Resumo
O aborto é tipificado no Código Penal brasileiro, entretanto, há casos em que ele não é punível. Nesses casos, o serviço deve ser ofertado no Sistema Único de Saúde (SUS), seguindo os princípios de igualdade de assistência e universalidade de acesso. No entanto, está concentrado em poucos hospitais de grandes centros urbanos, limitando o acesso. As limitações institucionais da oferta refletem desafios próprios do SUS e são acrescidas de estigmatização do procedimento, impondo barreiras adicionais ao acesso. Neste ensaio, a oferta do aborto previsto em lei no país é abordada a partir da lógica de organização do SUS e dos marcos normativos que a tangem. Em seguida, à luz de experiências e recomendações internacionais, são discutidas possibilidades de expansão da oferta e facilitação do acesso. Conclui-se que o Brasil seria capaz de oferecer de forma segura na atenção primária o aborto previsto em lei, utilizando-se de sua capilaridade para ampliar a acessibilidade geográfica, evitando o não acesso por indisponibilidade. A não garantia de acesso pode levar à busca por meios inseguros de interromper a gravidez, além de violar direitos de preservação da vida, da dignidade e da liberdade.
Palavras-chave: Acesso aos Serviços de Saúde; Aborto Legal; Aborto Induzido; Equidade no Acesso aos Serviços de Saúde
Abstract
Abortion is defined as a crime in the Brazilian Penal Code, nonetheless, it is not punishable in some cases. In these cases, the procedure must be offered by the Brazilian National Health System (SUS) following its principles of equal assistance and universal access. However, its provision is concentrated in a few hospitals in urban centres, limiting access. The institutional limitation of provision reflects some weaknesses of SUS and is aggravated by the stigmatization of the procedure, adding barriers to accessing it. In this essay, we approach legal abortion provision based on the SUS organization and the normative frameworks on abortion in the country. Then, we discuss alternatives for expanding abortion provision and access considering international experiences and recommendations. In conclusion, Brazil could provide safe legal abortion in primary health care, using its capillarity to expand geographic accessibility, and avoiding lack of access due to unavailability. Failure to guarantee safe abortion access can lead to unsafe procedures, in addition to violating the right to preserve life, to dignity and to freedom.
Keywords: Health Services Accessibility; Legal Abortion; Induced Abortion; Equity in Access to Health Services
Introdução
Aborto induzido é a remoção intencional do feto ou embrião do útero da gestante, interrompendo a gravidez (Descritores…, 2022). A Organização Mundial da Saúde (OMS) classifica os abortos induzidos entre seguros e inseguros, estes últimos subdivididos entre menos seguros e pouco seguros. Os seguros seriam os procedimentos realizados por pessoas treinadas usando métodos recomendados pela OMS que estejam de acordo com o tempo gestacional; os menos seguros seriam os realizados por pessoas treinadas usando métodos não recomendados pela OMS, ou usando métodos recomendados, mas sem informação adequada; por fim, os pouco seguros são realizados por pessoas não treinadas usando métodos perigosos ou invasivos (Ganatra et al., 2017). A indução do aborto, quando realizada em condições seguras, tem taxa de mortalidade materna inferior à do parto (Raymond; Grimes, 2012). Já nos abortos inseguros, o risco de morte é centenas de vezes maior. A morbidade e mortalidade associadas ao aborto inseguro variam de acordo com a estrutura em que é realizado, a habilidade de quem o realiza, o método, o estado de saúde da gestante, o tempo de gestação e a disponibilidade de serviços de emergência de qualidade (Ahman; Shah, 2011).
Estima-se que tenham sido realizados anualmente mais de 55,7 milhões de abortos induzidos no mundo entre 2010 e 2014, sendo que apenas 54,9% teriam se dado de forma segura. Dos procedimentos inseguros, 97%, ou 24,4 milhões ao ano, teriam acontecido em países classificados à época como em desenvolvimento (Ganatra et al., 2017).
Das pessoas que se submetem a um aborto inseguro, estima-se que até 50% são internadas por complicações (Grimes et al., 2006). Além da alta morbidade, o aborto inseguro está entre as principais causas de mortalidade materna, sendo estimado que, em 2008, teria sido responsável por 13% das mortes maternas no mundo (Ahman; Shah, 2011). Dessa forma, abortos inseguros são um problema global de saúde pública por sua magnitude e por suas graves e evitáveis consequências pessoais e sociais (WHO, 2012).
No Brasil, o aborto é crime, tipificado no Código Penal de 1940, só não sendo punível quando a gestação é decorrente de estupro, para salvar a vida da gestante, e, desde o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54 pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em 2012, também em caso de anencefalia fetal é legal a interrupção da gravidez. Nesses casos legais, deram-se cerca de 1.600 procedimentos seguros e previstos em lei por ano entre 2008 e 2015 (Cardoso; Vieira; Saraceni, 2020).
Para além dos procedimentos previstos em lei, abortos clandestinos são comuns no Brasil, ainda que sejam criminalizados. Um inquérito nacional estimou que, em 2015, aproximadamente 503 mil mulheres interromperam ao menos uma gestação (Diniz; Medeiros; Madeiro, 2017). Os procedimentos clandestinos podem se dar das mais diversas formas, podendo ser seguros ou não, entretanto, no contexto de ilegalidade, essa classificação não é facilmente aplicável. Ainda que o método mais frequentemente utilizado nessas intervenções em 2015, no Brasil, tenha sido o medicamentoso (48%), o qual é recomendado pela OMS para a realização de abortos seguros (WHO, 2012), a falta de informação quanto ao uso e dose adequados e a procedência duvidosa do medicamento podem tornar o método inseguro (Ganatra et al., 2017).
No Brasil, desde a Constituição Federal de 1988 (CF/1988), a saúde é concebida como um direito de todos e passa a ser dever do estado provê-la de forma integral, universal e igualitária. À luz da CF/1988, a ADPF 442 apresenta a tese jurídica de não recepção parcial pela CF/1988 dos artigos do Código Penal que tipificam o aborto. É defendido que tais artigos afrontam princípios, direitos e garantias fundamentais, assim como elementos da ordem social, inclusive da saúde. Dessa forma, a ADPF 442 visa a reconhecer o direito constitucional à interrupção da gravidez nas primeiras 12 semanas de gestação, mas ainda não foi a julgamento.
Nesse contexto, está entre os serviços a serem ofertados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro o aborto apenas nas situações já previstas no Código Penal e no julgamento da ADPF 54 pelo STF em 2012. Ainda assim, perduram barreiras de acesso que podem impedir a garantia desse direito no Brasil, dentre elas, a insuficiência quantitativa e concentração geográfica da oferta (Madeiro; Diniz, 2016).
A acessibilidade geográfica e disponibilidade do serviço de aborto pelo SUS em situações previstas em lei no território brasileiro encontram desafios: somam-se a grande dimensão do país e a diversidade de relevo, hidrografia, recursos e concentração populacional à estigmatização alimentada pela criminalização do aborto e à condenação social do procedimento que afeta o acesso, mesmo nas situações em que ele é legal (Culwell; Hurwitz, 2013).
As lacunas de acesso ao aborto podem levar a interrupções clandestinas e potencialmente inseguras, pois, no contexto de criminalização, as interrupções realizadas fora do sistema de saúde podem ser perigosas por carecerem de informações seguras difundidas, medicamentos com qualidade verificada, atendimento por profissionais qualificados e mesmo serviços humanizados pós-abortamento. O não acesso pode, ainda, levar gestações a termo em situações que violam o princípio da dignidade humana e a autodeterminação reprodutiva, podendo expor a gestante a prejuízos físicos, morais e psicológicos.
Considerando a Constituição Federal de 1988, o Estado brasileiro deve se posicionar ativamente para implementar estratégias que promovam acesso e, portanto, mitigando as dificuldades vividas hoje pelas pessoas que buscam por aborto previsto em lei. Visando respeitar as pessoas e garantir direitos, é urgente desnaturalizar a falta de acesso à interrupção legal de gestações de forma segura e ofertada pelo SUS.
Dessa forma, o presente artigo discorrerá inicialmente sobre o acesso aos serviços de saúde no modelo brasileiro, especificará esse processo quanto às situações de aborto previsto em lei e abordará alternativas ao contexto atual a partir de experiências e proposições internacionais.
Acesso a serviços de saúde no Brasil
No Brasil, com a Constituição de 1988 e a criação do SUS, a saúde passa a ser entendida como de acesso universal e igualitário. Desde a criação do sistema de saúde no Brasil, houve avanços no acesso à saúde em todos os níveis, em especial na atenção primária. Deu-se, ainda, redução das desigualdades de acesso tanto regionais quanto entre grupos de diferentes níveis socioeconômicos (Paim et al., 2011). Evidencia-se, entretanto, que, ainda que constitucionalmente seja garantida a universalidade, na prática, o acesso à assistência ainda é limitado para determinados grupos da população e marcado por profundas inequidades, na medida em que as pessoas em piores condições de vida e de saúde ainda têm menos chances de acesso. Pessoas com menor escolaridade e menor renda terminam inseridas em um círculo vicioso entre doença e pobreza (Almeida et al., 2013; Stopa et al., 2017).
A acessibilidade pode ser lida como a possibilidade de acesso físico ao serviço de saúde, a primeira etapa do acesso. Nesse sentido, a localização é fundamental e pode acarretar barreiras geográficas, sejam obstáculos naturais ou gerados pela organização urbana. Essas barreiras estão além da distância em si, pois criam distâncias relativas quando consideradas, por exemplo, as possibilidades de transporte, o tempo necessário e os custos (Unglert; Rosenburg; Junqueira, 1987). A oportunidade de acesso depende da disponibilidade de serviços e oferta suficiente. Entretanto, essa oferta física interage com fatores financeiros, organizacionais e socioculturais que podem ser barreiras limitantes ao acesso efetivo (Gulliford et al., 2002). Dessa forma, as dificuldades geográficas de acesso vão influenciar de forma distinta cada grupo populacional, podendo gerar barreiras intransponíveis para alguns, privando-os do cuidado (Gulliford et al., 2002).
Com vistas ao acesso universal, equânime e integral, o modelo de saúde brasileiro tem como princípios a regionalização e a hierarquização. A busca é pela oferta de atendimento resolutivo de saúde a qualquer pessoa e em razão de qualquer acometimento. Desse modo, trabalha-se com a lógica de uma rede assistencial organizada de forma hierárquica em níveis de densidade tecnológica, com definição de população de referência, porta de entrada e fluxos de referenciamento (Brasil, 2001).
Como no Brasil poucos municípios são capazes de ofertar em seu território cuidados que atendam a todas as necessidades de sua população, ficam apontadas ações estratégicas a serem desenvolvidas na atenção primária por todos os municípios. A oferta de cuidados de maior complexidade se dá com a organização de redes de assistência regionalizadas, por meio da pactuação com outros municípios e em conjunto com os estados, sendo balizada pela identificação de prioridades (Brasil, 2001).
Nessa lógica de funcionamento do Sistema de Saúde, a atenção primária ocupa-se do cuidado longitudinal dos usuários em uma área de abrangência específica, deve estar próxima da residência das pessoas de quem cuida e é preferencialmente o primeiro ponto de cuidado no sistema de saúde (Paim, 2009). Ainda que presente nos municípios, nem todos têm a totalidade de sua população coberta pela atenção primária; e ainda que haja cobertura, nem sempre há acessibilidade aos serviços, em especial tratando-se de áreas rurais (Garnelo et al., 2018).
A atenção secundária oferece serviços especializados e procedimentos de média densidade tecnológica, aí enquadram-se serviços ambulatoriais e hospitalares, assim como de urgências e emergências; já a atenção terciária se ocupa dos procedimentos de alta tecnologia e custo, geralmente instalada em grandes hospitais (Paim, 2009). Diferentemente da atenção primária, a atenção secundária e a terciária não estão presentes em todos os municípios, mas são ofertadas a partir de pactuações regionais (Brasil, 2001).
O processo de regionalização encontra desigualdades impactantes entre as regiões e mesmo entre os estados. Ainda que o acesso universal e integral esteja no horizonte do sistema de saúde, na prática, apresentam-se limites à acessibilidade, como fragmentação da rede, indisponibilidade de serviços em tempo adequado e assimetrias regionais. Há mais disponibilidade e acesso à atenção secundária e terciária nas regiões Sul e Sudeste, em especial nas grandes cidades (Assis; Jesus, 2012).
Considerando o olhar da gestão, a centralização de serviços, principalmente de serviços especializados, se dá em busca de eficiência, maior qualidade no cuidado e potencial economia de escala (Gulliford et al., 2002). Por infortúnio, a lógica da organização do sistema pelos planejadores não necessariamente é condizente com a lógica de uso dos serviços. De todo modo, o lugar onde as pessoas vivem não deveria determinar a adequação da oferta e da qualidade do serviço de saúde que é a elas prestado.
Acesso ao aborto previsto em lei
A interrupção da gestação no Brasil não é passível de punição apenas quando realizada por médico em alguma das seguintes situações: se há risco de vida para a gestante; em gestações decorrentes de estupro; ou em caso de anencefalia do feto. Os dois primeiros casos estão previstos no Código Penal de 1940 e o último advém de decisão do Supremo Tribunal Federal, em 2012, quando julgou procedente a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54.
Logo após a Constituição de 1988, o aborto (nos casos previstos no Código Penal) passou a ser ofertado gradativamente em alguns hospitais públicos por iniciativas municipais. Posteriormente a oferta foi impulsionada pela normativa sobre o aborto previsto em lei publicada em 1999 pelo Ministério da Saúde (Brasil, 2012).
Em 2013, as Secretarias Estaduais de Saúde e o Ministério da Saúde declararam haver 68 hospitais que ofereciam o procedimento, mas, desses, apenas 37 efetivamente faziam a interrupção de gestações. Os serviços estavam presentes em 20 das 27 Unidades da Federação, sendo que apenas quatro delas tinham serviços fora das capitais. Sete estados não tinham nenhum serviço que realizasse aborto previsto em lei, um deles se localizava na região Sul, um no Centro-Oeste, dois no Nordeste e três no Norte (Madeiro; Diniz, 2016).
Entre 2013 e 2015, foram realizados 2.442 abortos previstos em lei no Brasil. Em uma amostra de cinco hospitais que realizavam o procedimento, encontrou-se que 94% dos abortos tiveram como justificativa o estupro (Madeiro; Diniz, 2016). Ainda que a amostra indique que a imensa maioria das interrupções legais seja de gestações decorrentes de estupros (Madeiro; Diniz, 2016), destaca-se que, em 2011, apenas 5,6% das crianças, 5% das adolescentes e 19,3% das adultas com gestações decorrentes de estupro fizeram abortos previstos em lei (Cerqueira; Coelho, 2014).
Crianças e adolescentes ainda são maioria entre as vítimas de estupro no país. Em 2019, 85,7% dos estupros tiveram vítimas do sexo feminino e 44,8% vitimaram crianças e adolescentes em idade fértil (10-18 anos) (FBSP, 2020). Essa faixa etária, de acordo com a Constituição Federal de 1988, deve ter assegurada com absoluta prioridade o direito à vida, à saúde, à dignidade, ao respeito, à liberdade, estando a salvo de toda forma de negligência, discriminação, violência, crueldade e opressão.
Vê-se que, apesar da previsão legal de garantia do direito ao procedimento no SUS, o percentual de mulheres que o acessa é pequeno. Esse número pode refletir distintas barreiras de acesso ao aborto previsto em lei no país, como a falta de informação sobre a legalidade e disponibilidade do serviço no SUS, atravessamentos morais e barreiras decorrentes da concentração geográfica dos serviços, com consequentes implicações financeiras e sociais para quem se submete ao aborto (Culwell; Hurwitz, 2013; Madeiro; Diniz, 2016). Essas barreiras não são mutuamente excludentes, assim, podem acumular-se, dificultando ainda mais ou até mesmo impedindo a realização do procedimento. Dessa forma, as mulheres ainda encontram iniquidades de qualidade e acesso ao serviço de aborto seguro (Doran; Nancarrow, 2015).
A pouca quantidade de estabelecimentos que ofertam o serviço no Brasil e sua concentração nas grandes cidades (Madeiro; Diniz, 2016) podem afetar negativamente o acesso ao aborto previsto em lei. A distância até o serviço de saúde é apontada na literatura internacional como barreira de acesso ao procedimento. Ela gera problemas relacionados à logística, com maior demanda de tempo e dinheiro, e pode comprometer o sigilo do procedimento em relação aos que rodeiam quem se submete a ele (Culwell; Hurwitz, 2013; Doran; Nancarrow, 2015).
Ainda que tenham sido feitos anualmente cerca de 1.600 abortos previstos em lei pagos pelo SUS entre 2008 e 2015 (Cardoso; Vieira; Saraceni, 2020), nem todas as mulheres que se enquadram nas situações permitidas por lei conseguem acessá-lo, podendo recorrer a procedimentos clandestinos e muitas vezes inseguros.
Os aproximadamente 503 mil abortos estimados no Brasil em 2015 não se distribuem igualmente na população. O percentual de realização do procedimento foi maior entre as residentes das regiões Norte, Centro-Oeste e Nordeste, mulheres de baixa renda, baixa escolaridade e não brancas (Diniz; Medeiros; Madeiro, 2017). Ou seja, os riscos da clandestinidade também recaem majoritariamente em grupos já vulnerabilizados da sociedade brasileira.
Esses procedimentos geram hospitalizações por complicações, causam sequelas e óbitos. Do total de mulheres que referiram um aborto na vida, 46% relataram ter sido hospitalizadas para terminar o procedimento (Diniz; Medeiros; Madeiro, 2017). Entre 2006 e 2015, foram registrados no Sistema de Informações sobre Mortalidade 770 óbitos que tinham aborto como causa básica e outros 220 com menção de aborto na Declaração de Óbito (Cardoso; Vieira; Saraceni, 2020).
Ampliação do acesso geográfico ao aborto previsto em lei
A organização hierarquizada e regionalizada do SUS e a distribuição desigual de densidade tecnológica no território nacional têm implicação na oferta do procedimento de aborto previsto em lei, já que este se dá em serviços de referência, em ambiente hospitalar ou de urgência, segundo a Portaria nº 485 de 2014 do Ministério da Saúde (MS).
De acordo com essa mesma Portaria nº 485/2014/MS, hospitais gerais, maternidades, prontos-socorros, Unidades de Pronto-Atendimento e serviços de urgência não hospitalares poderiam ser organizados e credenciados como Serviço de Referência para Interrupção de Gravidez nos Casos Previstos em Lei, entretanto, o percentual desses serviços cadastrados para tal procedimento é ínfimo e concentrado em grandes cidades (Madeiro; Diniz, 2016). Ademais, o misoprostol, um dos fármacos recomendados pela OMS para a realização do aborto medicamentoso, no Brasil, é de uso restrito hospitalar desde a Portaria nº 344, de 12 de maio de 1998; da mesma forma, o esvaziamento de útero por aspiração manual intrauterina (Amiu) é um procedimento hospitalar no país conforme seu registro no Sistema de Gerenciamento da Tabela de Procedimentos, Medicamentos e OPM do SUS.
A OMS, no entanto, indica que, a depender das condições clínicas e da idade gestacional, o aborto pode ser ofertado na atenção primária, o que efetivamente acontece em algumas regiões (WHO, 2012; Zhou; Blaylock; Harris, 2020); da mesma forma, há experiências de realização do aborto medicamentoso em ambiente domiciliar (Ngo et al., 2011) e de acompanhamento via telemedicina (Endler et al., 2019). Considerando essas experiências e a capilaridade da atenção primária no modelo do sistema de saúde brasileiro, a expansão da oferta do aborto previsto em lei a esse outro nível de atenção, a depender das condições clínicas e idade gestacional, poderia ser para o Brasil uma alternativa visando aprimorar a acessibilidade ao aborto previsto em lei.
Experiências em países de baixa e média renda apontam que a incorporação do aborto na atenção primária traz, além da facilidade do acesso geográfico, a confiança dos usuários nos técnicos que os acompanham de forma longitudinal. Ainda a partir dessas experiências, evidencia-se que a implantação depende de treinamento para que os profissionais se sintam seguros na oferta do serviço. É recomendável, ainda, o estabelecimento de protocolo clínico para o aborto medicamentoso, além de que o custo dos medicamentos seja acessível ao usuário (Zhou; Blaylock; Harris, 2020). Quanto aos dois últimos pontos, a OMS tem recomendações de protocolo de aborto medicamentoso com misoprostol (WHO, 2012), o que também é apresentado em normas técnicas do Ministério da Saúde (Brasil, 2012); já o custo do medicamento em si não se aplica ao Brasil, considerando que não há cobrança direta ao usuário pela medicação ofertada no SUS.
Ainda no sentido da realização de aborto medicamentoso na atenção primária, a incorporação da mifepristona, a outra droga recomendada pela OMS para o aborto, mas ainda sem registro no país, poderia ter valia (Berer, 2019; Brasil, 2012). Associada ao misoprostol, a mifepristona aumenta a eficácia do método, diminuindo a necessidade de intervenções cirúrgicas para a interrupção da gestação (Ferguson; Scott, 2020; Raymond; Harrison; Weaver, 2019).
A realização de aborto na atenção primária seria especialmente relevante nas gestações decorrentes de estupro por não dependerem de diagnóstico de especialista, não necessariamente envolverem complicações clínicas e comumente se darem de forma precoce (Madeiro; Diniz, 2016).
Com foco nessas gestações, de acordo com a Portaria nº 485/2014/MS, os serviços de referência precisam ter na equipe os seguintes profissionais: médico clínico ou médico em especialidades cirúrgicas, enfermeiro, técnico em enfermagem, psicólogo, assistente social e farmacêutico. Ainda que as esquipes de atenção primária não sejam compostas por todas essas categorias, poderiam ser propostas formas de estruturação dessas equipes a partir dos profissionais já disponíveis na rede de saúde, e não necessariamente em um serviço único. Dessa forma, por exemplo, com os profissionais das Equipes de Saúde da Família e dos Núcleos Ampliados de Saúde da Família e Atenção Básica poderiam ser formadas equipes para a autorização do aborto em gestações decorrentes de estupro de modo mais conectado aos territórios e ampliando a acessibilidade do procedimento.
De forma não congruente, a Portaria nº 2.561/2020/MS dispõe que a equipe de saúde para o cumprimento do procedimento de justificação e autorização da interrupção da gravidez nos casos previstos em lei deve ser composta por, ao menos, obstetra, anestesista, enfermeiro, assistente social e/ou psicólogo. A exigência de obstetra e anestesista pode dificultar a capilaridade da oferta e não é sustentada por achados e recomendações internacionais (Renner; Brahmi; Kapp, 2013; WHO, 2012). Mais que isso, no cenário brasileiro, vale discutir a restrição de realização do aborto exclusivamente por médicos. No Código Penal, a não punibilidade do aborto é restrita à sua realização por essa categoria, entretanto, no que diz respeito à segurança do procedimento, a literatura tem apontado que ele poderia igualmente ser realizado por outras categorias de profissionais de saúde treinados (Renner; Brahmi; Kapp, 2013).
Um ponto a ser ressalvado em se tratando de aborto nos territórios é a necessidade de equipamentos de urgência como suporte para o caso de intercorrências (Berer, 2019; WHO, 2012). Ainda que o aborto seja um procedimento seguro (Raymond; Grimes, 2012), 0,5% dos abortos no primeiro trimestre de gestação por aspiração manual intrauterina (Amiu) precisam de hospitalização; dos realizados apenas com misoprostol (conforme hoje realizado no país), 0,7% precisam de cuidados devido a complicações (Raymond; Harrison; Weaver, 2019); já quando realizados com misoprostol aliado à mifepristona, 0,8% tem necessidade de cuidados hospitalares devido a efeitos adversos (Ferguson; Scott, 2020). Essa assistência deve estar disponível na região onde o aborto acontece, a fim de garantir a segurança de quem é submetida ao procedimento (Berer, 2019; WHO, 2012).
Por fim, à luz da literatura científica e recomendações internacionais, o Brasil tem condições de superar normas que hoje limitam a oferta e, portanto, atuam como barreiras organizacionais de acesso ao aborto previsto em lei. É válido ressaltar que o custo econômico para a reorganização da oferta no SUS tende a ser baixo quando comparado ao tratamento de complicações decorrentes de abortos inseguros que podem se dar por falta de acesso ao serviço legal (WHO, 2012).
Considerações finais
Dado o acesso dificultado ao aborto previsto em lei, é necessário aprimorar formas de promover a preservação do direito à vida de pessoas que estão em risco devido a uma gestação; a escolha de gestantes de fetos anencéfalos por evitar o sofrimento e os prejuízos sociais, psíquicos e morais de levar a termo a gestação de um feto que não sobreviverá fora do útero; e que as sobreviventes a um estupro possam ao menos não ser duplamente vitimizadas, obrigadas a gestar, e muitas vezes criar, o fruto da violência sofrida. Há que se considerar que os custos pessoais e sociais do não acesso ao aborto previsto em lei envolvem, ainda, a possibilidade de submeter-se a um aborto inseguro e seus riscos.
Com olhar sobre as atuais normativas brasileiras, o funcionamento do Sistema Único de Saúde, em diretrizes de organismos internacionais e em experiências em outras partes do mundo, haveria a possibilidade de expansão da oferta de aborto previsto em lei na atenção primária, mais capilarizada e próxima da população brasileira. Essa lógica vem sendo aplicada em diversas partes do mundo (WHO, 2012; Zhou; Blaylock; Harris, 2020), inclusive em países de baixa e média renda, dado que o aborto é um procedimento pouco complexo e bastante seguro (Berer, 2019; Raymond; Grimes, 2012; WHO, 2012). Experiências de telemedicina vêm ocorrendo (Endler et al., 2019), ou de aborto realizado por profissionais de saúde treinados, não apenas médicos (Renner; Brahmi; Kapp, 2013; Zhou; Blaylock; Harris, 2020), ressaltando-se, entretanto, a necessidade de suporte da rede de urgência e emergência para o caso de intercorrências pós-aborto (WHO, 2012).
É certo que a ampliação da acessibilidade geográfica não garante por si só o acesso ao procedimento, haja visto que ele é perpassado por outras diversas barreiras, desde a informação sobre a possibilidade legal de realização do aborto até questões culturais e morais tanto por parte de quem se submete ao procedimento quanto dos profissionais que acolhem (Culwell; Hurwitz, 2013; Madeiro; Diniz, 2016; Zhou; Blaylock; Harris, 2020). De todo modo, a disponibilidade do serviço é condição sine qua non para o acesso.
Como qualquer prática se dá em um contexto, é imperativo apontar que o Sistema Único de Saúde passa por um processo de aprofundamento de seu subfinanciamento crônico e que a lógica territorial da atenção primária, a qual poderia ser um pilar nas propostas de ampliação de acesso ao aborto previsto em lei, vem sendo desmontada. É necessário que seja apontado ainda um recrudescimento do conservadorismo no país, o que, no mínimo, não contribui com a vontade política de expansão do acesso à interrupção de gestações, ainda que já previstas em lei.
É importante ressaltar que o papel do Estado no combate à violência está intimamente ligado ao combate à opressão de gênero e, consequentemente, perpassa a desnaturalização das restrições das gestantes para acessar o aborto previsto em lei. A restrição de acesso viola direitos de preservação da vida, da dignidade e da liberdade de quem tem seu acesso impedido, sendo submetida a tratamento degradante. Concomitantemente, a restrição atua como violência simbólica e moral às outras mulheres, contribuindo para a perpetuação de uma cultura opressora que retroalimenta várias formas de violência (Brasil, 2012) e que, portanto, deve ser ativamente combatida pelo Estado.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
05 Dez 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
-
Recebido
02 Mar 2021 -
Aceito
03 Jul 2022