Seis de abril é o dia mundial da atividade física, instituído pela Organização Mundial da Saúde. Nesse dia, em várias cidades brasileiras e estrangeiras são realizados eventos comemorativos em que centenas e milhares de pessoas são incitadas a se movimentar como forma de se protegerem de doenças crônico-degenerativas. Com base na ideia de que a atividade física regular tem ação protetora contra essas doenças, seu oposto, o sedentarismo, é apresentado, via de regra, como um mal que mata. |
E, de fato, sedentarismo mata? Para a ciência, certamente sim. Para o dito sedentário, talvez não. Por que não? Porque suas percepções sobre o risco do sedentarismo podem diferir da dos cientistas. Embora isso possa soar estranho, há que se reconhecer que as decisões humanas podem pautar-se em outra lógica que não a epidemiológica, isto é, científica. Aliás, advogar o discurso epidemiológico como o único possível é uma forma de inculcar determinado tipo de raciocínio, que desconsidera o contexto social e a subjetividade humana ou, no mínimo, os joga para debaixo do tapete. |
Certa vez, ouvi de um morador de rua, enquanto tragava seu cigarro: “Se a gente fumar, morre. Se não fumar, morre também”. O risco epidemiológico certamente não orienta as ações dessa pessoa que, aparentemente, apoia-se na inexorabilidade da morte para justificar seu comportamento tabagístico. Para ela, a corporificação do prazer é mais significativa que a intangibilidade da morte ou de doenças que possam advir do hábito de fumar. A forte associação entre tabagismo e câncer de pulmão, exaustivamente apontada por estudos epidemiológicos, parece pouco ou nada significar para essa pessoa. Embora sua precária condição social - e a respectiva antevisão de um futuro nada promissor - possa potencializar a busca por pequenos e efêmeros prazeres do cotidiano, a resistência em seguir preceitos epidemiológicos parece atravessar classes e grupos sociais e desafiar a noção de racionalidade humana como musa inspiradora de comportamentos. |
“Meus pais nunca praticaram atividade física e morreram com mais de 90 anos. Por que devo, então, me exercitar?”. Ao mesmo tempo em que contrariam as estimativas ortodoxas de risco, argumentos desse tipo escondem, paradoxalmente, certa lógica epidemiológica. Ou seja, de uma forma ou de outra, esses argumentos apoiam-se em eventos passados para antever o futuro, ainda que os eventos tenham sido escolhidos intencionalmente. A partir da observação de casos individuais e sua associação a certas circunstâncias do fenômeno, regularidades são identificadas e, então, usadas como hipóteses explicativas, que podem servir tanto para desafiar quanto para apoiar processos etiológicos explicitados pela epidemiologia. |
Ou seja, ainda que a lógica epidemiológica possa servir de referência para algumas decisões humanas, a estratificação social, a pluralidade cultural e a subjetividade humana concorrem para a multiplicidade de percepções, significados e atitudes frente ao risco. Aí reside um dos maiores desafios do “fazer” em saúde pública. Em outras palavras, mais que um construto matemático, o risco é uma construção histórica, social e cultural e, como tal, variável no tempo, no espaço e afeito a ambiguidades. Assim sendo, como proclamar que “atividade física é saúde” quando há uma miríade de fatores - sociais, culturais, psicológicos, ambientais, políticos etc. - que desmentem o tom causal dessas palavras de ordem? Como proclamar essa e outras “verdades” se a própria epidemiologia descreve o futuro como probabilidade, e não como predição? Assim, como proclamar que “ser ativo é ganhar anos de vida” quando não há a mínima garantia de se estar vivo no futuro? |
Ora, isso quer dizer que sou contra a atividade física? Não. Quer dizer que sou contra considerá-la solução fácil para complexos problemas de saúde; contra a culpabilização do indivíduo por sua condição de saúde a despeito de seu contexto social; contra a banalização da relação entre atividade física e saúde; contra a demonização do sedentarismo como principal problema de saúde pública, que serve para obscurecer os determinantes sociais do processo saúde-doença. Ou seja, sou contra a afirmação peremptória de que “sedentarismo mata”, enquanto se desconsidera que pobreza mata, analfabetismo mata, injustiça social mata, enfim, que viver nesse mundo louco e desigual mata, a cada dia um pouco... |