Open-access As relações de trabalho dos fisioterapeutas na cidade de Salvador, Bahia

Labor relations of physiotherapists in the city of Salvador, Bahia, Brazil

Resumos

As transformações socioeconômicas decorrentes da reorganização do sistema vigente e da conformação do Estado neoliberal têm conduzido à precarização do mundo do trabalho. O processo de reestruturação produtiva, oriundo do setor industrial, tem acarretado um forte impacto no campo da saúde e, consequentemente, na fisioterapia. Este artigo analisa as relações de trabalho dos fisioterapeutas que atuam em clínicas particulares na cidade de Salvador, correlacionando-as com o processo de reestruturação do mundo do trabalho. Trata-se de um estudo exploratório, de natureza qualitativa, com base no referencial teórico da sociologia do trabalho. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com oito fisioterapeutas. A abordagem utilizada foi a análise de conteúdo por categorias temáticas, previamente identificadas pelos autores, a saber: centralidade do trabalho, conjuntura socioeconômica, precarização do trabalho, formação acadêmica e organização sindical. A análise compreensiva revelou a centralidade que o trabalho ocupa na vida dos fisioterapeutas. Na análise da conjuntura socioeconômica, foram identificados os processos que influenciam a atuação profissional e como eles moldam o perfil do trabalhador. Quanto à precarização do trabalho, foram caracterizados os vínculos empregatícios, as condições de trabalho, a estabilidade e a remuneração. A formação acadêmica foi vinculada à reprodução da lógica do capital, acompanhada pela expansão, sem planejamento e regulação, do Ensino Superior privado. Já a organização sindical mostrou-se distante do fisioterapeuta. A análise das correlações entre forças socioeconômicas que influenciam a prática profissional indicou que as relações de trabalho dos fisioterapeutas entrevistados mostraram-se precárias e instáveis.

Fisioterapia; Reestruturação Produtiva; Relações de Trabalho; Precarização


Socioeconomic changes deriving from the reorganization of the current system and the conformation of the neoliberal State have led to precariousness in the occupational world. The productive restructuring process, coming from the industrial sector, has caused a strong impact in the health field and, as a consequence, in physiotherapy. This article analyzes the labor relations of physiotherapists who work in private clinics in the city of Salvador, Bahia, Brazil, correlating them to the restructuring process of the occupational world. This is an exploratory study, with a qualitative design, based on the theoretical framework of sociology of work. Semi-structured interviews were conducted with eight physiotherapists. The approach used was content analysis by thematic categories, previously identified by the authors, namely: centrality of work, socioeconomic conjuncture, occupational precariousness, academic education, and trade union organization. Comprehensive analysis has revealed the centrality that work occupies in physiotherapists’ life. When analyzing the socioeconomic conjuncture, we identified the processes that influence on professional practice and how they shape worker’s profile. As for occupational precariousness, we categorized the professional agreements, occupational conditions, stability, and remuneration. Academic education was related to reproduction of the capital reasoning, accompanied by the expansion, without planning and regulation, of private Higher Education. In turn, trade union organization has shown to be detached from the physiotherapist. The analysis of correlations between socioeconomic forces that influence on the professional practice indicated that the labor relations of the physiotherapists interviewed showed up as precarious and unstable.

Physiotherapy; Productive Restructuring; Labor Relations; Precariousness


Introdução

O mundo do trabalho vem passando por grandes transformações socioeconômicas, decorrentes da reorganização do capital. Especificamente no que tange às relações de trabalho, observam-se alterações nas condições de trabalho, crescente desemprego, instabilidade e modificações no próprio significado do ato laborativo. Tais mudanças enunciaram a reestruturação produtiva e a flexibilização dos direitos trabalhistas como determinantes da precarização do trabalho observada em diversas categorias profissionais (Navarro e Padilha, 2007; Gomez e Thedim-Costa, 1999).

Os processos de reestruturação produtiva, gerados principalmente pela crise do modo fordista de produção (Druck, 1999), nascem na indústria e se espalham por todos os setores, incluindo o de serviços, no qual está inserido o subsetor saúde. É nesse contexto de busca de trabalhadores cada vez mais flexíveis e de desregulamentação do trabalho que observa-se o fenômeno que Bordieu (1998) chama de “flexploração”: um modo de dominação de novo tipo, baseado numa situação de insegurança permanente e generalizada que favorece maior exploração do trabalho. A naturalização do aumento da exploração no trabalho, para o autor, é, portanto, parte de um sistema político que se instaura com a cumplicidade ativa ou passiva dos poderes. Esse processo de reestruturação produtiva tem forte impacto no campo da saúde e também deixa suas marcas sobre a fisioterapia enquanto categoria profissional.

O acirramento dos processos de crise financeira internacional desencadeou políticas estatais no campo do emprego e nas formas de regulação do mercado de trabalho baseadas nos pilares das sociedades modernas neoliberais, particularmente nos países periféricos da economia capitalista (Medeiros, 2009). A experiência da precarização do trabalho no Brasil é fruto do Estado neoliberal globalizado, calcado na exploração da força de trabalho, no desmonte dos coletivos organizados e da resistência sindical-corporativa, intensificada a partir da década de 1990 (Alves, 2009).

É nesse contexto nacional que se pode situar, na Bahia, os distintos padrões de organização do trabalho e revelar suas condições socioeconômicas e políticas. No Estado pesquisas sobre a terceirização e a precarização têm sido desenvolvidas no setor industrial, no interior do complexo químico, petroquímico e automobilístico (Druck e Franco, 2007; Franco 2009). Bleicher (2012), ao analisar a inserção de dentistas no mercado de trabalho na cidade de Salvador, observou padrões de precarização do trabalho muito comuns em outros setores produtivos ou em outras categorias profissionais do setor saúde.

A fisioterapia é uma prática social jovem, que surge no cenário de expansão industrial do século XIX marcado por um número crescente de patologias entre os trabalhadores, decorrentes das condições de trabalho e das grandes guerras mundiais. No Brasil ainda destaca-se, na década de 1950, elevados casos de poliomielite, que contribuíram para a inserção da fisioterapia no mercado, sendo regulamentada pelo Decreto-Lei no 938/1969 (Rebelatto e Botomé, 1999; Brasil, 1969).

Parte do processo de reestruturação no mundo do trabalho para a fisioterapia está associada ao crescimento no número de profissionais disponíveis para o mercado a partir dos anos 2000. Em 1995 16.068 fisioterapeutas estavam registrados no Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional; já em abril de 2013 esse número subiu para 176.176 profissionais1, crescimento de cerca de 994% em 18 anos (Andrade e col., 2006). Já o número de cursos de fisioterapia saltou de 63 em 1995 para 618 em 2013, crescimento de 981% (Bispo Júnior, 2009). O estado da Bahia dispõe de 36 cursos de graduação em fisioterapia, sendo 19 na capital2.

Tendo em vista que houve uma ampliação e centralização da oferta do ensino em Salvador, além de um elevado contingente profissional no mercado, surgiu a problemática das contradições entre uma “profissão liberal promissora”, como era vista até os anos 2000, e uma nova realidade do mercado de trabalho para o fisioterapeuta. Esta pesquisa surge para investigar quais as relações entre os processos de reestruturação produtiva com as condições de trabalho que passam a ser relatadas nos momentos de encontros da categoria (congressos, atualizações e salas de aula da graduação).

Diante desse quadro, e dada à complexidade do objeto, existe uma lacuna na literatura científica sobre essa temática, fato que configura a importância de conhecer a realidade da inserção dos fisioterapeutas no mercado de trabalho (condições e jornada de trabalho, vínculos empregatícios e remuneração salarial) e como os processos de reestruturação produtiva se relacionam com a prática profissional dos fisioterapeutas. O objetivo deste estudo é analisar as relações de trabalho dos fisioterapeutas que atuam em clínicas particulares na cidade de Salvador (BA), correlacionando-as com o processo de reestruturação no mundo do trabalho.

Metodologia

Trata-se de um estudo exploratório, de natureza qualitativa, com base na análise de narrativas dos sujeitos a partir de entrevistas, tendo como população de referência fisioterapeutas que atuam em clínicas particulares na cidade de Salvador, que são registradas no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde e realizavam atendimentos particulares, conveniados e pelo Sistema Único de Saúde.

O estudo foi motivado pela crescente demanda de discussão entre estudantes de fisioterapia sobre as dificuldades de inserção no mercado, que apontavam para situações de precarização nas relações de trabalho. A partir disso, assumiu-se o pressuposto de que, dentre os fisioterapeutas, aqueles inseridos em clínicas particulares (maior campo de inserção profissional) vivenciavam com mais intensidade as contradições do mundo do trabalho e adotou-se esse setor como o campo de investigação.

A seleção das clínicas particulares ocorreu de forma aleatória, tendo no recorte serviços de diferentes bairros da cidade de Salvador, com variados níveis de desenvolvimento socioeconômico populacional. Foram excluídos os fisioterapeutas proprietários das clínicas, para que a investigação pudesse retratar a realidade dos que estão inseridos no mercado de trabalho na condição de empregados e seus diversos vínculos.

As entrevistas foram realizadas entre setembro de 2008 e março de 2009, sendo utilizado um questionário semiestruturado com informantes-chave, delimitados por meio da técnica de saturação das entrevistas, ou seja, quando passou a ocorrer uma reincidência das informações (Minayo, 2007). As entrevistas foram gravadas e transcritas para análise posterior.

A entrevista foi precedida por uma conversa inicial entre o pesquisador e o profissional para explicar os motivos da pesquisa, a escolha do entrevistado, a apresentação do termo de consentimento livre e esclarecido e a garantia do anonimato da entrevista, bem como o sigilo sobre a autoria das respostas, buscando estabelecer, assim, o que Minayo destaca como “[...] vínculo de confiança entre o pesquisador e o entrevistado” (2007, p. 264).

O questionário semiestruturado era dividido em duas partes, sendo a primeira voltada para caracterização sócio demográfica, com vistas a destacar alguns aspectos relacionados ao perfil do grupo (idade, sexo, instituição e tempo de formado desde a graduação). A segunda, com questões específicas acerca da atuação profissional, atenha em perspectiva a opinião do fisioterapeuta quanto à importância e condições de trabalho, a sua precarização, as leis trabalhistas, a formação acadêmica, o sindicato, a sociedade e o papel do fisioterapeuta no contexto social.

Apenas único entrevistador efetuou todos os procedimentos. Foi realizada uma entrevista piloto com um fisioterapeuta que não participou da pesquisa, para que ocorressem as devidas adequações e aperfeiçoamento da técnica segundo os objetivos do estudo (Gaskell, 2002).

A análise das narrativas se deu a partir das categorias analíticas previamente identificadas pelo autor, a partir do referencial teórico da sociologia do trabalho, que nos orientou neste estudo como campo teórico que melhor sintetizou as discussões acerca da problemática identificada. Categorias emergentes do campo foram articuladas aos conceitos, conforme as especificações de cada temática. Os conceitos são unidades de significação que definem a forma e o conteúdo de uma teoria (Minayo, 2007). Nessa perspectiva, os conceitos presentes em tal estudo foram a centralidade do trabalho, conjuntura socioeconômica, precarização do trabalho, formação acadêmica e organização sindical.

Para a análise os autores tomaram a centralidade do trabalho como o “significado deste para o sujeito”, “realização profissional” e “o papel da fisioterapia na vida dos fisioterapeutas”. Conjuntura socioeconômica foi identificada a partir das temáticas “sistema sociopolítico”, “organização do Estado”, “políticas públicas de Estado”, “flexibilização das leis do trabalho”, “ideologia burguesa” e “luta de classes”. O conceito de precarização foi observado a partir das unidades temáticas “vínculos empregatícios”, “jornada de trabalho”, “inserções de trabalho”, “remuneração salarial”, “infraestrutura física e de materiais” e “número de atendimentos por turno”, bem como a “duração dos vínculos”, “instabilidade no trabalho”, “desgaste subjetivo”, “perda dos direitos trabalhistas”, “desemprego”, “consciência da exploração”, “necessidade social/financeira”. A relação com a formação acadêmica foi analisada a partir das categorias “mundo do estudo versus mundo do trabalho”, “expansão do ensino superior”, “organização enquanto estudante”, “contextualização social”, “formação desqualificada e tecnicista” e “papel da juventude no mundo do trabalho”. Por fim, a temática organização sindical foi observada a partir de “consciência e organização da classe” e “papel da entidade e lutas sociais”.

A análise das informações foi efetuada pela análise de conteúdo, objetivando realizar inferências ao conteúdo do texto originado das transcrições das entrevistas, para atingir um nível mais profundo de interpretação. Esta foi feita através do método por categorias temáticas, considerada a mais apropriada para investigações qualitativas em saúde, em que, para classificar os elementos, é preciso identificar o que eles têm em comum, permitindo seu agrupamento (Caregnato e Mutti, 2006).

A análise temática envolveu três etapas: a pré-análise, a exploração do material e o tratamento dos resultados obtidos e interpretação. A primeira etapa consiste na fase de organização, na qual foram elaborados alguns indicadores que orientaram a compreensão do material e sua interpretação. Na segunda os dados foram codificados a partir das unidades de registro. Na terceira etapa ocorreu a categorização por meio de inferências, inter-relacionando-as com o quadro teórico e com as dimensões interpretativas (Minayo, 2007).

Todos os participantes assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido, conforme a Resolução CNS 196/96 para pesquisas com seres humanos. Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Fundação Bahiana para Desenvolvimento das Ciências.

Resultados e discussão

Este estudo envolveu a realização de entrevistas com oito fisioterapeutas, cujas falas coletadas foram sistematizadas, recebendo cada uma delas um código identificador, preservando assim o anonimato dos participantes. O critério de codificação das entrevistas buscou a representação de cada fisioterapeuta, sendo os profissionais identificados com a letra “F”, e numeração de 1 a 8.

A partir da análise descritiva dos dados, observou-se que dos 8 fisioterapeutas, 4 eram do sexo feminino e 4 do sexo masculino. O tempo entre o final da graduação e o momento da entrevista variou de 1 a 8 anos. Entre os participantes, alguns eram formados em três diferentes faculdades particulares da cidade de Salvador.

As informações estão distribuídas nas seguintes categorias temáticas: centralidade do trabalho; conjuntura socioeconômica; precarização do trabalho; formação acadêmica e organização sindical.

Centralidade do trabalho

O desenvolvimento da história dos seres sociais objetiva-se por meio da produção e reprodução da existência humana. Para tanto, os sujeitos realizam atos laborativos que marcam o processo de interação dialética do homem com a natureza, ou seja, é a partir do trabalho que o homem produz sua existência (Antunes, 2005).

O processo de trabalho é atividade dirigida com o fim de criar valores-de-uso, de apropriar os elementos naturais às necessidades humanas [...] é condição necessária do intercâmbio material entre o homem e a natureza. Atuando sobre ela e modificando-a, ao mesmo tempo em que modifica sua própria natureza (Marx, 1989, p. 208).

O trabalho ocupa lugar central na vida das pessoas, pois preenche parte importante do espaço e do tempo em que se desenvolve a vida humana contemporânea. Ele não é apenas um meio de satisfação de necessidades básicas, mas sim fonte de identificação e desenvolvimento de potencialidades (Navarro e Padilha, 2007). Essa noção de trabalho como elemento central na realização dos indivíduos pode ser observada na fala de F2, que diz:

Trabalhando você se sente útil, funcional, principalmente quando você faz o que você gosta.

Essa noção de utilidade pelo trabalho, ou do trabalho como sentido para a vida, representa um marco nas contradições encontradas neste estudo. Ela é contestada ao passo que os fisioterapeutas deparam-se com a realidade do mercado.

Nos discursos desses profissionais encontramos o conceito visto em Weber (2004) sobre o “espirito do capitalismo”, no qual o trabalho (negação do ócio, acumulação) é instrumento de “purificação” dos indivíduos, que ao se entregarem ao trabalho estão se desprendendo dos prazeres mundanos. A fala de F6 explicita a relação social construída com o trabalho, quando comenta:

Eu gosto muito daquele ditado que diz: “O trabalho dignifica o homem”. Acho que, além do fator econômico pra você se manter, o trabalho faz você se sentir útil dentro da sociedade.

Mais uma vez, o conceito de utilidade aparece, dessa vez associado à dignificação, o que demonstra que para os indivíduos entrevistados o trabalho é muito mais do que um meio de subsistência. Ele é, também, uma ferramenta que possibilita a realização profissional e pessoal. Conceitos como “sentir-se útil”, “evolução”, “melhorar minha vida”, “dignidade”, “responsabilidade” e “respeito” estiveram sempre associados à maneira como os indivíduos investigados trataram da sua relação com o trabalho.

Quando questionados sobre a implicação de ficar sem trabalhar, os entrevistados discutiram temas como a necessidade de manutenção financeira e as repercussões desse processo sobre a vida de forma mais ampla. F8 ao discutir essa temática relata que:

O tempo que fiquei desempregado eu me sentia inútil, como se todo mundo olhasse e criticasse.

Esse sentimento de inutilidade, que se relaciona com o papel transformador do trabalho na vida dos indivíduos, é também potencializado pelo papel que o trabalho cumpre na formação identitária dos sujeitos. Santos (2002) considera que a identidade social é a soma dos papéis assumidos pelos sujeitos, sendo o trabalho um importante espaço de produção de identidade social.

O trabalho, por possuir papel fundamental no processo evolutivo da existência humana, contribuindo para o estabelecimento e consolidação dos laços societários, é tema que se apresenta indissociável do desenvolvimento da vida (Kantorski, 1997; Engels, 2004). A falta do trabalho apresenta impacto desde a necessidade social/financeira até desordens de cunho psicológico, como fica evidente nas falas de F2 e F3, respectivamente:

Além das obrigações no nível financeiro, é chato por que você acaba não se sentindo útil.

Seria um retrocesso em todos os aspectos: material, emocional e profissional.

Conjuntura socioeconômica

A compreensão dos determinantes que influenciam a sociedade, ilustrada a partir do materialismo histórico dialético proposto por Karl Marx, aponta a dimensão histórica das relações sociais como fruto das necessidades dos homens, dos modos de produção e do estado das forças produtivas (Skalinski e Praxedes, 2003).

Diante desse panorama, e tomando como referencial teórico a abordagem marxista que aponta as causas das relações de trabalho – entendendo-as como fruto da correlação dos determinantes socioeconômicos vinculados às condições de trabalho – busca-se entender como a prática dos trabalhadores da fisioterapia sofre influência do atual modelo de organização social.

A história da organização do trabalho é a do desenvolvimento tecnológico em favor da acumulação capitalista, ao mesmo tempo em que é a história baseada na contradição entre capital e trabalho, com consequências penosas para os trabalhadores. Os avanços científicos ocorridos em nome do progresso não conseguiram eliminar, até hoje, as formas de exploração física e psíquica dos trabalhadores nos diversos ramos e setores (Navarro e Padilha, 2007).

A organização da produção e do trabalho baseada nos modelos de produção taylorista, fordista e toyotista só aumentou as formas de exploração ao introduzir mecanismos de gerenciamento, sistematização, aumento da produtividade, racionalização de custos, exigência de um trabalhador polivalente e promoção do desgaste subjetivo (Merlo e Lapis, 2007).

Uma das características da ideologia liberal que acompanha as mutações no mundo do trabalho resulta num perfil de trabalhador puramente tecnicista e alheio às políticas e aos processos socioeconômicos que influenciam diretamente sua atuação profissional. Diante desse aspecto, os fisioterapeutas não conseguem perceber relação entre a situação do trabalho com as reformas trabalhistas que estão ocorrendo. A fala de F3 é a expressão do apartamento existente entre o trabalhador e o mundo do trabalho e, consequentemente, um deslocamento entre o trabalhador e o produto do seu trabalho.

Isso (as políticas que influenciam o trabalho) acaba sendo uma coisa distante de nós... Você não acaba vendo isso no seu dia a dia, acaba se envolvendo com outras coisas e não tendo tempo pra isso.

Esse relato expressa uma relação alienada do sujeito com seu trabalho, que Franco (2011) discute a partir de quatro perspectivas: 1) o trabalho sem arte – coisificado, em que o produto torna-se mera mercadoria; 2) o trabalho dominado – e o crescente controle sobre os modos operatórios no trabalho; 3) a perda da razão social do trabalho – na qual o trabalho perde o sentido social de transformação dos indivíduos; e 4) ser humano desenraizado – referindo-se à coisificação não só das mercadorias, mas dos indivíduos e das relações, invertendo a lógica natural de relações, numa constante desvalorização do mundo humano e supervalorização das coisas. No discurso de F3 fica explícita a visão do perfil de trabalhador que está apenas envolvido na sua prática clínica, deixando de lado o entendimento dos fatores que influenciam sua atuação.

Em contrapartida, ao serem questionados sobre as influências da macropolítica e do sistema econômico sobre as relações de trabalho do fisioterapeuta, é possível verificar que há uma percepção dos sujeitos sobre essa influência. Consideramos que essas percepções se dão pelas dificuldades que os conflitos capital-trabalho podem trazer para a prática cotidiana dos fisioterapeutas. F8 ao analisar essa temática diz:

Eles tentam da máxima forma reduzir os custos e quanto mais ele (o empregador) conseguir explorar ou trocar serviços melhor... o dinheiro chega a ser viciante para os donos dos serviços.

A influência da lógica liberal do lucro e da exploração do trabalho é, para os profissionais, perceptível também no atendimento oferecido aos usuários do serviço. F7 analisa a situação expressando:

O sistema hoje influencia demais nas relações de trabalho, não só na fisioterapia, mas sim na saúde em geral. O capitalismo prejudica demais a assistência à saúde do ser humano. Ele preza muito mais pela produtividade do que a qualidade em si... ele atropela valores éticos, morais e humanos.

Ao passo que os processos de reestruturação produtiva incidem no cotidiano do ‘fazer saúde’, reproduzem-se mecanismos de desproteção do trabalho, repercutindo também na qualidade do cuidado aos usuários (Ribeiro e col., 2004; Medeiros e Rocha, 2004). Nesse aspecto, merece destaque a relação entre os entraves na assistência à saúde e a lógica do atual sistema, expressa no discurso de F7, que começam a ser percebidos pelos profissionais a partir do seu local de trabalho.

Precarização do trabalho

A compreensão da saúde deve ser sustentada como integrante do processo de produção de bens materiais da sociedade. Dessa forma, a análise dos entraves no setor de fisioterapia está articulada ao contexto histórico e possibilita o entendimento de forma mais clara da política de precarização do trabalho em saúde (Medeiros e Rocha, 2004).

A expansão do capitalismo é marcada por uma profunda reestruturação produtiva, com consequentes metamorfoses no mundo do trabalho. Na transição do século XX para o XXI, especificamente no início dos anos 1990, essas mudanças ganharam maior visibilidade na economia brasileira. Nesse período, duas mudanças políticas interdependentes marcaram tais transformações: a flexibilização dos regimes de trabalho e do sistema legislativo nacional de proteção ao trabalho (Costa, 2005).

Essa década foi marcada por ajustes econômicos que traziam em seu plano a abertura comercial do país ao exterior e pelas privatizações. Sob o discurso da estabilidade econômica, os governos de Fernando Collor de Mello e de Fernando Henrique Cardoso acentuaram a reestruturação produtiva brasileira, marcada pelo fechamento de fábricas, enxugamento de quadros e racionalização de custos. Diversas formas de contratação precárias foram estabelecidas, gerando trabalhadores terceirizados, temporários, em tempo parcial ou por tarefas. O resultado dessas mudanças conduziu uma parte dos trabalhadores à informalidade, enquanto outra deslocou-se para o setor de serviços (Gomez e Thedim-Costa, 1999; Antunes e Alves, 2004).

Na fisioterapia, que surgiu no Brasil como profissão liberal (Rebelatto e Botomé, 1999), é possível perceber, a partir das narrativas dos sujeitos da pesquisa, as marcas da transformação no mundo do trabalho e os primeiros reflexos sobre a profissão. Ao falar sobre a inserção no mercado de trabalho, F2 revela um dos principais traços do modelo de acumulação flexível, que é a instabilidade no trabalho:

Você não tem nenhum vínculo empregatício direto com a empresa. Essa é a segunda clínica que estou trabalhando e na outra era a mesma coisa, sem vínculo. O contrato era de boca, você ganha por turno, independente do número de pacientes.

Situação semelhante à relatada por F2 (contratos de boca: instituição de contratos de trabalho sem nenhuma vinculação formal) pode ser vista em outros setores produtivos, como a construção civil, onde Cockell e Perticarrari (2010) encontraram o que denominaram “instituição da precariedade”. Bleicher (2012), num estudo com dentistas na cidade de Salvador, encontra a mesma precariedade de vínculos, o que leva os trabalhadores a viverem em permanente insegurança sobre o futuro profissional.

Dentre as formas de vínculo de trabalho encontradas em nosso estudo destacam-se a contratação direta pelo dono de clínica por porcentagem no atendimento; contratação via cooperativas de trabalho; contratos de pessoa jurídica; contratos via sociedade; e os contratos de boca. A fala de F4 revela um pouco como os processos de terceirização passam a ser encarados pelos fisioterapeutas empregados por clínicas particulares:

Existem três maneiras de se explorar um fisioterapeuta hoje: a primeira é uma proposta de sociedade, na qual você é contratado, mas não tem nenhum direito trabalhista; você participa como sócio minoritário da empresa, sendo dono, você não tem garantia de trabalho, de carteira assinada, de férias, de décimo terceiro. Outra maneira de se explorar é a formação de cooperativas, na qual o cooperativado não tem direito de nada. A última seria você abrir uma pessoa jurídica não tendo nenhum vínculo trabalhista.

Druck e Franco (2007) ressaltam que, apesar das divergências quanto às definições de terceirização, a depender da área de conhecimento, há um consenso geral que relaciona os processos de terceirização à transferência de responsabilidades a outro (um terceiro) e da precisão de flexibilização, como alternativa à necessidade de redução de custos. As autoras destacam ainda que, independente da definição utilizada, é um fato consolidado que o processo de terceirizações e subcontratações é um fenômeno mundial que se generalizou para todas as atividades produtivas, com diferentes formas de expressão. O Brasil acompanha as transformações vivenciadas no mundo e especialmente na França, onde uma das principais formas de relações de trabalho não ocorre numa relação entre empregador e empregado, mas sim entre empresas contratantes e contratadas. Dessa forma, a contratante não efetua contrato com cláusula social, estabelecendo apenas uma relação comercial.

Nas clínicas pesquisadas em Salvador, a relação contratual está caminhando para a total abolição do vínculo celetista, prevalecendo o contrato entre empregado e empregador de forma verbal, como nos revela os sujeitos da pesquisa. As características da ideologia liberal frente ao trabalhador polivalente, à flexibilização trabalhista, à redução da estabilidade com consequente aumento do desemprego e à política da terceirização e privatização, somadas à retirada do controle dos direitos sociais das mãos do Estado, conduzem a interpretação de que as mudanças na macroestrutura é que redirecionam as novas formas e exigências no mundo do trabalho (Kantorski, 1997).

Outros elementos que compõem as relações de trabalho e merecem destaque nos discursos dos fisioterapeutas envolvem as condições de trabalho e as dificuldades enfrentadas no cotidiano. A fala de F3 aborda que, em sua visão

Condições de trabalho envolve vários aspectos. Em relação à parte material, é bacana. Mas quando vamos partindo pra remuneração, período de trabalho, custo-benefício, modifica-se um pouco.

A queixa sobre a baixa remuneração é recorrente nos fisioterapeutas entrevistados, e, além de representar um rebaixamento nas condições de vida, pode ser fator ligado à extensão da carga-horária de trabalho em busca de maiores remunerações.

Dedicaremos um tópico específico para discutir a relação com a formação dos fisioterapeutas na graduação, mas a fala de F4 chama atenção para um aspecto da remuneração, que repercute no cotidiano de trabalho:

A parte financeira não é tão boa, não recompensa você fazer um curso de cinco anos e ganhar o que eu estava ganhando.

Com o aumento dos cursos privados, uma parcela importante adquire dívidas ao longo da graduação, na esperança de grandes remunerações que compensem o investimento realizado. Mas a realidade dos baixos salários não corresponde às expectativas à época da graduação.

No contexto das condições de trabalho, chama atenção a instabilidade nos vínculos, que leva à sobrecarga de trabalho. F2 revela um traço importante da precarização das relações trabalhistas, que é a perda de direitos básicos como férias, licença maternidade, afastamento por doença, que geram uma não remuneração no período sem atendimento:

Você não tem segurança de nada, você está na corda bamba o tempo todo. Eu não tiro férias desde que me formei (quatro anos).

Apesar do viés liberalizante da profissão, que busca formar profissionais empreendedores, sendo o conceito de autonomia no trabalho bastante presente, esta passa a ser questionada por eles próprios. Esse questionamento ocorre à medida que se percebe no cotidiano que a autonomia na organização dos tempos e das agendas de atendimento é deteriorada pela falta de qualquer direito que resguarde esses profissionais em um momento de maior necessidade.

Só há dois meios de conseguir estabilidade na fisioterapia: uma maneira é o concurso público; a outra é você ter carteira assinada por algum hospital, alguns poucos ainda assinam. Na clínica eu acho quase impossível. É muito difícil. (F4)

Esses resultados são próximos dos encontrados por Bleicher (2012), que revela contradições entre autonomia e assalariamento precário nos vínculos trabalhistas de dentistas na cidade de Salvador. Nos discursos dos nossos informantes a comparação com os vínculos formais de trabalho parece apontar um questionamento dos pilares liberais que nortearam a atuação profissional durante décadas.

De acordo com nossos achados, as clínicas possuem boa estrutura física, contudo não ocorre uma valorização dos profissionais. Essa situação ocorre devido à adequação dos serviços de saúde à demanda do capital, promovendo a racionalização de custos por meio da introdução de inovações tecnológico-organizacionais, redução do contingente de trabalhadores, diminuição do trabalho qualificado e redução de salários, contribuindo com a precarização das condições de trabalho (Pires, 2000 apud Medeiros e Rocha, 2004).

Diminui-se a qualidade do atendimento prestado à população à medida que se submete os fisioterapeutas a condições precárias de trabalho, como pode ser observado na fala de F2:

Para buscar essa meta, volume de atendimentos, você acaba diminuindo os procedimentos e condutas, e prolongando o tempo de tratamento com a fisioterapia.

Ponderações sobre os impactos da precarização do trabalho sobre a prática profissional são feitas pelos fisioterapeutas, que muitas vezes se veem num dilema sobre a sobrevivência pessoal e a prestação de um atendimento de qualidade. Essa lógica leva a um aumento no número de atendimentos por turno, expresso na fala de F4:

A maior dificuldade é a quantidade enorme de pacientes por fisioterapeuta; por turno a média é de 35 pacientes para dois profissionais.

Essa lógica do aumento de atendimentos para ampliara produtividade por fisioterapeuta é a máxima expressão do papel que cumpre a flexibilização das relações de trabalho na área. Essa lógica cumpre um papel importante na acumulação de capital, como pode-se observar na fala de F7:

Considero bastante precarizado, principalmente em fisioterapia convencional, onde o atendimento é muito tecnicista. Os donos de clínica pensam mais na produtividade de pacientes sem um atendimento de alta qualidade.

Druck e Franco (2007) conceituam precarização da seguinte forma:

...Processo social constituído pela amplificação e institucionalização da instabilidade e da insegurança, expressa nas novas formas de organização do trabalho – onde a terceirização/subcontratação ocupa um lugar central – e no recuo do papel do Estado como regulador do mercado de trabalho e da proteção social através das inovações da legislação do trabalho e previdenciária. Um processo que atinge todos os trabalhadores, independentemente de seu estatuto, e que tem levado a crescente degradação das condições de trabalho, da saúde (e da vida) dos trabalhadores e da vitalidade da ação sindical (p. 31).

Nesse sentido, é possível observar, a partir do nosso estudo, que a prática fisioterapêutica em clínicas particulares passa a ser permeada por elementos de precarização, que contribuem para apartar os trabalhadores de uma relação positiva com o seu labor e reforçar o processo anteriormente discutido de sua alienação. O trabalho é composto de uma parte concreta e outra abstrata. A concreta é ligada à atividade que cria valor-de-uso e é divergente do trabalho abstrato, uma atividade estranha que cria valor-de-troca. Com o avanço do capitalismo, a dimensão do trabalho concreto perde espaço para a dimensão do trabalho abstrato (Navarro e Padilha, 2007). Dessa forma, o trabalho perde sua função social, torna-se alienado, explorado e deixa de lado seu caráter de produção de coisas úteis para atender às necessidades do capital (Marx, 2006; Marx, 1989). O produto do trabalho do fisioterapeuta (o cuidado) aparece no final alheio, distante, estranho ao trabalhador, como se este não criasse vínculo com o seu processo de trabalho. A contradição entre ser um profissional vinculado aos usuários, visto como colaborador nos processos de cuidado versus um aplicador de técnicas, produtor de serviços a serem incorporados por este setor passa a se expressar no cotidiano da prática do fisioterapeuta.

Formação acadêmica

De acordo com o Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior, a universidade tem como papel assegurar uma produção de conhecimento inovador e crítico, que respeite a diversidade e acolha dos mais diversos elementos que possam constituir para questionamentos críticos que configurem a academia como protagonista da evolução histórica da sociedade (Andes, 2013).

Nas últimas décadas, o ensino superior vem passando por transformações que estão alterando a concepção da formação universitária, que vem sendo encarada, em sua maioria, como mera aquisição de competências imediatamente comercializáveis. F7 retrata que:

[...] as universidades focam mais na produção de alunos, ou seja, um mercado voltado para o capitalismo. Não vejo mais a universidade como centro de produção de conhecimento.

O ensino, nessa lógica, é considerado como uma mercadoria rentável e perde sua essência, pois o conhecimento produzido converge para os interesses de reprodução do capital (Kantorski, 1997).

A graduação em fisioterapia destaca-se como um dos cursos de maior crescimento na área da saúde, principalmente na rede privada de ensino. Bispo Junior (2009), ao problematizar a expansão do ensino em fisioterapia, ressalta que esse processo ocorreu sem planejamento ou mesmo regulação. Segundo F1:

Está havendo um grande problema na formação dos profissionais, com esse “boom” de faculdades particulares, onde o lucro se destaca em relação ao conhecimento.

Nesse particular, destaca-se a reforma política e econômica promovida pelo Estado brasileiro, na qual, para a efetivação do projeto neoliberal e sob o pretexto de ampliação da oferta do ensino, foi promovida em todo o país a liberalização do ensino a iniciativa privada (Corbucci, 2004).

Aliado a esse crescimento, o ensino positivista reproduz a lógica do capital na produção do conhecimento (Kantorski, 1997), além de influenciar a qualidade dos profissionais formados, repercutindo trabalhadores descontextualizados das necessidades sociais, sem uma visão integral do sujeito e dos determinantes que influenciam o processo saúde-doença, puramente tecnicistas e sem preparo para entender e enfrentar as complexas relações no mundo do trabalho (Freire, 1996; Ceccim e Feurwerker, 2004).

No que concerne à transição entre a universidade e o mundo do trabalho, F2 expõe que:

Tem muita gente que sai com uma ilusão, faz uma fantasia da profissão enquanto está na faculdade, e aí, quando cai na realidade, a decepção é grande.

Percebe-se nessa fala que nas instituições de ensino ocorre a construção de uma falsa projeção da realidade, descontextualizando a formação acadêmica dos entraves gerados pela reestruturação do sistema capitalista. Assim, muitas vezes, o despertar para as dificuldades enfrentadas no mercado de trabalho são postas apenas no momento em que o estudante deixa a academia e se torna um profissional.

O caráter mercantilista da formação no ensino privado é ilustrado na fala de F8:

A instituição cortou os professores doutores e passou a contratar fisioterapeutas com menor titulação. Hoje você tem recém-formados dando aula. Isso repercute na qualidade dos profissionais que vão se formar.

O impacto da reestruturação do ensino é notado na fala de F8, que demonstra que atualmente as IES buscam a constante redução de custos. Para tanto, adotam estratégias como a diminuição do quadro de docentes com maior titulação, oferta de diversos cursos de graduação e pós-graduação presenciais e na modalidade à distância, flexibilização das matrizes curriculares, diminuição da carga horária das disciplinas e fusão de matérias, além de uma formação que neutraliza a crítica, a reflexão e a transformação social (Bispo Junior, 2009).

Em contrapartida, apesar de sofrer com a atual situação de depreciação de suas estruturas, quadro de professores restritos e verbas insuficientes, a instituição pública ganha destaque na fala de F6:

A universidade pública cria uma consciência política muito maior, forma um profissional muito mais consciente do seu papel dentro da sociedade, que luta pela sua profissão.

Ao estruturar-se no tripé ensino-pesquisa-extensão e buscar promover a construção do saber socialmente referenciado, a universidade pública luta contra os ideais neoliberais do Estado e a favor de um ensino de qualidade a todos.

Nesse contexto de formação para o mercado, que não privilegia uma formação crítico-reflexiva, conforme determinam as diretrizes curriculares dos cursos de graduação em fisioterapia (Brasil, 2002) os fisioterapeutas formam-se sem a capacidade de reflexão sobres suas práticas e sobre o mundo do trabalho. A relação capital-trabalho não é abordada pelos cursos, o que diminui o poder de ação dos graduados quando eles se inserem no mercado. Num contexto de baixa organização dos trabalhadores em nível mundial, a formação para a lógica empreendedora-liberal cumpre também um importante papel na precarização do trabalho do fisioterapeuta, que vai ter dificuldades para encontrar saídas coletivas a essa problemática.

Organização sindical

A conjuntura política que marca o surgimento da fisioterapia é caracterizada por grande repressão dos movimentos sociais brasileiros no período da ditadura militar, com o objetivo fundamental manter a ordem do Estado, atendendo às exigências do modelo de sociedade capitalista, que entrava em disputa com o projeto de sociedade socialista.

Nesse período, os movimentos sociais/sindicais estavam desarticulados da realidade do momento, ganhando espaço a proposta de regulamentação da profissão por meio de entidades que substituíam o papel do Estado em sua função de regulamentar as atividades do trabalho. Assim, em 1975, através da Lei n 6.316, criou-se o Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional – COFFITO (Brasil, 1975).

Para compreender em que conjuntura este processo foi realizado é preciso entender o processo de reestruturação do mundo do trabalho, em que o modelo econômico vigente impôs que a análise da sociedade fosse realizada por outro viés, que não o da centralidade do trabalho e da organização da classe trabalhadora (Antunes, 1999).

Dessa forma o Sindicato de Fisioterapia e Terapia Ocupacional (SINFITO-BA) vive, até hoje, dificuldades de se estabelecer e se estruturar como um projeto de luta social que aponte para a organização dos trabalhadores. Fruto dessa conjuntura, os fisioterapeutas, muitas vezes, não têm clareza da importância e do papel do sindicato. A fala de F2 é emblemática dessa desestruturação sindical:

Dizer o papel do sindicato eu não sei... O Sindicato de Fisioterapia está se estruturando agora, eu ainda não vi atuação deles.

Para os sujeitos entrevistados o papel do sindicato vai desde a luta por salários até a prestação de assistência jurídica, o que reforça o caráter coorporativo da luta sindical atual, marcada pelos processos de reestruturação produtiva, que tiveram como um de seus objetivos diminuir os espaços organizados de resistência dos trabalhadores.

Druck (2011, p. 41), ao abordar a problemática da precarização social, destaca a organização dos trabalhadores observando que há uma “[...] (des)estruturação do mercado de trabalho e no papel do Estado e sua (des)proteção social, nas práticas de gestão e organização do trabalho e nos sindicatos, todos contaminados por uma altíssima vulnerabilidade social e política” (grifo nosso). Essa vulnerabilidade social e política leva a uma diminuição do poder de resistência dos trabalhadores, que se expressa no esfacelamento das entidades tradicionais de organização e luta dos trabalhadores.

Apesar de ter algum conhecimento sobre o papel dos sindicatos – ainda que confusos –, marcado pela época histórica (sociedades pós-fordistas) da busca de saídas individuais para os problemas sociais, a maioria dos fisioterapeutas não associa a luta sindical articulada com contribuições pessoais, acabando por direcionar a terceiros a culpa ou o papel da resolução dos problemas no mundo do trabalho. No que diz respeito à capacidade do fisioterapeuta em atuar diante de toda essa problemática, a saída apontada pelos profissionais, majoritariamente, é individual, de valorização profissional, estabelecimento de valores mínimos de atendimento, atualização-estudos para se apresentarem mais especializados no mercado, como é possível verificar na fala de F3:

Temos de mostrar nosso potencial, se valorizar. Uma forma de fazermos isso é sempre estar estudando, pesquisando, participando de discussões na área de saúde.

As contradições da saída individual até aparecem nos discursos dos nossos informantes, mas geralmente estão associadas a uma culpabilização por não poder fazer nada sozinho para mudar a realidade. Alguns sujeitos passam a identificar, ainda que de forma incipiente, a necessidade de fortalecer o sindicato como saída coletiva. F4 expressa que:

A principal coisa pra fisioterapia crescer é o sindicato, porque cada grãozinho de areia, cada participação pequena que for irá fortalecer o sindicato... mas falta a união da nossa classe.

Ao tempo que identifica a saída, F4 explicita um fator que joga contra a organização dos trabalhadores e que está associado à desestruturação dos sindicatos: a perda da unidade de classe entre os fisioterapeutas.

Identificamos em alguns sujeitos da pesquisa um discurso similar ao que as instituições de ensino superior apresentam: apenas o conhecimento técnico-científico é que trará possibilidades de superar os empecilhos nas relações de trabalho. Esse fundamento baseia-se, novamente, no toyotismo (hiperespecialização dos trabalhadores), no qual a culpa para os problemas no mundo do trabalho passa a ser única e exclusivamente do trabalhador (o culpado pela não especialização e precária inserção no mercado de trabalho), e não de toda uma estrutura socioeconômica. Esse fato acaba por promover desordens e afetar a subjetividade dos fisioterapeutas.

A falta do entendimento da necessidade de mobilização e organização configura-se como uma das marcas do modelo de acumulação flexível, em que a passividade e a atribuição do distanciamento do trabalhador dos mecanismos de regulação do poder e da compreensão da estrutura social favorecem a busca da solução para os problemas em nível individual e não coletivo. Apesar de identificarmos um número pequeno de fisioterapeutas que assumiram como importante o fortalecimento dos sindicatos, acreditamos ser importante o fato de que existem contradições nos discursos e que a prerrogativa da saída individual pela hiperespecialização, apesar de hegemônico, já encontra divergências. Acreditamos que são as condições reais de trabalho precarizado que têm levado os trabalhadores a buscar compreender de forma mais macro os determinantes da precarização do trabalho e a apontar, ainda que de forma incipiente, uma resposta coletiva para os problemas.

Considerações finais

Apesar das limitações do nosso estudo (investigação de apenas um setor de inserção dos fisioterapeutas no mercado de trabalho; baixo número de informantes-chave), acreditamos que as contribuições apresentadas são de fundamental importância para compreender as transformações ocorridas no mundo do trabalho e suas relações com a atuação dos fisioterapeutas. A utilização de um estudo exploratório de natureza qualitativa mostrou-se adequada para investigar um objeto complexo, como este a que nos propusemos. Temos clareza que nosso estudo não fecha questões, mas que seu mérito encontra-se justamente no fato de que ele explicita contradições que fazem parte do cotidiano de trabalho dos fisioterapeutas que atuam em clínicas privadas de Salvador, sendo provável que essas contradições sejam encontradas em outros setores, ainda que em escalas diferenciadas.

As consequências do modelo atual de organização do trabalho nas sociedades capitalistas trouxeram perdas para a classe trabalhadora no geral e apresentaram repercussões importantes para os fisioterapeutas, não apenas do ponto de vista financeiro, mas também na sobrecarga da jornada, perda de identidade profissional e instabilidade no trabalho.

Identificamos que existe uma contradição entre os sonhos do período de formação profissional e a realidade do mercado de trabalho. Elementos de precarização foram identificados no nosso estudo, principalmente a instabilidade, a terceirização, ausências de contrato e sobrecarga de trabalho, bem como baixa remuneração. Se pelas limitações do nosso estudo não podemos concluir que a prática profissional do fisioterapeuta vive um processo de precarização, podemos identificar que no setor investigado elementos de precarização estão presentes e influenciam a prática desses profissionais.

Identificamos como fatores contribuintes para a situação atual das condições de trabalho dos fisioterapeutas a formação profissional tecnicista, a expansão do ensino superior privado por políticas neoliberais de desresponsabilização do Estado, que entrega ao mercado a concepção de formação de trabalhadores da saúde. Essa formação em bases liberalizantes-empreendedoras faz com que as respostas para os problemas sejam majoritariamente individuais, com enfraquecimento dos espaços coletivos, a exemplo dos sindicatos.

O conhecimento sobre o papel dos sindicatos pelos fisioterapeutas é muito baixo, o que pode apontar para uma desestruturação da entidade sindical ou baixa relação da entidade com os profissionais que representa. Apesar disso, apontamos que começa a haver novos discursos no sentido do fortalecimento do sindicato como instrumento de resposta coletiva dos fisioterapeutas.

Ao entender a necessidade de uma resposta a esse processo social, espera-se contribuir para despertar nos fisioterapeutas uma reflexão sobre o mundo do trabalho, a formação de um senso crítico para a compreensão dos fatores que cercam a profissão, sensibilização das instituições de ensino superior quanto à necessidade de aproximação entre formação acadêmica e o mundo do trabalho, uma mobilização que pressione o Estado a ir contra a desregulamentação do trabalho, assim como fomentar nos profissionais a urgência da organização e fortalecimento dos sindicatos como uma entidade de lutas sociais e de defesa dos trabalhadores.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2014

Histórico

  • Recebido
    05 Ago 2012
  • Revisado
    18 Nov 2013
  • Aceito
    24 Mar 2014
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