RESUMO
O estudo avaliou o desempenho resiliente quanto à continuidade da atenção e ao cuidado longitudinal, às Doenças Crônicas Não Transmissíveis (hipertensão arterial sistêmica e Diabetes Mellitus) pelas unidades de atenção básica à saúde de uma região vulnerável do município do Rio de Janeiro, durante a pandemia da Covid-19. Trata-se de um estudo transversal, de métodos mistos, de abordagem quantitativa e qualitativa. Apesar de a interrupção total ou parcial potencialmente expor os usuários a complicações agudas e crônicas, o estudo aponta que as estratégias desenvolvidas pelo primeiro nível de atenção das unidades básicas de saúde do município foram efetivas para a redução de internações por essas enfermidades, demonstrando um desempenho resiliente.
PALAVRAS-CHAVE
Continuidade da assistência ao paciente; Doenças Crônicas Não Transmissíveis; Covid-19; Gestão da informação em saúde; Sistema Único de Saúde
ABSTRACT
The study evaluated the resilient performance in terms of continuity of care and longitudinal care for Noncommunicable Chronic Diseases (systemic arterial hypertension and Diabetes Mellitus) by primary health care units in a vulnerable region of the city of Rio de Janeiro, during the COVID-19 pandemic. It is a cross-sectional mixed methods study, with a quantitative and qualitative approach. Despite the total or partial interruption potentially exposing users to acute and chronic complications, the study points out that the strategies developed by the first level of care of the basic health units in the municipality were effective in reducing hospitalizations for those diseases, demonstrating a resilient performance.
KEYWORDS
Continuity of patient care; Noncommunicable diseases; COVID-19; Health Information management; Unified Health System
Introdução
A resiliência dos sistemas de saúde é ligada à capacidade de adaptação cotidiana, usada para atender adequadamente ao repentino aumento da pressão sobre a demanda acerca dos serviços causado por eventos disruptivos (como epidemias, surtos e outros desastres que afetam a saúde da população, direta ou indiretamente), mantendo, ao mesmo tempo, o funcionamento, a segurança, a qualidade e a disponibilidade dos serviços11 Hollnagel E, Woods DD, Leveson N. Resilience Engineering: Concepts and Precepts. Aldershot, England; Burlington, VT: Ashgate; 2006.. A resiliência é, portanto, uma habilidade que deve ser desenvolvida continuamente, e não apenas em períodos de crises, especialmente no caso dos sistemas públicos como o Sistema Único de Saúde (SUS).
A recente pandemia da Covid-19 foi um desses eventos repentinos que pôs à prova a resiliência dos sistemas de saúde em todo o mundo – e, em especial, no Brasil, que foi um dos mais afetados pela doença. A fim de mobilizar recursos para o enfrentamento da pandemia, diversos programas e serviços precisaram ser paralisados22 Truche P, Campos LN, Marrazzo EB, et al. Association between government policy and delays in emergent and elective surgical care during the COVID-19 pandemic in Brazil: a modeling study. The Lancet Regional Health – Americas. 2021; 3:100056., ao mesmo tempo que leitos ofertados originalmente a diferentes tipos de agravos foram destinados ao tratamento de pacientes mais severos da Covid-1933 Duarte LS, Shirassu MM, Atobe JH, et al. Continuidade da atenção às doenças crônicas no estado de São Paulo durante a pandemia de Covid-19. Saúde debate. 2021; 45(esp2):68-81..
A Atenção Primária à Saúde (APS) também foi afetada pela pandemia, especialmente no que tange ao acompanhamento longitudinal e contínuo de Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT), no sentido de que o monitoramento dos usuários foi prejudicado pelas medidas de distanciamento social, por afastamentos da força de trabalho pela própria doença, remanejamento de recursos humanos e financeiros, entre outros motivos44 Cabral ERM, Bonfada D, Melo MC, et al. Contribuições e desafios da Atenção Primária à Saúde frente à pandemia de COVID-19. InterAmerican Journal of Medicine and Health. 2020; 3:1-12.sistematizada e equânime, à maior demanda de saúde no âmbito individual e coletivo. O Brasil assume compromisso com uma proposta de vigilância em saúde voltada para a infecção humana pelo Sars-CoV-2 (infecção respiratória pelo novo coronavírus.
As quatro DCNT de maior incidência na população (doenças cardiovasculares, cânceres, doenças pulmonares crônicas e diabetes) levam a óbito três em cada cinco pessoas em todo o mundo. Os países da América Latina e do Caribe enfrentam a dupla carga de doenças, pois têm que lidar com as DCNT, principalmente em populações vulneráveis, aliado aos problemas de saúde mental, como a depressão, que tem aumentado de forma acelerada. Esse cenário sofreu ainda mais pressão ante os efeitos da pandemia sobre o SUS55 Macinko J, Dourado I, Guanais F. Doenças Crônicas, atenção primária e desempenho dos sistemas de saúde: Diagnósticos, instrumentos e intervenções. Publicações. 2011.,66 Azevedo ALS, Silva RA, Tomasi E, et al. Doenças crônicas e qualidade de vida na atenção primária à saúde. Cad. Saúde Pública. 2013; 29(9):1774-82..
Considerando que a APS é estratégia essencial no acompanhamento de DCNT, este estudo explora os efeitos da pandemia da Covid-19 sobre o acompanhamento longitudinal de usuários acometidos de Hipertensão Arterial Sistêmica (HAS) e Diabetes Mellitus (DM), com o objetivo de identificar instâncias de resiliência e fragilidade na APS durante a pandemia da Covid-19.
Material e métodos
Desenho da pesquisa
O presente estudo segue um desenho transversal, de métodos mistos (de abordagem quantitativa e qualitativa), situado na Área Programática (AP) 3.1 do município do Rio de Janeiro.
A etapa quantitativa do estudo, cujas análises foram realizadas com o apoio da plataforma R, utilizou dados secundários provenientes dos sistemas de informação da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro (SMS-RJ). A etapa qualitativa foi baseada em entrevistas em profundidade com os gestores e profissionais técnicos de gestão da Coordenadoria de Área Programática (CAP), em que a pesquisa foi realizada.
O presente artigo foi elaborado de acordo com as diretrizes da EQUATOR Network, o checklist Strengthening the Reporting of Observational Studies in Epidemiology (STROBE)77 Field N, Cohen T, Struelens MJ, et al. Strengthening the Reporting of Molecular Epidemiology for Infectious Diseases (STROME-ID): an extension of the STROBE statement. The Lancet Infectious Diseases. 2014; 14(4):341-52..
Essa pesquisa foi submetida e aprovada no Comite de Ética em Pesquisa sob o parecer 2.127.012.
Ambiente de pesquisa
A pesquisa foi desenvolvida na CAP 3.1, escolhida por ser representativa e por refletir o contexto sanitário do município do Rio de Janeiro, contando com 32 unidades de saúde, ter o maior número de equipes (com 218) e possuir grandes áreas de vulnerabilidade social, econômica e ambiental e desigualdade social.
Segundo dados do último censo (2010) realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a AP 3.1 abrange uma área de 85,36 km² e densidade demográfica de 10.386 habitantes/km², possuindo 886.551 residentes, dos quais, 80% com cobertura da Estratégia Saúde da Família (ESF), com um total de 714.598 cadastrados, de acordo com o relatório de cadastros individuais do e-SUS AB (dados informatizados dos pacientes atendidos pela APS do SUS) de dezembro de 2021. Dentre as áreas cobertas pela CAP 3.1 identifica-se Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) extremo, o Jardim Guanabara que tem o maior IDH da área atendida com (0,963), ocupando o 3º lugar (de 126 bairros) do município do Rio de Janeiro, e o Complexo do Alemão que ocupa o 126º lugar (último) do município com 0,711. Ao analisar o Índice de Desenvolvimento Social (IDS), que contempla as dimensões saneamento básico, serviço de coleta de lixo, banheiro para moradores, analfabetismo e renda média, a região conta com um IDS de 0,518, sendo uma das áreas mais vulneráveis da cidade88 Secretaria Municipal de Saude do Rio de Janeiro. Relatório Anual de Gestão 2021. 2021. p. 223..
Procedimentos de coleta
ETAPA QUANTITATIVA
Para a etapa quantitativa, foram coletados dados referentes ao número de consultas realizadas pelas 32 unidades de APS que estão sob a gestão da CAP 3.1 da SMS-RJ no departamento de informações da CAP. Os dados referem-se ao número de atendimentos realizados a pacientes com HAS e DM como comorbidades que impactam diretamente as internações sensíveis à atenção básica.
ETAPA QUALITATIVA
A etapa qualitativa baseou-se em entrevistas semiestruturadas, que ocorreram em dois momentos: no primeiro, realizaram-se entrevistas com os gerentes e/ou responsáveis técnicos das 32 unidades da CAP 3.1; no segundo, para a maior compreensão do cenário epidemiológico, foram feitas entrevistas em profundidade com oito gestores e técnicos da gestão da CAP 3.1, todos atuantes na gestão dos sistemas de informação e geoprocessamento, responsáveis por operar os bancos de dados e gestão dos sistemas de informação de todas as unidades de saúde adscritas na CAP 3.1. Todos os entrevistados declararam sua aceitação em participar do estudo por meio de assinatura em Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Inicialmente, para a viabilização do projeto, procedeu-se à solicitação de autorização da diretoria da CAP 3.1. As entrevistas foram realizadas individualmente, nas dependências das unidades e da CAP 3.1, em sala separada do restante da equipe.
O participante inicial foi selecionado por indicação da clínica, que recomendou que se iniciasse pela coordenadora da área de informação da AP 3.1, para entender como as informações estavam estruturadas. Na sequência, os demais participantes foram indicados de forma não probabilística e aleatória, seguindo técnicas de amostragem Bola de Neve99 Goodman LA. Snowball Sampling. The Annals of Mathematical Statistics. 1961; 32(1):148-70., a partir da responsável pela área de informação. Foram aplicados roteiros semiestruturados, com perguntas abertas sobre como as informações são armazenadas e sobre a dinâmica das Unidades Básicas de Saúde (UBS) do território durante a fase mais crítica de distanciamento social da pandemia da Covid-19, entre outras questões.
Ao longo da pesquisa, buscou-se realizar reuniões com a gestão da clínica para explicitar o objetivo do estudo e, em seguida, com os responsáveis pela operacionalização dos dados na CAP 3.1 com o intuito de entender como as informações estão armazenadas, a fim de minimizar ou eliminar viés de informação ou viés de seleção. O enfoque das entrevistas foi a identificação das ações realizadas pelas unidades e como as informações estão armazenadas no banco de dados e os possíveis cruzamentos a serem realizados com os dados disponíveis das unidades; além disso, buscou-se, com as gerências das unidades, identificar as principais adaptações realizadas para lidar com o aumento da demanda e com as restrições causadas pela pandemia.
Procedimentos de análise
ETAPA QUANTITATIVA
O filtro realizado no banco de dados foi para as seguintes variáveis: quantidade de consultas em pacientes com dados de DM e HAS em cada uma das 32 unidades ao longo dos anos – 2019, 2020 e 2021. Quanto aos indicadores de internação, estabeleceu-se o mesmo período utilizado no filtro inicial, 2019 a 2021, considerando-o para a série histórica estudada e mais atualizada nos sistemas de informação.
Além da análise das distribuições de frequências das variáveis, foram estabelecidas as seguintes correlações, com o objetivo de avaliar a proporção de pacientes atendidos em relação ao quantitativo de consultas e exames realizados, verificar o alcance das metas de atendimento de pacientes crônicos da AP analisada, bem como o número de internações realizadas em pacientes adscritos:
-
entre o número de aferições de pressão arterial informadas no sistema e o número de consultas de hipertensos realizadas, uma vez que, durante a realização da consulta, é procedimento padrão obrigatório que o paciente tenha a pressão arterial aferida;
-
entre o quantitativo de solicitação de exames de glicose e hemoglobina glicada encaminhados para o laboratório e o número de consultas informadas no sistema de informações da CAP, visto que é procedimento padrão que, durante a realização da consulta de diabéticos, sejam solicitados esses dois exames.
Essa etapa teve como objetivo verificar se, durante a pandemia, o sistema conseguiu se comportar de forma resiliente, ou seja, se conseguiu absorver o aumento expressivo da demanda de pacientes com Covid-19 sem deixar de acompanhar aos doentes crônicos com HAS e DM.
Os dados foram organizados por UBS e ano, segundo as variáveis: total de consultas, total de diagnósticos e total de internações, tanto para HAS quanto para DM. Em seguida, foram feitas análises de regressão linear simples em duas etapas, com o propósito de verificar a relação entre as variáveis. Desta forma, foi necessário dividir em dois momentos, pois os dados possuem granularidades distintas – enquanto para consultas e diagnósticos são apresentados por unidade de saúde, os de internações são desagregados por CAP, e não há chave identificadora entre elas, o que demandou que o segundo momento da análise de regressão fosse feito com os dados globais da pesquisa. Considerando que há variáveis em comum nos dois modelos, optou-se pela realização de uma regressão linear simples stepwise para o modelo de internações, buscando trabalhar eventuais colinearidades. Os modelos foram testados para uma significância de 5%, 1% e 0,1%, revelando-se significativo em todos os casos, ou seja, mostrando significância estatísticas nas relações entre as variáveis.
ETAPA QUALITATIVA
As entrevistas foram realizadas e posteriormente reconstituídas na forma de narrativa, a fim de prover uma compreensão aprofundada em perspectiva temporal. Realizou-se leitura transversal priorizando-se a identificação das categorias analíticas. A primeira rodada de codificação seguiu um padrão dedutivo guiado pela seguinte questão analítica: que tipo de situações, atividades e práticas ilustrativas do desempenho resiliente podem ser identificadas por meio dos dados obtidos? A codificação, então, destaca situações, atividades e práticas em que o resultado indique assistência ou cuidado de qualidade a partir de diferentes adaptações a estresse, demandas e pressão, além de aprendizado, inovação ou melhoria contínua desenvolvidos.
A partir da identificação de instâncias ilustrativas de resiliência em saúde, uma segunda rodada de análise indutiva foi realizada, de acordo com os preceitos da Teoria Fundamentada1010 Glaser BG, Strauss AL. The Discovery of Grounded Theory: Strategies for Qualitative Research. 1. ed. Routledge; 2017.. Essa segunda rodada de codificação utiliza códigos de 1ª ordem, extraídos diretamente dos dados, agregados a temas de 2ª ordem e dimensões de 3ª ordem, organizadas de acordo com as capacidades resilientes, por meio de oficinas analíticas da equipe de pesquisa. Essa segunda análise indutiva permitiu que códigos surjam diretamente dos dados, fundamentando os achados nos dados empíricos.
Com isso, as capacidades de resiliência em saúde operacionalizadas no problema explorado foram identificadas, e a análise resultante foi alinhada com os conceitos e as teorias de resiliência1111 Hollnagel E, editor. Resilience engineering in practice: a guidebook. Farnham, Surrey, England; Burlington, VT: Ashgate; 2011. 322 p. (Ashgate studies in resilience engineering).,1212 Hollnagel E. Resilience – the Challenge of the Unstable. In: Resilience Engineering. CRC Press; 2006.,1313 Coutu D. How Resilience Works. Harvard Business Review. 2002 maio 1. [acesso em 2022 jul 30]. Disponível em: https://hbr.org/2002/05/how-resilience-works.
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,1414 Hamel G, Välikangas L. The Quest for Resilience. Harvard Business Review. 2003 set 1. [acesso em 2022 jul 30]. Disponível em: https://hbr.org/2003/09/the-quest-for-resilience.
https://hbr.org/2003/09/the-quest-for-re...
. A primeira rodada dedutiva da análise garantiu que apenas os casos de desempenho resiliente fossem incluídos para uma análise mais indutiva na segunda rodada. Esse procedimento foi necessário para evitar que descrições relacionadas com ausência de desempenho resiliente fossem inclusas na segunda rodada de análise indutiva, o que poderia levar a interpretações enganosas. Dessa forma, apenas o material que descrevia o desempenho resiliente ocorrido foi incluído no conjunto de dados.
Resultados
Etapa quantitativa
A tabela 1 mostra a distribuição das frequências de consultas e internações por HAS e DM realizadas na AP 3.1 no triênio 2019-2021, a partir de dados coletados no Sistema de Informação Hospitalar Descentralizado (SIHD)1515 Brasil. Ministério da Saúde. Sistema de Informação Hospitalar Descentralizado - SIHD. 2022. [acesso em 2022 jul 30]. Disponível em: http://sihd.datasus.gov.br/principal/index.php.
http://sihd.datasus.gov.br/principal/ind...
.
A tabela 1 apresenta uma comparação entre o número de consultas realizadas e o número de internados nos anos de 2019, 2020 e 2021. Nota-se que, ao longo dos últimos três anos, os números das internações foram regressivos e diminuíram ao longo desse período. Pode-se observar que, na série histórica dos anos de 2019, 2020 e 2021 para as Internações por Causas Sensíveis à Atenção Primária (causadas por doenças cujo atendimento deve ser realizado no primeiro nível de atenção e quando não realizado acarretam hospitalização), que, nesse caso, são doenças do aparelho circulatório e DM, houve expressiva redução.
A distribuição da quantidade de consultas e quantidade de diagnósticos mostra que, quanto maior o número de consultas, maior a quantidade de diagnósticos tanto de DM quanto de HAS, indicando que há uma correlação positiva entre as variáveis, conforme figura 1, que mostra análise desenvolvida a partir dos dados coletados1616 Rio de Janeiro (cidade). Secretaria Municipal de Saúde. Coordenação de Área Programática 3.1 - Município do Rio de Janeiro. Consultas e diagnósticos por HAS e diabetes mellitus: 2019-2021. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Saúde do Município do Rio de Janeiro; 2022.. Embora essa afirmação pareça evidente, a análise reitera que a interrupção das consultas deve incorrer na subnotificação das doenças de risco.
Distribuição da quantidade de consultas e diagnósticos por HAS e Diabetes Mellitus, segundo os anos de 2019, 2020 e 2021
Essa suspeita é confirmada com uma regressão linear simples, que apresentou significância estatística ao nível de 1% para a relação positiva de consultas com diagnósticos, tanto para HAS como para DM. Isto é, tomando a quantidade de diagnósticos como resposta, quando aumenta uma unidade de consulta, observa-se igualmente um aumento na quantidade de diagnósticos. Para observar esse efeito ao longo do tempo, foi inserido ao modelo a variável ‘Ano’, que, por sua vez, mostrou-se com contribuição negativa para a quantidade de diagnósticos – bem como ao nível de 1%, ou seja, quanto maior o ano, menor a quantidade de diagnósticos. Para a HAS, o modelo com ano e quantidade de consultas explicou 74% da variabilidade dos dados, e no caso da DM, essa explicação foi de 60%.
Resultado do modelo
Modelo hipertensão: Quantidade de diagnósticos de hipertensão = 4,91 - 2,43*Ano + 4,24*Consultas
Intercepto = 4,91; desvio-padrão = 9,19; p-valor < 0,000
Ano = -2,43; desvio-padrão = 4,55; p-valor < 0,000
Qtde consultas = 4,24; desvio-padrão = 2,62; p-valor < 0,000
R² = 0,7458, R² ajustado = 0,7403
Estatística F: 136,4 com 93 graus de liberdade; p-valor < 0,000
Modelo diabetes: Quantidade de diagnósticos de diabetes = 1,34 - 6,66*Ano + 2,51*Consultas
Intercepto = 1,34; desvio-padrão = 4,08; p-valor = 0,001
Ano = -6,65; desvio-padrão = 2,19; p-valor = 0,001
Qtde consultas = 2,51; desvio-padrão = 2,11; p-valor < 0,000
R² = 0,6101, R² ajustado = 0,6017
Estatística F: 72,75 com 93 graus de liberdade; p-valor < 0,000
Após a verificação da correlação entre diagnósticos e consultas, foi feito o procedimento de regressão linear com os dados de internação. Dessa vez, foram consideradas as duas doenças – HAS e DM – conjuntamente, já que as variáveis significativas têm sentido semelhante nos dois casos.
O ano e a quantidade de diagnósticos explicam 96,6% da variabilidade do número de internações. Nesse modelo, que tem as internações como resposta e o ano e a quantidade de diagnósticos como explicativa, foi utilizada a técnica stepwise para escolha das variáveis, em que somente a quantidade de diagnósticos se mostrou significante. É preciso destacar que a variável ano se relaciona com a quantidade de diagnósticos, mas, nesse caso, a granularidade dos dados é diferente – enquanto os números de internação foram analisados por unidade de saúde, as internações foram analisadas como um grupo só. Assim, o modelo sugere que, na verdade, o ano pode não ter um efeito significativo na quantidade de internações, com p-valor não significativo ao nível de 95%.
Outro ponto a ser destacado é que o intercepto desse modelo é negativo, o que não é possível e torna sua interpretação inexequível, assim como não apresentou significância a 95%. Porém, o coeficiente da variável ‘quantidade de diagnósticos’ é alto, sugerindo que não haveria internação decorrente das condições investigadas sem o prévio diagnóstico.
Modelo internações: Quantidade de internações = -3,09 + 1,53*Ano + 8,10*Diagnósticos
Intercepto = -3,09; desvio-padrão = 2,03; p-valor = 0,225
Ano = 1,53; desvio-padrão = 1,01; p-valor = 0,226
Qtde diagnósticos = 8,10; desvio-padrão = 6,42; p-valor =0,001
R² = 0,9799, R² ajustado = 0,9655
Estatística F: 73,17 com 93 graus de liberdade; p-valor = 0,002
Desta forma, a etapa quantitativa aponta que a pandemia da Covid-19 parece não ter alterado o cenário do acompanhamento longitudinal de diabéticos e hipertensos na APS.
Etapa qualitativa
As práticas implementadas pelas UBS da AP 3.1 durante a pandemia para manejo de pacientes diabéticos e hipertensos, identificadas durante as entrevistas em que foram coletadas informações sobre as ações implementadas durante a pandemia a fim de minimizar os impactos sobre a saúde dos doentes crônicos, em um esforço de pesquisa de 60 horas de entrevistas, são descritas no quadro 1.
Sistematização das entrevistas (etapa qualitativa), segundo práticas da equipe básica e Núcleo de Apoio à Saúde da Família (Nasf) na CAP 3.1 do município do Rio de Janeiro
Verifica-se que algumas das práticas foram implementadas na maior parte das unidades da AP, enquanto outras foram exclusivas de determinadas unidades, desenhadas a partir do entendimento das necessidades e vulnerabilidades da população adscrita desses territórios. Nota-se também que a maior parte das práticas foi conduzida de maneira adaptada ao formato remoto durante as fases mais agudas da pandemia, migrando para o formato presencial posteriormente, conforme fala do entrevistado “durante a pandemia tentamos manter o acompanhamento do paciente usando outras formas, como contato telefônico”. No âmbito das práticas realizadas presencialmente, atividades em grupo, seguindo as medidas de segurança e em ambientes abertos, foram priorizadas, conforme relato do entrevistado: “a gente também ficava com medo, mas procurava realizar seguindo todos os protocolos”; visando dois objetivos: o primeiro relaciona-se com a assistência comunitária, preconizada pela ESF; o segundo, para evitar aglomerações dos usuários nas unidades.
Apesar de algumas práticas possuírem como público-alvo usuários para além dos pacientes diabéticos e hipertensos, as características dos quadros clínicos estão fortemente relacionadas com essas comorbidades. Em função disso, com o objetivo de manter a assistência a esses grupos prioritários de doentes crônicos, as ações de promoção e prevenção de saúde com esses grupos de comorbidades específicas para atendimentos comunitários foram sendo adaptadas pelas unidades a fim de não deixar esses pacientes sem assistência, conforme relato: “apesar das dificuldades e do medo que nós tínhamos de pegar a doença, procuramos maneiras alternativas de manter o atendimento dos doentes crônicos”. Dessa forma, muitas unidades de saúde desenvolveram mecanismos alternativos para manter ativo o acompanhamento desses pacientes com doenças crônicas, como contatos telefônicos, aplicativos de mensagem, reuniões em grupo por videoconferência conduzidos pela equipe interprofissional (educadores físicos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, enfermeiros, entre outros).
Outra estratégia adotada pela SMS-RJ foi a reordenação e realocação de algumas UBS para, temporariamente, funcionarem como polos de assistência pré-hospitalar ou extra-hospitalar, no intuito de acolher os usuários que apresentassem sinais e sintomas leves ou iniciais de Covid-19; e a realização de medicação e testes rápidos, com o objetivo de evitar a sua circulação e a potencial disseminação da doença, conforme relato: “A abertura dos polos de testagem ajudou bastante porque diminuiu o número de pessoas contaminadas procurando fazer teste de covid na unidade”. Outras unidades também passaram por reorganização para o atendimento de pacientes pertencentes a grupos de risco (doenças crônicas, imunodeprimidos etc.).
Alguns dos profissionais relataram ter flexibilizado o atendimento a pacientes com os referidos fatores de risco (muitas vezes, possuindo fatores de risco combinados, como: idoso, com obesidade, HAS e DM, por exemplo). Dessa forma, a assistência era realizada por meio das Visitas Domiciliares (VD), com a participação dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS), que acompanhavam a evolução dos usuários, entregando os medicamentos necessários conforme o caso. Tal estratégia fazia com que o usuário permanecesse em casa, fora do risco de contato social das unidades de saúde ou mesmo do trajeto até a unidade.
Destaca-se, ainda, a importância das ações de vigilância em saúde que ocorreram concomitantemente. Nesse sentido, foram realizadas testagens em massa, o que pôde fornecer uma noção mais aproximada da quantidade de pessoas infectadas pelo vírus e, assim, subsidiar políticas mais focalizadas.
Por intermédio do quantitativo de exames realizados e de atendimento crescente de sintomáticos nas unidades, aliados ao monitoramento do aumento do número de casos no território, os gestores relataram que viam a necessidade de aumentar o número de polos de atendimentos para pacientes com sintomas leves de Covid-19. Entretanto, talvez pela falta de recursos que a prefeitura enfrentava naquele momento ou pelo processo de reestruturação em que a SMS-RJ passava, a contratação de novos médicos e profissionais de saúde não acompanhou a crescente demanda, o que representou, na prática, o deslocamento de médicos em tempo integral para a assistência dos pacientes com Covid-19 em detrimento das demais enfermidades, fato este que acabou impactando na oferta de consultas para as demais comorbidades.
Discussão
A análise das resoluções da SMS-RJ em conjunto com as entrevistas realizadas com os gestores permitiu entender o modo de organização da assistência à saúde e do atendimento adotado pela APS durante a pandemia. Nesse sentido, destaca-se o acesso diferenciado de usuários que foram orientados durante o processo de atendimento nas unidades de saúde segundo os critérios estabelecidos pela SMS-RJ, que seguiram as Resoluções nº 4.330, de 17 de março de 20201717 Rio de Janeiro (cidade). Secretaria Municipal de Saúde. Resolução SMS-Rio nº 4.330. de 17 de março de 2020. [acesso em 2022 jul 30]. Disponível em: https://doweb.rio.rj.gov.br/apifront/portal/edicoes/imprimir_materia/649033/4476.
https://doweb.rio.rj.gov.br/apifront/por...
, e nº 4.386, de 29 de abril de 20201818 Rio de Janeiro (cidade). Secretaria Municipal de Saúde. Resolução SMS-Rio nº 4.386 de 29 de abril de 2020. [acesso em 2022 jul 30]. Disponível em: https://doweb.rio.rj.gov.br/apifront/portal/edicoes/imprimir_materia/655129/4549.
https://doweb.rio.rj.gov.br/apifront/por...
, que determinaram que aqueles pacientes que pertenciam a grupos prioritários – particularmente, gestantes e recém-nascidos – e pacientes crônicos descompensados deveriam seguir critérios específicos durante o atendimento para evitar o contágio; estabelecendo-se, inclusive, diferentes portas de acesso às unidades para que usuários com determinadas enfermidades não tivessem contato com os demais. Nota-se que a organização no atendimento e a capacidade de resposta da APS foram preponderantes para novos modos de fazer e organizar os serviços, garantindo a continuidade do cuidado sem aumentar o risco de contágio.
Aos pacientes com HAS e DM que tinham acompanhamento regular nas UBS, foi solicitado que evitassem a consulta presencial em função do risco de contaminação pela Covid-19, mantendo-se em seus domicílios. Eventualmente, recebiam telefonemas ou mensagens para acompanhamento do quadro de saúde, além de visitas domiciliares para a dispensação de medicamentos regulares para o tratamento das doenças crônicas, controlados e afins. Método semelhante relatado por Santos et al.1919 Santos GBM, Lima R CD, Barbosa JPM, et al. Cuidado de si: trabalhadoras da saúde em tempos de pandemia pela Covid-19. Trab educ saúde. 2020; 18(3):e00300132. durante a fase inicial da pandemia, que utilizaram os atendimentos remotos como instrumento, revelando um novo caminho para a continuidade do cuidado da população. Nesse sentido, a reorganização dos serviços de APS para enfrentar a epidemia e manter a oferta regular de suas ações exigiu dos profissionais adequação, superação e capacidade de inovação para manter seu necessário protagonismo para responder à nova realidade, ações essas que foram destacadas em documentos e relatórios produzidos no País2020 ABRASCO. Desafios da APS no SUS no enfrentamento da COVID-19. Associação Brasileira de Saúde Coletiva; 2020. (Seminário Virtual Rede APS ABRASCO).,2121 Engstrom E, Melo E, Giovanella L, et al. Recomendações para a organização da APS no SUS no enfrentamento da Covid-19. Fundação Oswaldo Cruz; 2020. p. 7. (Série Linha de Cuidado Covid-19 na Rede de Atenção à Saúde)..
A literatura destaca ainda que pessoas portadoras de doenças crônicas, com mais fragilidades e incapacidades, bem como aquelas em situação de maior vulnerabilidade social, necessitam de mais cuidados e demandam serviços com maior frequência e concomitantes em diferentes especialidades e níveis de atenção. Fato este que resulta em interdependência entre os pontos da rede de atenção, o que depende diretamente de um bom funcionamento da coordenação do cuidado para encaminhar e acompanhar esses pacientes durante todo o seu percurso dentro do sistema de saúde2222 Barreto MS, Carreira L, Marcon SS. Envelhecimento populacional e doenças crônicas: Reflexões sobre os desafios para o Sistema de Saúde Pública. Revista Kairós-Gerontologia. 2015;1 8(1):325-39..
Nesse sentido, o cruzamento dos dados quantitativos e qualitativos do estudo parece apontar para um relativo sucesso da APS em desenvolver ações em coordenação do cuidado para o adequado manejo e acompanhamento de pacientes com quadro de HAS e DM durante a pandemia da Covid-19 no município do Rio de Janeiro, indicando uma capacidade da APS em apresentar desempenho resiliente no período para esse conjunto de serviços, viabilizando o estabelecimento de rotas latentes para potencial reestruturação desses serviços. No entanto, essa capacidade parece depender, em primeiro lugar, do engajamento das equipes das unidades com as comunidades de seus respectivos territórios, de maneira similar ao já verificado para o manejo de casos de pacientes com Covid-192323 Haldane V, De Foo C, Abdalla SM, et al. Health systems resilience in managing the COVID-19 pandemic: lessons from 28 countries. Nature Medicine. 2021; 1-17.. Em segundo lugar, parece depender também da construção prévia de competências e articulações entre pontos da rede – fatores já identificados como relevantes na revisão conduzida por Iflaifel et al.2424 Iflaifel M, Lim RH, Ryan K, et al. Resilient Health Care: a systematic review of conceptualisations, study methods and factors that develop resilience. BMC Health Serv Res. 2020; 20(1):324..
Um dos achados mais importantes do estudo ilustra a manifestação de tais potenciais latentes: a reorganização e especialização de algumas UBS para, temporariamente, funcionarem como polos de atendimento de determinados grupos de pacientes. Esse comportamento pode ser considerado análogo ao observado por Arcuri et al.2525 Arcuri R, Bellas HC, Ferreira DS, et al. On the brink of disruption: Applying Resilience Engineering to anticipate system performance under crisis. Applied Ergonomics. 2022; 99:103632. quanto à articulação entre o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu 192) e a APS para atendimento de urgência a populações ribeirinhas amazônicas durante a pandemia.
Com relação aos polos de atendimento pré e extra-hospitalares, usados como estratégia para diminuir a disseminação e a contaminação de pacientes durante os momentos mais críticos da pandemia da Covid-19, houve um importante aprendizado por meio de ações exitosas adotadas em crises sanitárias anteriores, tais como a epidemia de dengue em 2012, conforme expõem outros estudos2626 Santos DM, Steffeler LM, Silva IA, et al. Ações educativas em saúde para prevenção e controle de dengue em uma comunidade periférica da região metropolitana de Aracaju. Scientia Plena. 2012; 8(3).,2727 Freitas DA, Souza-Santos R, Wakimoto MD. Acesso aos serviços de saúde por pacientes com suspeita de dengue na cidade do Rio de Janeiro, Brasil. Ciênc. saúde coletiva. 2019; 24:1507-16., ao descreverem que, na ocasião, devido ao aumento exponencial do número de casos suspeitos (surto) de dengue, duas unidades de APS foram disponibilizadas como polos de hidratação de 12 horas por dia, além da unidade hospitalar. Além disso, relatam que a implementação desses polos aumentou a oferta do rápido e adequado tratamento, o que diminuiu a demanda dos hospitais e, consequentemente, o agravamento dos quadros, a ocorrência de casos graves e dos óbitos. Tal aprendizado caracteriza-se como uma das habilidades fundamentais do comportamento resiliente de um sistema definidas por Hollnagel1111 Hollnagel E, editor. Resilience engineering in practice: a guidebook. Farnham, Surrey, England; Burlington, VT: Ashgate; 2011. 322 p. (Ashgate studies in resilience engineering)..
Apesar do histórico de atendimentos aos pacientes de HAS e DM ter demonstrado que as unidades conseguiram manter um nível de oferta no atendimento satisfatório aos pacientes com doenças crônicas, ainda se mostrou aquém do necessário. Nesse sentido, a Organização Mundial da Saúde (OMS)2828 World Health Organization. Building health systems resilience for universal health coverage and health security during the COVID-19 pandemic and beyond: WHO position paper. World Health Organization; 2021. p. xii, 36 p. publicou um documento tendo como base as experiências nacionais no combate à pandemia da Covid-19 no qual destaca sete recomendações de políticas segundo as quais devem se balizar os governos para a construção de sistemas de saúde resilientes tendo como com base a APS, que é o caso brasileiro, o que reforça ainda mais o papel da coordenação do cuidado como importante atribuição da APS e colaborador para sistemas de saúde resilientes.
Entre as sete recomendações, que são descritas no documento, três delas sofreram impacto no governo do presidente de extrema direita Jair Bolsonaro: a primeira especificamente direcionada a importância de uma atenção primária estruturada e abrangente que é “Construir uma base sólida de cuidados de saúde primários”2626 Santos DM, Steffeler LM, Silva IA, et al. Ações educativas em saúde para prevenção e controle de dengue em uma comunidade periférica da região metropolitana de Aracaju. Scientia Plena. 2012; 8(3).(12) que sofreu ações do governo na tentativa de pavimentar um processo de privatização na atenção primária por meio da política de fomento ao setor de APS no Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) da Presidência da República e redução do repasse de recursos. A segunda recomendação indica “Criar e promover ambientes propícios para pesquisa, inovação e aprendizado”2626 Santos DM, Steffeler LM, Silva IA, et al. Ações educativas em saúde para prevenção e controle de dengue em uma comunidade periférica da região metropolitana de Aracaju. Scientia Plena. 2012; 8(3).(13) que experienciaram impacto negativo pela postura negacionista e forte redução na aplicação dos recursos que promoveu um desmonte das políticas de pesquisa e ensino. Por fim, pelo desmonte das políticas sociais que suportaram um processo de desestruturação que se evidenciou durante a pandemia e no contrastante impacto da Covid-19 entre as populações de baixa renda, fatos estes que foram no sentido oposto à terceira recomendação da OMS, que é “Abordar as desigualdades pré-existentes e o impacto desproporcional da Covid-19 nas populações marginalizadas e vulneráveis”2626 Santos DM, Steffeler LM, Silva IA, et al. Ações educativas em saúde para prevenção e controle de dengue em uma comunidade periférica da região metropolitana de Aracaju. Scientia Plena. 2012; 8(3).(14).
Salienta-se a importância das ações de vigilância em saúde para um monitoramento mais preciso e fortalecimento de decisões baseadas em evidências, fato também destacado por outros estudos2929 Teixeira CFS, Soares CM, Souza EA, et al. A saúde dos profissionais de saúde no enfrentamento da pandemia de Covid-19. Ciênc. saúde coletiva. 2020; 25(9):3465-74.,3030 Prado NMBL, Biscarde DG S, Pinto Junior EP, et al. Ações de vigilância à saúde integradas à Atenção Primária à Saúde diante da pandemia da COVID-19: contribuições para o debate. Ciênc. saúde coletiva. 2021; 26:2843-57.. Um exemplo de tais ações relacionou o aumento do número de casos no território, com a necessidade de ampliar o número de polos de atendimentos para pacientes com sintomas leves de Covid-19, o que representou uma atividade de monitoramento e antecipação ao problema, que se caracteriza como habilidades resilientes, de fato.
Conclusões
Embora o Brasil tenha avançado de forma significativa na abrangência e na qualidade da atenção primária desde a implantação, ainda há desafios estruturantes e políticos a serem superados, como a redução da iniquidade no acesso, da desigualdade social e da interferência política que impacta diretamente na oferta de serviços aos doentes crônicos, o que dificulta o acompanhamento dos usuários, aspecto essencial para a resiliência dos serviços. Esse cenário fica bastante evidente nas adaptações realizadas para lidar com a Covid-19, destacadas no presente estudo.
Além disso, a construção de um sistema de saúde mais resiliente passa pelo fortalecimento de aspectos estruturais, como o aumento dos recursos destinados à saúde, pela ampliação da proteção social por meio dos programas sociais, à redução da miséria e da pobreza, mas também por aspectos funcionais, como governança, políticas de expansão e implantação de programas mais aderentes. Ambos os aspectos têm sido afetados pela redução dos investimentos em saúde resultante das políticas de austeridade do governo de extrema direita, impactando fortemente na oferta e qualidade dos serviços.
Ainda que a pesquisa tenha se limitado a uma das AP do município do Rio de Janeiro, ela possui um conjunto de comunidades carentes que estão entre as maiores do município, como o Complexo do Alemão, a Maré, Manguinhos, Complexo da Penha e Ilha do Governador, todas regiões que possuem uma alta densidade demográfica e uma alta prevalência dessas doenças, especialmente em virtude da vulnerabilidade social. Outro ponto a ser destacado é que, embora o número de entrevistados na etapa qualitativa possa parecer pouco expressivo, ele representa a totalidade dos funcionários da área de gestão da informação, responsáveis pela alimentação dos dados na CAP.
Entre as limitações da parte qualitativa do estudo, não foi apurado se, ao menos em parte, o baixo número de consultas em alguns momentos da pandemia possa ser atribuído ao comportamento dos pacientes, devido ao receio de contraírem a Covid-19 caso se dirigissem às UBS.
O principal achado descrito neste artigo se refere ao fato de que a colaboração desenvolvida ‘na ponta’, entre os trabalhadores envolvidos no manejo dos usuários hipertensos e diabéticos, foi essencial na racionalização dos recursos em favor do desempenho resiliente, tendo contribuído decisivamente para a manutenção da assistência regular a essas comorbidades, mitigando a tensão sobre as internações dessa natureza na rede assistencial do município, já bastante pressionada durante os picos de infecções de Covid-19.
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Suporte financeiro: Programa Inova Fiocruz (processo 310815559697153), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq (processos 307029/2021-2 e 402670/2021-3). Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – Faperj (processo E-26/201.252/2022)
Referências
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
28 Abr 2023 -
Data do Fascículo
Dez 2022
Histórico
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Recebido
30 Jul 2022 -
Aceito
24 Out 2022