Open-access Vigilância Epidemiológica e a pandemia da Covid-19 no Brasil: elementos para entender a resposta brasileira e a explosão de casos e mortes

Epidemiological Surveillance and the Covid-19 pandemic in Brazil: elements to understand the Brazilian response and the explosion of cases and deaths

COM MAIS DE QUATRO MILHÕES DE CASOS confirmados e notificados de infecção pelo vírus SARS-CoV-2 e mais de 125 mil mortes associadas à Covid-19, acumulados desde o início da pandemia, como informa o Ministério da Saúde (MS), o Brasil, ao final da Semana Epidemiológica (SE) 36, continuava a ocupar a posição de segundo país do mundo em número absoluto de casos e de óbitos, atrás apenas dos Estados Unidos da América (EUA)1. Não é sem razão, porque as alternativas adotadas para a gestão da crise sanitária no Brasil e nos EUA, nas primeiras semanas de evolução da pandemia, não privilegiaram os princípios, métodos e práticas da Vigilância Epidemiológica (VE) para o seu enfrentamento, entre outros fatores.

Semelhanças e diferenças entre esses dois países, que têm o maior número de casos de Covid-19 no mundo, contribuem igualmente para a situação em que se encontram diante da pandemia. Entre as principais diferenças, assinala-se a existência, no Brasil, de um sistema nacional, universal, de saúde pública, o Sistema Único de Saúde (SUS), a grande cobertura da Atenção Primária à Saúde (APS) que, em muitas áreas, inclui a Estratégia Saúde da Família, e um sistema nacional de VE, com capilaridade, que atinge todos os estados e municípios. Isso, porém, não evitou a rápida progressão e a extensão da pandemia por todo o País. Entre as principais semelhanças, as desigualdades sociais, econômicas e de acesso aos serviços de saúde representam obstáculos adicionais importantes na obtenção de ações de prevenção e de hospitalizações.

Tem sido na opção política por um verdadeiro antimodelo de enfrentamento da pandemia, todavia, que o Brasil e os EUA mais se aproximam. Citam-se, por exemplo, a opção pela negação da importância e gravidade do problema, em um primeiro momento, e a falsa oposição entre a adoção de medidas para reduzir uma maior frequência de casos e óbitos e os prejuízos econômicos que poderiam advir das medidas de distanciamento social e de restrição de circulação de pessoas.

Um breve histórico da primeira fase da expansão da pandemia da Covid-19 no Brasil pode ser observado no quadro 1. Apresenta-se a SE e a data de notificação do primeiro caso confirmado da doença em cada estado, a partir da notificação do primeiro caso no País, ocorrida em São Paulo, em 26 de fevereiro de 2020, na SE 9. Entre essa data e 25 de março de 2020 (SE 13), todos os estados e o Distrito Federal registraram os seus primeiros casos confirmados, importados ou não.

Quadro 1
Semana Epidemiológica e data da notificação do primeiro caso confirmado de Covid-19, por estado e região, e número acumulado de casos e de óbitos notificados com a doença, Brasil, 2020

Com efeito, a partir do epicentro inicial da pandemia em São Paulo, e logo a seguir no Rio de Janeiro, em apenas duas semanas, alguns estados das regiões Sudeste, Nordeste, Centro-Oeste e Sul apresentaram casos da Covid-19. Na semana seguinte (SE 12), os primeiros casos foram notificados no Amazonas. A região Norte viria a se tornar o segundo epicentro da pandemia a partir de abril de 2020. Nesse período inicial, já havia conhecimento sobre a progressão da epidemia na China, de onde partiu o sinal de alerta da emergência do SARS-CoV-2 em dezembro de 2019, e cuja curva epidêmica estava em franco crescimento nos primeiros dias de janeiro. Sabia-se também sobre o que ocorreu na Europa, entre as SE 4 e 6, onde países como a França, a Alemanha, o Reino Unido, a Espanha e a Itália - país de origem do primeiro caso brasileiro -, e os EUA, haviam registrado várias dezenas de casos.

O exame das características da evolução da pandemia em alguns países europeus, que adotaram mais ou menos precocemente medidas de controle não farmacológicas, poderia ter determinado a estratégia brasileira de enfrentamento. Por exemplo, com início da pandemia na SE 5, países como a Espanha e a Alemanha estabeleceram nacionalmente forte restrição de circulação de pessoas entre as SE 12 e 13, e experimentaram início de descenso consistente da curva epidêmica a partir da SE 15. Em contraste, a adoção tardia ou parcial dessas medidas, como ocorreu na Itália e no Reino Unido, resultou em maior número de casos e óbitos, já nas primeiras semanas da pandemia, ou em um número elevado diário de casos por tempo mais prolongado. E em especial porque em 30 de janeiro de 2020, correspondente a SE 5, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a epidemia pelo novo coronavírus como uma Emergência de Saúde Pública de Interesse Internacional e, em 11 de março, caracterizou a Covid-19 como pandemia.

No Brasil, o MS declarou situação de Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional, “em decorrência da infecção humana pelo novo Coronavírus (2019-nCoV)”3, por meio da Portaria nº 188, de 4 de fevereiro de 2020 (SE 6), antes mesmo que tivesse confirmado o primeiro caso da doença em território brasileiro, estabelecendo, então, o Centro de Operações de Emergências em Saúde Pública (COE-nCoV)3. Essa etapa inicial da resposta brasileira foi realizada tempestivamente, criando as condições para que as medidas sanitárias e administrativas de enfrentamento pudessem ser adotadas.

Naquela mesma data, o governo federal enviou ao Congresso Nacional um projeto de lei que regulamentava a quarentena, entre outros instrumentos, para a contenção de epidemias, nesse caso, específico para a situação da Covid-19, porque se encontrava diante da necessidade de repatriar brasileiros que estavam em Wuhan, China, epicentro mundial da pandemia. A Lei nº 13.979 foi aprovada em tempo recorde e publicada em 6 de fevereiro de 2020 e, como se lê na ementa:

Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 20194.

No dia 11 de março de 2020, o MS publicou a Portaria nº 356, regulamentando aspectos da Lei nº 13.979/20205; e, em 20 de março de 2020 (SE 12), por meio da Portaria nº 454, declarou, em todo o território nacional, o “estado de transmissão comunitária do coronavírus (covid-19)”6.

Assim, enquanto se desenrolava a pandemia em muitos países, as bases legais e normativas para a atuação do sistema de saúde brasileiro, inclusive, da VE, para o enfrentamento da pandemia que certamente viria e que já se exibia fortemente no mundo, estavam, no geral, assentadas. A propósito, em 22 de março de 2020 (SE 13), o MS já havia registrado 1.546 casos e 25 óbitos confirmados, sendo 817 casos (52,8%) em São Paulo e no Rio de Janeiro (quadro 1), os dois mais importantes polos metropolitanos do País.

Reuniões do MS com os secretários estaduais de saúde para discutir planos de contingência “que contempla medidas de prevenção, vigilância e assistência para um possível caso do novo coronavírus”7, como se informa, foram realizadas desde 5 de fevereiro e ao longo do mês de março de 2020, quando se enfatizava a importância da adoção das medidas não farmacológicas de enfrentamento, individuais e coletivas, tais como higienização, distanciamento social e restrição de circulação de pessoas, para reduzir o risco de transmissão do SARS-CoV-2, com o intuito de evitar sobrecarga aos serviços assistenciais de saúde, especialmente às hospitalizações em Unidades de Terapia Intensiva (UTI). Foram tomadas iniciativas para ampliação do número de leitos na rede do SUS visando à redução de óbitos decorrentes da pandemia da Covid-19, preocupação mundial legítima, em vista da possibilidade de colapso dos sistemas de saúde nacionais, como estava ocorrendo na Itália.

Entretanto, à expressão de diretrizes nacionais para o enfrentamento e gestão da crise sanitária, no início da pandemia no País, não correspondeu à adoção ou implementação efetiva das medidas não farmacológicas, de forma coordenada mediante direção nacional do SUS, como exigia a situação epidemiológica. Faltou conferir priorização a tão desejada atuação da VE, voltada à redução de riscos da ocorrência de novos casos por meio da investigação epidemiológica de campo, em todos os espaços de ocorrência da doença, visando à busca ativa de casos e contatos, para aplicação de medidas de distanciamento, quarentena e orientações. Ou seja, as diretrizes nacionais para a condução das ações de campo receberam ênfase diversa entre os entes federativos, possivelmente devido ao receio de contaminação das equipes. Contudo, tais ações poderiam ser desenvolvidas a distância. A ação da vigilância sanitária foi ainda mais tímida, reservada ao trabalho em portos e aeroportos. As medidas de contenção de circulação de pessoas infectadas entre estados e municípios não foram suficientes para conter a rápida expansão da doença por todo o País.

Isso ficou evidente nas orientações do MS, oferecidas em outra reunião, em 13 de março de 2020, nas quais se lê, entre outras recomendações:

As capitais Rio de Janeiro e São Paulo já registram caso de transmissão comunitária, quando não é identificada a origem da contaminação. Com isso, o país entra em uma nova fase da estratégia brasileira, a de criar condições para diminuir os danos que o vírus pode causar à população. Em videoconferência com profissionais das secretarias estaduais de saúde de todo o país, o Ministério da Saúde anunciou, nesta sexta-feira (13), recomendações para evitar a disseminação da doença. As orientações deverão ser adaptadas pelos gestores estaduais e municipais, de acordo com a realidade local...

As medidas gerais válidas, a partir desta sexta-feira (13), a todos os estados brasileiros, incluem o reforço da prevenção individual com a etiqueta respiratória (como cobrir a boca com o antebraço ou lenço descartável ao tossir e espirrar), o isolamento domiciliar ou hospitalar de pessoas com sintomas da doença por até 14 dias, além da recomendação para que pacientes com casos leves procurem os postos de saúde8.

Também transparece da leitura da Portaria nº 356/2020 que, além da fragilidade de uma coordenação nacional, articulada com governos estaduais e municipais, necessária, por coerência, com a gravidade da situação epidemiológica, as medidas previstas no art. 3º da Lei nº 13.979/2020, citada no art. 2º da Portaria nº 356, não foram implementadas com a mesma intensidade. Entretanto, não é somente isso: o papel da VE, explicitamente exposto naquela normativa, quanto ao embasamento de ações em evidências científicas e à indicação de distanciamento e quarentena, não parece ter sido exercido em sua plenitude, conforme progredia a pandemia, conquanto foi possível observar as controvérsias sobre o distanciamento social (se vertical ou horizontal!), implantação de lockdown, sobre prováveis medidas terapêuticas, sobre o uso ou não de testes rápidos aplicados em massa, entre outras divergências entre o MS e a Presidência da República. Afinal, em quatro meses de pandemia no Brasil, houve três ministros da saúde.

Um trecho do discurso do Presidente da República, proferido em 10 de março de 2020, durante a ‘Sessão de Abertura da Conferência Internacional Brasil-Estados Unidos: um novo prisma nas relações de parceria e investimentos’, realizada em Miami, Flórida, EUA, ilustra bem a tentativa de negar a gravidade da situação da pandemia no Brasil; quando declarou:

Obviamente, temos, no momento, uma crise, uma pequena crise, não é? Ou, no meu entender, muito mais fantasia, a questão do coronavírus, que não é isso tudo que a grande mídia propala, ou propaga, pelo mundo todo, [...] ou outra, alguns da imprensa conseguiram fazer de uma crise a queda do preço do petróleo9.

Igualmente esclarecedor dessas posições políticas em relação à pandemia da Covid-19, contrariando orientações da OMS e do MS brasileiro, é o que ocorreu com o frustrado lançamento da campanha publicitária do governo federal, intitulada ‘O Brasil não pode parar’10, veiculada em redes sociais por volta da SE 13, cuja mensagem contrariava a orientação do MS quanto ao distanciamento social e à restrição de circulação de pessoas. Pelo menos foi esse o entendimento da Confederação Nacional dos Trabalhadores Metalúrgicos e Rede Sustentabilidade, entre outros, organizações que ingressaram no Supremo Tribunal Federal (STF) com as Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), números 668 e 669, com pedido de cautelar, que foi deferida, em 31 de março de 2020:

Para vedar a produção e circulação, por qualquer meio, de qualquer campanha que pregue que ‘O Brasil não pode parar’ ou que sugira que a população deve retornar as suas atividades plenas, ou, ainda, que expresse que a pandemia constitui evento de diminuta gravidade para a saúde e a vida da população11.

Depois de manifestação da Secretaria Especial de Comunicação do Governo Federal, informando que aquela campanha seria uma ‘produção de caráter experimental’, a ação foi arquivada, com parecer da Procuradoria Geral da República “pelo não conhecimento das arguições de descumprimento de preceito fundamental”12. Essa talvez tenha sido a primeira das várias judicializações que marcam, até o momento presente, a progressão da pandemia da Covid-19 no Brasil, denotando os desencontros nas políticas nacionais de enfrentamento da crise sanitária, entre órgãos do governo federal e os governos estaduais e municipais.

Exemplo disso foi o pronunciamento do Presidente da República em cadeia nacional de rádio e televisão, em 24 de março de 2020, quando a pandemia já estava instalada em todo o País, em que declarou, em um trecho:

O vírus chegou, está sendo enfrentado por nós e brevemente passará. Nossa vida tem que continuar. Os empregos devem ser mantidos. O sustento das famílias deve ser preservado. Devemos, sim, voltar à normalidade. Algumas poucas autoridades estaduais e municipais devem abandonar o conceito de terra arrasada, a proibição de transportes, o fechamento de comércio e o confinamento em massa. O que se passa no mundo tem mostrado que o grupo de risco é o das pessoas acima dos 60 anos. Então por que fechar escolas? Raros são os casos fatais de pessoas sãs com menos de 40 anos de idade, 90% de nós não teremos qualquer manifestação, caso se contamine. Devemos sim, é ter extrema preocupação em não transmitir o vírus para os outros, em especial aos nossos queridos pais e avós, respeitando as orientações do Ministério da Saúde13.

A negação da extensão e da gravidade da pandemia sustentava, assim, a proposição de que as medidas de distanciamento social e de restrição de circulação de pessoas iriam abalar o desempenho econômico brasileiro e, supostamente, por esta via, provocar maior dano à saúde e ao bem-estar da população do que os possíveis efeitos da ocorrência da Covid-19. Porém, não foi somente esse aspecto que foi continuamente ressaltado desde o início da pandemia no Brasil. Tudo parecia se resumir, e ainda parece assim, à disponibilidade de leitos hospitalares gerais e de UTI, para a adequada assistência às pessoas que fossem acometidas mais gravemente pela doença. Portanto, em combinação, esses dois elementos indicariam que se poderia reduzir as medidas de distanciamento social, dado que existissem leitos hospitalares suficientes para atender aos casos de maior gravidade. Com isso, ignora-se o custo social e econômico da ocorrência da doença para as pessoas acometidas, mesmo os casos leves, para seus familiares e para as coletividades; o inevitável excesso de mortalidade, com óbitos evitáveis que não acometem igualmente todos os indivíduos por idade, sexo e condição social; as despesas com assistência clínica e hospitalizações, inclusive no SUS; a sobrecarga de trabalho e o risco de exposição dos profissionais de saúde, e a constante ameaça de saturação das instituições públicas e privadas de saúde. O desejável seria um modelo de enfrentamento da pandemia baseado no apoio de todos os níveis de governo para o distanciamento social, medida de controle coletiva que efetivamente reduz o risco de transmissão comunitária, ao lado do fortalecimento da VE em estreita articulação com as equipes de APS nos territórios de abrangência, a promoção da participação da população e, sem dúvida, a adequada e pronta assistência médico hospitalar indicada aos casos graves da Covid-19.

Entretanto, a preocupação que predominava nas falas e nas ações do Presidente da República e de parcela expressiva do executivo federal era sobre o impacto econômico da pandemia no Produto Interno Bruto (PIB), a queda das receitas fiscais e o aumento de despesas, que poderiam comprometer o desempenho econômico, em especial, o que poderia advir das necessárias medidas de distanciamento social nos centros urbanos mais acometidos. As divergências com os governos estaduais e municipais na gestão da crise sanitária foram expressas na Medida Provisória nº 926/2020 que tratava das competências do governo federal no enfrentamento da pandemia. Uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 6.341), interposta pelo Partido Democrático Trabalhista, teve medida cautelar deferida pelo STF em 15 de abril de 2020, sob o entendimento de que as medidas propostas pelo governo federal não afastavam a “competência concorrente nem a tomada de providências normativas e administrativas pelos estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios”14. Desse modo, inúmeros governadores e prefeitos adotaram o distanciamento social, sem o devido suporte econômico ou político do governo federal. Como se comenta mais adiante, um programa de benefício financeiro às famílias mais carentes foi definido em lei, mas, pode-se considerar tímido diante das enormes dificuldades enfrentadas pela população em manter o distanciamento social. Criou-se um contexto desfavorável para grupos vulneráveis de trabalhadores, que se agravou com a progressão da pandemia e com a limitação na disponibilidade de leitos de UTI, que se tornou crítica em alguns locais que não implantaram o distanciamento social ou que iniciaram a flexibilização no momento em que ainda não se verificava o descenso consistente da curva epidêmica. Nessas condições, o rápido crescimento do número de casos e óbitos ou a ocorrência de segundas e terceiras ondas de novos casos são imprevisíveis.

O que se tem notícia, recentemente, é que, para minimizar o impacto econômico, retomando, precocemente, atividades comerciais não essenciais, e sem base científica segura, passou-se a vivenciar um vai e volta que talvez imponha custos ainda maiores à população e ao comércio. Criou-se um perverso efeito sanfona ou gangorra, cujo resultado direto tem sido o recrudescimento do número de casos e óbitos em alguns estados e municípios, a extensão desnecessária do processo epidêmico, já com mais de quatro meses de duração, e a explosão de casos e mortes que se tem verificado no Brasil e nos EUA.

O tema da aplicação de testes moleculares em massa para o diagnóstico da infecção pelo vírus SARS-CoV-2 tem suscitado debates e posições divergentes. Entre os 20 países com maior número acumulado de casos confirmados da Covid-19, o Brasil encontrava-se, em julho de 2020, no 14º lugar em número de testes diagnósticos específicos para essa infecção viral. Com o registro de pouco mais de 4,5 milhões de testes, correspondente a somente 2,2% da população, o desempenho brasileiro nessa área é muito inferior ao da Espanha e do Reino Unido, por exemplo, com, respectivamente, seis e oito vezes mais do que foi realizado no Brasil (quadro 2). No País, há também diferenças regionais importantes no número de testes realizados. Enquanto os estados das regiões Norte e Centro-Oeste já realizaram, respectivamente, 3,1 e 3,0 testes por 100 habitantes, o Nordeste realizou 2,8, e as regiões Sudeste e Sul não passaram de 1,9%.

Quadro 2
Testes realizados para a detecção de infecção pelo vírus SARS-CoV-2 (número e percentual da população), entre os 20 países com maior número acumulado de casos confirmados da Covid-19, 11 de julho de 2020

É possível considerar que o Sistema Nacional de Laboratórios de Saúde Pública não estaria preparado para enfrentar a grande demanda de testes diagnósticos para a Covid-19, já desde o início da pandemia, em março de 2020. Porém, é certo que a pandemia revelou e acentuou as dificuldades já conhecidas de toda a cadeia de aquisição, processamento e logística de retorno de resultados em tempo hábil dos testes laboratoriais em toda a rede do SUS, desde as unidades básicas de saúde até os hospitais, principalmente fora dos grandes centros urbanos, onde há maior carência de infraestrutura e profissionais dessa área.

Nesta pandemia, a insuficiência de insumos e de capacidade instalada para realização de testes moleculares em larga escala ocorreu em todo o mundo. Porém, a insuficiência de insumos e de infraestrutura para a realização de exames perfaz apenas uma parte das condições de preparação para enfrentar os desafios da pandemia no Brasil. É importante destacar que as ações de controle, a busca ativa de casos e o rastreamento de contatos com consequente adoção de medidas para redução da transmissão do agente podem e devem ser feitas a partir das definições de casos confirmados por critério clínico-epidemiológico, provável e, evidentemente, sem desconsiderar os casos confirmados laboratorialmente a partir dos quais as definições anteriores estão ancoradas.

As orientações do Ministério da Saúde para enfrentamento da pandemia no Brasil

Para melhor esclarecer o papel da vigilância na condução das iniciativas de controle da pandemia da Covid-19 no País, convém examinar a publicação central da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS) do MS para esse problema de saúde pública. Em 16 de janeiro de 2020, a SVS publicou, em Boletim Epidemiológico (BE), a primeira referência a “Evento de monitoramento internacional: China - Pneumonia de etiologia desconhecida”16(10), reproduzindo as recomendações da OMS para a prevenção primária da transmissão do vírus pessoa a pessoa.

Naquele Boletim, e mais de um mês antes da confirmação do primeiro caso da Covid-19, a SVS estabeleceu algumas ações que se apresentavam como necessárias à época e que ainda hoje seriam essenciais para o controle da pandemia: adesão às medidas recomendadas pela OMS; ênfase na notificação às secretarias de saúde dos estados e municípios, reconhecendo assim a importância das informações para o acompanhamento e o controle da pandemia; disso decorria a avaliação diária de risco, também recomendada, embora assinalasse que deveriam ser evitadas “medidas restritivas e desproporcionais em relação aos riscos para a saúde e trânsito de pessoas, bens e mercadorias”16(12). Havia preocupação com a capacidade instalada de primers e testes diagnósticos. Estabelecia a necessidade de revisar os fluxos de investigação de casos e contatos e a definição preliminar de casos suspeitos; a referência à rede de serviços de saúde, inclusive hospitalar e as ações em aeroportos, com atualização de procedimentos de vigilância e “atenção frente a identificação de casos suspeitos de Síndrome Respiratória Aguda Grave”16(12).

No BE 4, de 22 de janeiro de 2020, a SVS dedica um capítulo inteiro ao novo coronavírus, com os detalhamentos necessários que poderiam orientar a resposta à pandemia sob a égide da VE17. Em 3 de fevereiro de 2020, a SVS publicou o primeiro BE do Centro de Operações de Emergências em Saúde Pública para o novo Coronavírus (COE-nCoV)18. Três elementos fundamentais para a organização da resposta à emergência de saúde pública que se aproximava já estavam presentes naquele Boletim: A atualização do Guia de Vigilância Epidemiológica para a ‘Infecção humana pelo novo Coronavírus (2019-nCoV)’, um capítulo sobre ‘Vigilância Laboratorial’ e o ‘Plano de Contingência Nacional para Infecção Humana pelo novo Coronavírus (2019-nCoV)’. Na publicação, a SVS estabeleceu os objetivos gerais da vigilância para o problema de saúde pública, a saber:

Orientar o Sistema Nacional de Vigilância em Saúde e a Rede de Serviços de Atenção à Saúde do SUS para atuação na identificação, notificação e manejo oportuno de casos suspeitos de Infecção Humana pelo Novo Coronavírus de modo a mitigar os riscos de transmissão sustentada no território nacional18.

Outros dois Boletins foram publicados em fevereiro de 2020 (números 2 e 3). Em março de 2020, foram publicados dois Boletins (números 4 e 5), o primeiro desses, de 3 de março de 2020, não informa sobre a confirmação do primeiro caso da Covid-19, notificado em 26 de fevereiro de 2020. Porém, menciona que os dados estão disponibilizados na Plataforma Integrada de Vigilância em Saúde do MS (Ivis), na qual ainda estão sendo disponibilizados até o momento, em http://plataforma.saude.gov.br/coronavirus/, embora o MS tenha passado a publicar diariamente os mesmos dados no Painel Coronavírus, em https://covid.saude.gov.br/ e, mais recentemente, também em outro painel, interativo, em https://susanalitico.saude.gov.br/extensions/covid-19_html/covid-19_html.html#/dashboard/.

Em 3 abril de 2020, o COE/SVS publicou o BE 3 e, nesse mesmo mês, editou outros números. No BE 14, publicado em 26 de abril, caracteriza-se a publicação como ‘Boletim Especial’, com modificações importantes em seu formato sem, contudo, deixar de apresentar as informações sobre a progressão da pandemia nos estados e no País.

Nesse período, há um destaque no BE 7, publicado em 6 de abril de 2020, no qual se nota uma mudança expressiva na condução do enfrentamento da pandemia, notadamente pela exposição dos conceitos de ‘distanciamento social ampliado’ e de ‘distanciamento social seletivo’, contrariando o que a OMS e a experiência internacional indicavam quanto ao distanciamento social. Isto, aparentemente, atendia às pressões para ‘flexibilizar’ essa medida, em favor do retorno às atividades econômicas, e sobre a introdução do tratamento da Covid-19 com Cloroquina e Hidroxicloroquina, e revelava as divergências entre o Ministro da Saúde e a Presidência da República, que resultou na saída do Ministro em 16 de abril de 2020.

Dessa maneira, no BE 719, lê-se, na introdução, na seção Destaques:

A partir de 13 de abril, os municípios, Distrito Federal e Estados que implementaram medidas de Distanciamento Social Ampliado (DSA), onde o número de casos confirmados não tenha impactado em mais de 50% da capacidade instalada existente antes da pandemia, devem iniciar a transição para Distanciamento Social Seletivo (DSS). Os conceitos são apresentados neste boletim. Os locais que apresentarem coeficiente de incidência 50% superior à estimativa nacional devem manter essas medidas até que o suprimento de equipamentos (leitos, EPI, respiradores e testes laboratoriais) e equipes de saúde estejam disponíveis em quantitativo suficiente, de forma a promover, com segurança, a transição para a estratégia de distanciamento social seletivo conforme descrito na preparação e resposta segundo cada intervalo epidêmico. Em todos as Unidades Federadas, o Ministério da Saúde recomenda a adoção da estratégia de afastamento laboral.

Aqui se pode identificar um certo conflito de estratégias ou de ênfase nas medidas necessárias em cada situação. Em Destaques, do Boletim, fica patente o critério do percentual relativo à capacidade instalada, enquanto na tabela 1 do mesmo Boletim, em esquema adaptado de uma publicação do CDC-EUA (Centros de Controle e Prevenção de Doenças), de 2014, para pandemia de influenza, o ‘DSS’ está citado apenas nas situações de ‘Epidemias localizadas’ e em ‘Desaceleração’. Nota-se, igualmente, que não se considera a evolução da curva epidêmica em cada local e se dá ênfase à capacidade assistencial hospitalar, como critério aplicado para a definição das situações. Na data de publicação do BE 7, transcorridos 40 dias da notificação do primeiro caso confirmado no país, já se contavam 12.056 casos e 553 óbitos pela doença. Esse cenário impunha que as medidas de distanciamento social, que vinham sendo adotadas em algumas cidades mais afetadas, fossem mais rígidas para evitar o agravamento da pandemia nesses centros urbanos.

Atento ao risco a que estava sendo submetida a população, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) publicou uma nota pública em 8 de abril de 2020, sob o título ‘CNS defende manutenção de distanciamento social conforme define OMS’. Nessa nota, lê-se:

CNS, órgão legalmente responsável pelo monitoramento e fiscalização das ações do Sistema Único de Saúde (SUS), reafirma que o uso dos dados científicos sobre os meios de enfrentamento à pandemia é a melhor forma de encontrarmos respostas frente à crise. A nossa maior preocupação é com a preservação da vida da população brasileira e, por isso, seguimos reafirmando a necessidade de manutenção do isolamento social como método mais eficaz na prevenção à pandemia, conforme orientam a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) e a Organização Mundial da Saúde (OMS)20.

Na nota do CNS, informa-se que a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, do Ministério Público Federal, solicitou ao MS as fundamentações técnicas das novas orientações, acrescentando, dessa maneira, mais um capítulo às judicializações em torno de decisões do governo federal na pandemia da Covid-19.

As mudanças na condução da crise sanitária se fizeram sentir, não só na progressão mais rápida no número de casos confirmados da Covid-19, como também na atuação ainda mais tímida e errática do MS. De fato, em maio, a SVS editou somente três BE (números 15 a 17), publicados entre os dias 8 e 25 de maio de 2020. A partir daquele momento, até a primeira semana de junho, viveu-se a polêmica da ‘omissão’ de dados, que até então eram publicados e anunciados diariamente em entrevistas coletivas do MS. Com efeito, relata-se que, em 5 de junho, os dados sobre a Covid-19 ‘saíram do ar’. Disso resultou mais uma ‘medida cautelar’ do STF, expedida em 8 de junho de 2020, em decisão liminar relativa à ADPF impetrada por partidos políticos, associações e cidadãos,

Para determinar ao Ministro da Saúde que mantenha, em sua integralidade, a divulgação diária dos dados epidemiológicos relativos à pandemia (Covid-19), inclusive no sítio do Ministério da Saúde e com os números acumulados de ocorrências, exatamente conforme realizado até o último dia 04 de junho21.

Em junho de 2020, a SVS publicou apenas dois números do Boletim (18 e 19), nos dias 18 e 23 do mês, referentes às SE 26 e 27, com a particularidade de que não mais seriam editados pelo COE-Covid19, como se destacava no título dos boletins anteriores. Entre um e outro desses boletins, demonstra-se inicialmente uma provável ‘estabilização’ da evolução da pandemia, para, em seguida, reconhecer um aumento expressivo, de 22,0%, entre as SE 24 e 25. Naquele momento, contavam-se 1.067.579 casos e 49.976 óbitos pela doença. Outros 20,0% de aumento no número de casos confirmados seriam registrados em julho e publicados nos BE 20 e 21, nos dias 1º e 8 daquele mês. Digno de nota, nesses boletins, é a demonstração da interiorização da pandemia, em que o percentual decrescente de casos nas capitais, observado desde a SE 22, alcança 37,0% na SE 27, com 63,0% dos casos registrados em outros municípios22.

Problemas com a divulgação de dados epidemiológicos sobre a pandemia no Brasil, judicializações, falta de coordenação nacional entre o MS e as secretarias estaduais de saúde (declaração, em 6 de junho de 2020, do então secretário de ciência, tecnologia e insumos estratégicos do MS, suscitou uma nota de repúdio do Conselho Nacional de Secretários de Saúde - Conass, contra a acusação feita de manipulação de dados nos estados), mudança de dois ministros da saúde, problemas com as informações veiculadas na mídia e declarações e orientações contraditórias quanto à manutenção do distanciamento social e das medidas terapêuticas têm pontuado os mais de quatro meses de evolução da pandemia no País. Permeando esses desencontros, persiste a questão de quem argumenta a favor da flexibilização do distanciamento social por razões econômicas, desdenhando da grave crise sanitária e, especialmente, da dor das famílias que choram as mortes, muitas das quais poderiam ser evitadas.

Reconhece-se que o distanciamento social seria uma parte das medidas de vigilância em saúde que se deveriam implementar com firmeza e apoio dos três níveis de governo, sem, contudo, deixar de considerar a necessidade de uma ampla rede de proteção social, sobretudo para as populações mais vulneráveis, uma vez que a pandemia agudizou as grandes desigualdades sociais já existentes. Ressalta-se que informação, detecção de casos, restrição de viagens, entre outras medidas não farmacológicas, integradas e articuladas com ações de redução de riscos e atuação sobre os determinantes sociais da exposição e infecção pelo novo coronavírus poderiam fazer diferença positiva no enfrentamento desta pandemia. Em especial, contando com o apoio da rede de equipes da APS.

Dessa maneira, como foi referido, o SUS conta com uma extensa rede de unidades e profissionais que desenvolve ações de promoção da saúde da APS. A pandemia da Covid-19 tem suscitado em vários municípios, a atuação integrada da APS com a VE, e toda a rede do SUS para o enfrentamento da situação de saúde e social. Dá conta do conhecimento já acumulado nessa área o que se vê na publicação ‘Número Especial - Relatos de experiências locais da APS no Enfrentamento da Covid-19’, editado pelo periódico ‘APS em Revista’ e divulgado em 8 de junho de 2020. Nessa edição, foram relatadas várias experiências exitosas de resposta intersetorial articulada para o controle da pandemia, para provocar efeitos de saúde e de proteção social, inclusive com aplicação de tecnologias inovadoras com o teleatendimento. Revela, em síntese, a contribuição dessas experiências, o que se lê no editorial desse número especial:

Mesmo num ambiente de dificuldades que exige equipamentos, insumos, novos protocolos, saberes e fazeres, bem como vontade política para superar esta situação, os relatos demonstram claramente o compromisso pela proteção à vida e solidariedade, evidenciando o protagonismo da APS em mitigar a expansão do contágio e envolver as comunidades locais no esforço que é de todos e todas23.

Assinale-se, porém, que essas inciativas que tão bem incorporaram a VE em seu escopo de atuação foram adotadas apenas em alguns municípios por decisão da gestão local, em uma situação sanitária que exige coordenação e diretrizes nacionais claras, em tudo solidária com a defesa da vida e saúde da população de todo o território brasileiro.

Falso dilema entre economia e a Covid-19

Alguns autores têm abordado o tema do que se considera um ‘falso dilema’ entre reduzir o impacto da Covid-19 sobre a morbimortalidade por meio do distanciamento social e da restrição de circulação de pessoas e a manutenção de empregos24,25. Nota do Ministério da Economia, de maio de 2020, relaciona o impacto econômico diretamente com o distanciamento social, citando as restrições de consumo, o prolongamento do período de isolamento e os efeitos a longo prazo sobre a economia26. Algumas medidas para mitigar esse impacto econômico foram tomadas desde as primeiras semanas de março de 2020, porém, foi somente em 2 de abril de 2020 que o Congresso Nacional aprovou os termos da Lei nº 13.982, estabelecendo “medidas excepcionais de proteção social a serem adotadas durante o período de enfrentamento da emergência de saúde pública”27, incluindo-se o auxílio emergencial financeiro.

Começam a ser produzidos estudos do impacto da pandemia sobre os rendimentos da população socialmente vulnerável e sobre os efeitos das medidas de proteção adotadas. Um exemplo é o estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) com os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD Covid-19). Revelou-se “que 5,2% dos domicílios (cerca de 3,5 milhões) sobreviveram apenas com os rendimentos recebidos do auxílio emergencial (AE)”. Além disso, estimou-se que o AE “foi capaz de compensar cerca de 45% do impacto total da pandemia sobre a massa salarial”28.

A manutenção do distanciamento social por tempo suficiente para o controle da expansão da pandemia depende das políticas e programas de apoio social e econômico à população mais vulnerável ao seu impacto. A ausência de um apoio mais amplo e por maior tempo ou a sua insuficiência têm levado à flexibilização precoce das medidas de restrição de circulação de pessoas e à retomada de atividades comerciais. Essas, porém, não são questões simples. A pandemia agudizou os problemas da economia brasileira e tem comprometido as receitas fiscais do governo federal, de estados e municípios. Em junho de 2020, estimou-se deficit previsto para o setor público de 9,9% do PIB, e ocorreu aumento de despesas, notadamente para o enfrentamento da Covid-19. Para esta emergência de saúde pública, foram alocados R$ 44,2 bilhões, com pagamentos até 9 de junho de 28,1% desse montante. Da dotação global de R$ 404,1 bilhões, que inclui também os programas de transferência de renda e manutenção do emprego e auxílio financeiro a estados e municípios, apenas 33,6% tinham sido pagos até aquela data29.

Com curvas epidêmicas prolongadas, o Brasil e os EUA podem esperar maior impacto sobre a saúde da população e sobre a economia. A experiência de outros países com o distanciamento social, combinado com as ações de VE e testagem em massa, demonstrou que o descenso da curva epidêmica poderia ter se iniciado há muito mais tempo do que o que se observa no Brasil. Com efeito, a média de dias desde a confirmação do primeiro caso até a fase de descenso consistente da curva epidêmica foi de 79 dias, para países como Portugal, Espanha, Alemanha, Itália, França e Reino Unido, em contraste com a duração de quase 140 dias (de 26 de fevereiro a 14 de julho de 2020) da curva epidêmica brasileira, ainda sem sinal consistente de descenso.

As iniciativas adotadas para evitar o colapso do sistema de saúde de média e alta complexidade incluíram o aumento da disponibilidade de leitos hospitalares no SUS. Conforme consta dos registros do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), em maio de 2020, havia o total de 16.190 leitos sob a denominação ‘UTI adulto Covid-19’. Desses, 6.669 leitos estavam registrados como ‘Quantidade SUS’, sendo 67,8% cuja natureza era ‘Administração Pública’, e 32,2% sob a natureza ‘Entidades Empresariais’ e ‘Entidades sem Fins Lucrativos’30. Comparando-se os dados do CNES de maio 2020 com os de maio de 2019, observa-se que ocorreu aumento de 5,1% no número de leitos de UTI Adulto tipos II e III, enquanto o Painel de Leitos e Insumos para a Covid-19, do MS, informa a habilitação de 8.970 leitos de UTI e a distribuição de 6.41031. Na Portaria nº 568, de 26 de março de 2020, o MS estabeleceu o custeio para diária de leito de UTI para a Covid-19 em R$ 1.600,00, aproximadamente o dobro do valor para este tipo de internação hospitalar32. Essa medida de caráter excepcional, para a manutenção de leitos habilitados para a emergência de saúde pública, considera que pessoas internadas com Covid-19, em situação de maior gravidade, demandam cuidados intensivos diferenciados e permanência média mais elevada em comparação às internações por outros problemas de saúde. Contudo, é necessário assinalar que a assistência hospitalar especializada, dedicada a um grande número de casos graves, muitos deles evitáveis, consome os recursos públicos que seriam destinados ao enfrentamento da pandemia em outras áreas, sobretudo se considerarmos o cenário de recursos já insuficientes e com retardo na sua liberação29.

Considerando o que se apresenta, pergunta-se: a que serve a negação da gravidade da pandemia da Covid-19? Há clareza suficiente de que as verdadeiras intenções pela ‘flexibilização’ precoce do distanciamento social estejam relacionadas com o impacto sobre o desempenho econômico brasileiro? Ampliar a assistência hospitalar, como recurso de enfrentamento da pandemia, para redução de óbitos, sem considerar a importância da integração com as ações de VE para reduzir riscos e a progressão da pandemia cumpre, de fato, que objetivos? Essas e outras perguntas podem contribuir para refazer a história da evolução da pandemia da Covid-19 no Brasil, que precisa ser estudada e documentada, para que sirva de orientação e de preparação para evitar erros em oportunidades futuras.

Considerações finais

As contribuições de organizações sociais diversas, das instituições públicas de ensino superior e de pesquisa - com destaque para as universidades federais e as de âmbito estadual, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) - e de instituições governamentais relacionadas com a área da saúde têm sido notáveis na pandemia da Covid-19 no Brasil, assim como as contribuições da OMS e da Organização Pan-Americana da Saúde, produzindo informações em bases científicas e análises epidemiológicas, articulando nacional e internacionalmente iniciativas em pesquisas diversas, e informando e apoiando a população. Um expressivo conjunto dessas instituições lançou recentemente (8 de julho de 2020) um Plano Nacional de Enfrentamento à Pandemia da Covid-19, com contribuições das organizações da Frente pela Vida33.

Destacam-se, nesse Plano, entre vários aspectos de importância, a necessidade de obter adesão popular às medidas de prevenção, promovendo a participação social. Contudo, os desencontros entre as orientações do MS, da Presidência da República e de governos estaduais e municipais provocam maior perplexidade e baixa adesão da população; e o indispensável apoio à produção científica e tecnológica tem enfrentado grave crise de desfinanciamento nos últimos anos. O desapreço pelas informações epidemiológicas e pelas evidências científicas se revelou, desde o início da pandemia no País, pelas sucessivas declarações de várias autoridades governamentais. Ou seja, a crise política que o Brasil atravessa tem contribuído consideravelmente para agravar a crise sanitária em todo seu percurso. O Plano construído pela Frente pela Vida pode vir a dar inestimável contribuição para fomentar a união da nossa sociedade na perspectiva de impedir novos descaminhos da gestão da crise sanitária, que está resultando em uma situação tão grave, que colocou nosso país entre os dois primeiros mais atingidos por esta pandemia.

Ademais, os que detratavam o SUS, os que foram responsáveis pelo desfinanciamento a que tem sido submetido há décadas, os que não valorizaram sua extensa rede de unidades e serviços, que atende justamente a população mais pobre do País, os que não acreditaram que o enfrentamento da pandemia da Covid-19 precisa ser feito com a integração da VE e APS a todo o complexo conjunto de medidas, ações e serviços para a atenção à saúde e para o apoio social, podem agora reconhecer que o SUS, com todas as suas limitações, tem evitado um cenário ainda mais ameaçador para a situação do momento. Na medida em que a sociedade brasileira reconhece o valor do SUS como bem público, em um país desigual, isso pode constituir força política necessária para promover a sua consolidação e financiamento adequado, garantindo o preceito constitucional do direito universal à saúde, como assinalaram Costa e cols.34 em recente editorial da revista ‘Saúde em Debate’. Dessa maneira, superar as suas dificuldades, aprimorar a gestão e afirmar o SUS como um sistema universal e igualitário, como bem se assinala no Plano de Enfrentamento citado33, é o que deve nos inspirar e motivar no sentido do seu fortalecimento.

  • Suporte financeiro: não houve
  • *
    Orcid (Open Researcher and Contributor ID).

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Ago 2021
  • Data do Fascículo
    Dez 2020

Histórico

  • Recebido
    19 Jul 2020
  • Aceito
    19 Set 2020
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