Open-access Necessidades de saúde da população rural: como os profissionais de saúde podem contribuir?

Health needs of the rural population: how can health professionals contribute?

RESUMO

A urgência de ampliar o saber acerca das condições de saúde, de vida e dos anseios das famílias rurais, bem como as ações que os profissionais de saúde estão realizando para contemplar a prevenção de doença e a promoção da saúde, fundamentou a realização dessa investigação, que buscou compreender o que é necessário para ter saúde na perspetiva da população rural e como os profissionais podem contribuir para esse processo. Pesquisa qualitativa realizada com 57 agricultores, que residiam em 25 municípios do extremo sul do Rio Grande do Sul. Utilizou como técnicas de coleta de dados a observação sistemática, o registro fotográfico, a coleta de plantas medicinais e a entrevista semiestruturada. Os dados revelaram que as expectativas das famílias rurais em relação às ações dos profissionais de saúde configuram-se como instauradoras de necessidades em saúde nesses territórios, de obter uma relação mais próxima com os serviços, de que suas experiências vividas sejam compartilhadas, reconhecidas e valorizadas. As necessidades concatenam-se com a construção de espaços de relação e encontro, nos quais sejam oportunizados compartilharem experiências, servindo de suporte para superar as dificuldades individuais enfrentadas.

PALAVRAS-CHAVE Saúde da população rural; Saúde pública; Participação da comunidade; Plantas medicinais; Agroquímicos

ABSTRACT

The urgency to broaden the knowledge about the health conditions, life, and desires of rural families, as well as the actions that health professionals are taking to contemplate disease prevention and health promotion underpinned this research. It sought to understand what is needed to have health from the perspective of the rural population, and how professionals can contribute to this process. Qualitative research conducted with 57 farmers, who lived in 25 municipalities of the extreme south of Rio Grande do Sul. It used as data collection techniques systematic observation, photographic record, collection of medicinal plants and semi-structured interview. The data revealed that the expectations of rural families regarding the actions of health professionals are configured as establishing health needs in these territories, to obtain a closer relationship with the services, that their lived experiences are shared, recognized, and valued. The needs are concatenated with the construction of spaces of relationship and encounter, in which they have opportunities to share experiences, serving as support to overcome the individual difficulties faced.

KEYWORDS Rural health; Public health; Community participation; Plants medicinal; Agrochemicals

Introdução

As populações rurais vivenciam, cotidianamente, desafios e obstáculos para acessarem os serviços de saúde, proporcionalmente mais complexos, se comparadas às urbanas. Contemporaneamente, as necessidades de saúde dessas populações seguem para uma proposição de cuidados já dispensados às demais. Ressalta-se a imprescindibilidade de direcionar ações e iniciativas que reconheçam as especificidades desses territórios; objetivando o acesso aos serviços de saúde; a redução de riscos decorrentes dos processos de trabalho e das inovações tecnológicas agrícolas; a melhoria dos indicadores e da qualidade de vida, aproximando essas populações da integralidade do cuidado1.

As diferentes experiências de vida, de trabalho e do processo saúde doença, no contexto rural, corroboram para uma visão ampliada de saúde, não limitada à ausência de doenças. Há uma compreensão crítica do contexto, que permite reconhecer as desigualdades sociais e mobilizar as lutas por seus ideais e necessidades1.

Nessa perspectiva, a luta dos movimentos sociais do campo têm dado maior visibilidade a esse tema, aprovando, em 2011, a Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo, da Floresta e das Águas (PNSIPCFA), que visa atender às necessidades de saúde, melhorar os indicadores e a qualidade de vida da população rural2. No entanto, destaca-se o fato de não se ter um conceito consistente para definir o rural, que usualmente é delineado pela localização e densidade populacional, tendo como principal parâmetro não ser urbano ou metropolitano, o que torna imprescindível reconceituá-lo, objetivando melhor representar esses territórios, ampliando a confiabilidade de censos e políticas públicas3.

Entende-se que valorizar a integralidade do cuidado, olhando para o território, ouvindo as expressões populares, compreendendo os valores das pessoas e de suas necessidades de saúde, torna-se relevante nas ações dos profissionais de saúde que atuam nesse contexto. Essa construção contribui para alargar espaços dialógicos com as comunidades, inserindo e fortalecendo as ações de saúde, de promoção e prevenção.

Percebe-se a urgência de ampliar o saber no que tange às condições de saúde das famílias rurais, seus anseios, condições de vida e as ações que os profissionais de saúde estão realizando para contemplar a prevenção de doença e a promoção da saúde. Emergem, assim, gradativas denúncias de vulnerabilidade e exposição dessa população aos agrotóxicos e à migração. Temas que expõem contradições em relação ao modo de produção, despertando para a temática de investigar o que a população rural considera importante para ter saúde nesse território. Diante disso, este estudo busca compreender o que é necessário para ter saúde na perspetiva da população rural, e como os profissionais podem contribuir para esse processo.

Metodologia

Consiste em um recorte do banco de dados do projeto ‘Autoatenção e uso de plantas medicinais no Bioma Pampa: perspectivas para o cuidado de enfermagem rural’ desenvolvido pelo grupo de pesquisa Saúde Rural e Sustentabilidade da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), em parceria com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Clima Temperado. O projeto recebeu a aprovação do Comitê de Ética da Faculdade de Enfermagem da UFPel, protocolo 076/2012. Os participantes ingressaram na amostra ao assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Realizou-se um estudo qualitativo, com a utilização das seguintes técnicas de coleta de dados: observação sistemática4, escolhida por permitir a coleta de informações do entorno físico e social do território; registro fotográfico; coleta de plantas medicinais e entrevista semiestruturada. As entrevistas foram gravadas em áudio, abordaram questões relacionadas com o contexto sociocultural, sistema de cuidado popular e o uso das plantas no cuidado. Os participantes foram identificados pelas letras ‘A’ de agricultor, seguida pela ordem de realização da entrevista no município e pelas letras iniciais de cada município, a fim de garantir seu anonimato.

Os dados foram coletados de 2014 a 2016, a partir de 57 participantes indicados pela Secretaria de Desenvolvimento Primário do Município e pela Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural, por serem reconhecidos no contexto como conhecedores de práticas de cuidado em saúde.

O local de estudo foi o domicílio, na área rural dos municípios de Aceguá, Amaral Ferrador, Arroio do Padre, Arroio Grande, Candiota, Canguçu, Capão do Leão, Cerrito, Chuí, Cristal, Herval, Hulha Negra, Jaguarão, Morro Redondo, Pedras Altas, Pedro Osório, Pelotas, Pinheiro Machado, Piratini, Rio Grande, Santana da Boa Vista, Santa Vitória do Palmar, São José do Norte, São Lourenço do Sul e Turuçu.

A análise seguiu os passos propostos por Minayo5. Após a transcrição, a organização e a tipificação do material recolhido no campo, analisaram-se, neste estudo, os dados oriundos das questões: o que é necessário para ter mais saúde no meio rural e como os profissionais de saúde podem contribuir? Procedeu-se à leitura atenta das respostas obtidas, que foram reorganizadas em dois grupos homogêneos: expectativas quanto à estrutura e organização dos serviços de saúde rural e expectativas quanto à capacidade e competência profissional.

Na sequência, as leituras horizontais de impregnação deram lugar a uma elaboração de subconjuntos: Necessidade de ampliar a rede de saúde rural com maior oferta de Unidades Básicas de Saúde e profissionais; Necessidade de abordar questões ligadas ao uso de agrotóxico e Necessidade de conhecer plantas medicinais e utilizar no cuidado. Neste artigo, discutiram-se as duas últimas categorias que abordam a expectativas quanto à atuação profissional.

Resultados e discussões

Os resultados serão apresentados em duas categorias na perspectiva de objetivar a compreensão, a saber: Necessidades de abordar questões ligadas ao uso de agrotóxico e Necessidade de conhecer plantas medicinais e utilizar no cuidado. Entretanto, considera-se essencial contextualizar o tempo e espaço dos participantes.

Apresentando o contexto socioeconômico dos participantes

Participaram deste estudo 57 pessoas, residentes em 25 municípios do extremo sul do Rio Grande (RS), com idades entre 32 e 86 anos, sendo 42 mulheres e 15 homens. Quanto ao grau de escolaridade, houve predomínio do ensino fundamental incompleto com 63%, sendo que 14% possuíam ensino fundamental completo; 7%, ensino médio completo; 3,5%, ensino médio incompleto; outros 3,5%, ensino superior completo e 9% eram analfabetos. Em relação à religião: 35 professaram serem católicos; 8, espíritas, 7, evangélicos e 7 não responderam.

A principal fonte de renda era proveniente da aposentadoria rural, seguida pela agricultura e pecuária, com uma variação de um a oito salários-mínimos. Esse panorama justifica-se dada a pouca extensão territorial das propriedades; a baixa disponibilidade de recursos financeiros; a assistência técnica e extensão rural insuficiente; a falta de regulamentação dos processos artesanais de produção de alimentos; a dificuldades de acesso ao mercado, entre outros, sendo essas questões reconhecidas como limitadoras do potencial de competitividade e desenvolvimento das pequenas propriedades rurais6.

Esses participantes vivem no Bioma Pampa, paisagem associada à história, que forneceu a base para a cultura e a identidade do gaúcho e que corresponde a, aproximadamente, 176.496 quilômetros quadrados. No Brasil, restringe-se ao estado do Rio Grande do Sul, ocupando 63% do território, com uma área aproximada de 2% do território nacional, abrangendo a metade sul do estado7.

Em toda a área de abrangência do Bioma Pampa, assim como nos demais biomas brasileiros, a atividade humana desenvolveu-se utilizando os recursos locais e os adaptando às atividades extrativistas e agropecuária. Nesse, a biodiversidade encontrada propiciou a utilização como pastagem natural ou ocupada com atividades agrícolas, principalmente o cultivo do arroz, seguido pela soja e pelo trigo, a partir da década de 19608. Segundo dados do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade9, em se tratando de áreas de proteção integral, o Pampa e a Caatinga são os biomas que apresentam os piores indicadores de conservação devido às atividades impostas e ao pouco conhecimento dessa biodiversidade.

Nesse ínterim, considera-se que as populações desses territórios complexos desenvolveram uma riqueza étnico-cultural construída desde a colonização, entre disputas e conflitos enfrentados, atenuados, muitas vezes, pela habilidade de sobrevivência nesses amplos conjuntos de ecossistemas. Os quais, devido a essas características impostas pelo ambiente e pela dinâmica cultural, permitiram às famílias desenvolveram redes de apoio, saberes e práticas que refletem na sua forma de viver e de cuidar10. Infere-se que o respeito e a valorização desses saberes e práticas de saúde perpassam pela preservação dos biomas.

Observou-se que, no território estudado, as moradias não são apenas o local físico que delimita a intimidade e oferece segurança, mas um espaço no qual ocorrem as interações humanas e transcorre o cotidiano familiar de viver junto. Locais de resistência às imposições naturais e sociais11. Essas moradias eram divididas com a produção agropecuária, com animais domésticos, aves, equinos, bovinos e ovinos; em que ocorrem as experiências de cuidado, que determinam as expectativas de saúde das famílias rurais.

A região Sul é a segunda do País com maior número de municípios rurais, 26%12. Os municípios com predominância de população rural, no Brasil, compartilham problemas, como menor esperança de vida ao nascer, podendo chegar a 1,63 ano a menos do que nos municípios com maior população urbana12. A mortalidade infantil nesses territórios, também, é maior, chegando a uma diferença de 3,96 óbitos para cada mil nascidos vivos12. Destaca-se que índices como Índice de Desenvolvimento Humano (IDH); proporção de jovens com ensino fundamental completo; pessoas em domicílios com abastecimento de água e esgotamento sanitário inadequado; domicílios com banheiro e água encanada, e o número de população de baixa renda, todos esses são piores em municípios com predominância da população rural do que os com população urbana12, fazendo com que eles possuam similaridades que os aproximam, mesmo localizando-se em regiões geográficas distantes.

Necessidades de abordar questões ligadas ao uso de agrotóxico

A expectativa é que os profissionais de saúde abordem questões ligadas ao uso de agrotóxico, sendo que as sugestões nessa direção se deram por: realizarem palestras educativas, orientação sobre o malefício dos agrotóxicos à saúde e ao descarte correto das vasilhas, sendo citada por 17 dos participantes, tendo sido o item mais expressivo.

Os profissionais de saúde poderiam fazer palestras para reduzir os agrotóxicos. A4SJN.

Interagir com a população, para ter menos agrotóxico. A3AR.

[...] Um dos grandes exemplos seria a prevenção, o cuidado dos agrotóxicos, que a gente fala bastante né... mas talvez trazer umas pessoas especialistas pra falar isso aí né... Eu acredito que já melhora... é uma das coisas né... A1C.

Menos agrotóxico e ser mais natural possível! A2T.

Esse dado reflete a preocupação da população rural acerca da dificuldade de acesso à informação sobre os malefícios do uso de agrotóxicos, bem como o manejo correto das embalagens após o uso. Atribui-se esse dado à maior discussão do assunto na mídia e à intensificação do uso desses produtos na produção no País, bem como ao fato de essas famílias trabalharem e viverem em torno das plantações, em sua grande maioria de monocultura.

Estudos13-16 identificaram que as populações que vivem em torno das plantações de monocultura têm recebido agrotóxicos por contiguidade em suas casas, pela água dos canais de irrigação; pelo ar, na pulverização aérea e por alimentos contaminados. Essas famílias veem suas vidas e projetos ameaçados pela força do agronegócio que as circundam, as contaminam e as expulsam do seu território, desconsiderando a cultura local e os espaços socialmente construídos em consonância com seu bioma. Nesses territórios, identifica-se a fragilidade das práticas de manejo tradicional e a vulnerabilidade da população, que busca no serviço de saúde apoio, assim com o almejado pelas famílias deste estudo.

No entanto, destaca-se que o Estado tem sido eficaz em apoiar o agronegócio, sua expansão e produção de impactos socioambientais; ao mesmo tempo que propaga a ideologia de responsabilização individual pelos riscos coletivos, tirando o foco da falta de controle dos agrotóxicos utilizados, o que favorece a utilização de produtos já banidos mundialmente; ao mesmo tempo que oferta uma política social incapaz de garantir os direitos dos cidadãos, principalmente, nos locais em que governos locais competem entre si para transformar as suas cidades ou regiões atrativas ao agronegócio13-16.

Soma-se a isso, nesse momento, a aprovação do Projeto de Lei nº 6.299/02, que, entre outras prerrogativas, visa substituir o termo agrotóxico por defensivo fitossanitário, bem como passa a considerar necessário apenas avaliação de um órgão regulador, o Ministério da Agricultura, para a liberação de novos produtos; prerrogativa que, atualmente, tem a competência compartilhada entre três ministérios: Agricultura, Saúde e Meio Ambiente. Entende-se que a conjuntura e o modelo agrário da monocultura estão em consonância com o uso de agrotóxico, unindo esforços em uma clara tentativa de mascarar a nocividade desse modelo, afastando informações essenciais do consumidor, ao mesmo tempo que desconsidera os impactos à saúde e ao meio ambiente no processo de aprovação de novas substâncias, pontos considerados importantes aos participantes deste estudo, os quais relataram que, para terem mais saúde na área rural, faz-se necessário:

Conscientizar mais sobre o uso dos agrotóxicos, contaminação ambiental e das águas. A2C.

Menos agrotóxico, água boa. A1PA.

Tem muito veneno, água contaminada, contaminação ambiental e desmatamento. A1AF.

Entende-se que o projeto de lei se constrói na contramão das reivindicações das comunidades rurais dedicadas à agroecologia e de alguns profissionais da acadêmica, que questionam a exigência de sucessivas provas quantitativas para que o risco dos agrotóxicos seja reconhecido como problema; ao mesmo tempo que sustentam que não há produtos seguros nem proteção em valores máximos de resíduos17. A literatura científica13,15,17,18 aponta a nocividade desses biocidas; não sendo necessário contar mortos e adoecidos para compreender que é imprescindível controlar o uso e superar o modelo químico-dependente de produção de alimentos19.

Estima-se que, para cada caso notificado de intoxicação por agrotóxicos, haja 50 outros que não aparecem nas estatísticas. Estudo identificou que 54% dos agricultores investigados relataram não procurar assistência quando apresentam sintomas agudos de intoxicação; e 43,3% lembravam de ter um episódio em sua vida13. Esse panorama é mais grave quando busca-se conhecer os efeitos crônicos da exposição ocupacional ou ambiental, que são menos conhecidos e mais difíceis de estabelecer um nexo de relações com casos de cânceres, alterações da reprodução, quadros neurológicos centrais e periféricos, hepatopatias ou doenças hematológicas, respiratórias, renais, entre outras14.

O Sistema Único de Saúde (SUS) tem exercido uma ação tênue em termos da vigilância em saúde das populações expostas aos agrotóxicos. Evidencia-se a necessidade de facilitar o acesso aos serviços de saúde, considerando-se as especificidades dos espaços rurais; de capacitar os serviços para identificar e caracterizar a exposição ocupacional e ambiental; de estimular o desenvolvimento e universalizar o acesso à avaliação por biomarcadores, bem como de fomentar a produção de conhecimento sobre as exposições múltiplas e em baixas doses, já que, muito raramente, encontra-se a exposição a apenas um ingrediente ativo16.

Quanto aos profissionais de saúde, destaca-se a importância de olharem para o território e ouvirem o que a população expressa ser suas necessidades de saúde, pois, de outro modo, corre-se o risco de atuarem sobre os programas propostos pelo Ministério da Saúde, sem atingirem as necessidades da população rural, contribuindo para perpetuação de problemas históricos dos territórios rurais, de invisibilidade e de não atendimentos de suas necessidades.

Diante do exposto, entende-se que são necessárias a sensibilização e a capacitação dos profissionais de saúde sobre o tema, bem como a inclusão de ações intersetoriais, com aproximação de outras políticas públicas e serviços de saúde, como o Centro de Referência em Saúde do Trabalhador, com vistas ao fortalecimento das ações de vigilância à saúde. Por conseguinte, ressalta-se a importância de atuar em conjunto com a comunidade, assumindo novos papéis e processos de trabalho, que permitam devolver a complexidade e tirar o status de natural da utilização de agrotóxico, revelando o que existia antes de sua introdução, resgatando o modo de viver e de produzir próprio de cada grupo cultural.

Nesse processo, o Estado está imbricado com a reprodução do capital, sendo os agricultores também vítimas do discurso da Revolução Verde, e que urge a necessidade de implementar alternativas como a agroecologia, que possibilita construção de um mundo mais solidário e verdadeiramente sustentável15. Para isso, há a necessidade de ampliar as ações de saúde local, centrando-as nas necessidades de saúde da comunidade, que é possível com o diálogo entre os serviços de saúde, os movimentos sociais e os trabalhadores rurais, e o trabalho interprofissional. Movimento que corroborará o rompimento da perspectiva da atuação focada nos agravos à saúde, passando a ser centrada no usuário e na comunidade14.

Essa compreensão da saúde inclui a perspectiva intersetorial, em que a educação, o modo de produção, a interação social, a produção de alimentos com qualidade sejam temas de domínio dos profissionais de saúde em interface com a comunidade para assim fortalecer a inclusão de ações educativas de prevenção e promoção à saúde, com esclarecimentos sobre os riscos e danos dos usos dos agrotóxicos.

Necessidade de conhecer plantas medicinais e utilizar no cuidado

Os dados evidenciaram que as famílias de agricultores consideram necessário que os profissionais de saúde conheçam mais sobre plantas medicinais e utilizem no cuidado, para ter mais saúde no meio rural, conforme apontam as falas a seguir:

Precisa que os médicos conheçam as plantas. A3MR.

Diálogo sobre planta. A2PM.

Capacitação sobre plantas. A1P.

Que os profissionais saibam reconhecer as plantas. A1C.

Esse dado está em acordo com estudos realizados com populações rurais que constataram a reivindicação de um modelo de atenção que atenda às suas necessidades de saúde, priorizem o modo de viver e produzir, dialogue com os seus saberes e práticas tradicionais9-14.

As práticas de uso de plantas medicinais e medicamentos fitoterápico no território rural tem grande aceitação, o que reforça a importância da consolidação da PNSIPCFA, que reconhece a dívida histórica do Estado brasileiro com a saúde dessas populações; apresenta a necessidade de superação do modelo de desenvolvimento econômico e social, na busca de relações homem-natureza responsáveis e promotoras da saúde e a extensão de ações e serviços de saúde que atendam às populações respeitando suas especificidades14.

Essas práticas têm como destaque o cuidado humanizado, a relação de respeito à natureza, a concepção holística de saúde e a solidariedade. Inúmeros saberes balizam o seu desenvolvimento, que tem origem na aprendizagem familiar, nas gerações que lhes antecederam, no acesso e socialização de saberes nos grupos de mulheres e no movimento social, bem como nas experiências diversas de vida20.

No entanto, o conhecimento popular sobre o processo saúde-doença e suas diversas formas de manifestação, muitas vezes, não é valorizado pelos profissionais de saúde, não sendo sequer ouvido. Outro fator a se considerar é o reduzido número de profissionais de saúde que possuem conhecimento e capacitação para prescrever plantas medicinais e medicamento fitoterápicos21.

Para que as plantas medicinais possam fazer parte do arsenal terapêutico do profissional, recomenda-se investir na formação que contribua para a adoção de uma postura de interação com as pessoas, de reconhecimento do seu saber acerca das plantas medicinais e do cuidado21; além de priorizar outras formas de relacionar-se com a população, que inclui escuta, vínculo, troca de saberes e práticas, respeito ao conhecimento popular, interação e envolvimento dos profissionais de saúde e comunidade.

Estudo21 de avaliação de serviços, no qual a fitoterapia já foi implementada, identificou maior participação e engajamento de usuários em atividades como palestras, oficinas e construção de canteiros. Esse comportamento foi atribuído ao envolvido nas atividades, no reconhecimento de suas práticas e saberes e por serem chamados a participar de atividades em que se sentem capazes de interagir, fato que não é recorrente no dia a dia dos serviços que fazem uso das medicações alopáticas.

A inclusão de plantas medicinais e da fitoterapia no serviço de saúde colabora para o cuidado mais autônomo, participativo e emancipador; sua consolidação implica a mudança do modelo assistencial, a adoção de ações de gestão e de planejamento, visando organizar os serviços, capacitar profissionais.

Considerações finais

Nesses territórios, as expectativas das famílias rurais em relação às ações dos profissionais de saúde configuram-se como instauradoras de necessidades em saúde: de obter uma relação mais próxima com os serviços, e de que suas experiências vividas sejam compartilhadas, reconhecidas e valorizadas. As necessidades concatenam-se com a construção de espaços de relação e encontro, nos quais sejam oportunizados compartilhar experiências, servindo de suporte para superar as dificuldades individuais enfrentadas.

O aprendizado e a troca de experiências, a partir de uma relação intersubjetiva, que permita a negociação e a liberdade de ação, têm sido apontados como possibilidade balizadora da atuação profissional, que contemplem as necessidades de saúde das comunidades rurais e contribuam para a consolidação da PNSIPCFA e Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC).

As atividades educativas requerem que as comunidades rurais participem ativamente desde o planejamento das ações até a tomada de decisões sobre as necessidades de saúde e utilização dos recursos, bem como, colaborem para a redução da dependência de cuidado curativo e da alta tecnologia.

Essa perspectiva demanda que os profissionais de saúde contribuam para o empoderamento da população rural, de forma que possam assumir maior responsabilidade na resolução dos problemas de saúde dos indivíduos e comunidade.

  • Suporte financeiro: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2019

Histórico

  • Recebido
    13 Abr 2019
  • Aceito
    24 Ago 2019
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