Resumo
O artigo analisa percepções de profissionais de uma unidade básica de saúde a respeito das relações entre religião e saúde para apreender como os modos de considerar a religião nas práticas de saúde podem produzir equidades ou iniquidades. Trata-se de um estudo exploratório de abordagem qualitativa desenvolvido a partir de entrevistas estruturadas individuais, analisadas com o intuito de detectar práticas de sentido relevantes para a discussão de equidade em saúde. Os resultados destacam: uma concepção negativa da influência da religião dos usuários sobre os cuidados e as agências interessadas na redução dessa interferência da religião; as dificuldades e desconfortos relacionados ao modo de o profissional lidar com a própria religião no exercício do cuidado e na relação interprofissional; que o Sistema Único de Saúde não considera a dimensão religiosa, fazendo-se necessárias políticas públicas específicas ou transformações culturais profundas; e a falta de conhecimento de características das religiões afro-brasileiras que demandem cuidados específicos. Tais resultados sugerem que a negligência em relação à questão religiosa mantém oculta uma prática proativa de apagamento das diferenças, conduzindo a uma reflexão sobre o que, em se tratando de equidades e iniquidades, tem produzido a epistème moderna no âmbito das práticas instituídas na atenção básica.
Palavras-chave: Equidade; Religião; Ecologia de Saberes
Abstract
The article analyzes the perceptions of professionals of a basic health unit regarding the relationship between religion and health in order to apprehend how the ways of considering religion in health practices can produce equities or iniquities. It is an exploratory study of qualitative approach developed from individual structured interviews, analyzed with the intention of detecting signification practices relevant to the discussion of equity in health. The results highlight: a negative conception of the influence of the user’s religion on care and agency interested in reducing this interference of religion; the difficulties and discomforts related to the way the professional deals with their own religion in the exercise of care and in the interprofessional relationship; that the Brazilian National Health System does not consider the religious dimension, creating the need for specific public policies or deep cultural transformations; and the lack of knowledge of the characteristics of Afro-Brazilian religions that demand specific care. These results suggest that negligence of the religious question conceals a proactive practice of erasing differences, which leads to a reflection on what, in the case of equities and iniquities, has produced the modern epistème within the framework of the practices instituted in the Primary Health Care.
Keywords: Equity; Religion; Ecology of Knowledge
Introdução
Como se pode depreender do número de artigos indexados em bases de dados nacionais e internacionais, as relações entre religião e saúde têm despertado considerável interesse no meio acadêmico. Em uma pesquisa realizada em 6 de maio de 2018 com o termo “religion”, identificaram-se 62.891 artigos na base de dados PubMed; com os termos “religion” e “health”, 502 artigos na Scielo, ambos sem descartar repetições.
Quando se combinam os termos “religion” e “primary health”, os números são bem diferentes: 1.662 e 39 artigos na PubMed e na Scielo, respectivamente. Na Scielo, excluindo-se as repetições e os artigos que abordam contextos estrangeiros, restam apenas 21 artigos. Destes, apenas um (Aguiar; Cazella; Costa, 2017) analisa (como proposto neste artigo) as percepções de profissionais de saúde (no caso, de médicos em um curso de especialização em Saúde da Família) sobre as relações entre religiosidade/espiritualidade e saúde e suas implicações na prática profissional.
Na revisão da literatura sobre religiosidade/espiritualidade e saúde realizada para este estudo (com parâmetros diferentes daqueles usados na busca exposta acima), pode-se afirmar que, no Brasil, as pesquisas acerca desse tema têm se concentrado, principalmente: no impacto da religiosidade/espiritualidade sobre os desfechos clínicos (com prevalência de pesquisas que abordam saúde mental); em sua influência sobre a capacidade de enfrentamento (ou coping) de estados de enfermidade, de perdas existenciais ou sobre a qualidade de vida, de modo geral; na importância da religião como parte da rede de apoio social dos sujeitos; ou em suas potencialidades como espaço de articulação de estratégias de prevenção de doenças ou de promoção da saúde (com ou sem conexão com serviços de saúde). Constatou-se, porém, escassez de pesquisas sobre o modo como a questão da religiosidade/espiritualidade tem sido percebida e abordada pelos profissionais de saúde, sobretudo no âmbito dos serviços da atenção básica.
Este artigo analisa a percepção de profissionais de uma unidade básica de saúde a respeito das relações entre religião e saúde e do lugar da religiosidade nos cuidados. Seu interesse decorre da já mencionada escassez de pesquisas com esse recorte temático. Mas, para além de tratar de um tema pouco explorado, sua novidade reside na marginalidade da perspectiva a partir da qual se desdobra sua abordagem.
O estudo de que deriva este artigo se ancora na perspectiva de uma sociologia das ausências (Santos, 2004), ou seja, ele foi desenvolvido com o duplo interesse de investigar lógicas específicas de produção ativa de não-existência de sujeitos, objetos, experiências e saberes e, assim, de contribuir para “transformar as ausências em presenças” (Santos, 2002, p. 246). Partiu-se da assertiva de Santos (2003, p. 56) de que “temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza”, para investigar se os modos como se considera a religião nas práticas de saúde podem produzir equidades (diferenciações que incluem) ou iniquidades (diferenciações que excluem).
O desafio desse exercício é não poder deter-se no plano do que os filtros acionados pelas concepções dominantes de inclusão consideram como passível (ou desejável) de ser incluído ou como sendo aquilo que é (ou deve ser) excluído, sob o risco de repor o lugar do visto, mas não percebido. É preciso, ademais, analisar os efeitos da própria inclusão, uma vez que esta se pode desdobrar em formas de apropriação “colonizadora” (incorporação, cooptação e assimilação). Essa perspectiva levou a interpelar os discursos dos respondentes sobre o lugar da religião nos cuidados, não somente a partir do que eles incluem (da religião), mas também do que eles excluem a partir dessa inclusão, não somente do espaço que é permitido à religião ocupar, mas também do que ela pode ser induzida a fazer (de acordo com o modo como ela é ativada ou conduzida); e não somente a partir dos sujeitos presentes, mas também daqueles que, na forma de “imaginários sociais instituídos” (Castoriadis, 2000), agem/falam com eles (sem com isso excluir as situações e sentidos novos e imprevistos que estes sujeitos produzem na singularidade do contexto intersubjetivo da entrevista).
Ao tratar de possíveis equidades ou iniquidades na interface entre religião e saúde, considerou-se que, para além dos importantes enfoques já desenvolvidos nos estudos desse campo temático, é necessário abordar a questão também do ponto de vista da “justiça cognitiva” (Santos, 2007). Essa noção, de acordo com Boaventura de Sousa Santos (2007, p. 89), visa à expansão do “caráter testemunhal dos conhecimentos de modo a abarcar igualmente as relações entre o conhecimento científico e o não científico, ampliando assim o alcance da intersubjetividade como interconhecimento e vice-versa”. No caso deste estudo, trata-se de considerar o modo como a religião, enquanto universo de produção de saberes e práticas em saúde viáveis e credíveis para certos sujeitos (dentro do que eles avaliam como sendo suas eficácias e limites específicos), participa ou pode participar da construção in situ do horizonte normativo e epistemológico dos cuidados e das ações em saúde, segundo as posições assumidas no discurso dos entrevistados.
Foi com esse conjunto de preocupações e interesses que se propôs esta investigação, cujos resultados são apresentados a seguir. Com este estudo, pretende-se contribuir para a complexa discussão da equidade em saúde, considerando não somente o lugar da religião, mas o lugar dos sujeitos na intersubjetividade produzida nos cuidados e ações em saúde.
Notas metodológicas
Este artigo é um dos resultados de um projeto de pesquisa mais abrangente, orientado para investigação das práticas de cuidado à saúde em comunidades de terreiros em cooperação com a Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa do Ministério da Saúde (SGEP-MS) e com a Organização Pan-Americana da Saúde (OPS-OMS). No âmbito desse projeto, uma das pesquisas visava propor um modelo de atenção à saúde e produção de equidade em contextos de diversidade cultural, tendo como campo a atenção básica. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Unicamp sob parecer nº 894.757.
O texto que segue resulta de um estudo exploratório de abordagem qualitativa desenvolvido a partir de entrevistas individuais estruturadas em uma unidade básica de saúde que, conforme acordado com seus participantes, não será identificada. Para essas entrevistas foram elaborados dois roteiros abertos, um dirigido aos profissionais de saúde de modo geral e outro especificamente elaborado para a coordenadora da unidade.
O primeiro roteiro visava, de modo geral, a captar: sentidos atribuídos à relação entre religião e modos de cuidar da saúde; percepções sobre o modo como a religião é considerada na elaboração das práticas de cuidado e atenção à saúde em seu exercício profissional, sua unidade de saúde e no Sistema Único de Saúde (SUS), bem como do modo como ela influencia o exercício do cuidado pelo profissional, a despeito de seu interesse (ou desinteresse) em integrar essa dimensão em sua prática; valorações e sentidos da relevância (ou irrelevância) de considerar a religiosidade no cuidado à saúde dos usuários. Em razão do interesse específico do projeto, o roteiro incluía, ao final, uma questão sobre conhecimentos do profissional sobre características das religiões afro-brasileiras que demandam cuidados específicos à saúde. O segundo, além de abordar parte das questões do primeiro roteiro, ampliava o escopo da investigação, buscando captar percepções acerca da influência da religião do profissional no exercício do cuidado, no trabalho e no cotidiano da unidade de saúde.
Não houve seleção de sujeitos para participar do estudo. O convite foi feito em reunião geral da unidade para todos os profissionais, após apresentação do projeto geral e exposição dos objetivos e procedimentos do estudo específico que se pretendia conduzir na unidade, sendo a adesão voluntária o único critério para participação.
Ao final, com diversas recusas, em geral por alegados motivos religiosos (segundo a coordenadora), foram entrevistados a coordenadora e sete profissionais, sendo duas agentes comunitárias de saúde (ACS), uma enfermeira, dois auxiliares de enfermagem e duas médicas, uma das quais residente. As entrevistas foram realizadas após os participantes terem assinado termo de consentimento livre e esclarecido. Foi garantido um espaço protegido para a realização da coleta dos dados, que ocorreu em salas de consulta disponíveis.
Todas as entrevistas foram gravadas e transcritas na íntegra. Para a análise desse material, consideraram-se os discursos dos entrevistados como conglomerados de práticas de sentido, compreendendo que também a relação do pesquisador (e seu discurso) com essas práticas é uma relação de sentido, em outras palavras, o efeito das relações que constituem reciprocamente os sujeitos e discursos em presença (Viveiros de Castro, 2002). Essa perspectiva implica considerar tanto o que os sujeitos fazem quanto o que dizem como práticas de sentido equivalentes, ou seja, não comparáveis entre si em termos de credibilidade ou veracidade. Ao encarar ambas as práticas (fazer e dizer) como actantes (Latour, 2005), interessa registrar os diferentes mundos possíveis que os sujeitos elaboram, e seus cruzamentos, enredamentos, afastamentos diferenciais.
Na pesquisa em tela, como se trata de um conjunto de entrevistas, analisou-se apenas o que os sujeitos dizem, ou melhor, disseram, no campo de possíveis abertos pelas provocações de um roteiro. Foram os mundos que essas práticas de sentido exprimem (seus pressupostos e efeitos) explorados nesta análise, sem interpor qualquer interrogação relacionada a sua maior ou menor distância em relação ao que os sujeitos entrevistados fazem ou pensam fora da relação social produzida na pesquisa.
A análise empreendida não persegue recorrências e identidades atribuídas ao material, nem relevâncias justificadas pela remissão a demandas teóricas prévias (categorias de análise ou operadores teóricos). Procura, antes, detectar práticas de sentido presentes nos discursos registrados, movida pela intencionalidade geral da investigação, motivada pelas consequências dos modos de considerar a religião nas práticas de saúde do ponto de vista da produção de equidades ou iniquidades.
Construída entre a intenção de “ser posto em movimento pelo informante” (Latour, 2005, p. 79) e a própria intenção da pesquisa, a análise apenas mobilizou certa literatura acadêmica (em geral, textos das ciências sociais críticos à colonialidade do poder/saber/ser e abertos à questão da diversidade cultural), fazendo emergir a figuração própria do discurso dos interlocutores em conexão com outras figurações (instituição médica, racionalidade moderna etc.) para favorecer a reflexão sobre suas possíveis consequências ou efeitos no plano da produção de equidades e iniquidades. Por outro lado, isso não se deu em detrimento do registro da heterogeneidade dos discursos dos interlocutores e, mesmo onde há marcantes linhas de força convergentes, relataram-se diferenças, desvios ou exceções. De modo geral, perseguiu-se o ideal latouriano de “registrar e não filtrar, descrever e não disciplinar” (Latour, 2005, p. 88, grifos do autor).
Na apresentação do resultado da análise, em vez de organizar o material a partir das perguntas do roteiro ou de “blocos” de sentido, optou-se por destacar a relação das práticas de sentido captadas com certos “objetos”: a religião do usuário, a religião do profissional, a religião no SUS e as religiões afro-brasileiras. São esses os tópicos da seção “Resultados e discussão”, em que as dimensões dos tópicos refletem a proporção do material coletado.
Por fim, caberia sublinhar que a natureza da investigação não autoriza a generalização de seus resultados. A discussão empreendida neste artigo pode ser encarada, na perspectiva da sociologia das ausências, preferencialmente como copartícipe do interesse de produzir estudos de caso reveladores acerca de lógicas específicas de produção de “ausências”. Espera-se que este estudo, embora produzido em e para um contexto particular, possa, contudo, contribuir para a investigação ou a reflexão sobre outros contextos.
Resultados e discussão
Quando se trata da religião do usuário: a demarcação do “dentro” e do “fora”
Pode-se dizer resumidamente, ainda que se considere alguma heterogeneidade nas percepções dos profissionais, que a religião dos usuários repercute, segundo sua visão, de forma negativa nas práticas de cuidado. Diante disso, é o uso de um saber-poder supostamente neutro que se aciona para reduzir a ressonância negativa da religião do usuário no cuidado à saúde. Vejamos isso em mais detalhes.
Relativamente à questão sobre a investigação da religião do usuário nos processos de acolhimento/atendimento, os resultados sugerem uma diferença entre as duas médicas, orientadas (segundo elas) a realizar tal investigação pelo próprio roteiro instrumental da anamnese, e os demais profissionais, que, em suas respectivas funções, não dispõem de orientações ou protocolos que procedimentalizem a investigação desse ponto específico.
Além das duas médicas, apenas a enfermeira referiu interesse em indagar sobre a religião do usuário. Não se trata, contudo, de um procedimento informado por sua formação em enfermagem, mas de uma prática relacionada a sua atividade como acupunturista - isso faz diferença na anamnese da acupuntura (E1) - e a sua própria percepção/experiência - mesmo sendo enfermeira, a gente acredita que uma das questões importantes do indivíduo é a questão da espiritualidade, da religião (E1).
Apesar de a investigação da religião do usuário não constituir uma prática rotineira ou procedimentalizada do atendimento/acolhimento pela maioria dos profissionais entrevistados, há uma percepção geral (quase unânime) de que a religião influencia o modo de a pessoa cuidar da própria saúde. Apenas um dos entrevistados afirma não “acreditar” nessa influência.
Uma concepção predominantemente negativa das possibilidades de a religião influenciar o modo pelo qual as pessoas cuidam da própria saúde sobressai do conjunto das entrevistas. Segundo os entrevistados, a religião pode: ser colocada “na frente” da orientação dada pelo profissional de saúde; impedir ou dificultar a realização de procedimentos diagnósticos, como mamografia, ou terapêuticos, como transfusão de sangue, transplante de órgãos ou mesmo um simples corte de cabelo no combate a piolhos; e desviar a pessoa do tratamento proposto quando se advoga a possibilidade de cura exclusivamente pela fé.
A dimensão religiosa não teria, nessa perspectiva, uma importância em si mesma. Nesse sentido, as entrevistas reproduzem o entendimento dominante que acaba por apresentar as diferenças culturais apenas como “vernizes” aplicados sobre o que, de fato, importaria considerar (Fernandez, 2014) - no caso, os saberes biomédicos ou os saberes da medicina científica. Essa perspectiva dominante é que, frequentemente, valora a cultura - do outro - a partir de uma escala estabelecida por um critério único: a possibilidade de favorecer ou não a aceitação dos métodos de investigação diagnóstica e dos tratamentos ou cuidados recomendados, em cada caso, pelos profissionais autorizados - ou por aqueles detentores do que Chauí (2007) critica como “discurso competente”.
Nesse mesmo diapasão, a possibilidade (mais raramente considerada nas entrevistas) de uma influência positiva da religião sobre os cuidados é percebida apenas em relação à adesão às prescrições dos profissionais de saúde. Como disse uma das entrevistadas (E2), a religião pode favorecer o acatar um cuidado, seguir direitinho - o que remete ao efeito disciplinador de um poder pastoral (Foucault, 1995) sobre a conduta dos indivíduos -, ou, como reflete outra entrevistada, pode favorecer o engajamento do paciente no tratamento, no sentido do paciente que tem uma fé de que aquela doença pode ser curada, pode ser tratada (E3) (desde que tal crença se mantenha no terreno de uma crença na eficácia combinada entre a fé e o tratamento médico, traduzindo-se instrumentalmente em fé no tratamento médico).
Uma exceção é a profissional responsável pela acupuntura na unidade, que localiza a dimensão central da influência da religião nos cuidados no fato de que esta influencia a maneira como a pessoa anda na vida (E1), é uma maneira de amar a vida, é uma maneira de viver (E1). Ela menciona, como exemplo - embora considere superficial diante da amplitude da questão -, a influência da religião sobre os hábitos de indivíduos, na forma de restrições e cautelas alimentares.
Uma concepção da religião como fator que pode apenas dificultar ou oportunizar a adesão a procedimentos ou cuidados leva, em alguns casos, a considerar a questão da relação entre religião e saúde como aquela dos meios (procedimentos ou atitudes) capazes de reduzir a interferência da religião no processo de cuidados. Uma das médicas, referindo-se à importância de uma postura menos autoritária ou não meramente prescritiva do médico e de compartilhar o cuidado com o paciente, salienta que a religião pode interferir sim, mas menos, se você conseguir ter um acordo com o paciente e respeitar (E3). Ou seja, o interesse é de fato a redução da ressonância (negativa) da religião no campo dos cuidados em saúde.
A preocupação com a interferência da religião se dá na preservação de fronteiras institucionalmente demarcadas, como as que reservam unicamente ao profissional a prerrogativa de definir o ponto a partir do qual se pode subtrair o outro de sua decisão sobre a própria vida e saúde. Segundo alguns entrevistados, as diferenças religiosas devem ser respeitadas, embora com ressalvas. Destarte, uma auxiliar de enfermagem afirma que o SUS deveria considerar a religiosidade por questão de respeito ao seguimento de cada um (E2), respeito esse com, não obstante, um limite claro, exposto na conclusão da frase: desde que não vá interferir no andamento da sua saúde e da família (E2).
Analogamente, uma médica, acerca da interferência da religião no tratamento/cuidado, explicita a necessidade de considerar a autonomia do paciente, mas ressalva que autonomia assim, a gente tem que levar em consideração o risco do paciente também (E3). A outra médica, recordando sua experiência em unidades de terapia intensiva, também destaca a existência de um limite para a “autonomia”, ao observar que a busca de caminhos para que essas pessoas [testemunhas de Jeová] não se sentissem assim, violadas, agredidas na fé, tinha limite e prazo, pois o que era necessário, em algum momento tinha que ser feito (E4).
Curiosamente, o único entrevistado a expor uma visão diversa foi o que não acredita na influência da religião no modo de cuidar. Disse ele: Se você diz que não, eu não vou me invadir a você (E5). Trata-se de uma visão coerente com suas posições liberais, de defesa da inviolabilidade da esfera pessoal, de uma fronteira definida não pelo saber/poder médico, mas pelo direito [individual] de dizer sim ou não (E5). Decorre deste liberalismo (político) sua visão de que não é interesse do SUS considerar a religiosidade: esta pertence, segundo ele, à esfera privada, enquanto por princípios constitutivos, o SUS deve ser muito impessoal, muito imparcial (E5).
A defesa da “imparcialidade” - ou aquilo que numa perspectiva cientificista tem origem na separação entre sujeito e objeto (Morin, 2005) -, como um filtro que isola a religiosidade (bem como outras dimensões pessoais) do processo de atendimento/cuidado e garante a aplicabilidade “neutra” de protocolos, procedimentos e saberes técnicos ou científicos, comparece na fala de duas entrevistadas. Como disseram, o ideal é um atendimento igualzinho (E2), a prevalência da mesma orientação para todos […] independente da religião (E2), o tratamento igual, independente de raça, religião, condição financeira (E6).
O pressuposto subjacente a essas afirmações é a consideração de que “todos os usuários são iguais”, no sentido de idênticos, portanto, detentores dos mesmos direitos de serem atendidos nos serviços de saúde de igual modo, sendo dever do Estado, por meio de instauração de políticas públicas, garantir a efetivação do princípio da igualdade.
Essa concepção remete a “uma das máximas políticas mais carregadas de significado emotivo [que] é a que proclama a igualdade de todos os homens, cuja formulação mais corrente é a seguinte: todos os homens são (ou nascem) iguais” (Bobbio, 1997, p. 16). Se, por um lado, essa afirmativa pode ser relacionada à implementação do princípio da igualdade preconizado pelo SUS, a partir do qual todos têm o direito de acessarem o sistema e serem tratados de modo respeitoso e com as mesmas oportunidades de usufruírem dos recursos disponíveis, por outro pode revelar a negação das diferenças entre os usuários, suas condições de vida, de saúde e suas necessidades singulares de cuidado.
Uma abordagem que iguala os modos de cuidado nos serviços de saúde compromete a operacionalização do princípio da equidade no plano cotidiano das instituições. O que se percebe é a tensão entre a homogeneização da atenção e sua singularização.
Assim, a aplicação do conceito de igualdade que se traduz na abordagem homogênea dos usuários parte da consideração da existência de um “homem ideal”, um “usuário padrão”, um tipo considerado universal, que autoriza a adoção de certos modos de produzir cuidado também padronizados. Como assinalado por Bauman (1999), o conhecimento moderno julgou tratar do universal quando estava tratando do particular, de sua particularidade.
Os entrevistados, ao relatarem suas experiências e narrarem suas percepções a respeito da “indiferença” no modo de tratamento a ser oferecido independentemente da religião do usuário, revelam que a retórica sobre o princípio da igualdade no SUS encobre outra faceta da questão: a indiferença para com as diferenças, que envolveria também os diferentes saberes.
A igualdade parece produzir conforto aos entrevistados que não cogitam interrogar se tal conforto alcançaria também aqueles que estivessem do lado da diferença, pois sequer consideram, na maior parte dos casos, a existência dela ou de um lado que a contivesse. Quando essa diferença é percebida e impele o profissional a “ter um acordo” com o paciente, isso não significa, contudo, a instalação de um território para compor com as diferenças, para uma “ecologia de saberes” (Santos, 2008). Diversamente, o que se procura produzir é uma negociação entre as diferenças para reduzir os possíveis atritos delas decorrentes e para reconduzi-las a um denominador comum, alinhado pelo saber biomédico, que confere a seu detentor reconhecido e autorizado o poder de determinar as “opções” e definir os limites da negociação (“o risco do paciente”). O acordo com o paciente (E3), como vimos no caso de uma das médicas entrevistadas, é subtrativo, em que a diferença do paciente é levada em conta para “interferir menos” (conforme fala anteriormente mencionada), para evitar violências desnecessárias, movidas pelo recurso exclusivo aos poderes “prescritivos”, “impositivos”, do médico para obter “adesão”.
O que subjaz a essa visão é a concepção de que o compartilhamento de cuidados comporta uma negociação entre um saber (conhecimento), biomédico, e “entendimentos” (plurais) sobre o processo saúde-doença-cuidados: o primeiro ancorado em evidências científicas, reconhecidas pela comunidade de especialistas, ao passo que o segundo, ou em um erro (cognitivamente falando), quando apresenta um suposto conhecimento concorrente com o saber dos especialistas, ou em modos (culturais) de significar o evento, mais ligados a uma interrogação sobre o porquê do que sobre o como. Uma negociação, por essa razão, assimétrica, cujo resultado tende a ser uma “expropriação do sentido existencial da doença” (Laplantine, 1991, p. 104), na qual “a questão do sentido e do por que […] não cessa de aparecer do ponto de vista biomédico como uma duplicação inútil da problemática causal” (1991, p. 217).
A possibilidade de diálogo no contexto oficial de cuidado se vê, assim, enredada na manutenção de uma lógica de produção da não-existência, como assinalado por Santos (2004, p. 787), da “monocultura do saber e do saber rigoroso”. Uma hierarquização de saberes e o estabelecimento de relações assimétricas entre eles persiste. Quando o saber médico encontra um “entendimento” (cognitivamente) errado (segundo os parâmetros do próprio saber médico instituído), o médico didaticamente esclarece as coisas; quando encontra um “entendimento” que exprime uma forma de significar a doença ou os cuidados recomendados, ele o admite condescendentemente, como alheio a seu próprio saber (concebido como axiologicamente neutro, alheio a toda significação cultural), e tenta mobilizá-lo (ou desmobilizá-lo) a favor do vínculo com o paciente e da adesão ao diagnóstico/tratamento.
As premissas dessa concepção são: o não reconhecimento do caráter sociocultural dos saberes biomédicos, o não reconhecimento da transitividade ou da confluência entre a interrogação do porquê e do como para certos saberes sobre saúde-doença-cuidados e o não reconhecimento do caráter de saber (conhecimento) de outras referências socioculturais (não biomédicas) no campo (não oficial) da saúde.
Pode-se dizer que uma “distinção vital entre dentro e fora” é engendrada no contexto de cuidado, em mais uma tentativa de “expurgar a ambivalência” (Bauman, 1999). Dentro há lugar apenas para os conhecimentos médicos oficiais, que aceitam dialogar com os “entendimentos” dos pacientes, desde que permaneçam fora do terreno de construção dos conhecimentos sobre saúde, doença e cuidados, desde que concedam em articular respostas apenas para o porquê e o anulem como forma efetiva de pensar e agir em relação a saúde, doença e cuidados, deixando o como nas mãos do profissional autorizado.
Quando se trata da religião do profissional
Pode-se dizer, não obstante certa heterogeneidade, também nesse caso, que há diferença em lidar com a ambivalência resultante da coexistência de um saber cientificamente “neutro” e um saber religioso baseado na “fé”, quando se considera a religião do profissional. Se, no caso dos usuários, suas (in)formações religiosas devem permanecer fora, isto não parece ocorrer quando se trata da religião do profissional. Vejamos isso com maior detalhe.
É importante registrar (embora mencionado anteriormente) que, antes de adentrar nas questões do roteiro de entrevista, a coordenadora relatou que alguns profissionais alegaram razões religiosas para não participar da entrevista, mais especificamente o fato de a pesquisa integrar um projeto focado em religiões de matriz afro-brasileira. Esse relato indiciava uma indisposição discriminatória de alguns profissionais, movidos por sua cosmologia religiosa, a considerar um tipo específico de religião em seu exercício profissional e antecipava alguns dos conteúdos da entrevista que se seguiu.
A coordenadora reconhece a necessidade de um descentramento para lidar com uma realidade que está aí (E7), quando considera a influência da religião do profissional de saúde sobre o cuidado que ele presta ou realiza aos usuários dos serviços. A entrevistada detecta a presença de certa dose de intolerância, ainda que não necessariamente religiosa, mas ligada a modos de ser, informados por uma semiótica religiosa, que produz mais dificuldade na relação com pacientes diferentes (E7):
Eu identifico […] no cotidiano de hoje, na minha equipe, pessoas […] numa determinada linha religiosa que têm mais dificuldade em lidar com os pacientes, não de outra religião, mas os pacientes diferentes, entre eles os dependentes químicos, homossexuais, pessoas que têm algum problema com a lei. (E7)
A entrevistada entende a questão da religião também em uma perspectiva macro, referindo contemporâneos desastres mundiais em nome da religião (E7), mas o foco de sua reflexão incide sobre as influências da questão num plano “micro”. Para chegar à influência nesse plano, ela destaca o que seriam pelo menos três dimensões que concorrem (E7) na formação profissional: o conhecer, a habilidade e a atitude (E7). Segundo a entrevistada, as duas primeiras dimensões não seriam tão problemáticas quanto a questão da atitude (E7). Como ela disse, o profissional
nem sempre dispõe a sua atitude, que é uma linguagem muito subliminar, do olhar, de demonstrar interesse por aquela pessoa, da relação que se estabelece nessa distância da mesa, do profissional de um lado e o usuário do outro. Então, às vezes, são sutilezas. (E7)
Por vezes, a identificação religiosa do profissional cria problemas que poderiam ser contornados, como o caso de uma ginecologista que se recusa a prescrever anticoncepcionais por conta de seus valores religiosos. Nesse caso, a equipe, ainda que não consensualmente, acolheu a profissional e adotou procedimentos complementares que não impedissem a paciente dessa profissional de ter acesso a esses métodos. Indagada sobre a possibilidade de ela não perceber essa eventual necessidade de atendimento complementar, a respondente destacou qualidades de sua equipe e da relação dela com os usuários, indicando que rapidamente essas situações circulariam (E7). Apesar disso, remata: Durmo sossegada com isso? Não, não durmo (E7).
A respondente reconhece a existência de um desconforto em relação à questão religiosa na equipe com a qual trabalha. Superando uma leve reticência e certa discrição no trato da questão, a respondente por fim explicita o problema como segue:
Há certo desconforto que transita pela equipe, trazida pela questão religiosa […]. Você percebe a pessoa assim com uma expressãozinha assim: “Ai, vai vir uns bichos assim, uns pais de santo, E.T., sei lá o quê”, porque é uma fantasia no fundo, né? Então, tem uma intolerância. (E7)
Apesar do discurso da entrevistada destacar a dificuldade para lidar com o problema da intolerância religiosa em razão do que chamou de plano micro, de sutilezas, de atitudes, de foro íntimo, de “veladinho”, que tornam, segundo seu entendimento, mais difícil conduzir o enfrentamento - Para mim, isso é terrível, porque no macro você ainda enfrenta (E7) -, há um conjunto de razões que a dispõe para assumi-lo como tarefa. Entre elas, poderiam ser arroladas a religião, no sentido até de ser um elemento a mais terapêutico (E7), a beleza das situações de respeito ao outro (E7), seu gosto por gente e sua esperança de que as coisas vão acontecendo com o tempo (E7).
A expectativa de que o tempo há de melhorar tal situação parece revelar a assimetria nas relações estabelecidas em torno desse saber-poder biomédico, pois a urgência em modificar isso recairia acentuadamente sobre aqueles colocados “fora” e não sobre aqueles que definem o que deve permanecer “dentro”, a despeito da ambivalência que isso possa representar. É que no caso dos profissionais resta ainda o recurso ao especialista (Bauman, 1999), que fraciona o conhecimento biomédico sem o demover de seu papel situante em relação aos demais conhecimentos; que ao pluralizar, nesses termos, as fontes de autoridade em relação a um mesmo caso, desresponsabiliza a todos do cuidado integral, eliminando assim o desconforto provocado pela ambivalência.
Essa reserva de recursos, por assim dizer, é o que transparece no exemplo trazido por uma médica espírita quando disse: Gente, não posso misturar as coisas (E4).
Nesse exemplo, a entrevistada traz o caso de uma menina de doze anos, encaminhada pela escola para a médica por apresentar alteração de comportamento (E4), dizendo ver e conversar com pessoas que ela diz que vê (E4), espíritos desencarnados. A avó a levava a um centro espírita para tratamento espiritual. A escola a encaminhou a uma psicóloga, que não identificou necessidade de acompanhamento psiquiátrico. Não concordando com essa solução, a escola recorreu à intervenção de nossa entrevistada, que narrou o episódio como segue:
Eu sou espírita. Só que eu olhava para a menina e eu via aquele olhar parado, com sintomas que me chamavam mais atenção para uma parte de uma esquizofrenia do que de uma obsessão. […] Falei assim: “Gente, não posso misturar as coisas, né, eu vou pedir a avaliação da psiquiatria”. […] Veio a psiquiatria infantil, fez o matriciamento e diagnosticaram como esquizofrenia. A criança começou a ser medicada e, dois meses depois, ela voltou e ela não tinha mais nenhum sintoma. (E4)
Da narrativa da entrevistada acerca desse caso, parece importante destacar que:
A entrevistada procura desenhar sua própria ação/intervenção a partir de dois saberes, duas possibilidades interpretativas dos “sintomas” (comportamentais) da menina, a psiquiátrica e a espírita, que em sua perspectiva reduzia o campo de possíveis a dois diagnósticos alternativos entre si, esquizofrenia ou obsessão (influência de um espírito obsessor).
Sua decisão foi determinada por seu papel como médica: Gente, não posso misturar as coisas, né, eu vou pedir a avaliação da psiquiatria (E4). “Não misturar” significa deixar algo fora e manter impermeável (supostamente livre de ambivalências) algo dentro, e demandar a avaliação da psiquiatria significa excluir-se como elemento ambivalente do processo de decisão, sob o amparo de outros representantes do que é mantido dentro. “Expurgar a ambivalência” equivale, nesse caso, à autoexclusão.
Por outro lado, a entrevistada tenta ainda reintegrar o que foi deixado fora de uma forma que acaba por tornar indiferente ou anódino o que é reintegrado: Reza, porque rezar nunca é demais (E4). Tudo o que vem para somar não subtrai, o que não quer dizer que se lhe possa atribuir real valor ou efetividade. Em geral, é dessa forma que se concebe (quando se concebe) uma combinação entre as práticas biomédicas e não biomédicas - Faça as duas coisas… (E4) -, quando as últimas são readmitidas no sentido de que o que não subtrai talvez venha a somar.
Não surpreende, assim, que a entrevistada, malgrado defenda que se façam as duas coisas, esteja disposta, ao tratar da eficácia resolutiva do processo terapêutico, a conceder todos os créditos ao tratamento psiquiátrico. O tratamento espiritual apenas voltou à narrativa pela intervenção do entrevistador: Você não sabe se ela continuou com o cuidado espiritual? (E4). Ela não sabe a resposta, mas o importante é que deu tudo certo (E4).
Quando se trata da religião no SUS
Nenhum dos entrevistados identifica ações do centro de saúde voltadas a grupos religiosos em seu território de abrangência.
Apenas um dos entrevistados respondeu negativamente à pergunta sobre a necessidade de o SUS considerar a religiosidade no cuidado à saúde dos usuários. Trata-se do entrevistado (E5) que não considera a influência da religião no modo de o paciente cuidar da saúde.
Outra entrevistada julga desnecessário o SUS considerar a religiosidade na nossa comunidade (E6), porque a gente não tem muitos problemas em relação à religião (E6), mas no que diz respeito a outras realidades a nível de Brasil (E6), o SUS deveria considerar a religião. Trata-se de uma das entrevistadas que sustenta a necessidade de assegurar impermeabilidade dos procedimentos à interferência de qualquer diferença religiosa.
Todos os outros entrevistados pensam que o SUS deveria considerar a religiosidade dos usuários. As justificativas compreendem considerações relacionadas: ao respeito ao seguimento de cada um (E2); à importância das diferenças individuais - um é diferente do outro -; à influência da religião na maneira de você viver (E1) - e para trabalhar a dimensão da saúde, você tem que saber como o outro vive (E1) (resposta da enfermeira); à importância de abordar o paciente de forma integral, o que inclui considerar a religião, que, para ele, é algo importante (E3).
Segundo os entrevistados, o SUS não considera atualmente a dimensão religiosa, embora uma das entrevistadas se refira à existência de uma conversa a respeito (E1) nesse âmbito. Para que essa situação se modifique, os entrevistados afirmam que seriam necessárias políticas públicas que promovessem ações direcionadas aos profissionais de saúde como “capacitação” específica, cursos, palestras, alterações curriculares no âmbito das graduações em saúde, mudanças nos protocolos e procedimentos dos serviços. Ou, como observa a enfermeira, talvez seja necessário adequar mesmo a nossa cultura, pessoal, humana, para ter um olhar diferente para isso (E1).
Quando se trata das religiões afro-brasileiras
Nenhum dos entrevistados que fizeram referência à religião dos usuários atendidos no centro de saúde mencionou religiões pertencentes ao complexo das religiões afro-brasileiras. As religiões referidas foram: a evangélica, a espírita e a católica.
Nenhum dos entrevistados diz conhecer características das religiões afro-brasileiras que demandem cuidados específicos à saúde. Uma das entrevistadas, que já foi umbandista, ao considerar essa questão, afinada com o diapasão negativo do modo de tratar a influência da religião no contexto dos cuidados à saúde, diz que não tinha restrição (E8) e que o umbandista faz o que era dito lá, mas também faz o que o médico manda (E8). Outra entrevistada (E4), espírita, diz que, embora conheça algumas características, não conhece nenhuma que demande cuidados específicos. Outra entrevistada, a enfermeira, se questiona se não é o próprio preconceito geral que produz esse desconhecimento em relação às religiões afro-brasileiras: essa coisa da gente ter mesmo um maior preconceito em relação a essa religião e acabar pensando pouco nela (E1).
Essa indagação remete ao tema dos níveis de legitimidade e visibilidade social das religiões afro-brasileiras e seu impacto sobre a produção de equidade/iniquidade à saúde. Vale lembrar que se presencia atualmente no Brasil uma intensificação da intolerância religiosa contra as religiões afro-brasileiras na forma de investidas violentas ou de ações legislativas (como nas tentativas de instituir uma lei específica contra rituais com animais). No entanto, a discriminação “cordial”, que se manifesta na invisibilização, na produção da “ausência”, não pode ser ignorada, tanto porque o desprestígio e a invisibilidade social podem contribuir para a intensificação ou não de conflitos inter-religiosos ou interculturais (Frigerio, 2007), como em razão de uma “injustiça cognitiva” que reduz campo de possíveis de produção de respostas cognitivas, técnicas, sociais, políticas, éticas e estéticas a problemas sociais e individuais, considerando a diversidade dos modos de ser, viver e saber, o que, no que diz respeito à saúde, pode se traduzir em iatrogenia.
Considerações finais
Retomando a perspectiva de uma entrevistada, talvez, para abordar a questão das relações entre religião e atenção básica, seja necessário algo mais profundo e complexo: adequar mesmo a nossa cultura, pessoal, humana, para ter um olhar diferente para isso (E1).
De fato, existe uma pressão homogeneizadora sobre os envolvidos na prestação do cuidado no SUS em torno de um modo de “olhar” para essa questão. Trata-se da pressão do instituído (Castoriadis, 2000; Fernandez, 2012; Lourau, 1975) colonizador relacionado à instituição médica (Luz, 1981) - e saberes correlatos que atuam em comitiva a ela - e ao racionalismo iluminista, e sua promessa de libertação do homem de toda forma de ilusão, à qual ele aproxima a fé religiosa. Como assinalado, no âmbito da saúde mental, por Murakami e Campos (2012, p. 365), muitas vezes os profissionais de saúde desconsideram o discurso religioso no momento da elaboração do projeto terapêutico, ou o tomam como um dado psicopatológico, como alienação, como neurose obsessiva ou qualquer outra leitura que garanta a sobreposição do jogo linguístico da racionalidade cientifica sobre o jogo linguístico da religiosidade.
Isso se coloca como um desafio premente para a produção de equidade em saúde, sobretudo quando se considera a questão da justiça cognitiva como requisito para a produção de justiça social. Tal desafio, instituinte por assim dizer, não corresponderia a refutar todos os conhecimentos em saúde produzidos e amparados por essas instituições, mas a considerar os desdobramentos ou consequências produzidas pela reprodução acrítica da dinâmica dessas instituições para, dessa forma, poder multiplicar as possibilidades de cuidado.
É necessário referir a renitência dos “refugos” que a prática social traz à tona, a despeito de sua obstinada luta contra a ambivalência (Bauman, 1999), explicitando-os como se pretendeu fazer anteriormente. Isso dá sentido ao enunciado por uma liderança de Terreiro (entrevistada no âmbito da pesquisa abrangente da qual este estudo é parte) a respeito da intolerância religiosa: o SUS é laico, mas os profissionais de saúde não o são (Mãe L).
Este estudo mostrou o quanto, de fato, a neutralidade axiológica, e inclusive religiosa, não apenas é uma ilusão, como se vê comprometida com o apagamento da agência dos profissionais de saúde em diferentes direções. Paradoxalmente - o que é positivo na perspectiva das relações entre o instituído e o instituinte -, a pressão homogeneizadora produz como refugo as respostas que se dão no sentido de validar, negar, ressignificar ou esvaziar o sentido das instituições (Fernandez, 2012) e pode-se, afinal, fazê-lo de diferentes formas.
Por fim, a discussão aqui apresentada conduz a uma reflexão sobre o que, em se tratando de equidades e iniquidades em saúde, tem também produzido essa epistème moderna - ou aquilo que aqui e ali, e de modo geral, sustenta as formas de conhecer e pensar de uma época. Seja na evitação do tema, quando se pretende ignorar algo que está presente (a religiosidade do usuário e do profissional), ao que se poderia aproximar a constatação daquilo que importa, mas que não é considerado (a influência da religião nos modos de cuidado). Seja na identificação dos mecanismos acionados na perspectiva de naturalização de certos valores (o caráter científico ou não das coisas), de modos de agir (segundo procedimentos, protocolos ou saberes institucionalmente legitimados), de modos de ser (neutros e baseados apenas na razão), e tudo isso operado em flagrante despreparo para lidar com a diversidade cultural.
Resulta disso que não se atribui “real valor e efetividade” ao que está fora do âmbito biomédico não apenas como ação terapêutica, mas também ao que poderiam ser consideradas demandas específicas de indivíduos ou grupos, motivadas por suas filiações religiosas. Isso sugere que já se opera num campo de apagamento de experiências, vivências ou modos de ser no qual renitentes diferenças são tornadas “não existentes”, desprovidas de realidade e materialidade em razão de um ativo epistemicídio (Santos, 2004, 2008) construído ao longo dos últimos séculos. Saberes e necessidades decorrentes da experiência religiosa são, assim, desperdiçados e/ou ignorados.
Referências
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Oct-Dec 2018
Histórico
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Recebido
11 Maio 2018 -
Aceito
17 Jul 2018