Resumo
O trabalho teve como objetivo identificar a percepção de gestores públicos da assistência farmacêutica em esferas subnacionais e de gerentes técnicos de instâncias colegiadas do Sistema Único de Saúde sobre os reflexos do Programa Farmácia Popular do Brasil (PFPB), iniciativa exclusivamente federal, na gestão da assistência farmacêutica na atenção básica (Afab), de responsabilidade tripartite e operacionalizada pelos municípios. Entrevistaram-se gestores municipais, estaduais e gerentes técnicos do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde e do Conselho Nacional de Secretários de Saúde. A análise do conteúdo considerou as categorias (1) desafios e avanços da Afab e do PFPB e (2) conexões entre a Afab e o PFPB. Houve visões divergentes sobre as relações entre Afab e PFPB, se concorrentes ou complementares. Ressaltou-se o contraste entre os crescentes investimentos no PFPB e sua estagnação na Afab, a sobreposição dos elencos, a migração de usuários e o papel do PFPB como alternativa de acesso, entre outros. A implementação centralizada do PFPB parece ter se dado com baixa articulação com as esferas subnacionais de gestão, gerando distintas e contraditórias interpretações sobre seu papel e objetivos para os municípios, considerando-se as diretrizes de descentralização da assistência farmacêutica.
Palavras-chave:
Assistência Farmacêutica; Atenção Primária à Saúde; Gestão em Saúde; Política de Saúde; Federalismo
Abstract
This study aimed to identify the perception of public administrators from pharmaceutical services in subnational spheres, and of technical administrators from collegiate instances of the Brazilian National Health System on the impacts of the Farmácia Popular do Brasil Program (PFPB - Brazilian Popular Pharmacy Program), an exclusively federal initiative, in the administration of pharmaceutical services in primary health care (AFAB), of the responsibility of the three government levels and operationalized by the municipalities. Municipal, state and technical administrators from the National Council of Municipal Health Secretaries and from the National Council of Health Secretaries were interviewed. Content analysis considered the categories: (1) challenges and advances of AFAB and PFPB and (2) connections between AFAB and PFPB. There were different visions on the relations between them, either competing or complementing. The contrast between the growing investments in the PFPB and their stagnation in the AFAB, the overlapping of lists of medications, patient migration and the role of the PFPB as an access alternative, among others, were highlighted. The centralized implementation of the PFPB seems to have happened with poor articulation with subnational spheres of management, generating distinct and conflicting interpretations about the program’s role and objectives for the municipalities, considering the decentralization guidelines of pharmaceutical services.
Keywords:
Pharmaceutical Services; Primary Health Care; Health Management, Health Policy; Federalism
Introdução
A partir de 1998, com o lançamento da Política Nacional de Medicamentos, mudanças institucionais e normativas tiveram início, visando harmonizar a assistência farmacêutica (AF) aos princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS) - entre eles, a descentralização. Os novos marcos delegaram grande parte das responsabilidades da provisão de medicamentos ambulatoriais para os municípios, ficando a cargo destes a definição de elencos, programação, aquisição e distribuição de medicamentos no âmbito da atenção básica (AB). O financiamento da assistência farmacêutica na atenção básica (Afab), por sua vez, passou a ser realizado de forma tripartite, entre a União, os estados e os municípios (Kornis; Braga; Zaire, 2008KORNIS, G. E. M.; BRAGA, M. H.; ZAIRE, C. E. F. Os marcos legais das políticas de medicamentos no Brasil contemporâneo (1990-2006). Revista de APS, Juiz de Fora, v. 11, n. 1, p. 85-99, 2008.).
Todavia, diversos problemas persistem na provisão pública de medicamentos ambulatoriais, tornando a qualificação da Afab uma agenda inconclusa (Vieira, 2008VIEIRA, F. S. Qualificação dos serviços farmacêuticos no Brasil: aspectos inconclusos da agenda do Sistema Único de Saúde. Revista Panamericana de Salud Pública, Washington, DC, v. 24, n. 2, p. 91-100, 2008.). Entre os problemas descritos na literatura estão: baixa disponibilidade de medicamentos, inadequação de estrutura física para armazenamento e atendimento, falta de recursos humanos qualificados, entraves de origens diversas nos processos de aquisição e logística, insuficiência ou atraso de repasses financeiros e dificuldades com fornecedores, entre outros (Opas, 2005OPAS - ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DE SAÚDE. Avaliação da assistência farmacêutica no Brasil: estrutura, processo e resultados. Brasília, DF, 2005. (Série Medicamentos e Outros Insumos Essenciais para a Saúde).; Vieira, 2008VIEIRA, F. S. Qualificação dos serviços farmacêuticos no Brasil: aspectos inconclusos da agenda do Sistema Único de Saúde. Revista Panamericana de Salud Pública, Washington, DC, v. 24, n. 2, p. 91-100, 2008.).
Outra forma relevante de obtenção de medicamentos ambulatoriais no Brasil é pelo desembolso direto em farmácias e drogarias privadas, setor que se expandiu e manteve sua forte lógica mercantil de funcionamento, permanecendo em muitos casos como principal fonte de acesso (Pinto; Costa; Osorio-de-Castro, 2011PINTO, C. D. B. S.; COSTA, N. R.; OSORIO-DE-CASTRO, C. G. S. Quem acessa o Programa Farmácia Popular do Brasil? Aspectos do fornecimento público de medicamentos. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 6, p. 2963-2973, 2011.; Silva; Caetano, 2016SILVA, R. M.; CAETANO, R. Costs of public pharmaceutical services in Rio de Janeiro compared to Farmácia Popular Program. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 50, 2016.).
Em 2004, teve início o Programa Farmácia Popular do Brasil (PFPB), implementado e gerido exclusivamente pelo ente federal, com o objetivo de ampliar o acesso aos medicamentos mediante sua disponibilização a baixo preço, tendo como público preferencial a população de baixa renda não usuária do SUS (Pinto; Costa; Osorio-de-Castro, 2011PINTO, C. D. B. S.; COSTA, N. R.; OSORIO-DE-CASTRO, C. G. S. Quem acessa o Programa Farmácia Popular do Brasil? Aspectos do fornecimento público de medicamentos. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 6, p. 2963-2973, 2011.). O PFPB atende usuários de qualquer origem, público ou privada, e a maioria de seu elenco consta da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename), sendo coincidente com aqueles ofertados na rede pública (Silva; Caetano, 2016SILVA, R. M.; CAETANO, R. Costs of public pharmaceutical services in Rio de Janeiro compared to Farmácia Popular Program. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 50, 2016.).
Durante a evolução do PFPB, tem prevalecido em grande quantidade de estabelecimentos e volume de financiamento a vertente Aqui Tem Farmácia Popular (ATFP) - isto é, medicamentos com copagamento -, viabilizada a partir de subsídio federal às farmácias comerciais. Esse mecanismo tem também sido a principal forma de operacionalização da ação Saúde Não Têm Preço (SNTP) -≈ou seja, medicamentos com isenção de copagamento para hipertensão, asma e diabetes. A rede própria do PFPB tornou-se residual ao longo do tempo (Mattos, 2015MATTOS, L. V. Assistência farmacêutica na atenção básica e Programa Farmácia Popular do Brasil: uma análise crítica das políticas de provisão de medicamentos no Brasil. 2015. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) - Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Rio de Janeiro, 2015.; Silva; Caetano, 2016SILVA, R. M.; CAETANO, R. Costs of public pharmaceutical services in Rio de Janeiro compared to Farmácia Popular Program. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 50, 2016.).
Frenkel (2008FRENKEL, J. Medicamentos: políticas de acesso, segmentação da demanda e progresso técnico. In: BUSS, P. M.; CARVALHEIRO, J. R.; CASAS, C. P. R. (Org.). Medicamentos no Brasil: inovação e acesso. Rio de Janeiro: Fiocruz , 2008. p. 167-197.) afirma que a criação do PFPB representa uma mudança de ênfase da ação estatal, de modo a promover o aumento do acesso a medicamentos, independentemente das ferramentas usadas. Representou, portanto, uma mudança no foco dado até então - qualificação dos serviços públicos e utilização exclusiva dessa via para promoção do acesso - ; esteve entre as quatro principais prioridades da agenda federal na saúde durante os anos 2000 (Machado; Baptista; Nogueira, 2011MACHADO, C. V.; BAPTISTA, T. W. F.; NOGUEIRA, C. O. Políticas de saúde no Brasil nos anos 2000: a agenda federal de prioridades. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 27, n. 3, p. 521-532, 2011.). Dados recentes sobre o crescimento do financiamento e de estabelecimentos no programa confirmam essa tendência e demonstram o esforço do ente federal na implementação da política. No mesmo período, o número de farmácias comerciais cadastradas no programa aumentou duas vezes e meia, de 14.003 para 34.625.1 1 BRASIL. Ministério da Saúde. SAGE: Sala de Apoio à Gestão Estratégica. Disponível em: <http://sage.saude.gov.br/#>. Acesso em: 1º ago. 2016.
Em contrapartida, o financiamento da Afab segue, desde o ano de 2009, sem reajuste do valor per capita da contrapartida federal, estagnado em R$ 5,10. Em termos absolutos, os recursos repassados pelo Ministério da Saúde (MS) foram de mais de R$ 970 milhões, em 2010, para quase R$ 932 milhões em 2015,1 em valores correntes, ou seja, redução de 5%. No mesmo período, as contrapartidas per capita estadual e municipal passaram de R$ 1,86 para R$ 2,36.
Considerando a rápida expansão do PFPB e as dificuldades na Afab, é de se esperar que localmente a dinâmica do acesso tenha se alterado, trazendo impactos e questões para a gestão nas esferas subnacionais. Por um lado, estes têm a responsabilidade de organizar e garantir a provisão de medicamentos no âmbito da AB. Por outro, vê-se o avanço de uma política federal que se concretiza em estabelecimentos privados não ligados diretamente ao sistema público de saúde. Todas essas questões trazem implicações diretas à gestão municipal.
Assim, o objetivo deste trabalho é identificar a percepção de gestores públicos da assistência farmacêutica em esferas subnacionais e de gerentes técnicos de instâncias colegiadas do SUS sobre os reflexos do PFPB na Afab e as implicações práticas da convivência entre elas para a gestão municipal.
Método
Trata-se de estudo qualitativo, feito a partir da realização de entrevistas semiestruturadas. Buscou-se como perfil de entrevistados gerentes técnicos de instâncias colegiadas do SUS e gestores, preferencialmente secretários municipais de saúde. Procurou-se contemplar representantes de municípios de diferentes portes populacionais e regiões do país. Os critérios de inclusão dos entrevistados buscaram valorizar posições estratégicas de tomada de decisão e implementação na gestão pública do SUS no nível municipal. Não foi entrevistado o gestor do MS, uma vez que pretendeu-se captar a visão das esferas subnacionais sobre a política do ente federal.
Assim, as entrevistas iniciais foram feitas com os gerentes técnicos responsáveis pela área da AF no Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) e no Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass). A partir delas, obteve-se a indicação de secretários municipais de saúde e outros gestores para participação na pesquisa. Entre os secretários entrevistados, todos ocupavam, além de sua função principal, algum cargo no Conasems, indo da presidência até secretarias regionais especializadas do órgão.
No total, foram entrevistados 12 gestores: os gerentes técnicos do Conass e do Conasems, oito secretários municipais de saúde, um gestor de AF municipal e um gestor de AF estadual.
O questionário foi submetido a pré-teste, contendo ao final quatro blocos de perguntas: (1) situação geral da Afab nos municípios, com principais problemas, avanços e desafios; (2) responsabilidades do MS enquanto esfera de gestão orientadora e organizadora das políticas; (3) balanço do PFPB para os municípios e o papel que o programa ocupa dentro da política de AF; e (4) possíveis relações entre as políticas em diferentes aspectos.
Doze entrevistas foram realizadas pelo primeiro autor entre maio e agosto de 2014. Entre as dez entrevistas presenciais, uma foi realizada em viagem com essa finalidade específica (informante-chave), enquanto as demais ocorreram durante o 30º Congresso Nacional de Secretarias de Saúde. Todas foram gravadas e transcritas.
Quanto ao perfil dos nove ligados à gestão municipal, três eram do Sudeste, dois do Sul, dois do Nordeste, um do Centro-Oeste e um do Norte, representando sete diferentes estados. Com relação ao porte populacional, foram três gestores de cada grupo de porte populacional - pequeno (até 50 mil habitantes), médio (entre 50 e 250 mil habitantes) e grande (acima de 250 mil habitantes).
A despeito da autorização de divulgação dos nomes, optou-se por omiti-los. Visando localizar a posição dos entrevistados, as citações são sinalizadas a partir da posição ocupada na gestão e de acordo com o porte populacional do município (quando aplicável). Dessa forma, os gestores de instância colegiada do SUS foram classificados como G-ICSUS (1 e 2), o gestor estadual como GE e os gestores municipais como GM-P (1 a 3), no caso de municípios de pequeno porte, GM-M (1 a 3), nos municípios de médio porte, e GM-G (1 a 3) para os de grande porte.
A análise do conteúdo (Bardin, 2011BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.), a partir das falas, considerou o mapeamento das seguintes categorias: desafios e avanços da Afab e do PFPB e conexões entre si. As etapas de tratamento consistiram na transcrição das entrevistas, leitura preliminar, leitura em profundidade, organização em blocos temáticos, síntese e seleção e interpretação. O tratamento do material resultou na identificação dos dois grandes blocos temáticos a partir dos quais foi estruturada a apresentação dos resultados.
Todos os entrevistados manifestaram sua anuência pela assinatura de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca com o Parecer nº 626.060.
Resultados
Problemas, avanços e desafios na provisão de medicamentos ambulatoriais financiada pelo SUS
Entre os problemas da Afab, houve referência unânime à insuficiência no financiamento. Foram destacados a falta de reajuste do valor de repasse federal no componente básico de financiamento da AF, a defasagem entre o financiamento e o aumento da demanda local impulsionada pela expansão das políticas de AB e AF, o aumento de preços dos medicamentos e a expansão dos elencos. Foi reiteradamente alegado que o ente municipal fica sobrecarregado e se vê obrigado a destinar valores superiores a sua contrapartida pactuada para evitar o desabastecimento. Eu acho que a velocidade [de expansão] dos serviços assistenciais não vem sendo acompanhada pelo financiamento da Afab. E aí cria um déficit gigantesco para o município (GM-P1).
Citaram-se como agravantes os atrasos nos repasses financeiros pela esfera estadual e os repasses em produtos pelas esferas federal e estadual, além da judicialização do município para o fornecimento dos medicamentos.
A gente quer que o MS cumpra com suas obrigações. A gente tem dois meses com o recurso atrasado. […] A gente passou 2013 quase todo sem receber anticoncepcionais. (GM-P2)
Você tem um genérico que é a mesma coisa. Mas o médico diz que não serve e o paciente não quer e o juiz manda você dar aquela fórmula. (GM-P3)
Outro aspecto recorrente foram as dificuldades envolvidas na aquisição de medicamentos, destacando-se problemas com fornecedores - como a escassez de interessados em processos licitatórios, a incapacidade do mercado interno em atender a demanda, os atrasos na entrega e o não cumprimento de contratos.
Não existe quantitativo suficiente no mercado para suprir a demanda. É fala corrente dos laboratórios que eles não têm condição, não têm parque tecnológico para produzir frente à demanda. (GE)
O pessoal não quer vender pro público então não participa dos processos licitatórios que dão deserto ou fracassam; quem entra não cumpre as exigências, não entrega, não cota; e o mercado fica com pouco medicamento pra todo mundo. (G-ICSUS2)
A “burocracia” foi relacionada à dificuldade no cumprimento das legislações relativas à aquisição, resultando, entre outros, na morosidade dos processos licitatórios. A corrupção também foi uma questão relevante, ainda que pouco citada. Com relação à logística, além dos atrasos na entrega, destacaram-se problemas na organização e na estrutura de distribuição, solicitação inapropriada por parte das unidades ou não cumprimento de serviço por empresas terceirizadas.
Às vezes até ocasiona o desabastecimento. É todo o processo de licitação, de tomada de preço. (GM-M2)
Uma área ainda que é ligada a cartéis, […] é ligada a prática dos 10% de comissão, é ligada a falta do processo licitatório dentro das Secretarias. (GM-M1)
Então uma unidade […] não fez o pedido correto, e aí está faltando. (GM-M3)
Entre os problemas relacionados aos recursos humanos, figuraram a quantidade insuficiente de profissionais, a baixa capacitação e a má formação, tanto na gestão quanto na atenção. Em menor frequência, mencionou-se rotatividade, dificuldade de contratação e baixos salários. Não tinha gente qualificada para fazer AF em todas as unidades. Tínhamos uma rede muito capilarizada para ter gente em todos esses locais (GM-G1).
Quanto à estrutura, destacaram-se a falta de condições para armazenamento, atendimento, e informatização. Citou-se em menor frequência o baixo entendimento de gestores do SUS em geral sobre a importância da estrutura. Como contraponto, houve reconhecimento de avanços nesses quesitos. Hoje eu não tenho um controle efetivo da dispensação, não tenho nada informatizado, não tenho internet nas unidades (GM-M3).
Os entrevistados consideraram que o MS tem dado suporte aos municípios para o enfrentamento das dificuldades estruturais e organizativas da gestão da Afab, especialmente a partir de iniciativas consideradas positivas, como o Programa de Qualificação da Assistência Farmacêutica no SUS (Qualifar-SUS) e o sistema Hórus. Estas teriam aproximado o MS dos municípios e representariam um avanço no entendimento da AF para além do aspecto logístico.
Hoje você tem o Hórus, só em um minuto você puxa toda a sua situação do município. Então isso é um avanço. (GM-P2)
Passou-se de um entendimento que era meramente assistencialista em termos de distribuição, para dar um primeiro passo numa discussão mais integrada com os municípios. (G-ICSUS2)
Todavia, houve questionamentos acerca da insuficiência de recursos para maior efetividade e abrangência dessas ações e das dificuldades na implementação.
Do ponto de vista estadual e municipal, as soluções implementadas ou sugeridas pelos gestores para estruturação e organização da Afab são diversas, sendo anteriores ou simultâneas às iniciativas federais. Elas passam por maior organização interna, articulação entre municípios e atuação mais proeminente dos estados. O estado investiu muito, centralizou a estrutura das Farmácias, criou um sistema de registro. Tem recurso para contratação de farmacêuticos (GM-P3).
Especificamente com relação à aquisição, os consórcios intermunicipais e a centralização estadual de compras foram consideradas experiências relevantes ao permitirem a obtenção de menores preços, maior adesão às licitações e maior regularidade no abastecimento. [Consórcio] é a maior experiência exitosa de aquisição de medicamentos, de programação, de regularidade de entrega. Porque você alarga escala otimizando recursos e garantindo a distribuição (GM-G2).
A situação que grande parte dos entrevistados entendeu mais afetar os pacientes que utilizam a Afab como fonte de obtenção de medicamentos ambulatoriais é a irregularidade no abastecimento dos medicamentos, dificultando o acesso. Parte da população muitas vezes tem dificuldade de acessar os medicamentos nas farmácias do SUS (G-ICSUS1).
Sendo a irregularidade no abastecimento uma realidade na Afab, o principal ponto positivo mencionado sobre o PFPB foi o de servir como alternativa de acesso nos casos de desabastecimento. Para o gestor municipal é a melhor coisa do mundo. Se você não tem na rede, pelo menos tem para onde encaminhar seus pacientes (GM-P2).
Pela perspectiva da gestão, questionou-se a baixa interlocução entre o ente federal e os municipais no âmbito do PFPB e a falta de transparência sobre resultados e de clareza sobre o papel do programa para os municípios.
Quais resultados? Nós sabemos quais os resultados que nós temos. Agora, quais são os da Farmácia Popular? (GM-P3)
Ele [MS] não está fazendo essa discussão com o gestor, sempre acham que a gente está criticando a Farmácia Popular. (GM-G3)
Em relação ao cuidado na Afab, a estruturação realizada em alguns locais permitiu evolução nesse aspecto. Contudo, a centralidade nas ações de logística e gestão e a falta de esforços específicos ainda são limitantes para a qualificação do cuidado. A fragilidade é a baixa qualidade de atendimento. As ações ainda estão direcionadas aos aspectos de logística, […] mas ainda falta tudo por fazer na atenção, no acompanhamento (GE).
Sobre o PFPB, foi destacada a falta de acesso aos dados de dispensação nas farmácias comerciais, a baixa preocupação com a atenção, o envolvimento do setor privado na política e sua contrapartida insuficiente.
A maior desvantagem é você não conhecer os dados dos pacientes e dos medicamentos que são dispensados. (GM-P3)
O objetivo final do SUS, de atender bem o paciente, em nenhum momento vai poder ser contemplado no Farmácia Popular. (GE)
Apesar das dificuldades, diversos gestores consideraram que houve importantes avanços na Afab nos últimos anos, sendo possível uma melhora significativa dessa política dentro dos marcos da descentralização. Na avaliação geral sobre o PFPB, positiva ou negativa, as respostas foram diversificadas. Destacou-se a necessidade de debates, revisões e ajustes no PFPB para a correção de possíveis desequilíbrios.
Relações entre a assistência farmacêutica na atenção básica e o Aqui Tem Farmácia Popular
A primeira questão levantada foi o contraste existente entre os crescentes investimentos no PFPB de um lado, e a insuficiência do valor de repasse no componente básico.
Hoje, grande parte dos recursos [do] MS é gasta muito mais com o PFPB, do que com a Farmácia Básica. (GM-P1)
Estou financiando mais o programa e subfinanciando a política. Você está perto de [R$] 3 bi pro PFPB e [R$] 1,3 bi pra Afab. Que dá quase 300 itens, e o PFPB não chega a 100. Tem um desconforto. (G-ICSUS2)
As diferenças entre os custos dos dois programas foi apresentada como agravante, porém sem entendimento unânime. Alguns afirmaram que na Afab consegue-se adquirir a menores preços, enquanto outros apresentaram dúvidas.
O governo paga por aquele medicamento dez vezes mais do que paga no serviço público. (GM-P3)
Se você somar todos os custos, o que você gasta na Farmácia Popular e na rede pública deve ser mais ou menos equivalente. (GM-G1)
Quando perguntados se haveria melhores resultados caso os recursos do PFPB fossem aplicados na Afab, houve divergências. Alguns afirmaram que sim, outros apresentaram ressalvas em função dos custos logísticos e das dificuldades de programação e aquisição dos municípios - ou por considerarem não ser possível avaliar a questão.
Nós teríamos um alcance muito maior, teríamos uma qualidade na distribuição e uma satisfação maior no tratamento. (GM-M1)
É difícil de saber. De repente pode ser que a gente fique com dinheiro, mas não consiga disponibilizar [os medicamentos]. (GM-G3)
Destacaram-se duas possíveis consequências dessa diferença de investimento: a deslegitimação simbólica do setor público e a admissão das fragilidades da Afab, já que nesta, diferentemente do PFPB, é comum a falta de medicamentos.
Toda vez que esse medicamento falta no serviço público, ele tenta buscar no setor de farmácia privada e desacredita a gestão. E aí é ineficiência da gestão do SUS. Então é ruim para o SUS. (GM-M1)
Se veio surgir […] para dar o apoio, significa dizer que tem uma fragilidade da AF. Se não existisse essa fragilidade, não existia a Farmácia Popular. (GM-P2)
Alguns gestores apontaram que a venda de medicamentos pelo PFPB pode ser economicamente mais vantajosa para os produtores e distribuidores. Caso haja limitação do mercado em atender a demanda, é possível que o direcionamento do fornecimento para o PFPB contribua para as dificuldades na aquisição pelos municípios. Todavia, houve divergências sobre essa hipótese.
Pode haver interferência, porque o governo paga um valor maior lá [no PFPB]. Pro distribuidor e pro fabricante é melhor lá, que tem um preço mais competitivo pra lucratividade deles. (G-ICSUS2)
Não vejo isso [direcionamento de fornecimento para o PFPB]. Eu vejo que o pequeno município tem dificuldade de comprar com valores de mercado competitivo. (GM-G2)
Foi mencionada a sobreposição de parte do elenco dos dois programas, com perspectivas diferenciadas. A primeira não considera isso um problema, pois, ao segmentar o acesso, direcionaria a demanda entre pacientes oriundos dos setor público e do privado. A segunda considerou a sobreposição contraditória, pois seria irracional ambos os modelos ofertarem os mesmos medicamentos.
Aqueles que são usuários do SUS e fazem o acompanhamento vão buscar na rede. E aqueles que fazem na iniciativa privada devem ir buscar na Farmácia Popular. (GM-M3)
Você está criando uma concorrência. O município tem que comprar e disponibilizar os mesmos medicamentos que são disponibilizados no Farmácia Popular. (G-ICSUS1)
A terceira e mais frequente perspectiva apontou que alguns municípios deixariam de ofertar os medicamentos comuns ao PFPB para utilizar o recurso economizado com a compra de outros medicamentos.
Têm vários gestores [municipais] que hoje já não fazem mais aquisição desses medicamentos da Farmácia Popular. (GM-M2)
Isso está acontecendo [municípios deixarem de comprar medicamentos do PFPB]. Agora, de uma forma estratégica? Não. É uma adequação em função de um subfinanciamento. (G-ICSUS2)
Em relação à preferência da população por uma das duas fontes, a maioria afirmou que a população prefere obter seus medicamentos diretamente na Afab. A população que vai a unidade, se ela tiver garantia de que fármaco está presente não vai no PFPB (GM-P1).
Contudo, foram citadas também situações nas quais segmentos específicos podem preferir o PFPB, como aposentados, usuários de planos de saúde e população de alta escolaridade - ou ainda nos casos nos quais a acessibilidade geográfica e o horário de funcionamento das farmácias conveniadas são melhores.
No que diz respeito ao cuidado, diferenças qualitativas entre o tipo de serviço prestado em cada uma das políticas foram destacadas, especialmente a visão de que na Afab há uma preocupação maior com o cuidado, a integralidade e o vínculo, enquanto no PFPB o foco é o fornecimento.
A gente acha que isso interfere dentro da estratégia que a gente quer, que é a integração do usuário ao seu bairro e aquele bairro ligado a Unidade de Saúde. (GM-M1)
Eles fazem distribuição de medicamentos. Não é nem dispensação. (GM-M2)
Discussão
Pretendemos neste estudo avaliar, a partir da visão de gestores do SUS, os reflexos e relações decorrentes da convivência entre distintas políticas públicas para a provisão de medicamentos ambulatoriais: a Afab e o PFPB. Optamos por analisar a visão de gestores das instâncias subnacionais do SUS em detrimento da visão federal formuladora da política.
Foi sinalizada uma série de problemas da Afab nos mais diferentes aspectos da gestão, com resultados tanto na estrutura e organização do sistema quanto nos usuários. Não houve consenso sobre o tipo de relação entre o PFPB e a Afab, se de concorrência ou complementariedade, havendo várias nuances, de acordo com diferentes aspectos abordados e falas muitas vezes contraditórias.
Quanto ao financiamento, destacam-se dois elementos. Primeiro, a evolução dos recursos destinados pelo MS ao PFPB e à Afab. Quando comparadas, fica evidente a centralidade dos investimentos no primeiro e a diminuição do segundo. Enquanto o PFPB, com elenco mais restrito, teve aumento, entre 2010 e 2015, de 1055% em seu financiamento, a Afab, com elenco muito mais amplo, tem os valores de seu financiamento per capita congelados desde 2009 (Silva; Caetano, 2016SILVA, R. M.; CAETANO, R. Costs of public pharmaceutical services in Rio de Janeiro compared to Farmácia Popular Program. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 50, 2016.). Adicionalmente, o subfinanciamento da Afab tem sobrecarregado os municípios, pois tanto a demanda quanto os preços dos medicamentos aumentaram (Machado et al., 2014MACHADO, C. V. et al. Federal funding of health policy in Brazil: trends and challenges. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 30, n. 1, p. 187-200, 2014.).
O segundo elemento refere-se aos custos do PFPB e da Afab. Dois estudos, que consideraram no cálculo os custos de logística, estrutura, recursos humanos e depreciação, concluíram que os custos do PFPB são de 150% (Carraro, 2014CARRARO, W. B. W. H. Desenvolvimento econômico do Brasil e o programa Aqui Tem Farmácia Popular: limitantes e potencialidades. 2014. Tese (Doutorado em Economia) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2014.) a 255% (Silva; Caetano, 2016SILVA, R. M.; CAETANO, R. Costs of public pharmaceutical services in Rio de Janeiro compared to Farmácia Popular Program. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 50, 2016.) maiores que na Afab. É possível que em municípios de menor porte, com pequena escala de compra e/ou com AF pouco estruturada, os valores gastos nas compras públicas sejam equivalentes ou superiores ao PFPB. Todavia, não foram encontradas evidências para essa hipótese.
Em relação à aquisição, aspectos como restrição de repasses financeiros, corrupção e falta de transparência, dificuldades com as normas e processos licitatórios e não adesão dos fornecedores encontram respaldo na literatura (Vieira, 2008VIEIRA, F. S. Qualificação dos serviços farmacêuticos no Brasil: aspectos inconclusos da agenda do Sistema Único de Saúde. Revista Panamericana de Salud Pública, Washington, DC, v. 24, n. 2, p. 91-100, 2008.). A falta de interesse dos produtores nos processos licitatórios por parte foi considerada pelo Conass (2014CONASS - CONSELHO NACIONAL DE SECRETARIAS ESTADUAIS DE SAÚDE. Apresentação das dificuldades enfrentadas pelas Secretarias Estaduais de Saúde na aquisição de medicamentos. Brasília, DF, 2014. v. 15. (Série Nota Técnica). Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2AuNku0
>. Acesso em: 3 jan. 2019.
https://bit.ly/2AuNku0...
) em nota técnica.
Não encontramos evidências quanto à insuficiência do parque produtivo nacional para atender simultaneamente às demandas dos municípios e do mercado - tampouco quanto a um possível direcionamento da produção para a demanda gerada pelo ATFP. Sobre esta última hipótese, possíveis explicações seriam o maior retorno financeiro nas vendas para abastecer o varejo, tendo em vista os maiores preços praticados, a magnitude e regularidade da demanda, a existência de canais de distribuição previamente estabelecidos com as farmácias e o menor custo operacional para os fornecedores, permitindo escapar da burocracia e das exigências relativas às licitações. Essas são hipóteses importantes que merecem ser investigadas em estudos futuros.
Outra consequência decorrente do subfinanciamento e da sobreposição de elencos, seria a suspensão na Afab do fornecimento dos medicamentos que são ofertados pelo PFPB. Assim, os gestores poderiam utilizar os escassos recursos da Afab para a aquisição de outros medicamentos ou garantir o abastecimento de um elenco menor, enquanto os medicamentos presentes no PFPB seriam obtidos pela população apenas nessa fonte. Apesar da necessidade de estudos que dimensionem essa situação, é preocupante a ocorrência desses casos, já que, na prática, representa a substituição da Afab pelo PFPB para determinados medicamentos.
Em outras etapas da gestão, como o armazenamento, o controle de estoque e a programação de compras, as falas dos gestores a respeito da Afab são respaldadas pela literatura (Opas, 2005OPAS - ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DE SAÚDE. Avaliação da assistência farmacêutica no Brasil: estrutura, processo e resultados. Brasília, DF, 2005. (Série Medicamentos e Outros Insumos Essenciais para a Saúde).; Vieira, 2008VIEIRA, F. S. Qualificação dos serviços farmacêuticos no Brasil: aspectos inconclusos da agenda do Sistema Único de Saúde. Revista Panamericana de Salud Pública, Washington, DC, v. 24, n. 2, p. 91-100, 2008.). O mesmo acontece quando se fala em questões estruturais, como a inadequação e insuficiência dos espaços de atendimento e armazenamento, a falta de climatização e o baixo acesso à internet (Mendes et al., 2014MENDES, L. V. et al. Disponibilidade de medicamentos nas unidades básicas de saúde e fatores relacionados: uma abordagem transversal. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 38, p. 109-123, 2014. Número especial.), ainda que possam existir casos locais ou regionais de sucesso. As iniciativas do MS para o enfrentamento dessas questões, notadamente o sistema Hórus (Costa; Nascimento Júnior, 2012COSTA, K. S.; NASCIMENTO JÚNIOR, J. M. Hórus: inovação tecnológica na assistência farmacêutica no sistema único de saúde. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 46, p. 91-99, 2012. Suplemento 1.) e o programa Qualifar-SUS (Brasil, 2012BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria MS/GM no 1.214, de 13 de junho de 2012. Institui o Programa Nacional de Qualificação da Assistência Farmacêutica no âmbito do Sistema Único de Saúde (QUALIFAR-SUS). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 14 jun. 2012. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2QlOldc
>. Acesso em: 3 jan. 2019.
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), foram consideradas importantes, ainda que insuficientes ou pouco abrangentes, ou ainda que faltem recursos financeiros dentro do panorama geral de subfinanciamento e priorização do fornecimento em detrimento do cuidado.
Os relatos apontam que as principais soluções para a Afab quanto aos aspectos logísticos e estruturais estão relacionadas protagonismo dos estados e a uma maior articulação intermunicipal. Com relação à aquisição, estudos mostram que o sistema de consórcio de fato gera economia para os entes participantes e maior regularidade no abastecimento (Amaral; Blatt, 2011AMARAL, S. M. S.; BLATT, C. R. Municipal consortia for medicine procurement: impact on the stock-out and budget. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 45, n. 4, p. 799-801, 2011.; Ferraes; Cordoni Júnior, 2007FERRAES, A. M. B.; CORDONI JÚNIOR, L. Consórcio de medicamentos no Paraná: análise de cobertura e custos. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 41, n. 3, p. 475-486, 2007.). O papel dos estados parece ter sido decisivo em alguns casos bem-sucedidos de organização e qualificação da Afab (Faleiros; Silva, 2014FALEIROS, D. R.; SILVA, G. D. Gestão racional da assistência farmacêutica: Farmácia de Minas. In: OSORIO-DE-CASTRO, C. G. S. et al. (Ed.). Assistência farmacêutica: gestão e prática para profissionais da saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2014. p. 69-78.; Ferraes; Cordoni Júnior, 2007FERRAES, A. M. B.; CORDONI JÚNIOR, L. Consórcio de medicamentos no Paraná: análise de cobertura e custos. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 41, n. 3, p. 475-486, 2007.).
Além dos problemas já documentados sobre a Afab, os fatores que sustentam o reconhecimento do PFPB como alternativa de acesso pelos gestores são, de um lado, o desabastecimento na rede pública e, de outro, a disponibilidade garantida no PFPB.
O desabastecimento na Afab não é uma situação nova (Vieira, 2008VIEIRA, F. S. Qualificação dos serviços farmacêuticos no Brasil: aspectos inconclusos da agenda do Sistema Único de Saúde. Revista Panamericana de Salud Pública, Washington, DC, v. 24, n. 2, p. 91-100, 2008.). Um estudo com dados de inquérito de abrangência nacional aplicado em unidades básicas de saúde identificou disponibilidade média de medicamentos-chave em unidades básicas de saúde de 56,1% (Mendes et al., 2014MENDES, L. V. et al. Disponibilidade de medicamentos nas unidades básicas de saúde e fatores relacionados: uma abordagem transversal. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 38, p. 109-123, 2014. Número especial.). Na mesma direção, dados de inquérito domiciliar relatam a disponibilidade de medicamentos para doenças crônicas como sendo de 45,2%, 67,4% e 88,5%, respectivamente, no SUS, no PFPB e em farmácias privadas (Oliveira et al., 2016OLIVEIRA, M. A. et al. Access to medicines for chronic diseases in Brazil: a multidimensional approach. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 50, 2016. Suplemento 2.). A alta disponibilidade de medicamentos tem sido relatada no PFPB, tanto na rede própria (Bonotto; Colet, 2013BONOTTO, L. F.; COLET, C. F. Farmácia Popular do Brasil em Ijuí: perfil dos usuários e redução de preços dos produtos. Revista Brasileira de Farmácia, Rio de Janeiro, v. 94, n. 1, p. 41-48, 2013.; Pinto et al., 2010PINTO, C. D. B. S. et al. Medicine prices and availability in the Brazilian popular pharmacy program. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 44, n. 4, p. 611-619, 2010.) quanto no ATFP (Pinto et al., 2010PINTO, C. D. B. S. et al. Medicine prices and availability in the Brazilian popular pharmacy program. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 44, n. 4, p. 611-619, 2010.), assim como em farmácias comerciais (Opas, 2005OPAS - ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DE SAÚDE. Avaliação da assistência farmacêutica no Brasil: estrutura, processo e resultados. Brasília, DF, 2005. (Série Medicamentos e Outros Insumos Essenciais para a Saúde).). Não obstante, mesmo no caso da hipertensão e do diabetes, em que os medicamentos são gratuitos da Farmácia Popular, cerca de 18% dos entrevistados declarou ter obtido seus medicamentos no PFPB, tendo a maioria, cerca de 605 deles, obtido os medicamentos no SUS (Brasil, 2016BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Componente populacional: resultados. Brasília, DF, 2016.).
Sobre as diferentes visões quanto à dinâmica de utilização da Afab ou PFPB, diferentes estudos descobriram que cerca de metade das receitas no PFPB são oriundas do setor público (Bonotto; Colet, 2013BONOTTO, L. F.; COLET, C. F. Farmácia Popular do Brasil em Ijuí: perfil dos usuários e redução de preços dos produtos. Revista Brasileira de Farmácia, Rio de Janeiro, v. 94, n. 1, p. 41-48, 2013.; Carraro, 2014CARRARO, W. B. W. H. Desenvolvimento econômico do Brasil e o programa Aqui Tem Farmácia Popular: limitantes e potencialidades. 2014. Tese (Doutorado em Economia) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2014.; Pinto; Costa; Osorio-de-Castro, 2011PINTO, C. D. B. S.; COSTA, N. R.; OSORIO-DE-CASTRO, C. G. S. Quem acessa o Programa Farmácia Popular do Brasil? Aspectos do fornecimento público de medicamentos. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 6, p. 2963-2973, 2011.). Esse fato reforça a tese de uso eventual do PFPB nas situações de desabastecimento do SUS. Desse modo, o desabastecimento na Afab e a garantia de acesso no PFPB são características que se reforçam e atuam para induzir a migração de uma fonte de acesso para outra, de forma esporádica ou definitiva. Vale destacar uma fala recorrente dos gestores: quando há disponibilidade de medicamentos na Afab, os pacientes preferem obter os medicamentos na própria unidade onde são atendidos - e o PFPB ajuda os municípios na medida em que protege os usuários em casos de desabastecimento.
Foi recorrente a fala dos gestores quanto à necessidade de ampliação do debate em torno do tema, a fim de esclarecer e definir o papel de cada política e de cada esfera. As diferentes interpretações com relação ao papel do PFPB podem estar relacionadas não apenas às suas implicações práticas, mas também a sua implementação vertical e sem diálogo com as esferas subnacionais.
Arretche (2004ARRETCHE, M. Federalismo e políticas sociais no Brasil: problemas de coordenação e autonomia. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 18, n. 2, p. 17-26, 2004.) aponta que a participação de estados e municípios no processo de formulação da política de saúde, institucionalizada por meio de conselhos com representativos, tem servido como contrapeso à concentração de autoridade no ente federal, retirando do MS a possibilidade de estabelecer unilateralmente as regras de funcionamento do SUS. Porém, não é isso que se observa no caso do PFPB, política formulada e implementada pelo nível federal. Segundo os entrevistados, as decisões e discussões em torno dos rumos do programa não têm passado por esses conselhos e pelas comissões intergestoras. Além disso, o PFPB não conta com representação ou participação das esferas subnacionais em seu modelo de gestão centralizado, e o ente federal não disponibiliza orientações normativas ou instruções formais aos entes federativos sobre as implicações do programa para a dinâmica local de oferta de medicamentos.
Nesse caso, fica totalmente a cargo dos municípios a interpretação e ação em torno da nova realidade de convivência entre as duas políticas, o que vai na contramão de um movimento mais amplo de fortalecimento das instâncias interfederativas e pactuação de responsabilidades.
Na prática, o que parece ocorrer é que a chegada do PFPB acaba por redefinir indiretamente o papel da política sob a responsabilidade municipal, na medida em que o espaço ocupado pelas duas políticas se modifica a partir da coexistência no que se refere à gestão e à utilização. Dessa forma, não há qualquer coordenação entre as ações.
Guimarães e Giovanella (2004GUIMARÃES, L.; GIOVANELLA, L. Entre a cooperação e a competição: percursos da descentralização do setor saúde no Brasil. Revista Panamericana de Salud Pública, Washington, DC, v. 16, n. 4, p. 283-288, 2004.) sinalizam que, a despeito da importância da cooperação entre níveis de gestão como elemento crucial na implementação de sistemas de saúde em países federados, têm prevalecido no Brasil as relações competitivas. No caso em questão, percebe-se, por um lado, o PFPB como uma ação vertical e distante da cooperação entre os entes federados. Em contraste, iniciativas como a criação do sistema Hórus e o programa Qualifar-SUS vão no sentido oposto, conforme destacado pelos gestores. Isso indica a existência posturas diferentes do MS diante dos demais níveis de gestão no que se refere à AF, a depender da ação ou política em questão.
Ainda sobre a atuação do MS, Fonseca e Costa (2015FONSECA, E. M.; COSTA, N. R. Federalism, the economic-industrial health care complex and high-cost pharmaceutical assistance in Brazil. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 20, n. 4, p. 1165-1176, 2015.), ao analisarem a assistência farmacêutica de alto custo, concluíram que houve opção pela recentralização de atividades no nível federal, com o objetivo de estimular o desenvolvimento do complexo econômico industrial da saúde. Vem se argumentando (Pinto; Costa; Osorio-de-Castro, 2011PINTO, C. D. B. S.; COSTA, N. R.; OSORIO-DE-CASTRO, C. G. S. Quem acessa o Programa Farmácia Popular do Brasil? Aspectos do fornecimento público de medicamentos. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 6, p. 2963-2973, 2011.) que o PFPB tem sido utilizado para o mesmo propósito, o que explicaria em parte sua condução centralizada e sua força dentro da agenda federal. Uma função adicional da centralização no programa seria a possibilidade de associação da política a uma marca do Governo Executivo Federal (Pinto; Costa; Osorio-de-Castro, 2011PINTO, C. D. B. S.; COSTA, N. R.; OSORIO-DE-CASTRO, C. G. S. Quem acessa o Programa Farmácia Popular do Brasil? Aspectos do fornecimento público de medicamentos. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 6, p. 2963-2973, 2011.).
A utilização de entrevistas e o caráter exploratório do estudo se mostraram adequados, uma vez que permitiram, de maneira contextualizada, evidenciar problemas já conhecidos e identificar hipóteses que são descritas pela primeira vez na literatura científica. Todavia, a natureza do trabalho limita sua validade externa, ainda que a tentativa de abordar gestores de municípios de distintos portes tenha buscado incorporar diferentes perspectivas sobre questões geradas pelo PFPB a esse nível de gestão.
Considerações finais
Foram evidenciadas diferentes interpretações dos gestores entrevistados sobre o papel e os objetivos do PFPB, provável reflexo do baixo diálogo e escasso esclarecimento do ente federal para as esferas subnacionais durante sua implementação.
As questões levantadas neste trabalho sobre as relações entre as duas políticas são consequência direta de um contexto no qual - por um lado≈- a política de provisão elaborada nos marcos da descentralização, da divisão de responsabilidades entre os entes federativos e da Afab sofre de problemas crônicos, apesar de importantes avanços, e - por outro - emerge uma política para objetivos similares (PFPB), liderada exclusivamente pelo ente federal, que, ao contrário da Afab, vem recebendo mais investimentos e maior esforço para implementação.
Em geral, a concorrência foi associada, nas falas, ao maior direcionamento de recursos federais para o PFPB, em contraste à falta de reajuste do componente básico da AF, a uma possível interferência no mercado - o que dificultaria a aquisição -, à sobreposição dos elencos - o que levaria a alguns gestores optarem por não ofertar os medicamentos do PFPB na Afab -, a uma possível migração de usuários de uma modalidade para outra e aos diferentes modelos de atenção e cuidado. As políticas foram consideradas complementares pelos gestores nos municípios onde a AF não está estruturada, quando o PFPB funciona como alternativa de acesso nos casos de desabastecimento na rede pública ou quando ele atende públicos diferentes da Afab.
Há de se questionar a noção de “complementariedade” aplicada às relações entre Afab e PFPB. A terminologia evoca a conotação de uma relação virtuosa entre as políticas, como se suas características se somassem e potencializassem. Entretanto, muitas das consequências descritas neste trabalho não parecem ir nessa direção. Muitas delas parecem acontecer não devido a um desenho complementar entre elas, mas a partir de falhas da Afab.
Assim, é possível afirmar que a convivência entre as duas políticas tem redefinido o papel da Afab, ainda que de maneira indireta, na medida em que suas fragilidades somadas à vigorosa implementação do PFPB, têm consequências na utilização a nível local e influenciam as decisões de gestores dos municípios na condução da política de AF.
Várias das falas dos entrevistados encontram respaldo na literatura, enquanto outras levantam hipóteses importantes de temas a serem investigados.
Referências
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Contribuição dos autores
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1
BRASIL. Ministério da Saúde. SAGE: Sala de Apoio à Gestão Estratégica. Disponível em: <http://sage.saude.gov.br/#>. Acesso em: 1º ago. 2016.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Jan-Mar 2019
Histórico
-
Recebido
20 Jun 2017 -
Aceito
02 Nov 2018