Resumo
A partir da experiência do projeto Respostas Indígenas à COVID-19 no Brasil: arranjos sociais e saúde global (PARI-c), na região do Alto Rio Negro (AM), buscamos refletir neste artigo sobre as possibilidades e implicações da produção colaborativa de conhecimento com pesquisadoras indígenas, levando em consideração a emergência sanitária, as imobilidades territoriais, as desigualdades sociais e as diferenças epistemológicas e de políticas ontológicas. A partir da ideia de Cestos de conhecimento, pensamos as formas e possibilidades dessa colaboração, à luz de discussões contemporâneas sobre processos de “descolonização” da saúde pública (global, planetária) e do conhecimento em saúde. A base empírica para este artigo é uma descrição da experiência metodológica, de produção de conhecimento, focada em duas faces: o campo e a escrita. Esse material nos permite tecer algumas considerações em torno da relevância e do sentido de formas de geração de “saberes híbridos”, para lidar com contextos de crises globais ou sindemias. Estas formas, como veremos, atravessam o realinhamento das alianças e têm na escrita de mulheres um lugar especial de atenção.
Palavras-chave:
Saúde indígena; Amazônia; Antropologia; Gênero; Etnografia online
Abstract
From the experience of the project Indigenous Responses to COVID-19 in Brazil: social arrangements and global health (PARI-c), in the region of Alto Rio Negro (AM), we seek to reflect in this article on the possibilities and implications of collaborative knowledge production with indigenous researchers, taking into account the health emergency, territorial immobilities, social inequalities, and epistemological and ontological policy differences. From the idea of Baskets of knowledge, we think about the forms and possibilities of this collaboration, in the light of contemporary discussions on processes of “decolonization” of public health (global, planetary) and health knowledge. The empirical basis for this article is a description of the methodological experience of knowledge production, focused on two aspects: the field and writing. This material allows us to make some considerations around the relevance and meaning of ways of generating “hybrid knowledge”, to deal with contexts of global crises or syndemics. These ways, as we shall see, cross the realignment of alliances and find a special focal point on women’s writing.
Keywords:
Indigenous peoples’ health; Amazon; Anthropology; Gender; Online ethnography
Introdução
A partir da experiência do projeto Respostas Indígenas à COVID-19 no Brasil: arranjos sociais e saúde global (PARI-c), na região do Alto Rio Negro (AM), buscamos refletir nesse artigo sobre as possibilidades e implicações da produção colaborativa de conhecimento entre pesquisadores não-indígenas e pesquisadoras indígenas, levando em consideração a emergência sanitária, as distâncias e imobilidades territoriais, as desigualdades sociais e as diferenças epistemológicas e de políticas ontológicas. Tomamos como imagem conceitual a ideia de Cestos de conhecimento, elaborada por Elizângela Costa (2021a)COSTA, E. S. Mulheres do Rio Negro e seus Cestos de Conhecimento durante a pandemia de COVID-19. Plataforma de Antropologia e Respostas Indígenas à COVID-19, v. 1, n. 5, 2021a. Disponível em: <Disponível em: http://www.pari-c.org/artigo/33 >. Acesso em: 28 nov. 2021.
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, para pensarmos as formas e possibilidades dessa colaboração.
Esse artigo se inscreve em discussões contemporâneas sobre a necessidade de efetivar processos de “descolonização” da saúde pública (global, planetária) e do conhecimento em saúde (Nunes; Louvison, 2020NUNES, J.A., LOUVISON, M. Epistemologias do Sul e descolonização da saúde: por uma ecologia de cuidados na saúde coletiva. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 29, n. 3, e200563, 2020. DOI: 10.1590/S0104-12902020200563
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; Biehl, 2021BIEHL, J. Descolonizando a saúde planetária. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 27, n. 59, p. 337-359, 2021. DOI: 10.1590/S0104-71832021000100017
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; Dias, 2021DIAS, D. M. À Luz da diferença: responsabilidade, alteridade e a “lógica do cuidado”. Revista USP, São Paulo, n. 128, p. 77-95, 2021. DOI: 10.11606/issn.2316-9036.i128p77-95
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; Baquero; Benavidez Fernández.; Aguilar, 2021BAQUERO, O. S.; BENAVIDEZ FERNÁNDEZ, M. N.; AGUILAR, M. A. From Modern Planetary Health to Decolonial Promotioin of One Health of Peripheries. Frontiers in Public Health, Lausanne, v. 9, 637897. DOI: 10.3389/fpubh.2021.637897
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; Thambinathan; Kinsella, 2021THAMBINATHAN, V., KINSELLA, E. Decolonizing Methodologies in Qualitative Research: Creating Spaces for Transformative Praxis. International Journal of Qualitative Methods, Thousand Oaks, v. 20, p. 1-9, 2021. DOI: 10.1177/16094069211014766
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). Construir maiores diálogos e ecologias de saberes, pluriepistemologias, epistemologias colaborativas, abrir espaço para saberes marginalizados e engajar-se em conhecimentos participativos, “emancipatórios”, para além da (meta)normatividade da “ciência normal”, parece, de fato, uma urgência (Giatti, 2022GIATTI, L. L. Integrating uncertainties through participatory approaches: on the burden of cognitive exclusion and infodemic in a post-normal pandemic. Futures, Amsterdam, v. 136, 2022. DOI: 10.1016/j.futures.2021.102888
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). Mas como fazê-lo? Se durante a pandemia de covid-19 as mulheres indígenas rionegrinas mobilizaram seus Cestos de Conhecimentos1
1
Na sua primeira Nota de Pesquisa, Elizângela desenvolve a imagem conceitual de Cestos de Conhecimentos. A ideia “vem da minha reflexão sobre um ritual coletivo realizado com o acompanhamento dos pajés, parentes próximos e amigas (mulheres já casadas). Este ritual é muito praticado no rio Negro com o intuito de formar as crianças, nesse caso, as meninas que estão se tornando adultas. (…) Este ritual é conhecido como kariamã em yegatu — uma das línguas cooficiais de São Gabriel da Cachoeira (…). Kariamã é um termo muito complexo e amplo, que não tem uma tradução para o português, mas que pode ser entendido como o ritual da moça nova, que ocorre quando a moça tem sua primeira menstruação. São múltiplos os conhecimentos repassados à menina durante o ritual, e o Cesto de Conhecimento, colocado em prática com o surgimento da pandemia em São Gabriel da Cachoeira, é uma pequena fatia do que nele se aprende. O ritual do kariamã é um processo de formação, como se fosse uma escola” (Costa, 2021a)
, como “abrir espaços para práxis transformativas” (Thambinathan; Kinsella, 2021THAMBINATHAN, V., KINSELLA, E. Decolonizing Methodologies in Qualitative Research: Creating Spaces for Transformative Praxis. International Journal of Qualitative Methods, Thousand Oaks, v. 20, p. 1-9, 2021. DOI: 10.1177/16094069211014766
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) que permitam participar da manufatura de estes outros cestos textuais, públicos, abertos à participação de pessoas não-indígenas, graças à sua generosidade? Mais ainda, quais as possibilidades de colaboração e de construção coletiva de novos cestos no meio da crise, através dos múltiplos distanciamentos, na mediação quase exclusiva de comunicações remotas?
Por outro lado, considerando todo o esforço das mulheres rionegrinas para colocar uma noção de Cuidado no centro das relações com a pandemia de covid-19 e suas políticas associadas2 2 O Departamento de Mulheres Indígenas do Rio Negro (DMIRN) criou, no início da pandemia de Covid-19, a campanha Rio Negro, nós cuidamos!. Para maiores informações sobre a campanha, acesse: https://noscuidamos.foirn.org.br/ Acesso em: 26 out. 2022. , considerando o vínculo fundamental desta noção com as práticas regionais de “conhecimento” e, levando em consideração o esforço desta equipe de pesquisa para entender esse Cuidado na sua centralidade cosmopolítica3 3 Não cabe aqui ampliar as explicações sobre cuidado e cosmopolítica, sugerimos ver Olivar et al. (2021), bem como o Estudo de Caso (Costa et al., 2022). Nessa linha, foi concebido o projeto “Cosmopolíticas do cuidado no fim-do-mundo”, financiado pela FAPESP na linha Jovem Pesquisador Fase 2 e coordenado por Olivar. , como, então, o Cuidado impacta os esforços metodológicos e de pesquisa? Dito de outra forma, que implicações teórico-metodológicas para o campo da pesquisa social em saúde pode ter uma prática cosmopolítica de Cuidado como a mobilizada pelas mulheres rionegrinas? Note-se que estas e outras perguntas tratam de questões associadas ao espaço híbrido, entre ética, política, teoria e metodologia de pesquisa, sem que seja possível reduzi-las a guias ou a enquadramentos burocrático-administrativos de controle “ético” da pesquisa “em seres humanos”4 4 Essa afirmação guarda relação com a abundante produção antropológica brasileira sobre “Comitês de Ética”, veja, por exemplo: Sarti e Duarte (2013), Schuch e Victora (2015), entre muitos outros. .
Estas e outras perguntas guiaram a prática metodológica da equipe Norte Amazônico. Não todas, nem sequer a maioria delas, chegaram a ser respondidas e muito menos completamos a construção de um modelo de “boas práticas”. As perguntas são guias de reflexão ética, dúvidas, demoras na urgência da resolução, seguindo a lógica de Isabelle Stengers (2018STENGERS, I. A proposição cosmopolítica. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 69, p. 442-464, 2018. DOI: 10.11606/issn.2316-901X.v0i69p442-464
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) na sua “Proposição Cosmopolítica”. À luz destas, nos propomos a fazer uma análise do desenvolvimento metodológico da pesquisa sobre a resposta das mulheres indígenas à covid-19 no Alto Rio Negro. Para isso, começamos fazendo uma breve contextualização da pesquisa PARI-c, estritamente no que diz respeito ao estudo focado no Alto Rio Negro. Na sequência, descrevemos a experiência metodológica de produção de conhecimento focada em duas faces: o campo e a escrita. Por fim, realizamos algumas considerações finais em torno da relevância e do sentido de formas de geração de “saberes híbridos” (Gatti et al., 2021) para lidar com contextos de crises globais ou sindemias. Estas formas, como veremos, atravessam o realinhamento das alianças-à-distância e têm na escrita de mulheres (Anzaldua, 2000ANZALDÚA, Gloria. Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 8, n. 1, p. 229-236, 2000. DOI: 10.1590/%25x
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; Evaristo, 2018EVARISTO, C. Becos da memória. Rio de Janeiro: Pallas, 2018.) um lugar especial de atenção.
A pesquisa PARI-c no Norte Amazônico
O projeto Respostas Indígenas à COVID-19 no Brasil: arranjos sociais e saúde global teve como objetivo
produzir conhecimento que atue neste interstício, entre os campos científicos e entre as agências de saúde e organizações indígenas, não somente como tradutores/agentes, mas como potenciais consultores científicos no auxílio à compreensão dos modos de existência dos povos indígenas e das implicações para a prevenção da doença, morte e outras formas de perda nesta pandemia (PARI-c, 2021PARI-c - Plataforma de Antropologia e Respostas Indígenas à COVID-19 . Respostas indígenas à covid-19no brasil: arranjos sociais e saúde global - Projeto de pesquisa. Porto Alegre, 2021. Disponível em: <Disponível em: www.pari-c.org >. Acesso em: 8 nov. 2022
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A pesquisa foi inteiramente desenvolvida em comunicação remota. Suas bases de possibilidade foram “redes estabelecidas previamente, entre pesquisadores(as) da equipe e pessoas e coletivos indígenas, bem como com interlocutores não indígenas com experiência nos temas saúde e povos indígenas” (PARI-c, 2021PARI-c - Plataforma de Antropologia e Respostas Indígenas à COVID-19 . Respostas indígenas à covid-19no brasil: arranjos sociais e saúde global - Projeto de pesquisa. Porto Alegre, 2021. Disponível em: <Disponível em: www.pari-c.org >. Acesso em: 8 nov. 2022
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, p 3). O trabalho envolveu: 1) análises situacionais rápidas e notas informativas sobre as políticas; 2) estudos de caso de cunho etnográfico, selecionados para descrever a diversidade dos contextos indígenas e de saúde pública nas quatro regiões brasileiras; e 3) articulação e disseminação via portal na internet (plataforma PARI-c) de informações públicas. (PARI-c, 2021PARI-c - Plataforma de Antropologia e Respostas Indígenas à COVID-19 . Respostas indígenas à covid-19no brasil: arranjos sociais e saúde global - Projeto de pesquisa. Porto Alegre, 2021. Disponível em: <Disponível em: www.pari-c.org >. Acesso em: 8 nov. 2022
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, p. 3-4)
A Equipe Norte Amazônico se organizou, tomando como base o conhecimento prévio e as redes dos dois coordenadores da equipe, Bruno Marques e José Miguel Olivar, que, por mais de dez anos e por caminhos diferentes, fazem pesquisa e trabalhos de colaboração sociopolítica na região do alto Rio Negro. A essa experiência se somou, posteriormente, a Profa. Flavia Melo (UFAM) que, durante alguns meses, colaborou na coordenação da equipe, particularmente atentando a outro estudo de caso entre Manaus e a região do alto rio Solimões (não sendo o objeto deste artigo). Para o caso do Rio Negro, durante 2020, tempo de preparação do projeto, ficou evidente o enorme protagonismo das mulheres rionegrinas na resposta à pandemia de Covid-19. Ao mesmo tempo, a que viria a ser a equipe da pesquisa foi se organizando e ensaiando as primeiras formas de trabalho conjunto, colaborativo e remoto, bem como as primeiras tentativas de análise (Olivar et al., 2021OLIVAR, J. M. N. et al. ‘Rio Negro, We care’. Indigenous women, cosmopolitics and public health in the COVID-19 pandemic. Global Public Health, London, p. 1-16, 2021. DOI: 10.1080/17441692.2021.1959941
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)6
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Esse trabalho foi possível por financiamento Fapesp de auxílio regular sob responsabilidade de Olivar; processo 2019/01714-3.
. A estrutura base da equipe rionegrina e deste Estudo de Caso foi favorecida e modelada pelas relações construídas com mulheres indígenas em torno de questões da política indígena/indigenista com/sobre mulheres, gênero, violência e “cuidado”7
7
Importante ressaltar que existe uma parceria de trabalho colaborativo da FSP/USP com o Instituto Socioambiental (ISA), com o DMIRN/FOIRN e, mais recentemente, com o Observatório de Violência de Gênero no Amazonas (OVGAM) da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), em torno das questões de violência e gênero com mulheres indígenas.
.
A equipe da pesquisa contou com duas ex-coordenadoras do Departamento de Mulheres Indígenas da Federação de Organizações Indígenas do Rio Negro (DMIRN/FOIRN). Francineia Fontes, da etnia Baniwa, mestre e doutoranda no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e Elizângela Costa, de etnia Baré, a docente e socióloga que liderou a impressionante resposta institucional da FOIRN à covid-19 em 2020. Junto com elas, trabalhou a cientista social e, então, mestranda em Saúde Pública na Universidade de São Paulo (USP), Dulce Morais. Além delas, participaram também da pesquisa a estudante de graduação em Saúde Pública (USP) localizada em São Paulo, Julia Kaori Tomimura, e, em São Gabriel da Cachoeira, a liderança, agricultora e pesquisadora local Norma Orjuela (de etnia Tuyuka).
Como foi descrito antes, os produtos previstos no projeto eram Notas de Pesquisa curtas e periódicas e um Estudo de Caso final (todo esse material pode ser consultado na Plataforma PARI-c). Na nossa equipe, o processo todo foi orientado pelo Estudo de Caso. Para tanto, nos propusemos a seguir as hipóteses que tinham sido levantadas em exercício preliminar (Olivar et al., 2021OLIVAR, J. M. N. et al. ‘Rio Negro, We care’. Indigenous women, cosmopolitics and public health in the COVID-19 pandemic. Global Public Health, London, p. 1-16, 2021. DOI: 10.1080/17441692.2021.1959941
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), entorno do caráter cosmopolítico dessa resposta caracterizadamente feminina, e da relação com as lutas e as tensões sociopolíticas do movimento indígena rionegrino e das mulheres nele presentes.
Desenvolvimento
Apresentamos o nosso material empírico para este artigo (isto é, o desenvolvimento metodológico que levamos adiante) em duas faces: a primeira, destinada ao “campo”, a segunda, à “escrita”. “Campo” e “escrita”, neste estudo, obedecem menos a uma sequencialidade, de fato parcialmente existente, do que a modos de relação com as pessoas e a produção de conhecimento8 8 Esta divisão não é plenamente satisfatória para uma pesquisa etnográfica regular (Strathern, 2014; Fonseca, 2017), muito menos para pesquisas sociais no marco pandêmico (Deslandes; Coutinho, 2020) e menos ainda na que é aqui analisada; contudo, ela nos ajuda na inteligibilidade. .
Campo
Em fevereiro de 2020, Dulce Morais foi pela primeira vez para São Gabriel da Cachoeira realizar trabalho de campo, de caráter etnográfico, para sua dissertação de mestrado entorno das relações do Estado, da violência e das mulheres indígenas na cidade, focando em feminicídio (Morais, 2022MORAIS, D. M. M. De documentos, cactos e vírus: violência sexual, mulheres indígenas e Estado em São Gabriel da Cachoeira. 2022. 175 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) - Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, 2022.). Esse trabalho esteve associado à parceria entre a Faculdade de Saúde Pública da USP, o Instituo Socioambiental (ISA), o DMIRN e o Observatório de Violência de Gênero na Amazônia - vinculado à Universidade Federal do Amazonas (OVGAM/UFAM) -, e foi elaborado entorno das questões de gênero, violência e mulheres na região. Na época, Elizângela, junto a Janete Alves (de etnia Dessana), começava seu último ano como coordenadora do DMIRN; e Francineia encontrava-se no Rio de Janeiro, desenvolvendo seus estudos de doutorado, então direcionados a pensar a história baniwa desde as perspectivas das mulheres. Entre o final de fevereiro e início de março, José Miguel, junto com Dulce, mais uma estudante da FSP/USP (Danielle Ichikura) e a coordenadora do OVGAM (Profa. Flávia Melo) estiveram em São Gabriel da Cachoeira, trabalhando com o DMIRN no levantamento e análise de informações sobre violência contra mulheres indígenas na cidade. O Sarscov-2 aparecia no horizonte distante e ainda havia dúvidas sobre sua capacidade de chegar “aqui”. Por fim, Bruno Marques, que desde 2007 estuda e trabalha junto com o povo Hupd`äh, tendo colaborado com o movimento indígena, a FUNAI (Fundação Nacional do Índio) e o ISA nos trabalhos de elaboração do PGTA (Plano de Gestão Territorial e Ambiental) da Terra Indígena Alto Rio Negro, encontrava-se morando em Goiânia, pronto para iniciar um pós-doutorado vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de São Carlos.
Com a chegada da pandemia de covid-19 a Manaus, capital do estado do Amazonas, em 13 de março de 2020, a vida das mulheres na cidade, como era o caso de Elizângela, foi tomada pelo medo, pela desinformação e pela necessidade de preparar-se para a nova ameaça. Os receios e os pavores que as mulheres indígenas vinham relatando e, posteriormente, suas mobilizações ao combate à pandemia, foram ganhando centralidade. As ideias de isolamento - doméstico e territorial - e o medo intensificado da cidade se cruzaram com as evidências muitas vezes levantadas e vivenciadas de absoluta inequidade e insuficiência do hospital local (Hospital da Guarnição, administrado basicamente pelo Exército Brasileiro). No caso de Francineia, sua trajetória a colocou na particularmente sofrida posição de ficar isolada, longe da sua terra e da sua família, numa cidade estranha, difícil e distante, que é, paradoxalmente, associada ao local mítico de origem rionegrino: o Rio de Janeiro9 9 O Lago de Leite, associado mito-historicamente com a Baía de Guanabara e o Rio de Janeiro, é o lugar de origem da Cobra-Canoa, origem de humanidades rionegrinas. Ver, entre outros, Lasmar (2005). .
Para Elizangela e Francineia, conectadas com outras tantas mulheres de diversas etnias que viviam - de formas muito diferentes - na região, começou um exercício intensivo de estudo, de “investigação-ação” (Tripp, 2005TRIPP, D. Pesquisa-ação: uma introdução metodológica. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 3, p. 443-466, 2005.) e de experimentação, para tentar entender o que estava acontecendo e mobilizar as melhores formas de “Cuidar” da sua terra e dos parentes. Nesse processo, como mostramos amplamente em artigo precedente e nas Notas de Pesquisa (Olivar et al., 2021OLIVAR, J. M. N. et al. ‘Rio Negro, We care’. Indigenous women, cosmopolitics and public health in the COVID-19 pandemic. Global Public Health, London, p. 1-16, 2021. DOI: 10.1080/17441692.2021.1959941
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; Costa, 2021aCOSTA, E. S. Mulheres do Rio Negro e seus Cestos de Conhecimento durante a pandemia de COVID-19. Plataforma de Antropologia e Respostas Indígenas à COVID-19, v. 1, n. 5, 2021a. Disponível em: <Disponível em: http://www.pari-c.org/artigo/33 >. Acesso em: 28 nov. 2021.
http://www.pari-c.org/artigo/33...
, 2021bCOSTA, E. S. Mulheres do rio Negro e os impactos da pandemia de COVID-19. Plataforma de Antropologia e Respostas Indígenas à COVID-19, v. 1, n. 8, set. 2021b. Disponível em: <Disponível em: http://www.pari-c.org/artigo/60 >. Acesso em: 28 nov. 2021.
http://www.pari-c.org/artigo/60...
; Fontes, 2021aFONTES, F. B. Tão perto, tão longe: relatos de epidemias do presente e do passado no Noroeste Amazônico. Plataforma de Antropologia e Respostas Indígenas à COVID-19, v. 1, n. 9, 2021a. Disponível em: <Disponível em: http://www.pari-c.org/artigo/64 >. Acesso em: 8 nov. 2022.
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, 2021bFONTES, F. B. Notas sobre a força dos remédios indígenas no Alto Rio Negro, Amazonas. Plataforma de Antropologia e Respostas Indígenas à COVID-19, v. 1, n. 4, 2021b. Disponível em: <Disponível em: http://www.pari-c.org/artigo/23 >. Acesso em: 8 nov. 2022.
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; Costa et al., 2022COSTA, E. S. et al. Mulheres indígenas e cosmopolíticas do cuidado no Alto Rio Negro. Plataforma de Antropologia e Respostas Indígenas à COVID-19, 2022. Disponível em: <Disponível em: http://www.pari-c.org/estudo/4 >. Acesso em: 8 nov. 2022.
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), a investigação levada adiante por elas e entre elas e seus homens foi estritamente colaborativa, pluriepistêmica e não orientada por gramáticas acadêmicas: uma rede enorme de mulheres e homens investigando e experimentando novos e conhecidos remédios tradicionais, benzimentos, formas de resguardo e cercamento das terras e dos corpos, explicações míticas, remédios alopáticos, explicações científicas, explicações religiosas, “recomendações sanitárias”, além de formas de gestão da informação, de arrecadação de dinheiro, tecidos, máscaras, álcool, alimentos, gasolina e oxigênio, através de todas as parcerias possíveis.
Todo conhecimento é um processo comunitário, como indica Elizângela no último parágrafo deste artigo, é o processo de tornar comum, como sugere Stengers (2015STENGERS, I. No tempo das catástrofes. São Paulo: Cosac Naify, 2015.). Nessa “investigação-ação” emergencial, o caráter “participativo”, “colaborativo” é comunitário . Note-se, não é um modo posterior de qualificação da produção de conhecimento, é a própria natureza do conhecimento e da relação na qual se constitui. É a participação e a colaboração simultaneamente mito-histórica, biográfica e cotidiana na produção de formas de viver e de resistir, o que define a investigação emergencial e a produção de conhecimento. Do mesmo modo, boa parte do “trabalho de campo” se articula com a própria experiência de sobreviver e responder ao marco pandêmico.
Em abril de 2020, o DMIRN, com o apoio do ISA, criou a campanha Rio Negro, nós cuidamos!. Sob o comando de Elizângela e de Janete, a campanha se tornaria o carro-chefe da resposta indígena rionegrina à pandemia, bem como um exemplo internacional. Enquanto isso, partindo do Rio de Janeiro, Frincineia mobilizava todos seus esforços para facilitar ajudas, participar das discussões e tomadas de decisões regionais, circular informação, acompanhar emocional e afetivamente seus parentes e registrar a experiência desse momento histórico. Através das “redes sociais” e da telefonia celular, começamos a manter comunicação mais frequente entre nós e cada um com suas redes mais próximas, e, tendo como pivô particularmente bem-posicionado a Dulce (em função de estar em pleno “campo” do mestrado com bolsa), conseguimos avançar num processo de sistematização mais etnográfica do tempo e da catástrofe em curso. Simultaneamente, os que não habitavam o Rio Negro se colocaram numa posição de “colaboração”, inserindo-se na rede de “investigação-ação” em relação de mão dupla: colaborando nos processos indígenas de aprendizado, de aquisição de informações, de produção de documentos etc., além de avançando na sistematização etnográfica dos acontecimentos. Por sua vez, Bruno e José Miguel se engajavam no início da formulação do projeto liderado pela amiga e antropóloga Maria Paula Prates, que receberia o financiamento da PARI-c durante os estudos na City, University of London.
A partir do início de 2021, com o financiamento aprovado e o agravamento da pandemia, particularmente no estado do Amazonas, começou formalmente o “trabalho de campo” desta pesquisa. Entre fevereiro e outubro de 2021, Elizângela e Francineia desenvolveram a parte mais intensa e principal da pesquisa de campo. Elizângela se mantinha entre a cidade de São Gabriel e o “sítio” da sua família, localizado no Rio Negro, alguns quilômetros à montante da cidade e Francineia conseguiu se deslocar até a cidade de São Gabriel e a sua comunidade, Assunção, no rio Içana (TI Alto Rio Negro), para mergulhar no convívio e no estudo junto a seus parentes e familiares.
As duas pesquisadoras se engajaram no exercício de traduzir em “pesquisa colaborativa” seu exercício constante de “investigação-ação” (Tripp, 2005TRIPP, D. Pesquisa-ação: uma introdução metodológica. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 3, p. 443-466, 2005.). Isto é, de aproximar sua prática de produção de conhecimento a uma prática de registro textual do próprio processo investigativo coletivo, que tinha como destino (1) leitores (2) “brancos”; (3) agentes institucionais ou acadêmicos; (4) de outras etnias e regiões; e (5) um outro tempo, ou seja, se o conhecimento experimentado por elas era “para já”, o dos textos ganhou relevância em relação com um tempo futuro, no qual estes registros históricos virão a ser lidos. Esse engajamento implicou o ato das pesquisadoras se colocarem no lugar de outras (amigas, parentes, colegas), como se posicionarem como mediadoras textuais de conhecimentos e mundos, além do seu próprio papel de conhecedoras distinguidas e lideranças sociais. Nota-se um pouco da complexidade trazida pela ideia de “pesquisadoras indígenas”, além dos complementos “colaborativa” e “participativa”, pois se trata da produção de conhecimento através de um emaranhado de relações fractais (rizomáticas) e remotas, situadas na urgência da resposta à pandemia, espalhadas no dia a dia e no percurso dos meses, além de na circulação de informações em vários sentidos. Observa-se uma diferença importante das relações mais tradicionais de pesquisa participativa, coletiva ou emancipatória, por exemplo, na realização de atividades comunitárias - offline -, processos de reflexão grupal, eventos de encontro localizados no tempo e no espaço.
O processo de produção e levantamento de informações conduzido por Elizângela e Francineia se desdobrava e continuava no acompanhamento que Bruno, José Miguel e, especialmente, Dulce, realizavam.
O uso de “redes sociais” passou a ser fundamental e muito mais intenso para todas nós. Inclusive para a investigação-experimentação levada a cabo pelas mulheres no Rio Negro. O WhatsApp e o Facebook se juntaram à tradicional radiofonia entre as comunidades. Uma extensa rede de busca e circulação de informações atravessou conversas corpo-a-corpo, deslocamentos físicos, trocas e pesquisas online, além de comunicações radiofónicas em diversas línguas. Todos os e as autoras, com exceção de Elizângela, acompanhávamos e participávamos “de perto” e muito de longe da vida que acontecia em São Gabriel através dessas “redes sociais” digitais. Em São Paulo, Dulce, após a sua saída emergencial de São Gabriel, passou a realizar o trabalho de campo de forma totalmente online. Interações, “campo”, seguimento e rastreamento de redes e de informações aconteciam a partir do monitoramento constante de postagens no Facebook, e da intensidade cotidiana de relações através do WhatsApp. O ritmo destes acompanhamentos e interações foi variável e dependente do comportamento da pandemia, das demandas locais, das condições e possibilidades da equipe de pesquisa; desde 2020, muitas fases destas relações implicaram trabalho diário durante meses, outras vezes implicaram importantes afastamentos. Desde antes do início da pandemia estávamos em contato frequente através deste aplicativo, tanto individual como coletivamente, sendo que José Miguel, Dulce e Bruno já participavam de diversos grupos online com pessoas da região e Francineia mantinha a mais intensa comunicação remota com seus parentes e amigos. Assim, havia uma dispersa participação cotidiana em espaços comunitários ou políticos digitais, bem como participação mais intensa e focalizada em grupos ou espaços criados especificamente para a compreensão e o enfrentamento da pandemia.
Nesse processo, a centralidade do caderno de campo foi perdendo espaço, porque as informações vinham de diferentes ferramentas e em uma velocidade muito diferente da que temos em um trabalho de campo presencial10 10 Sobre pesquisa antropológica online, ver Parreiras (2015); e sobre estas pesquisas durante a pandemia de covid-19, ver o dossiê organizado por Lins; Parreiras e Freitas (2020). Ver também a própria Plataforma PARI-c, disponível em http://www.pari-c.org/. Acesso em: 26 out. 2022 . Dulce produziu um banco de dados com prints informando data, hora e fonte, além de anotar conversas telefônicas no caderno de campo e transcrever áudios enviados pelo WhatsApp, tanto em conversas individuais como em diversos grupos.
Entre abril e julho de 2021, Dulce realizou entrevistas semiestruturadas com cinco mulheres lideranças indígenas e uma não indígena sobre a vida das mulheres na região, o processo pandêmico na cidade e as ações de enfrentamento através da campanha Rio Negro, nós cuidamos!. As entrevistas foram realizadas de forma remota, via Google Meet, com duração aproximada de uma hora. Ligações cortadas, conversas interrompidas por quedas no sinal, trechos de áudio incompreensíveis, além da dificuldade de algumas das entrevistadas para conseguir um computador, um sinal de internet aceitável e o tempo necessário para a entrevista foram alguns dos desafios encontrados. O roteiro dessas entrevistas foi colocado a prova e refinado com Elizângela. Esse processo se somava a todo o trabalho de campo da dissertação de Dulce e ao acompanhamento cotidiano via “redes sociais”.
Por fim, em uma visita presencial em outubro de 2021, José Miguel realizou três entrevistas corpo-a-corpo e diversas conversas informais, mantidas por ele e Dulce, com amigas e interlocutoras, além do reencontro corporal com Elizângela, o que, além da imensa alegria, trouxe valiosas informações e perspectivas. O “trabalho de campo” terminou formalmente em outubro de 2021 e a pesquisa geral em fevereiro de 2022.
Escrita
A produção de textos escritos, principalmente de Notas de Pesquisa e do Estudo de Caso, foi um método e um requisito. Porém, o ato da escrita não estava dado. Povos e grupos indígenas são definidos, e muitas vezes definem a si mesmos, como sociedades da oralidade. Essa questão foi muitas vezes colocada no percurso da pesquisa PARI-c, e é esse um dos enormes desafios implicados no acesso de pessoas indígenas a programas de pós-graduação (Ponso, 2018PONSO, L. Letramentos de re-existência no ensino superior indígena: desafios de uma política de interculturalidade. TETTAMANZY, A.; MIELCZARSKI, C. (Org.). Lugares de fala, lugares de escuta nas literaturas africanas, ameríndias e brasileira. Porto Alegre: Zouk, 2018. p. 233-252.). O exercício de pesquisa aqui analisado implicou um esforço para transitar (de ida e volta) da oralidade intensiva à escrita - assim como para outros meios.
Por outro lado, na perspectiva do campo acadêmico, a textualização escrita e padronizada do conhecimento, do mundo e da experiência, associadas a políticas particulares (e sobrestimadas) de autoria, são centrais e constituintes do campo. Estas políticas diferem entre os campos disciplinares e, nelas, a colaboração ocupa lugares diversos. Por exemplo, na antropologia foi comum pensar a relação dos pesquisadores com os “informantes” em campo como de colaboração para a produção do conhecimento, sem que isso redundasse, de um lado, no interesse dos “interlocutores” em escrever e partilhar publicamente da autoria (ou no reconhecimento de algum possível interesse por parte dos antropólogos), e do outro, em políticas consistentes de distribuição da autoria. Já no campo da saúde, é comum que a “colaboração” seja entre agentes institucionalizados, indivíduos ou grupos e incluso com setores industriais (veja recente mini coletânea da revista Nature (2021)NATURE. Research collaborations bring big rewards: the world needs more. Nature, Berlin, v. 594, n. 7863, 2021. DOI: 10.1038/d41586-021-01581-z
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sobre “colaboração”). No caso das pesquisas das áreas da saúde, a noção de “participativo” tem ocupado um lugar mais alternativo, “politizado” e emergente (Giatti et al., 2021GIATTI, L. L.; GUTBERLET, J.; TOLEDO, R.; SANTOS, F.. “Pesquisa participativa reconectando diversidade: democracia de saberes para a sustentabilidade”. Estudos Avançados, São Paulo, v. 35, n. 103, p. 237-253, 2021. DOI: 10.1590/s0103-4014.2021.35103.013
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; Giatti, 2022GIATTI, L. L. Integrating uncertainties through participatory approaches: on the burden of cognitive exclusion and infodemic in a post-normal pandemic. Futures, Amsterdam, v. 136, 2022. DOI: 10.1016/j.futures.2021.102888
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; Thambinathan; Kinsella, 2021THAMBINATHAN, V., KINSELLA, E. Decolonizing Methodologies in Qualitative Research: Creating Spaces for Transformative Praxis. International Journal of Qualitative Methods, Thousand Oaks, v. 20, p. 1-9, 2021. DOI: 10.1177/16094069211014766
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).
Para entender os caminhos seguidos na produção das Notas de Pesquisa, tomamos como objeto o processo de/com Elizângela. Ela fez graduação, é professora, liderança do movimento, tem interesse em pós-graduação e, durante quatro anos, trabalhou como coordenadora do DMIRN. Então nem as ferramentas tecnológicas nem o ato de escrever e plasmar no papel suas ideias e observações resultava estranho. Contudo, esse tipo de escrita mais acadêmica, mais dirigida a leitores não indígenas, objeto de crivos editoriais e de diversas traduções, organizada em lógicas de categorias e sínteses, era novo. Nesse processo, como retomaremos no final, é necessário destacar o fato de Elizângela ter encontrado para si a importância da escrita e o prazer que poderia lhe oferecer, lembrando assim as observações de autoras como Glória Anzaldua (2000ANZALDÚA, Gloria. Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 8, n. 1, p. 229-236, 2000. DOI: 10.1590/%25x
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) e, de forma mais próxima, Conceição Evaristo (2018EVARISTO, C. Becos da memória. Rio de Janeiro: Pallas, 2018.)11
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Como veremos adiante, a relação entre vivência, escrita e produção de conhecimento para a luta é fundamental para Elizângela. A escrevivência, termo cunhado por Evaristo (2018), permite que a autora, por meio de suas próprias narrativas, evoque uma história compartilhada.
.
A escrita das Notas funcionou assim: fizemos algumas primeiras reuniões entre Elizângela, Dulce e José Miguel, que se conectavam com o trabalho contínuo de orientação dos dois últimos, com as conversas de Dulce com Elizângela e com as reuniões de coordenação entre José Miguel e Bruno que, por sua vez, se conectavam com as reuniões de coordenação geral da pesquisa. Nessas reuniões, a voz e o conhecimento da Elizângela permitiam que focos, recortes, especificidades e prioridades fossem sendo construídos. Ninguém sabia melhor que ela para onde a pesquisa deveria ir. Após essas primeiras reuniões, e já tendo sido publicadas na Plataforma PARI-c algumas primeiras Notas de outras regiões, Elizângela começou a se aventurar na escrita.
Na primeira “entrega” de material ela apresentou um punhado de páginas que continham praticamente um programa de pesquisa e de reflexão-teorização pessoal-coletiva sobre a covid-19, os impactos nas mulheres indígenas, a relação com o processo colonial e as respostas indígenas. Quase uma síntese analítica, escrevivenciada (Evaristo, 2018EVARISTO, C. Becos da memória. Rio de Janeiro: Pallas, 2018.), do que poderia ser feito e do que ela estava fazendo. Com esse material em mãos era necessário decidir o que e como fazer. Voltamos às posições e às relações: Elizângela, desde o início da relação com José Miguel, em 2016 - quando da sua eleição como coordenadora do DMIRN, o chama de “professor”. “Professora” é como também é chamada Elizângela em muitos dos contextos comunitários e institucionais pelos quais circula. A relação de escrita e escrevivência relativamente compartilhada entre Elizângela, Dulce e José Miguel esteve mediada por essa ideia: de aprendizado, de respeito mútuo, de composição desde lugares diferentes, e de uma relativa e evidente hierarquização de relações. Elizângela queria otimizar seus recursos de escrita e ganhar em comunicabilidade, ao mesmo tempo que queria expor seus achados e argumentar suas ideias e pensamentos de pesquisa sem qualquer restrição (não-indígena e masculina, principalmente).
A partir da primeira “entrega” feita por Elizângela para o “Professor” e para “Ducinete” (como carinhosamente se referia a Dulce no WhatsApp), José Miguel propôs que esse material funcionasse como um índice para a escrita das Notas. Pelo menos três Notas de Pesquisa apareciam ali claramente desenhadas. José Miguel sabia que para colaborar nos Cestos de Conhecimentos possíveis, não podia simplesmente “corrigir” o texto ou assumir um lugar regular de orientador ou de coordenador, e, muito menos, de “revisor” ou de “par avaliador”. Ao mesmo tempo, sabia que não podia não interagir de forma mais ativa com o processo dela; pois de alguma forma, ela esperava que ele assumisse também seu lugar de “professor”. Afinal, era ela a possuidora dos conhecimentos centrais para essa pesquisa (e para o cuidado das vidas e dos territórios rionegrinos), e sua relação era uma de pares pesquisadores (mesmo assimétricas), de professores com um respeito mútuo muito alto; uma relação na qual o interesse de partilhar e aprender era grande. José Miguel propôs, primeiro, que ele leria o texto e faria todos os comentários possíveis, não avaliativos, da forma mais cuidadosa possível, buscando intensificar os conteúdos das informações e das análises de Elizângela e, depois, se ocupariam da camada mais formal, facilitando a comunicação e a leitura pelo público-alvo. José Miguel e Dulce seriam uma espécie de facilitadores da mediação do pensamento escrito de Elizângela para o público possível da plataforma PARI-c.
A partir daquele momento, foi um intenso processo de ida e volta de textos em word, com cores, sublinhados, comentários à margem, propostas de desenvolvimento, perguntas, dúvidas e provocações. Além disso, dado um princípio cultural de oralidade das pesquisadoras, foi acontecendo uma dinâmica de colaboração e reelaboração dos textos de forma oral, via abundantes mensagens de áudio de WhatsApp e de encontros através do Google Meet. Os trechos eram lidos, bem como as perguntas, e, dessa forma, eram “ditadas” também reformulações textuais que depois “baixavam” para o Word. Cada modificação do texto até o momento da publicação, ou que implicou passar por um crivo editorial mais formal e normativo da Plataforma, foi consultado, conversado com Elizângela e aprovado por ela. Assim foi também no caso das Notas escritas por Francineia e Dulce.
Por fim, a face de escrita teve um momento particular na criação do Estudo de Caso “Mulheres indígenas e cosmopolíticas do cuidado no Alto Rio Negro”. A base empírica para sua construção foi: materiais de campo de José Miguel e de Dulce, entrevistas realizadas por eles em 2021, as Notas de Pesquisa escritas por Dulce, Elizângela, Francineia e Norma Orjuela (2021ORJUELA, N. A pandemia de COVID-19 e seus impactos na vida dos moradores da Vila Tuyuka (São Gabriel da Cachoeira). Plataforma de Antropologia e Respostas Indígenas à COVID-19 , Porto Alegre, v. 1, n. 10, 2021. Disponível em: <http://www.pari-c.org/artigo/77>. Acesso em: 12 jun. 2022.
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) (moradora da cidade, de etnia Tuyuka), e o vídeo “Conseguimos!”, realizado em parceria com o ISA e com a Rede de Comunicação Indígena Wayuri, publicado na plataforma PARI-c12
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Para acesso às Notas de Pesquisas e o vídeo mencionado acesse: http://www.pari-c.org/. Acesso em: 26 out. 2022
. A responsabilidade da produção do caso foi de José Miguel, com o apoio de Dulce e da aluna Julia Kaori Tomimura. Entendendo que o Estudo de Caso não precisava ficar aprisionado a uma forma e a uma estética de Nota de Pesquisa ou de artigo acadêmico, a proposta foi a de realizar uma montagem pluritextual a partir das contribuições escritas e orais da grande diversidade de mulheres que habitavam e davam sentido aos materiais empíricos. Em acordo com as duas revisoras/avaliadoras do Estudo de Caso (as Profas. Aline Iubel e Maria Paula Prates), houve a compreensão de que não valeria a pena a sobrerredução analítica do material naquele momento e para o objetivo previsto (o documento Estudo de Caso a ser publicado exclusivamente na Plataforma Pari-c em português e em inglês).
O trabalho de montagem implicou a leitura dos materiais, a costura argumentativa e narrativa em resposta às perguntas da pesquisa e, por fim, a organização, curadoria e edição do texto final. Buscamos conceber um documento que mantivesse rastros da beleza e da sofisticação do pensamento das mulheres participantes, que preservasse resquícios das múltiplas perspectivas através das quais a pandemia de covid-19 foi experienciada, que mostrasse a complexidade e abundância de linhas e de flancos de intervenção através dos quais as mulheres e suas redes responderam à pandemia, às proposições governamentais e à distância das “recomendações sanitárias”. Renunciamos à centralidade da autoria acadêmica e do princípio de ser um texto sintético e informativo, de leitura rápida no mundo não-indígena, e optamos por conceber um documento, digamos, lento, que pede tempo e pode ser consultado em diversas ocasiões e leituras, por camadas.
Por fim, tratava-se de seguir duas noções que haviam sido muito importantes no processo e na compreensão da experiência rionegrina: as noções êmica de “cuidado” e o recurso analítico de cosmopolítica. O fato do texto do Estudo de Caso não estar reduzido a uma síntese analítica autoral e autorizada, mas ter-lhe sido permitido abrir-se e expandir-se ao dobro do tamanho previsto (de 12.000 palavras previstas para mais de 20.000 na versão publicada), de alguma forma se conecta com as ideias de “intervenção”, de “Slow Science”, de responsabilidade técnico-comunitária e de pluralidade ontoepistemológica que fazem parte da Proposição Cosmopolítica de Stengers (2015STENGERS, I. No tempo das catástrofes. São Paulo: Cosac Naify, 2015., 2018) (ver também De La Cadena e Blaser, 2018DE LA CADENA, M.; BLASER, M. (Ed.). A world of many worlds. Durham: Duke University Press, 2018.). Por outro lado, o fato de o texto do Estudo de Caso fugir da unicidade linguística e cognitiva da autoridade acadêmica e científica (masculina), e permitir-se crescer a partir do florescimento da escrita, da escrivivência (Evaristo, 2018EVARISTO, C. Becos da memória. Rio de Janeiro: Pallas, 2018.), do pensamento e da força poética de mulheres indígenas, pode se relacionar com as ideias, também associadas a cuidado, de blacklight e poética negra feminista, mobilizadas por Denise Ferreira da Silva (2017DA SILVA, D. F. Blacklight. In: MOLLOY, C.; PIROTTE, P.; SCHÖNEICH, F. (Ed.). Otobong Nkanga: luster and lucre. Berlin: Sternberg Press, 2017. p. 245-252., 2019DA SILVA, D. F. A dívida impagável. São Paulo: Casa do Povo, 2019.)13 13 Para uma reflexão crítica sobre o campo da saúde coletiva desde uma perspectiva da luz negra, ver Dias (2021). . Enquanto potencializado pela luz negra, em contraposição à branca luz do Iluminismo, o texto do Estudo de Caso ganha possibilidades de ser, em si mesmo, uma experimentação de cuidado na relação colaborativa de produção de conhecimento.
Considerações Finais
Neste artigo analisamos a experiência metodológica da equipe Norte Amazônico para a realização da pesquisa PARI-c na região do Alto Rio Negro. Nesse processo, foram participantes pessoas indígenas e não indígenas, homens e mulheres, que observamos na cidade de São Gabriel e na região do Alto Rio Negro, até as cidades distantes - além de algumas comunidades próximas. Pesquisadoras indígenas, cujo estatuto de pesquisadoras é variável e se torna uma construção no marco da pesquisa, foram a base não para o “levantamento de dados”, mas para a configuração e reconfiguração textual do que pode ser um outro Cesto de Conhecimentos.
Essa pesquisa só foi possível a partir da sua inserção em relações anteriores de trabalho, de afetos e de aliança política construídas a partir de empreendimentos etnográficos de longa duração, agenciados como parte de redes polimorfas de colaboração com diversos objetivos, e que já lidavam com múltiplos distanciamentos físicos e sociais, bem como com as mediações tecnológicas para a comunicação, o aprendizado e os afetos. Assim, esse artigo pode oferecer uma contribuição à dita “pesquisa qualitativa em saúde”, a partir de uma experiência concreta de engajamento multidimensional que, inclusive, ultrapassa os limites da antropologia e observa atentamente as discussões sobre pesquisa colaborativa e participativa.
Segundo Tripp (2005TRIPP, D. Pesquisa-ação: uma introdução metodológica. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 3, p. 443-466, 2005.), a “pesquisa-ação” se insere dentro de um processo maior e mais amplo, denominado “investigação-ação”. No caso aqui analisado há uma “investigação-ação” emergencial e urgente para “cuidar” do Rio Negro da pandemia de covid-19, protagonizada por Elizângela, por Francineia e por muitas outras mulheres lideranças indígenas no Rio Negro. Essa investigação buscou, em tempo real, entender o que estava acontecendo para conseguir agir. Enquanto lideranças e “investigadoras”, elas se tornam “pesquisadoras indígenas” da PARI-c, numa relação colaborativa e cocriativa com o mundo acadêmico. A pesquisa, então, se retroalimenta com a investigação, servindo para olhar “para além” do que já se sabia na prática, como descreveu Elizângela. E no caso de Bruno, de José Miguel e de Dulce, tratou-se de encontrar formas e dispositivos para poder colaborar com elas.
“Colaborar”, aqui, não é apenas a coautoria ou a poliautoria, nem a muito particular forma de “interlocução” classicamente antropológica, e nem sequer a “participação” de pessoas não-acadêmicas na produção acadêmica. Trata-se de um processo de tecido e cuidado de comunidades, do que pode vir a ser comum: um cesto de conhecimentos. Olhando com atenção o processo todo, o emaranhado de trajetórias e de relações, essa “participação” ação” adquirem outros matizes. De um lado, trata-se de uma colaboração entre pesquisadores e pesquisadoras em diversas posições, sendo atravessados por uma pandemia e por fronteiras interseccionais de identificação. Por outro lado, trata-se de uma colaboração ou uma produção coletiva de conhecimento, na qual o fato de ser coletiva adquire a forma, não de um artifício metodológico corretivo de pilares disciplinares modernos, mas da natureza em si, das relações estabelecidas pelas mulheres e homens protagonistas do conhecimento. Nessa “investigação”, as pessoas não indígenas, posicionadas em lugares de afirmação acadêmica e com evidente maior distância ontológica e política com a região, se dispõem a “colaborar” da melhor forma possível com a emergência sanitária e o processo de resposta.
Para o campo sanitário, essa colaboração tem a potência de produzir “saberes híbridos” (Giatti et al., 2021GIATTI, L. L.; GUTBERLET, J.; TOLEDO, R.; SANTOS, F.. “Pesquisa participativa reconectando diversidade: democracia de saberes para a sustentabilidade”. Estudos Avançados, São Paulo, v. 35, n. 103, p. 237-253, 2021. DOI: 10.1590/s0103-4014.2021.35103.013
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) e de avançar em tentativas urgentes de “descolonização” do campo. Como analisado por Gatti et al. (2021), seguindo inspirações de autores como Paulo Freire e Boaventura de Sousa Santos, é a partir destes “diálogos transescalares” que é possível construir melhores respostas para a crise sindêmica global. “(…) quanto mais diversidade existe em um sistema, maior é sua amplitude de algoritmos de respostas possíveis (…). Cooperação e ajuda mútua entre comunidades e espécies, ou entre seres humanos, podem resultar em evolução e adaptabilidade muito mais do que, por vezes, a incansável e competitiva luta individual” (Gatti et al., 2021, p. 238-239). É nesse sentido que Elizângela nos chama insistentemente a atenção sobre a ideia de pensamento e prática interculturais, mobilizados por pessoas indígenas no Rio Negro, particularmente pelas mulheres (Costa, 2021cCOSTA, E. S. A persistência rionegrina: vivências e as gerações que virão. Plataforma de Antropologia e Respostas Indígenas à COVID-19, v. 1, n. 10, set. 2021c. Disponível em: <Disponível em: http://www.pari-c.org/artigo/78 >. Acesso em: 28 nov. 2021.
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).
O que essa interculturalidade nos ensina nessa pandemia é que estes “saberes híbridos” estão longe de qualquer fantasia de simetria, composição de unidade ou de igualdade entre formas “diversas” de conhecimento. Trata-se de uma composição de cuidado epistêmico conflitiva e parcial (De La Bellacasa, 2012DE LA BELLACASA, Maria Puig. ‘Nothing comes without its world’: thinking with care. The Sociological Review. Thousand Oaks, v. 60, n. 2, p. 197-216, 2012. DOI: 10.1111/j.1467-954X.2012.02070.x
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), pois, no marco de um processo colonial contínuo, o maior peso ético e epistêmico na composição, a maior complexidade, é dos saberes produzidos pelas mulheres indígenas em suas redes e cestos. Afinal, foram elas, e não qualquer ação institucional do Estado ou da Ciência (agentes tradicionais do processo colonial), que, compondo conhecimentos e relações diversas, construíram uma eficaz resposta de “cuidado” regional (Olivar et al., 2021OLIVAR, J. M. N. et al. ‘Rio Negro, We care’. Indigenous women, cosmopolitics and public health in the COVID-19 pandemic. Global Public Health, London, p. 1-16, 2021. DOI: 10.1080/17441692.2021.1959941
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; Costa et al., 2022COSTA, E. S. et al. Mulheres indígenas e cosmopolíticas do cuidado no Alto Rio Negro. Plataforma de Antropologia e Respostas Indígenas à COVID-19, 2022. Disponível em: <Disponível em: http://www.pari-c.org/estudo/4 >. Acesso em: 8 nov. 2022.
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). Se estes saberes híbridos e colaborativos são “emancipatórios”, não o são apenas dos poderes locais ou do sofrimento da doença, mas das enormes limitações que os “pilares ontoepistemológicos do Mundo Ordenado” (Ferreira da Silva, 2019DA SILVA, D. F. A dívida impagável. São Paulo: Casa do Povo, 2019.) do mundo “branco”, que orientam o campo da saúde e que favorecem o interminável a implicação na vida das pessoas do “monólogo da modernidade” (Baquero et al., 2021BAQUERO, O. S.; BENAVIDEZ FERNÁNDEZ, M. N.; AGUILAR, M. A. From Modern Planetary Health to Decolonial Promotioin of One Health of Peripheries. Frontiers in Public Health, Lausanne, v. 9, 637897. DOI: 10.3389/fpubh.2021.637897
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). “Com isso, tem-se a superação da monocultura de saber e da imposição de soluções estáticas” (Giatti et al., 2021GIATTI, L. L.; GUTBERLET, J.; TOLEDO, R.; SANTOS, F.. “Pesquisa participativa reconectando diversidade: democracia de saberes para a sustentabilidade”. Estudos Avançados, São Paulo, v. 35, n. 103, p. 237-253, 2021. DOI: 10.1590/s0103-4014.2021.35103.013
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, p. 248)
É nesse sentido que o ato plural, coletivo e complexo da escrita ganhou centralidade. A produção escrita de conhecimento, provocada na pesquisa PARI-c, implicou diversos deslocamentos e possibilidades para a equipe. Principalmente entender a colaboração como relação baseada na produção ativa, discutida e textual de conhecimento, no marco de princípios de multiplicidade e nas tentativas (limitadas) de simetrização. Da mesma forma, implicou para os acadêmicos um certo “abrir mão” da autoridade textual, do protagonismo epistêmico ao qual estão tão acostumados, do controle conceitual e dos procedimentos mito-conceitualmente associados à “cientificidade” moderna.
Para encerrar, seguindo a lógica que temos cultivado nesse processo, partilhamos um texto em primeira pessoa da coautora Elizângela, como parte da sua contribuição textual a este artigo.
A minha participação foi apenas escrever as vivências do enfretamento do combate à covid-19, o que foi feito por nós mulheres do Rio Negro, para enfrentar a pandemia que veio destruindo milhões de vidas no mundo inteiro. A pesquisa me proporcionou de compartilhar os conhecimentos da vida que estão guardadas nas caixinhas invisíveis das vidas indígenas, que chamamos de cultura. Tive oportunidade de descrever e compartilhar sobre nós e sobre sabedorias nunca descritas por ninguém. Principalmente conhecimento sobre salvar vidas, onde quem faz isso são só os médicos do hospital, pajés nas aldeias ou comunidades. Compartilhei principalmente os conhecimentos das mulheres do Rio Negro e pude escrever sobre o cesto da vida, que cada uma carrega para sua sobrevivência com a sua família.
Esta pesquisa abriu uma pequena oportunidade para nós indígenas de poder registrar as nossas vivências e compartilhar com o mundo moderno as sabedorias que possuímos, principalmente o enfrentamento de uma pandemia destruidora e espalhada pelo mundo inteiro.
Essa experiência teve uma força “decolonial” ou “emancipatória” porque o mundo moderno só acredita nas coisas científicas, comprovadas nos laboratórios de estudos científicos e sempre voltadas para gerar o capitalismo. Só mencionar “indígena” isso já incomoda, porque tudo o que temos ou somos não gera dinheiro, mas os conhecimentos que temos são inexplicáveis porque ajudamos a manter o planeta vivo.
Os conhecimentos indígenas principalmente das mulheres são poucos falados e compartilhados, não só para mulheres indígenas, mas para todas, porque a maioria vejo mais homens que escrevem e poucas mulheres. Para falar a verdade, as mulheres são invisíveis em vários lugares, seja ela indígena ou não.
Por isso eu contribui escrevendo a minha vivência indígena, falando do Cestos de Conhecimento que temos dentro do Rio Negro, a nossa persistência na vivência do mundo moderno e os desafios que vivenciamos no dia a dia. Temos muitas coisas guardadas nesses cestos. Somos mães, somos parteiras, somos artesãs, somos agricultoras, somos pescadoras etc.
Participar na pesquisa me ajudou a olhar as coisas para além do que eu já sei na prática, mas a sua importância foi de se encontrar no papel, na escrita, isso nos fortalece como mulheres indígenas; poder quebrar o tabu da vida que é sair do tradicional e tornar algo intercultural. Precisamos cultivar e reabrir novos caminhos para compartilhar os conhecimentos que estão guardados no cesto da vida, principalmente para quem já está em universidades. Assim, através deles(as), abrir caminhos para que outras mulheres venham contribuir mais e assim ampliar a vivência indígena. A persistência é a chave para partilhar mais o que está nos Cestos de Conhecimento.
Todo conhecimento é um processo comunitário. Nós indígenas, desde o nascimento de uma criança, o conhecimento sempre é compartilhado entre as mulheres. A criança cresce junto com a vivência da comunidade ou da família, aprendemos na prática, olhando os mais velhos(a), fazendo e assim vamos seguindo também. A pandemia foi vencida porque as mulheres dominavam a prática; quer dizer, todas elas sabiam fazer. Quem sabia, esse conhecimento reacendeu dentro dela, a lembrança reviveu na busca de resguardar e salvar vidas. Da minha parte, sei que sou apenas uma semente pequena cheia de persistência de querer nascer, crescer e ser cuidada por muitas escritoras ou pesquisadoras desse universo.
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» www.pari-c.org
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1
Na sua primeira Nota de Pesquisa, Elizângela desenvolve a imagem conceitual de Cestos de Conhecimentos. A ideia “vem da minha reflexão sobre um ritual coletivo realizado com o acompanhamento dos pajés, parentes próximos e amigas (mulheres já casadas). Este ritual é muito praticado no rio Negro com o intuito de formar as crianças, nesse caso, as meninas que estão se tornando adultas. (…) Este ritual é conhecido como kariamã em yegatu — uma das línguas cooficiais de São Gabriel da Cachoeira (…). Kariamã é um termo muito complexo e amplo, que não tem uma tradução para o português, mas que pode ser entendido como o ritual da moça nova, que ocorre quando a moça tem sua primeira menstruação. São múltiplos os conhecimentos repassados à menina durante o ritual, e o Cesto de Conhecimento, colocado em prática com o surgimento da pandemia em São Gabriel da Cachoeira, é uma pequena fatia do que nele se aprende. O ritual do kariamã é um processo de formação, como se fosse uma escola” (Costa, 2021aCOSTA, E. S. Mulheres do Rio Negro e seus Cestos de Conhecimento durante a pandemia de COVID-19. Plataforma de Antropologia e Respostas Indígenas à COVID-19, v. 1, n. 5, 2021a. Disponível em: <Disponível em: http://www.pari-c.org/artigo/33 >. Acesso em: 28 nov. 2021.
http://www.pari-c.org/artigo/33... ) -
2
O Departamento de Mulheres Indígenas do Rio Negro (DMIRN) criou, no início da pandemia de Covid-19, a campanha Rio Negro, nós cuidamos!. Para maiores informações sobre a campanha, acesse: https://noscuidamos.foirn.org.br/ Acesso em: 26 out. 2022.
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3
Não cabe aqui ampliar as explicações sobre cuidado e cosmopolítica, sugerimos ver Olivar et al. (2021)OLIVAR, J. M. N. et al. ‘Rio Negro, We care’. Indigenous women, cosmopolitics and public health in the COVID-19 pandemic. Global Public Health, London, p. 1-16, 2021. DOI: 10.1080/17441692.2021.1959941
https://doi.org/10.1080/17441692.2021.19... , bem como o Estudo de Caso (Costa et al., 2022COSTA, E. S. et al. Mulheres indígenas e cosmopolíticas do cuidado no Alto Rio Negro. Plataforma de Antropologia e Respostas Indígenas à COVID-19, 2022. Disponível em: <Disponível em: http://www.pari-c.org/estudo/4 >. Acesso em: 8 nov. 2022.
http://www.pari-c.org/estudo/4... ). Nessa linha, foi concebido o projeto “Cosmopolíticas do cuidado no fim-do-mundo”, financiado pela FAPESP na linha Jovem Pesquisador Fase 2 e coordenado por Olivar. -
4
Essa afirmação guarda relação com a abundante produção antropológica brasileira sobre “Comitês de Ética”, veja, por exemplo: Sarti e Duarte (2013)SARTI, C.; DUARTE, L. F. (Org.). Antropologia e ética: desafios para a regulamentação. Brasília, DF: ABA, 2013., Schuch e Victora (2015)SCHUCH, P.; VICTORA, C. Pesquisas envolvendo seres humanos: reflexões a partir da antropologia social. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n. 3, 779-796, 2015. DOI: 10.1590/S0103-73312015000300006
https://doi.org/10.1590/S0103-7331201500... , entre muitos outros. -
5
O projeto foi contemplado na chamada Global Effort on COVID-19 (GECO), da United Kingdom Research and Innovation (UKRI), e contou com aprovação ética do Maternal and Child Health Proportionate Review Committee da City, University of London, sede do projeto. Mais informações, ver: http://www.pari-c.org/apresentacao/ Acesso em: 26 out 2022
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6
Esse trabalho foi possível por financiamento Fapesp de auxílio regular sob responsabilidade de Olivar; processo 2019/01714-3.
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7
Importante ressaltar que existe uma parceria de trabalho colaborativo da FSP/USP com o Instituto Socioambiental (ISA), com o DMIRN/FOIRN e, mais recentemente, com o Observatório de Violência de Gênero no Amazonas (OVGAM) da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), em torno das questões de violência e gênero com mulheres indígenas.
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8
Esta divisão não é plenamente satisfatória para uma pesquisa etnográfica regular (Strathern, 2014STRATHERN, M. O efeito etnográfico. In: STRATHERN, M. O efeito etnográfico e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify , 2014. p. 345-406.; Fonseca, 2017FONSECA, C. “Lá” onde, cara pálida? Pensando as glórias e os limites do “campo” etnográfico. In: BRITES, J.; MOTTA, F. M. (Org.) Etnografia, o espírito da antropologia: tecendo linhagens. Homenagem a Claudia Fonseca. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2017. p. 438- 467.), muito menos para pesquisas sociais no marco pandêmico (Deslandes; Coutinho, 2020DESLANDES, S.; COUTINHO, T. Pesquisa social em ambientes digitais em tempos de Covid-19: notas teórico-metodológicas. Caderno de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 36, n. 11, e00223120, 2020. DOI: 10.1590/0102-311X00223120
https://doi.org/10.1590/0102-311X0022312... ) e menos ainda na que é aqui analisada; contudo, ela nos ajuda na inteligibilidade. -
9
O Lago de Leite, associado mito-historicamente com a Baía de Guanabara e o Rio de Janeiro, é o lugar de origem da Cobra-Canoa, origem de humanidades rionegrinas. Ver, entre outros, Lasmar (2005)LASMAR, C. De volta ao lago de leite: gênero e transformação no Alto do Rio Negro. São Paulo: Editora UNESP, 2005..
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10
Sobre pesquisa antropológica online, ver Parreiras (2015)PARREIRAS, C. Altporn, corpos, categorias, espaços e redes: um estudo etnográfico sobre pornografia online. 2015. 247 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2015.; e sobre estas pesquisas durante a pandemia de covid-19, ver o dossiê organizado por Lins; Parreiras e Freitas (2020)LINS, B.; PARREIRAS, C.; FREITAS, E. Estratégias para pensar o digital. Cadernos de Campo, São Paulo, v. 29, n. 2, p. 1-10, 2020. DOI: 10.11606/issn.2316-9133.v29i2pe181821
https://doi.org/10.11606/issn.2316-9133.... . Ver também a própria Plataforma PARI-c, disponível em http://www.pari-c.org/. Acesso em: 26 out. 2022 -
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Como veremos adiante, a relação entre vivência, escrita e produção de conhecimento para a luta é fundamental para Elizângela. A escrevivência, termo cunhado por Evaristo (2018)EVARISTO, C. Becos da memória. Rio de Janeiro: Pallas, 2018., permite que a autora, por meio de suas próprias narrativas, evoque uma história compartilhada.
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12
Para acesso às Notas de Pesquisas e o vídeo mencionado acesse: http://www.pari-c.org/. Acesso em: 26 out. 2022
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Para uma reflexão crítica sobre o campo da saúde coletiva desde uma perspectiva da luz negra, ver Dias (2021)DIAS, D. M. À Luz da diferença: responsabilidade, alteridade e a “lógica do cuidado”. Revista USP, São Paulo, n. 128, p. 77-95, 2021. DOI: 10.11606/issn.2316-9036.i128p77-95
https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.... .
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
12 Dez 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
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Recebido
26 Set 2022 -
Aceito
18 Out 2022