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Estudos de morbidade: usos e limites

APRESENTAÇÕES EM PAINÉIS E MESAS REDONDAS

Estudos de morbidade: usos e limites

Nilce Emy Tomita

Professora Assistente do Departamento de Odontologia Social da Faculdade de Odontologia de Bauru-SP -Secretária Executiva da Rede CEDROS

O diagnóstico coletivo em saúde bucal não tem recebido, da Odontologia, o mesmo tratamento que recebem as práticas clínicas cirúrgico-reparadoras, que registram avanços no seu desenvolvimento tecnológico e científico bastante significativos.

Hoje já é uma realidade a utilização do laser no tratamento de periodontites, da radiografia digital no diagnóstico de cárie dentária, do uso de simulador de imagens através de filmagem dos dentes com microcâmera e sua projeção em tela para prever o resultado final de um tratamento, dos implantes dentários na reposição de elementos perdidos, entre outros avanços tecnológicos. No entanto, tais avanços parecem não apresentar impacto ou repercussões sobre o quadro de saúde bucal das populações.

O componente preventivo tem sido contemplado com significativa parcela de investimentos em pesquisa e elaboração de programas de saúde bucal com enfoque em procedimentos coletivos e/ou individuais. Novamente, embora haja repercussões localizadas, em iniciativas pontuais bem sucedidas de controle de doenças bucais como a cárie dentária e doença periodontal, observa-se grande dificuldade em avaliar adequadamente o impacto destas medidas de prevenção sobre os perfis de saúde bucal das coletividades.

Isso decorre das deficiências apresentadas por estudos de morbidades no campo da saúde bucal.

NARVAI(12)considera que ...

"Não dispomos, infelizmente, de um grande número de informações epidemiológicas confiáveis que permitam montar um bom quadro sobre a revalência de doenças 'bucais'. Isto vale para o Brasil como um todo e também para o Estado de São Paulo.

De qualquer forma, vários estudos realizados nas últimas décadas permitem um razoável conhecimento sobre a distribuição das principais doenças '-bucais' em nossa população. Essas informações foram suficientes, por exemplo, para que o quadro epidemiológico fosse considerado como 'caótico' na 1 Conferência Nacional de Saúde Bucal (Brasília, outubro de 1986)."

O Relatório da I Conferência Nacional de Saúde Bucal (CONFERÊNCIA)(4) vai além, ao considerar a "inexistência de dados epidemiológicos fidedignos e outras informações sobre a Saúde Bucal da população", reiterando que "um diagnóstico epidemiológico de Saúde Bucal deve contemplar as relações com o social, o econômico e o político, não se restringindo apenas à compilação de dados".

Esta crítica é corroborada por MENA GARCIA & RIVERA(11), que, através da análise histórica acerca da epidemiologia bucal afirmam que "os estudos epidemiológicos sobre a saúde-enfermidade bucal realizados na América Latina nos últimos 25 anos poderiam ser classificados em dois grandes grupos (...). Em um grupo é possível concentrar aqueles estudos com enfoque predominantemente técnico-biológico limitados a descrever o dano causado na boca ou parte dela, por um ou mais processos buco-dentais. No segundo grupo, concentram-se aqueles estudos que objetivam estabelecer as relações que existem entre o processo objeto de estudo, ou seja, a saúde-enfermidade bucal, e os diferentes processos da vida social, com a transformação dessa problemática coletiva".

De acordo com o enfoque de determinação econômico-social da saúde, BREILH(2) define a epidemiologia como "a disciplina que estuda os processos histórico-naturais de determinação e distribuição da saúde-enfermidade como um processo coletivo".

A epidemiologia, a fim de poder conhecer e transformar o processo saúde-doença em sua dimensão coletiva, requer conceitos, métodos e técnicas que permitam o desenvolvimento de suas funções fundamentais, da mesma forma que o método clínico requer "um conjunto de conceitos, métodos e formas de ação prática que se aplicam ao conhecimento e transformação do processo saúde-doença na dimensão individual" (MENA GARCIA & RIVERA)(11).

Observações efetuadas por DOLAN et al.(5) em estudo populacional de saúde sugerem que a saúde bucal representa uma dimensão separada da saúde, não completamente computada por outros indicadores de saúde, parecendo ser uma elaboração independente da mesma. Os autores indicam que a mensuração multidimensional da saúde bucal pode ser utilizada como método potencial para uma boa relação custo-benefício na coleta de dados epidemiológicos, bem como para avaliar a efetividade de intervenções odontológicas, provendo dados para planejamento e execução de políticas de saúde bucal.

SCHNEIDER FILHO(13) avalia que, no campo das ações programáticas de saúde, "a epidemiologia é o instrumental fundamental para o estudo do processo saúde-doença bucal em seus diversos aspectos, no sentido de orientar as diversas etapas do planejamento das políticas de saúde do distrito". Para melhor compreensão desse enfoque da epidemiologia, o autor propõe uma adaptação da formulação de GONÇALVES(6) para a área da saúde bucal, afirmando que "a epidemiologia não observa, explica e prevê o comportamento de uma coleção de lesões de cárie dentária, mas o comportamento de um objeto essencialmente coletivo, a cárie dentária do ponto de v1ista epidemiológico, que vem a ser um objeto singular e não plural".

O autor considera que os objetos diferem fundamentalmente, sendo "para a odontologia a doença como alteração morfológica e funcional do corpo biológico individual, contraposta à noção do 'normal' como ausência de doença, e para a epidemiologia a doença como processo com dimensões biológicas, psicológicas e sociais e situado no coletivo".

TOLEDO(14) considera que os instrumentos privilegiados para a avaliação de doenças no espaço coletivo e da organização do trabalho odontológico segundo critérios de eficiência e eficácia de impacto, são as técnicas de quantificação em nível coletivo, ou seja, os índices que medem a ocorrência das doenças bucais na população.

Algumas limitações a esta quantificação, no entanto, estão presentes na prática epidemiológica em saúde bucal, relacionadas ao instrumental técnico utilizado, ao uso de sistemas de medida precários, à adoção de índices pouco precisos e práticos, que dão margem a aproximações e à subjetividade no julgamento e à própria definição de estados mórbidos como a doença periodontal (LOPES(10).

No Manual de Instruções para Levantamento Epidemiológico Básico de Saúde Bucal da OMS (LEVANTAMENTO)(9), considera-se que "a avaliação das doenças periodontais, especialmente, necessita de uma nova metodologia. Os níveis de variação intra e interexaminador, na mensuração da doença periodontal, têm sido insatisfatórios, e as medidas existentes não fornecem meios de se estimar as necessidades de tratamento e, conseqüentemente, de se calcular o número de pessoal necessário".

Vale ressaltar que para este caso, em particular, a adoção, na maior parte dos levantamentos epidemiológicos de índices como o ICNTP (Índice Comunitário de Necessidades de Tratamento Periodontal), reflete a dificuldade de avaliação qualitativa e quantitativa de uma morbidade, optando-se por avaliar necessidades de atendimento por coletivos.

LESER et al.(8) identificam, nos estudos de morbidades, restrições relacionadas com a exatidão do diagnóstico. "Além disso, especialmente para casos em que se pretenda comparar dados de morbidade em diferentes grupos populacionais, é necessário que seja considerada a possibilidade de diferenças nos critérios ou nos recursos propedêuticos para o diagnóstico".

Quanto ao método epidemiológico, os estudos desenvolvidos no campo da saúde bucal carecem de padronização, incluindo desde o processo de amostragem (que apresente alguma representatividade para a população em estudo), critérios diagnósticos (em decorrência do atual entendimento da evolução de doenças como a cárie dentária e a doença periodontal), calibração de examinadores, eleição do indicador ou coeficiente e definição de grupos etários, dificultando avaliações comparativas entre as informações obtidas em diferentes levantamentos.

A tradução do Manual de Instruções para Levantamento Epidemiológico Básico de Saúde Bucal da OMS (LEVANTAMENTO)(9) pela Rede CEDROS insere-se, neste panorama, como uma iniciativa no sentido de fornecer alguns elementos para o enfrentamento das dificuldades aqui relatadas.

Ainda assim, a ausência de definição de parâmetros precisos para o diagnóstico epidemiológico em saúde bucal não fornece aos estudos de morbidade a fidedignidade necessária à avaliação do quadro epidemiológico. Termos de utilização genérica passam assim a figurar em documentos, como a traduzir empiricamente as situações com que a prática odontológica se depara em seu cotidiano.

E, para que não se banalize a utilização do diagnóstico bucal em coletivos, em última instância o ponto de partida para a transformação de realidades, é necessário que possam ser considerados novos e mais aprofundados estudos no terreno das morbidades, para que do "caótico", possa chegar-se a níveis mais satisfatórios de saúde bucal.

  • 1
    BRASIL, Ministério da Saúde. Divisão Nacional de Saúde Bucal. Levantamento epidemiológico em saúde bucal - Brasil, Zona Urbana, 1986. Brasília, Centro de Documentação do Ministério da Saúde, 1988.
  • 2. BREILH, J. Epidemiologia: economia, política e saúde. São Paulo, UNESP/HUCITEC, 1991.
  • 3. CHAVES, M.M. Odontologia social. 3.ed., Rio de Janeiro, Artes Médicas, 1986.
  • 4
    CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE BUCAL, l.a. Brasília-DF, 1986. Relatório final. Brasília, Centro de Documentação do Ministério da Saúde, 1986.
  • 5. DOLAN, T.A. et al. Associations of self-reported dental health and general health measures in the Rand Health Insurance Experiment. Community Dent. Oral Epidem., col.19:1-8, 1991.
  • 6. GONÇALVES, R.B.M. et al. Seis teses sobre a ação programática em saúde. In: Programação em saúde hoje. São Paulo, HUCITEC, 1990 apud SCHNEIDER FILHO, D.A.13
  • 7. INTERNATIONAL DENTAL FEDERATION. Goals for oral health in the year 2000. Brit. Dent. J., 152:21-3, 1982.
  • 8. LESER, W. et al. Elementos de epidemiologia geral. Rio de Janeiro, Atheneu, 1988.
  • 9
    LEVANTAMENTO epidemiológico básico de saúde bucal: manual de instruções. São Paulo, Santos, OMS, 1991.
  • 10. LOPES, E.S. Comunicação pessoal/março de 1995.
  • 11. MENA GARCIA, A.E. & RIVERA, L. Epidemiologia bucal: conceptos basicos. Venezuela, OFEDO/UDUAL, 1991/2.
  • 12. NARVAI, P.C. Saúde bucal e cidadania. [Apresentado à la Conferência Estadual de Saúde, São Paulo, 1991]
  • 13. SCHNEIDER FILHO, D.A. A saúde bucal das crianças em idade escolar: perspectivas no Sistema Único de Saúde. São Paulo, 993./Mimeografado/
  • 14. TOLEDO, J.P.G. de. A saúde bucal no estado de São Paulo: das Ações Integradas de Saúde ao Sistema Único de Saúde. São Paulo, Organização Panamericana de Saúde/Ministério da Saúde, 1991./Mimeografado/
  • 15. TOMITA, N.E. Prevalência de cárie dentária em crianças na faixa etária de 0 a 6 anos e creches dos municípios de Bauru e São Paulo: Importância de fatores sócio-econômicos. Bauru, 1993. [Dissertação de Mestrado - Faculdade de Odontologia de Bauru da USP]

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Jun 2008
  • Data do Fascículo
    1995
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