhadores do setor público devem cumprir a meta para ter equivalência da jornada e suas metas são superiores (em até 30%) às daqueles que executam a mesma atividade nas dependências do órgão (Antunes; Fischer, 2020)ANTUNES, E. D.; FISCHER, F. M. A justiça não pode parar?! Os impactos da COVID-19 na trajetória da política de teletrabalho do Judiciário Federal. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, v. 45, 2020. DOI: 10.1590/2317-6369000025920
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Em alguns casos, pode haver acompanhamento da atividade em horário de trabalho, dependendo da definição junto aos gestores. A Instrução Normativa nº 65/2020BRASIL. Instrução Normativa no 65, de 30 de julho de 2020. Estabelece orientações, critérios e procedimentos gerais a serem observados pelos órgãos e entidades integrantes do Sistema de Pessoal Civil da Administração Federal - SIPEC relativos à implementação de Programa de Gestão. Diário Oficial da União. Brasília, DF, edição 146, seção 1, p. 21, 31 jul. 2020. Disponível em: <Disponível em: https://www.gov.br/produtividade-e-comercio-exterior/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/programa-de-gestao-secint/legislacao/instrucao-normativa-no-65-de-30-de-julho-de-2020/view >. Acesso em: 31 ago 2020.
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, que estabelece orientações, critérios e procedimentos gerais para o teletrabalho na Administração Federal, estabelece a obrigatoriedade do servidor “permanecer em disponibilidade constante para contato por telefonia fixa ou móvel pelo período acordado com a chefia, não podendo extrapolar o horário de funcionamento da unidade”, porém, sem especificar como se dá essa regulamentação na prática.
Já no setor privado, a remuneração pode ser associada à produtividade, o que comumente leva à sobrecarga de trabalho (Reis, 2019REIS, O. P. A organização do trabalho, o risco psicossocial e o adoecimento. Laborare, Salvador, v. 2, n. 3, p. 106-138, 2019. DOI: 10.33637/2595-847X.2019-35
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). Em outros casos, o atingimento das metas é utilizado como “moeda de troca” no caso do teletrabalho. O Sindicato dos Bancários de São Paulo Osasco e Região recebeu denúncias de que “bancários do grupo de risco para a covid-19 em home office foram convocados a bater metas ou teriam o cancelamento do teletrabalho. Além disso, o funcionário seria incluído em banco de horas negativas” (Bater…, 2020)BATER meta não é “requisito” para permanecer no teletrabalho. Sindicato dos Bancários, São Paulo, 17 set. 2020. Disponível em: < Disponível em: https://spbancarios.com.br/09/2020/bater-meta-nao-e-requisito-para-permanecer-no-teletrabalho > Acesso em: 20 nov 2020.
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.
Isso nos desperta a atenção quanto às propostas de manutenção do teletrabalho total, em que se deve analisar sob quais condições os trabalhadores executam as metas e as situações de conflito presentes. O aumento das metas por concorrência inserida através da disputa de mercado está levando ao total esgotamento e adoecimento de funcionários, o que reflete desfavoravelmente no modo de viver e adoecer da classe trabalhadora.
Consideramos, ainda, que trabalhar em casa durante a pandemia de covid-19 é diferente do teletrabalho em condições normais, uma vez que o trabalho feito em casa nesse momento deu-se por um período prolongado, de forma compulsória e em circunstâncias externas difíceis. Esta situação, por si só, provocou níveis de ansiedade mais elevados do que o habitual em trabalhadores, pois associa-se à ansiedade devido às implicações sanitárias, sociais e econômicas da crise (Barros et al., 2020BARROS, M. B. A. et al. Report on sadness/depression, nervousness/anxiety and sleep problems in the Brazilian adult population during the COVID-19 pandemic. Epidemiologia e Serviços de Saúde, Brasília, DF, v. 29, n. 4, 2020. DOI: 10.1590/S1679-49742020000400018
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).
Sendo assim, uma das garantias à saúde de trabalhadores prevista, inclusive, na legislação trabalhista, versa sobre os limites entre os momentos de descanso e de produção (Alemão; Barroso, 2012ALEMÃO, I.; BARROSO, M. R. C. O teletrabalho e o repensar das categorias tempo e espaço. Enfoques, Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 73-88, 2012. ). Além da proteção à privacidade, direito à desconexão, orientação técnica e capacitação. Faz-se necessário o direito ao adoecimento.
Em todo o mundo, modificações em função da situação de trabalhadores, do tempo e dos recursos disponíveis podem intensificar os fatores psicossociais negativos relacionados ao teletrabalho (Ahrendt, 2020AHRENDT, D. et al. Living, working and COVID-19. Luxembourg: Publications Office of the European Union, 2020. DOI: 10.2806/76040
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; Messenger, 2017MESSENGER, J. Working anytime, anywhere: the effects on the world of work. Luxembourg: Publications Office of the European Union; Geneva: International Labour Office, 2017. DOI: 10.2806/372726
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). Portanto, a liberdade tornou-se uma via de mão dupla, ao mesmo tempo que pode permitir um maior equilíbrio entre a vida e o trabalho, pode também levar à sobrecarga e à intensificação da jornada trabalhista (Alemão; Barroso, 2012ALEMÃO, I.; BARROSO, M. R. C. O teletrabalho e o repensar das categorias tempo e espaço. Enfoques, Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 73-88, 2012. ).
O primeiro ano da pandemia de Covid-19 no Brasil: Teletrabalho para quem?
Dentre os impactos da pandemia, assistimos ao aumento do desemprego estrutural e, consequentemente, das desigualdades sociais. A população ocupada no trimestre de novembro de 2020 a janeiro de 2021 totalizava 86 milhões, porém a taxa de desocupação (desemprego) chegou a 14,2% (14,2 milhões de pessoas) segundo os dados da PNAD (IBGE, 2021)IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Indicadores IBGE: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. Rio de Janeiro, 2021. Disponível em: <Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/3086/pnacm_2021_jan.pdf > Acesso em: 31 mar 2021.
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. Trata-se da maior taxa de desemprego já registrada para o período desde o início da pesquisa no trimestre. Milhares de pessoas foram afastadas do trabalho devido ao distanciamento social, sendo as mulheres maior porcentagem em relação aos homens (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, 2020a)IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios PNAD COVID19 Julho/2020. Resultado mensal. Rio de Janeiro, 2020a. Disponível em: <Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101745.pdf > Acesso em: 10 set 2020.
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. Para outros milhões de trabalhadores, o trabalho mudou-se para casa.
A maioria experimentou o teletrabalho pela primeira vez nessa situação. O número de pessoas ocupadas e não afastadas do trabalho que trabalhavam de forma remota na primeira semana de maio de 2020 era de 8,5 milhões, passando por um pico - que não se sustentou-de 8,9 milhões de pessoas na primeira semana de junho. Na segunda semana de julho do mesmo ano, o número de pessoas ocupadas que trabalhavam de forma remota caiu para 8,2 milhões. A redução observada possivelmente refletiu, com a flexibilização das medidas de distanciamento social, o retorno de parte dessas pessoas aos seus locais de trabalho. A média é decrescente, chegando a 7,3 milhões em novembro (IBGE, 2020a)IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios PNAD COVID19 Julho/2020. Resultado mensal. Rio de Janeiro, 2020a. Disponível em: <Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101745.pdf > Acesso em: 10 set 2020.
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(Gráfico 1). A PNAD COVID19 foi realizada e divulgada pelo IBGE de maio de 2020 e descontinuada em novembro de 2020, após esse período não há estatísticas oficiais sobre o teletrabalho no Brasil.
Pela última estimativa disponível, percebemos que o teletrabalho não foi mantido, ao contrário, foi reduzido gradualmente. Tal fato contrastaria naquele momento com a ideia em que o teletrabalho veio para ficar. Os resultados do exercício das atividades de maneira remota foram decrescentes no país, iniciando no total em 13,3% da população ocupada, em média no mês de maio, a 9,1% no mês de novembro (Gráfico 1). Porém, ressaltamos o abismo entre trabalhadores formais (84,3%) e informais (15,6%) em atividade remota. O emprego formal se torna privilégio em um país em que a taxa de trabalho informal representa 38,3%, de acordo com a OIT1
1
Emprego informal representa 70% dos novos postos de trabalho na América Latina | ONU News. Global Perspective Human Stories. Disponível em: <https://news.un.org/pt/story/2021/09/1762572> Acesso em: 11 nov 2021
(International Labour Organization - ILO, 2021)ILO - INTERNATIONAL LABOUR ORGANIZATION. World Social Protection Data Dashboards. Geneva, 2021. Disponível em: <Disponível em: https://www.social-protection.org/gimi/WSPDB.action?id=13 > Acesso em: 11 nov 2021.
https://www.social-protection.org/gimi/W...
. Os postos de trabalho informais são geralmente instáveis, com salários baixos e sem direitos ou proteção social.
A ausência de dados oficiais sobre a quantidade de empresas que aderiram ao teletrabalho durante a pandemia prejudica as análises, sendo limitada aos dados da PNAD COVID-19 (interrompida em 2020). Pela pesquisa, foi possível identificar um cluster por subgrupos de pessoas conforme a atividade econômica. O setor de serviços é dominante, com média de 43,8%, seguido pelo setor público, média de 36,24%, com tendência de elevação; o setor industrial ficou estável em torno de 7,1%, similar ao comércio e agricultura, com respectivamente 5,0% e 0,6% entre os meses de maio e novembro de 2020 (Góes; Martins; Nascimento, 2021GÓES, G. S.; MARTINS, F. S.; NASCIMENTO, J. A. S. (2021). Carta de Conjuntura: O trabalho remoto e a pandemia. Brasília, DF: IPEA, 2021. n. 50. Disponível em: <Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/conjuntura/201118_nota_teletrabalho.pdf > Acesso em: 10 mar 2021.
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).
Destarte, destacamos que o trabalho remoto não está disponível para todos, ou seja, é um privilégio para uma menor parcela da população em trabalho formal, dos setores público e de serviços. Outras dimensões também ajudam a compreender quem teve acesso ou não ao teletrabalho, como a escolaridade, cor, faixa etária, renda e gênero. A PNAD COVID19 aferiu que, quanto maior o grau de instrução, maior o número de pessoas em trabalho remoto. Da população ocupada, em média 33,6% possuía ensino superior completo ou pós-graduação, em contraste, 6,1% daqueles com ensino médio completo ou superior incompleto, 1,2% com ensino fundamental completo ao médio incompleto e apenas 0,4% das pessoas sem instrução ao fundamental incompleto (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, 2020c)IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA -. (2020c). O IBGE apoiando o combate à COVID-19. Trabalho: desocupação, renda, afastamentos, trabalho remoto e outros efeitos da pandemia no trabalho. Rio de Janeiro, 2020c. Disponível em: <Disponível em: https://covid19.ibge.gov.br/pnad-covid/trabalho.php > Acesso em: 01 dez 2020.
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.
Pesquisadores do IPEA (Góes et al., 2020bGÓES, G. S.; MARTINS, F. S.; NASCIMENTO, J. A. S. Carta de conjuntura: teletrabalho na pandemia: efetivo versus potencial. Brasília, DF: IPEA, 2020b. n. 48. Disponível em: <Disponível em: https://www.ipea.gov.br/cartadeconjuntura/index.php/2020/06/potencial-de-teletrabalho-na-pandemia-um-retrato- > Acesso em: 10 set 2020.
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) analisaram os dados efetivos de teletrabalho da PNAD COVID19 em relação à cor autodeclarada das pessoas, e compararam com o cálculo potencial. O cálculo potencial refere-se à possibilidade de ocupações (empregos) no país realizarem trabalho de maneira remota (Góes; Martins; Nascimento, 2020a)GÓES, G. S.; MARTINS, F. S.; NASCIMENTO, J. A. S. Carta de conjuntura: potencial de teletrabalho na pandemia: um retrato no Brasil e no mundo. Brasília, DF: IPEA, 2020a. n. 47. Disponível em: < Disponível em: https://www.ipea.gov.br/cartadeconjuntura/index.php/2020/06/potencial-de-teletrabalho-na-pandemia-um-retrato-no-brasil-e-no-mundo/ > Acesso em: 15 dez 2020.
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. Percebemos que os contrastes pré-existentes são acentuados pela pandemia. Quanto a cor e gênero, explicitados no gráfico 2, em sua maioria os que se declararam da cor branca representam a maior porcentagem, apesar da maioria da população brasileira ser preta ou parda (56%) (Síntese…, 2019)SÍNTESE de Indicadores Sociais: em 2019, proporção de pobres cai para 24,7% e extrema pobreza se mantém em 6,5% da população. Agência IBGE de Notícias, Rio de Janeiro, 2019. Disponível em: <Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/29431-sintese-de-indicadores-sociais-em-2019-proporcao-de-pobres-cai-para-24-7-e-extrema-pobreza-se-mantem-em-6-5-da-populacao > Acesso em: 21 de out 2020.
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, o potencial de teletrabalho é inverso, evidenciando a herança escravocrata de desigualdade de acesso à educação, condições de vida e trabalho.
Distribuição das pessoas em trabalho de forma remota efetiva versus teletrabalho potencial, por cor e gênero autodeclarados, em porcentagem.
Consideramos que os pequenos ganhos em igualdade de gênero obtidos nas últimas décadas podem ser ameaçados. Isso provavelmente se deve porque as mulheres trabalhadoras não têm acesso a licenças adequadas em caso de doença ou elas assumem de forma desproporcional responsabilidades de cuidado, necessitando ter que reduzir suas atividades ou mesmo deixar seus empregos por completo (Brussevich; Dabla-Norris; Khalid, 2020BRUSSEVICH, M.; DABLA-NORRIS, E.; KHALID, S. Who will Bear the Brunt of Lockdown Policies? Evidence from Tele-workability Measures Across Countries. IMF Working Papers, Washington, DC, v. 20, n. 88, 2020. DOI: 10.5089/9781513546285.001
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). Além disso, interrompem os estudos devido aos afazeres domésticos e cuidado de pessoas, 13 vezes mais do que homens. . Esta situação se acentua na faixa de mulheres pretas ou pardas e que representam 39,8% das pessoas extremamente pobres (Síntese…, 2019)SÍNTESE de Indicadores Sociais: em 2019, proporção de pobres cai para 24,7% e extrema pobreza se mantém em 6,5% da população. Agência IBGE de Notícias, Rio de Janeiro, 2019. Disponível em: <Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/29431-sintese-de-indicadores-sociais-em-2019-proporcao-de-pobres-cai-para-24-7-e-extrema-pobreza-se-mantem-em-6-5-da-populacao > Acesso em: 21 de out 2020.
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. Portanto, pensar o acesso ao teletrabalho por mulheres pretas ou pardas parece algo distante e, apesar das estimativas apontarem que mulheres ocupam a maior quantidade de empregos que podem ser realizados de forma remota, são os homens quem mais o fazem (Góes et al., 2020aGÓES, G. S.; MARTINS, F. S.; NASCIMENTO, J. A. S. Carta de conjuntura: potencial de teletrabalho na pandemia: um retrato no Brasil e no mundo. Brasília, DF: IPEA, 2020a. n. 47. Disponível em: < Disponível em: https://www.ipea.gov.br/cartadeconjuntura/index.php/2020/06/potencial-de-teletrabalho-na-pandemia-um-retrato-no-brasil-e-no-mundo/ > Acesso em: 15 dez 2020.
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) (Gráfico 1).
Cabe-nos refletir sobre os fatores que já eram conhecidos, tais como: pessoas com menor escolaridade ocupam os postos de trabalho menos qualificados e acabam por não poderem realizar o teletrabalho. Talvez o que seja novo é o fato de que alguns destes postos de trabalho, ocupados por mulheres, poderiam ter mais recursos ao teletrabalho que os dos homens, porém não o tiveram. Além da precarização estrutural existente antes da pandemia, há as desigualdades históricas e sistêmicas que se reforçam inclusive com o teletrabalho. São necessárias políticas compensatórias ou afirmativas que considerem as especificidades do país. Urge repensarmos como podemos responder a demanda social e transformá-la, uma vez que os efeitos da pandemia (controlados ou não) serão permanentes.
Não obstante, escancaram-se as diferenças regionais e estaduais, uma vez que a maior porcentagem de teletrabalhadores estavam concentrados na região Sudeste (59%), seguida do Nordeste (16,1%), Sul (13,9%), Centro-Oeste (7,3%) e, em uma porcentagem ínfima (3,7%), na região Norte do país (IBGE, 2020c)IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA -. (2020c). O IBGE apoiando o combate à COVID-19. Trabalho: desocupação, renda, afastamentos, trabalho remoto e outros efeitos da pandemia no trabalho. Rio de Janeiro, 2020c. Disponível em: <Disponível em: https://covid19.ibge.gov.br/pnad-covid/trabalho.php > Acesso em: 01 dez 2020.
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. A região Norte é afetada pelos menores rendimentos, assim como pela maior proporção de informalidade - especialmente de mulheres pretas ou pardas (IBGE, 2019). Apesar da cifra considerável de 13,3% dos trabalhadores terem experimentado o trabalho remoto no Brasil durante a pandemia, não parece factível o potencial estimado, que ultrapassa os 20 milhões de pessoas, ou seja, aproximadamente 25% da população ocupada e 22,7% das ocupações (Góes et al., 2020aGÓES, G. S.; MARTINS, F. S.; NASCIMENTO, J. A. S. Carta de conjuntura: potencial de teletrabalho na pandemia: um retrato no Brasil e no mundo. Brasília, DF: IPEA, 2020a. n. 47. Disponível em: < Disponível em: https://www.ipea.gov.br/cartadeconjuntura/index.php/2020/06/potencial-de-teletrabalho-na-pandemia-um-retrato-no-brasil-e-no-mundo/ > Acesso em: 15 dez 2020.
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).
Considerando apenas as pessoas em teletrabalho, calculando o indicador de desigualdade na distribuição do rendimento de todos os trabalhos em termos domiciliares per capita, os dados demonstraram que os estados do Nordeste, Sudeste e Sul, somados aos estados do Amapá e Pará, têm maior índice de desigualdade (Góes et al., 2021GÓES, G. S.; MARTINS, F. S.; NASCIMENTO, J. A. S. (2021). Carta de Conjuntura: O trabalho remoto e a pandemia. Brasília, DF: IPEA, 2021. n. 50. Disponível em: <Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/conjuntura/201118_nota_teletrabalho.pdf > Acesso em: 10 mar 2021.
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). Esses dados não surpreendem, uma vez que o Brasil permanece um dos países com maior desigualdade social e de renda do mundo - de acordo com o World Inequality Lab (Laboratório das Desigualdades Mundiais), que integra a Escola de Economia de Paris (Piketty et al., 2022PIKETTY, T. et al. World inequality report 2022. Paris: World Inequality Lab, 2022. Disponível em: <Disponível em: https://wir2022.wid.world/ > Acesso em: 24 Jan 2022.
https://wir2022.wid.world/...
). Já o Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) das Nações Unidas apontou o Brasil em segundo lugar entre os países com mais concentração de renda, atrás apenas do Catar (United Nations Development Programme (UNDP), 2019)UNDP - UNITED NATIONS DEVELOPMENT PROGRAMME. Human Development Report 2019: Beyond income, beyond averages, beyond today: Inequalities in human development in the 21st century. Geneva, 2019. Disponível em: <Disponível em: http://hdr.undp.org/sites/default/files/hdr2019.pdf > Acesso em: 24 Jan 2022.
http://hdr.undp.org/sites/default/files/...
. Portanto, a possiblidade de ampliação do teletrabalho é um problema complexo que perpassa a diminuição da desigualdade social, econômica, cultural e étnica/racial do país.
A crise econômica e social acentuada pela pandemia deixará consequências profundas para o mundo. O panorama aqui apresentado destaca os contrastes do teletrabalho no Brasil, que devem ser observados e discutidos na formulação e implementação de políticas públicas. Também é necessário discutir um modelo em nível macro sobre os fatores psicossociais relacionados ao trabalho (Oakman et al., 2014OAKMAN, M. et al. (2014). State of the art: the context of psychosocial factors at work in the Asia Pacific. In: SHIMAZU, A. Psychosocial factors at work in the Asia Pacific. Amsterdam: Springer Netherlands, 2014. p. 3-26. DOI: 10.1007/978-3-319-44400-0
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). Esse modelo deve levar em consideração as influências nacionais e internacionais, as políticas de proteção social que afetam as condições de emprego, as condições de trabalho dentro das organizações, a desigualdade de renda e de resultados individuais de saúde do trabalhador, além dos recortes etários, de gênero, raciais, acessibilidade e inclusão.
A política do teletrabalho: passado, presente e futuro
Diante da necessidade de enfrentamento dos efeitos da crise econômica e do estado de calamidade pública decorrentes da pandemia, o governo brasileiro publicou a Medida Provisória n° 927/2020BRASIL. Medida Provisória n° 927, de 2020 (Medidas trabalhistas para enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do Coronavírus). Brasília, DF: Presidência da República, 2020. Disponível em: <Disponível em: https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias/-/mpv/141145 >. Acesso em 31 ago 2020.
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, que flexibilizou regras trabalhistas e permitiu que o empregador determinasse unilateralmente a alteração do regime de trabalho, do presencial para o remoto, ou seja, para o teletrabalho. Esta medida vigorou no período de 22 de março até 19 de julho de 2020.
No Brasil, a terminologia teletrabalho foi incluída na CLT como um capítulo (II-A) na última contrarreforma trabalhista em 2017. A princípio, deveria ocorrer em um acordo voluntário entre o trabalhador e patrão(ões). Porém, a Lei nº 13.467/2017 (Brasil, 2017)BRASIL. Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017. Altera a consolidação das leis do trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, e as Leis nºs 6.019, de 3 de janeiro de 1974, 8.036, de 11 de maio de 1990, e 8.212, de 24 de julho de 1991, a fim de adequar a legislação às novas relações de trabalho. Vigência Brasília, DF: Ministério do Trabalho, 2017. Disponível em: <Disponível em: https://legislacao.presidencia.gov.br/atos/?tipo=LEI№=13467&ano=2017&ato=91eUTTU5EeZpWTaca >. Acesso em 31 ago 2020.
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estabelece a possiblidade de alteração do regime presencial e de teletrabalho por determinação do empregador (registro em aditivo contratual), com a garantia de um prazo de transição mínima de quinze dias (Art. 75-C, Lei Nº. 13.467/2017).
Esta legislação nos induz à compreensão de que o empregador tem a prerrogativa sobre o trabalhador quanto à definição da modalidade de trabalho. Prevê, ainda, que deve constar no contrato de trabalho as atividades a serem realizadas e a quem se dará a responsabilidade pelos custos de aquisição, manutenção ou fornecimento dos equipamentos tecnológicos e da infraestrutura (Art. 75-D, Lei Nº. 13.467/2017).
Por não definir a responsabilidade pelos custos de instalação e manutenção dos associados à prestação da atividade profissional em casa (aumento do consumo de água, gás, eletricidade e internet) do empregador ao trabalhador, o teletrabalho pode favorecer as empresas pela diminuição de custos de consumo, energia, transporte do empregado e locação de espaços, transferindo as despesas aos trabalhadores.
Diversos outros aspectos carecem de esclarecimento na normativa. Por exemplo, como se dá o acordo sobre a localização para realização das atividades, na residência do trabalhador ou em outro local? Quais os horários de trabalho, os meios de comunicação a utilizar, os mecanismos de supervisão e as modalidades de apresentação de entregas sobre o trabalho realizado? Como se dará a comunicação de acidentes de trabalho? Quem fará a avaliação de riscos físicos e psicossociais e, além disso, como e quando podem ser feitas?
Quando se trata dos riscos do teletrabalho, a legislação versa que “o empregador deverá instruir os empregados, de maneira expressa e ostensiva, quanto às precauções a tomar a fim de evitar doenças e acidentes de trabalho”, dessa forma, o empregado deverá assinar um termo de responsabilidade, comprometendo-se a seguir as instruções fornecidas por quem o emprega (CLT, Art. 75-E, Lei Nº. 13.467/2017). Porém, quais são os fatores de riscos a serem observados no teletrabalho? Quem avalia e julga tais riscos no ambiente domiciliar sob uso das TICs?
Diante dos fatores que devem constar na política do teletrabalho, devemos estar atentos aos projetos de lei (PL) em andamento para o desenvolvimento desta modalidade na Câmara dos Deputados, como: Projeto de Lei PL 2251/2020 (apensado ao PL 8501/2017); e no Senado Federal (PL n.º 3.512/2020; PL n.º 4.006/2020, e o PL n.º 266/2017), para que garantam a regulamentação e considerem também a saúde dos trabalhadores.
Destacamos que, dentre as propostas, há previsão de obrigação do empregador a fornecer e manter os equipamentos e a infraestrutura necessária e adequada à prestação do trabalho em regime de teletrabalho, ressalvado o disposto em acordo coletivo, bem como a reembolsar o empregado pelas despesas de energia elétrica, telefonia e internet.
No entanto, a imprecisa recomendação de que a empresa forneça infraestrutura não garante que o trabalhador tenha o espaço e as condições adequadas para realização das suas atividades de trabalho, nem resolve os riscos psicossociais. Além disso, a legislação, após a reforma trabalhista, deixa de reconhecer o trabalhador como parte integrante de um coletivo no que tange o acordado sobre o legislado, contribuindo para enfraquecer sentimentos de pertença a um grupo social.
Os projetos preveem, ainda, estabelecimento de jornada de trabalho e regulação da questão dos acidentes de trabalho. Em termos das questões de saúde para teletrabalhadores, os desafios mais comumente reconhecidos versam sobre os fatores psicossociais de risco discutidos neste estudo, que fazem parte de aspectos da organização do trabalho, conhecidos como ergonomia cognitiva e não física. Devemos estar atentos, uma vez que as políticas podem ser influenciadas para os benefícios de alguns grupos, e a legislação trabalhista pode ser desigual, dependendo de interesses corporativos (Oakman et al., 2014OAKMAN, M. et al. (2014). State of the art: the context of psychosocial factors at work in the Asia Pacific. In: SHIMAZU, A. Psychosocial factors at work in the Asia Pacific. Amsterdam: Springer Netherlands, 2014. p. 3-26. DOI: 10.1007/978-3-319-44400-0
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).
Considerações finais
Ao mapearmos “o iceberg do teletrabalho”, revelamos que há mais a ser discutido, sob o risco de colidirmos com o que está submerso, porém não totalmente desconhecido. A ausência de dados oficiais sobre teletrabalho no Brasil no ano de 2021 nos impede de retratar um panorama atual e, consequentemente, subsidiar o planejamento e discussão de agendas políticas diante de tantas indagações aqui levantadas.
Neste ensaio foram discutidos três aspectos associados ao teletrabalho, são eles: pode assumir diferentes formas, não tem sido possível a todos e não é isento de riscos à saúde para quem o executa. Entre estes últimos, destacam-se: os riscos psicossociais, o tempo de trabalho, os riscos ambientais e físicos. Todos os citados são difíceis de serem avaliados. Até o momento, não temos dados que nos permitam examinar todos os efeitos (a curto, médio e longo prazo) para a saúde do teletrabalhador.
Faz-se necessário retomar a atualização da Lista de Doenças Relacionadas ao Trabalho (LDRT) na agenda das políticas públicas de saúde, publicada e revogada pelo Ministério da Saúde (MS) em 2020. Esta, já considera as grandes transformações ocorridas nos processos produtivos e suas consequências para a saúde dos trabalhadores, incluindo aspectos de riscos relacionados à biomecânica do trabalho e aos fatores psicossociais presentes antes da pandemia.
A análise do panorama no primeiro ano da pandemia demonstra um suposto o potencial da modalidade do teletrabalho. Dizemos suposto uma vez que, além de refletir a desigualdade do país, a inclusão digital e outros fatores aqui discutidos podem dificultar sua implementação. Isso levanta a possibilidade de uma nova divisão entre aqueles que podem realizá-lo e aqueles que não o tem a seu alcance. Esta maior vulnerabilidade se sobrepõe às desigualdades já existentes no mundo do trabalho. A maioria das atividades de trabalho pouco qualificadas e de baixa remuneração, também por sua essência, não são viáveis ao teletrabalho, acentuando as distâncias sociais e dificultando a coesão social.
As organizações, públicas e privadas, que utilizaram o teletrabalho pela primeira vez, podem considerar a sua adoção como uma prática de trabalho moderna e a ser mantida a longo prazo. Portanto, devemos estar atentos para que o teletrabalho não se torne um arquétipo de flexibilidade de direitos e regulamentação, em direção às formas cada vez mais precárias de relações trabalhistas.
A experiência adquirida no Brasil durante a pandemia da covid-19 expõe a fragilidade da legislação trabalhista no que se refere à proteção do trabalhador. Desse modo, emerge a necessidade de debates sobre a reformulação de políticas públicas que garantam os direitos sociais, inibindo cenários de desregulamentação associadas a regressos sociais e desamparo para os trabalhadores, bem como contribuindo para regulação do teletrabalho com o olhar para um cenário pós-pandemia.
Agradecimentos
Ao Programa de pós-graduação em Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública da USP e à CAPES, pelo apoio à Evelise Dias Antunes; ao CNPq, Bolsa de produtividade 1A Processo 306963/2021-3, pelo apoio a Frida Marina Fischer; à entidade portuguesa FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P, pelo apoio no âmbito do projeto UIDB/00050/2020.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
30 Out 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
29 Jan 2022 -
Revisado
25 Nov 2022 -
Aceito
20 Mar 2023