Open-access As vivências na rua que interferem na saúde: perspectiva da população em situação de rua

RESUMO

A saúde, compreendida como estado multideterminado, revela a organização política e social de um país. Com a Constituição Federal brasileira de 1988, foi considerada um direito. A população em situação de rua expõe importantes obstáculos à garantia desse direito. O objetivo deste estudo é o de compreender as dificuldades da vida na rua que interferem na percepção e no estado de saúde de adultos em situação de rua em um município da Zona da Mata Mineira, Brasil. Adotou-se a metodologia qualitativa por meio de entrevistas semiestruturadas e observação com registro em diário de campo. Dela participaram vinte pessoas em situação de rua. Destacam-se as dificuldades relacionadas a exposição não protegida às mudanças climáticas, como frio e chuva; vivência de preconceito; vulnerabilidade à violência física e sexual; obstáculos no acesso à alimentação, água potável, banheiros; dificuldades para frequentar alguns espaços sociais e de manter tratamentos de saúde. Reconhecendo as situações que determinam os níveis de saúde das pessoas em situação de rua é possível construir políticas e estratégias que contemplem suas reais necessidades. A intersetorialidade das ações públicas ainda é um desafio ao cumprimento de um direito fundamental de todos: o direito à saúde.

PALAVRAS-CHAVES Pessoas em situação de rua; Direito à saúde; Disparidades nos níveis de saúde

ABSTRACT

Health, understood as a multidetermined attribute, characterizes the political and social organization of a country. From Brazilian 1988’s Federal Constitution onwards, health has been understood as an individual right. Homeless people create important obstacles on the accomplishment of such right. The objective of this study is to understand the difficulties encountered on the streets that impact the perception and health state of adults living on the streets of a municipality in Zona da Mata Region, State of Minas Gerais, Brazil. A qualitative methodological approach was applied through semi-structured interviews and observation recorded on a field diary. The research interviewed 20 people living on the streets. Main difficulties involved climate exposition, as rain and cold; prejudice; vulnerability to physical and sexual abuse; obstacles to access food, drinking water and toilets; difficulties to access certain social spaces and health treatment. By knowing the situations that determine the various levels of health among people living on the streets, it is possible to build strategies and policies so to cope with their actual needs. Inter-sectoriality of public action is still a great challenge, despite necessary to accomplish a right that is fundamental and universal: health.

KEYWORDS Homeless people; Right to health; Health status disparities

Introdução

O direito fundamental à saúde foi instituído no Brasil em 1988 por meio da promulgação da Constituição Federal (CF/88). Muito além da ausência de doença, a saúde é compreendida como um estado multideterminado, que guarda íntima relação com as condições de vida e acesso aos bens públicos e sociais de indivíduos e grupos populacionais de determinada sociedade1.

As desigualdades sociais perfilam profundos padrões de realidades socio-sanitárias nos diferentes segmentos populacionais. Nesse contexto, importantes iniquidades em saúde são produzidas. A população mais pobre fica à margem, em situação de vulnerabilidade2. A não garantia de moradia que proporcione proteção e privacidade torna o indivíduo nessa situação vulnerável, impactando negativamente seu estado de saúde.

As pessoas que fazem dos espaços das ruas como moradia expõem vulnerabilidades complexas, apresentando heterogêneas necessidades e demandas para a manutenção de suas vidas. Nesse contexto, necessitam de serviços sociais e de saúde mais adequados às suas peculiaridades3-7.

A vulnerabilidade é entendida por Carmo e Guizardi8 como a sobreposição de diversos fatores, em várias dimensões, capaz de tornar um indivíduo ou um grupo mais suscetível aos riscos e imprevisibilidades da vida. As condições de vulnerabilidade social podem estar relacionadas com a estrutura de oportunidades vivenciadas pelo indivíduo e com as características sociais, econômicas, culturais e políticas do lugar.

Conhecer as dificuldades que afetam o processo saúde-doença-cuidado desse grupo populacional é condição fundamental para contribuição na formulação e implantação de políticas públicas e serviços que respondam efetivamente às suas necessidades8.

Este artigo é parte da dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal de Juiz de Fora, que teve como objetivo compreender as dificuldades da vida na rua que interferem na saúde segundo a percepção dos adultos em situação de rua de um município da Zona da Mata Mineira.

Metodologia

Adotou-se abordagem metodológica qualitativa por meio de entrevistas semiestruturadas e registros em diário de campo da observação cotidiana de convívio nos espaços da rua e nas instituições pesquisadas.

O campo da pesquisa foi um município da Zona da Mata Mineira, na região Sudeste do estado de Minas Gerais, que possui 559.636 habitantes. Desses, 880 encontram-se em situação de rua9. Os cenários foram os dois serviços de acolhimento temporário municipais, um destinado às mulheres e o outro, aos homens, que oferecem leitos para pernoite. O período de realização foi de março de 2016 a fevereiro de 2018.

Excluíram-se da pesquisa os sujeitos com déficit cognitivo ou apresentando alterações comportamentais devido ao uso de álcool ou outras substâncias psicoativas.

Com a finalidade de preservar seu sigilo, os participantes foram identificados pela letra E, seguida dos números 1 a 20, ou seja, E1 a E20.

Os dados foram interpretados à luz da hermenêutica dialética, respeitando os momentos de ordenação, classificação e relatório final de Minayo10. A organização das informações permitiu identificar o material coletado no campo por meio da transcrição das entrevistas e leitura preliminar. A classificação foi realizada a partir da leitura flutuante das entrevistas com o objetivo de reconhecer as ideias centrais e permitiu encontrar os núcleos de sentido analisados. Este artigo destaca o núcleo de sentido ‘a vivência na rua e sua interferência na saúde’.

Após a identificação dos núcleos de sentido, os fragmentos das falas, ou unidades, relacionados a cada núcleo foram organizados em um quadro de análise (quadro 1), conforme proposto por Alencar et al.11.

Quadro 1
Análise das entrevistas

Após sua organização no quadro 1, as unidades foram analisadas a partir das sínteses horizontal e vertical de cada núcleo de sentido. Enquanto a síntese horizontal possibilitou identificar convergências, divergências e complementaridades das falas de cada participante da pesquisa, a síntese vertical permitiu visualização da articulação dos núcleos de sentido de cada sujeito.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Juiz de Fora, Parecer nº 1.913.094/2017. Todos os sujeitos participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Resultados e discussão

Participaram vinte indivíduos em situação de rua e maiores de dezoito anos, sendo quatorze homens e seis mulheres.

Os entrevistados possuíam entre 25 e 68 anos, em sua maioria, cor preta, e ensino fundamental incompleto. O tempo em que viviam na rua variou de dois a 31 anos. Quanto maior o tempo de permanência nas ruas, maior o sentimento de pertencer a essa realidade, vivenciando a instabilidade e precariedade das ruas e construindo formas de sobrevivência. São anos de alimentação incerta, de busca por água potável, de trabalho informal, de distanciamento das famílias, de vivência de preconceito e de violência que causam impacto à saúde física e mental12.

As dificuldades da vivência nas ruas relatadas pelos entrevistados estão compiladas no quadro 2.

Quadro 2
Dificuldades da vivência na rua que interferem na saúde

Água potável e alimentação são necessidades básicas. Logo, se tais necessidades não são atendidas, causam inúmeros comprometimentos à saúde, além de serem fatores relevantes de exclusão social. Os relatos dos participantes desta pesquisa reforçaram, de maneira contundente, a existência dessas privações:

Para ser sincero com você, eu já passei fome. Cheguei a passar mesmo. É fome e é vontade de comer. É fome e é vontade de comer. Aí é aquilo... a gente quer comer uma coisa gostosa, quer beber um negócio específico e não pode. (E9).

Conseguir água para beber é muito difícil. Eu que trabalho, ainda consigo comprar uma garrafinha aqui e ali, mas quem não consegue trabalhar tem muito mais dificuldade. Aí tem que beber água suja mesmo. Ou é isso ou é passar sede [...] A gente come o que tem, o que dão, o que dá para comprar. (E1).

A dificuldade para atender às necessidades básicas é uma das principais vulnerabilidades entre as pessoas que moram nas ruas13. A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 afirma que a alimentação adequada, o que inclui o acesso à água potável, é um dos componentes necessários para assegurar a todo ser humano um padrão de vida saudável14. No Brasil, em 2009, a Política Nacional para a População em Situação de Rua (PNPSR) contemplou a necessidade de proporcionar às pessoas em situação de rua o acesso permanente à alimentação, com a implantação de ações de segurança alimentar e nutricional15. Em 2010 a alimentação foi incluída como direito social na Constituição Federal, através da Emenda Constitucional 64/201016. Mas a efetivação desse direito ainda é um desafio.

Observa-se que o Município desta pesquisa conta com um restaurante popular na região central e os usuários dos serviços de acolhimento recebem o ticket para a alimentação, distribuído pelo Centro de Referência Especializado em População em Situação de Rua (Centro POP). Todavia, alguns indivíduos em situação de rua queixam-se do horário dessa oferta e não vão à instituição alegando dificuldade de locomoção.

Ainda sobre as necessidades básicas, os entrevistados alegaram ausência de locais para lavar roupas e dificuldade para tomar banho:

A gente vive na rua, né? Senta no chão... e a rua é suja. Como a nossa roupa vai ficar? Suja, né? E tem onde lavar? Não tem onde lavar. Quando a gente não vai pro albergue... não tem jeito nem de tomar banho. (E1).

Especificamente em relação à higiene pessoal das mulheres, foi possível identificar a dificuldade relacionada ao período menstrual:

Eu acho que uma dificuldade para gente que é mulher é a questão da higiene. Eu estou falando de menstruação mesmo. Às vezes a gente não consegue comprar absorvente... (E20).

Em outro estudo, constatou-se que os comportamentos de higiene pessoal, como tomar banho, ter roupas limpas e fazer assepsias em geral, estão quase sempre associados aos albergues e às Organizações Não Governamentais (ONG) por serem locais que oferecem esse autocuidado17.

No Município desta pesquisa não existem banheiros públicos. A disponibilidade de locais para banho só existe nos albergues. A dificuldade de acesso a locais para a realização da higiene pessoal acarreta diversos prejuízos para a saúde, como infestações de piolhos, doenças na pele, dificuldades para tratar feridas, dentre outros18.

Fortemente associados à questão da manutenção da higiene pessoal, estão a discriminação e o preconceito contra o corpo, a aparência física e a forma de se vestir. A discriminação contra o corpo que sofre as consequências da vivência na rua é uma reação contra uma aparência não idealizada19. Um corpo marginalizado, sujo e exalando fortes odores não condiz com o ideal de uma sociedade limpa:

E quando a gente está mal arrumado, sujo, parece que o tratamento é diferente. A gente vai sendo deixado de lado... as pessoas só falam com a gente o que é extremamente necessário. (E20).

Garantir o acesso à higiene pessoal fortalece a autoestima. O preconceito relacionado às questões de higiene também diminui a esperança de mudança de vida. A aparência surgiu nas entrevistas como fator determinante para conseguir ingresso no mercado de trabalho formal:

E conseguir um trabalho direitinho também é difícil. Eu quero é trabalhar. Às vezes a gente quer ir arrumadinho para levar o currículo na empresa, mas a gente não tem nem roupa para entrevista de emprego. Fora que eu estou sem meus dentes... e isso é feio para entrevista, né? Ninguém quer contratar alguém que não tem uma boa aparência. (E13).

A aparência pessoal e a higiene corporal são alguns dos fatores de discriminação que prejudicam o acesso às políticas públicas e à construção das possibilidades de saída das ruas, incluindo a inserção ao mercado de trabalho20.

Existe dificuldade de acesso aos recursos que podem proporcionar o autocuidado:

Banheiro... é a coisa mais difícil aqui no município. Se eles pudessem, eles cortavam da gente entrar no banheiro até do supermercado... mas eles não sabem quem é morador de rua e quem não é... aí não tem jeito de cortar, né? Se você é morador de rua... às vezes dá vontade de você urinar, de você ir no banheiro... Olha a dificuldade: tem que ficar pedindo e a pessoa ainda negar. (E4).

Para Maslow21 alimentação, hidratação, respiração, sono, sexo e local apropriado para as funções fisiológicas encontram-se na base da classificação hierárquica das necessidades humanas. Promover o acesso ao banheiro é cuidar de uma necessidade básica, fisiológica de todo ser humano. Muitas vezes, por não ter banheiro disponível, a pessoa utiliza-se da rua. Além da ‘degradação do espaço público’, está a violação da privacidade e o sentimento de degradação da própria condição de ser humano.

Conforme os entrevistados, a impossibilidade de inserção no mercado formal de trabalho torna a atividade informal realizada nas ruas uma alternativa e inserção precária, porque, sem proteção social e em condições inapropriadas, causam significativos impactos na saúde:

Para mim dificuldade é carregar um carrinho o dia inteiro... porque eu carrego as coisas em um carrinho, né? Pra cima e pra baixo, no sol e na chuva... o dia inteiro. A dificuldade é só isso. (E4).

Algumas das ações para acessar o mercado de trabalho previstas pela Política Nacional para a Inclusão Social da População em Situação de Rua englobam a inserção dessas pessoas como público-alvo prioritário para intermediação de emprego pelos equipamentos sociais, sua capacitação profissional, o incentivo às formas cooperadas de trabalho e a garantia de acesso aos direitos trabalhistas, incluindo a aposentadoria22. Além disso, o investimento do setor público em cursos de capacitação e de qualificação profissional destinados à essa população, como previsto pela PNPSR, também é uma das atitudes para promover e estimular movimentos que provoquem mudanças nas condições de vida15.

As mudanças climáticas também apareceram como percalços para a vivência na rua. Populações em situações de vulnerabilidade social são profundamente impactadas e seriamente fragilizadas, principalmente no seu estado de saúde, pela não garantia de proteção às alterações de temperatura23, por exemplo:

Na época do frio eu já passei frio. Estou passando agora, né? E quando chove? Como a gente se esconde da chuva? Se tá chovendo no frio, então, ... a gente fica todo molhado e a roupa parece mais fria ainda! (E7).

Associadas às vulnerabilidades, as doenças respiratórias são mencionadas por muitos entrevistados:

Estava com muita febre e o corpo doendo. Era pneumonia. Mas graças a Deus eu estou melhorando. (E12).

Todo ano me dá pneumonia. Além disso eu estou com tuberculose hoje em dia. (E19).

As doenças respiratórias podem ser agravadas devido às iniquidades resultantes da inserção desigual dos indivíduos na sociedade24. Além de um aumento de risco para a incidência da tuberculose, a situação de rua representa também um aumento de desfechos negativos da doença25.

Os serviços de acolhimento, ou ‘albergues’, são equipamentos de abrigamento e proteção da assistência social. Funcionam, em geral, para pernoite. No município no qual essa pesquisa foi realizada, há dois serviços de acolhimento, com capacidade para receber 150 indivíduos adultos em situação de rua por noite. De acordo com a PNPSR, os serviços de acolhimento devem atender à demanda do município, levando em consideração os dados obtidos pelas pesquisas municipais sobre a população em situação de rua15. Pesquisa da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social estimou que haja 884 pessoas vivendo nas ruas do Município9. Portanto, observa-se que só 17% conseguem abrigos protegidos. Todavia, chama a atenção que a adesão por esse tipo de serviço é contraditória e tensa entre os indivíduos em situação de rua, observando-se ociosidade na utilização das vagas disponíveis. As entrevistas relatam que a ‘falta de liberdade’ e a imposição de ‘regras’ são fatores de não aderência ao serviço:

Olha... aqui eu não tenho liberdade. Aqui é bom pra dormir... mas por exemplo: eu quero ir em uma festa junina... há quantos anos que eu não vejo isso. Pra ver, eu tenho que dormir na rua, igual no meu passado. Como eu já estou mais velho e a rua é muito perigosa, eu não quero dormir na rua mais. Aí é isso. Não tem essa liberdade. Essa é a vidinha que eu vou tocando. (E10).

A gente consegue comida, banho, proteção dentro do albergue. Só que quando você está dentro do albergue, tem regras e as pessoas não querem seguir regras... elas querem ter liberdade, afinal... albergue não é prisão. (E16).

A gestão atual dos albergues atua com política domesticadora, cujo objetivo é controlar o comportamento dos indivíduos para que não incomodem durante seu pernoite, cerceando a liberdade por meio de regras rígidas26. Para ampliar e qualificar o acesso a essas instituições, é importante promover mecanismos de gestão participativa, com reuniões entre a coordenação e os usuários ou seus representantes, possibilitando um espaço democrático para a discussão das suas demandas.

Também muito presente nos relatos dos entrevistados foi a vivência do preconceito:

Mas a pior dificuldade mesmo é o preconceito. A gente sabe que as pessoas olham para gente como se a gente fosse lixo, como se a gente quisesse estar nessa situação ou como se fosse um castigo. Eu me pergunto: se é castigo, é castigo de quem? De Deus? Eu nunca vi Deus. Ninguém nunca viu Deus. Será que os erros que a gente cometeu na vida precisam de um castigo tão grande assim? Isso pode dar até depressão. Tem um monte de gente que mora na rua que tem essa depressão. (E1).

O preconceito e a discriminação estão relacionados com os diversos mitos que circundam a pessoa em situação de rua, pois há uma ideia geral de que essas pessoas são perigosas, vagabundas, drogadas. Tais pontos de vista servem apenas para fortalecer o cenário de exclusão social. Além disso, geram consequências à saúde mental dessas pessoas, que, tratadas como um incômodo, desenvolvem sentimentos de não pertencimento social27, provocando o isolamento, podendo até mesmo gerar quadros de depressão e ansiedade, como evidenciado na fala de E1.

Alguns autores relatam que a população em situação de rua possui sentimentos de vergonha, baixa autoestima e inutilidade28. Percebe-se isso na fala acima de E1, quando relata ser tratado como um ‘lixo’, ou seja, como um objeto descartado, sem utilidade29. A PNPSR determina o desenvolvimento de ações educativas que contribuam para a formação da cultura do respeito, da ética e da solidariedade, de modo a resguardar a observância aos direitos humanos15. A sensibilização da sociedade para as dificuldades que a população em situação de rua enfrenta todos os dias ajudaria a desmistificar várias questões que foram relacionadas ao preconceito. Atividade que requer insistência e comprometimento do poder público e de todos os setores sociais.

Outro aspecto preocupante nesse cenário é a vulnerabilidade à violência. Nas ruas, a violência aparece de diversas formas: psíquica, que se expressa pelo preconceito; social, que acontece por meio do não acesso aos bens sociais; e física, que proporciona risco à vida.

Uma vez também eu levei uma paulada da polícia ... e eu não fiz nada com a polícia... Apanhei muito mesmo. (E2).

Um dos objetivos da PNPSR é implantação de centros de defesa dos direitos humanos e canais para receber as denúncias de violência15. Entretanto, Arbex30 relata a violência policial e de agentes públicos contra a população em situação de rua como algo significativo. Dentre os casos, estão agressões físicas, verbais e destruição de objetos pessoais.

Todas as mulheres entrevistadas revelaram medo de sofrerem violência sexual, e algumas delas contam histórias de estupro:

Então dificuldade é o medo de ser vítima, de ser mais um corpo encontrado no rio Paraibuna ou estrebuchado na calçada. E a gente que é mulher tem que ter mais medo porque pode ter violência por causa de sexo também. (E17).

Aqui na rua eu também fui abusada. Nem lembro a cara do homem. Não quero lembrar. Só lembro que era nojento. E foi assim que meu último filho veio pro mundo. (E15).

Sofri muito abuso, viu? Primeiro foi dentro de casa com o marido. Tenho nove filhos e oito são do mesmo pai. A gente se juntou novo... por amor. Mas logo ele se envolveu com drogas, começou a me bater, forçar relação... sexual, né? (E15).

Acabei conhecendo as drogas por causa de um fim de relacionamento e estou assim... na rua e no vício. Eu apanhava dele todo dia, mas tinha medo de deixar. Aí ele é que me deixou. Mas eu vim mesmo para a rua por causa das drogas. (E17).

Mas logo ele se envolveu com drogas, começou a me bater, forçar relação... sexual, né? E depois de muito apanhar, decidi sair de casa. E aí foi aquilo que eu te contei... de achar um apartamento vazio, invadir... isso você já sabe. Aqui na rua eu também fui abusada. (E15).

As violências sofridas pelas mulheres não podem ser vistas como fruto de fragilidade. Na verdade, estão intimamente ligadas a um modelo patriarcal de sociedade que coloca a mulher como um objeto, inferiorizando-a. O patriarcalismo é uma estrutura caracterizada por uma organização social que possibilita que o homem tenha status de autoridade sobre as mulheres e filhos. Tal organização permeia toda a sociedade, inclusive as relações de produção e consumo e as estruturas políticas. A violência contra a mulher e a aquiescência da sociedade relacionam-se, portanto, com relações hierárquicas de poder entre homens e mulheres, instituídas a partir dessa organização31.

Rosa e Brêtas32 chamam a atenção para a questão da relação de gênero sobre as diferenças existentes nas violências que provocam o movimento de inserção na rua. Informam que a rua para os homens é o resultado de situações de ruptura por desgaste das relações. Já para algumas mulheres, a rua se apresenta como saída para as condições de violência sofridas no convívio doméstico.

No relato de E16, observa-se uma trama de violência que teve seu início ainda quando morava em uma casa. Estando na rua, demonstra o medo de ser vítima de uma violência que parte do poder relacionado ao status social:

As pessoas gostam muito de bater na gente. Sai empurrando, chutando. E tem aquele medo de ser morta, de ser linchada, assassinada... estuprada. E isso não é medo só das outras pessoas que moram na rua. O medo é principalmente de quem não mora na rua. Às vezes um doutor faz isso. Aí não tem como falar para a polícia... porque eles acham que a culpa é da gente mesmo. E até a polícia usa da sua autoridade para bater. Aí é muito perigoso. Eu sei que às vezes dentro da casa da gente a violência acontece... como eu apanhava dentro de casa. Imagina na rua! (E16).

Quanto à proteção de mulheres agredidas, as Delegacias da Mulher, que deveriam ser serviços especializados e capacitados para o atendimento das vítimas, ainda sofrem críticas em suas ações. Além disso, as mulheres não se sentem devidamente entendidas, protegidas e amparadas. Assim, a decisão de romper o silêncio e denunciar as situações de violência torna-se um movimento árduo33.

Relatadas, ainda, dificuldades relacionadas à necessidade de deambulação durante o dia:

Dormir no albergue ainda é bom, mas a gente tem que sair bem cedo, aí tem que ficar perambulando pela rua. A gente fica andando na rua por aí, já que não tem outro lugar para ficar. (E9).

A necessidade que a população em situação de rua tem de perambular pelo espaço urbano foi identificada como uma tática para sobreviver ou para enfrentar o cotidiano, isto é, movimentar-se pela cidade em busca de proteção, alimentos, roupas e outros34.

As feridas nos pés estão dentre os problemas de saúde mais relevantes para as pessoas de rua. Muitas delas se locomovem bastante pelas cidades sem proteção e no calor do asfalto, resultando em queimaduras, cortes e feridas35.

A não atenção a essas situações fragiliza e determina processos de adoecimento importantes nesses indivíduos, que podem não parecer relevantes para suas formas de conduzir a vida, mas que os fazem chegar aos serviços de saúde em condições agudas e impeditivas para suas locomoções36.

Muitas foram as dificuldades relativas à vivência nas ruas narradas pelos participantes desta pesquisa. Considerando a saúde como multideterminada, percebe-se que, nesses casos, ela sofre interferência direta da realidade crua que a rua oferece àqueles que dela fazem seu abrigo.

Considerações finais

Pesquisar sobre as dificuldades da vivência nas ruas que interferem na saúde da população em situação de rua foi uma experiência com inevitáveis reflexões sobre o quanto o Município do estudo ainda tem que avançar nas políticas intersetoriais e na construção de equipamentos para executá-las. Dar voz às pessoas em situação de rua para compreender suas necessidades pode ser o ponto de partida para o reconhecimento das prioridades no planejamento das ações municipais. Espera-se que a pesquisa possa servir para ações e estratégias que viabilizem a política municipal específica para essa população.

O momento para as discussões sobre o acesso aos serviços de saúde na percepção da população em situação de rua é favorável, já que o Município iniciou a construção de política para essas pessoas em 2016. A política deve prezar por ações de caráter intersetorial, de forma a propiciar a abrangência das mais diversas necessidades de saúde das pessoas em situação de rua. Ao poder público do Município cabe agilizar o andamento da política e possibilitar estratégias e equipamentos para a sua efetivação.

Existe a necessidade de expansão do número de vagas nos serviços de acolhimento temporário para melhor atender ao número de pessoas em situação de rua. E, para que haja procura pelos albergues, sugere-se que seja construído um espaço de escuta e debates sobre as demandas dos usuários.

É relevante o relato sobre a ausência de banheiros públicos com chuveiros, além de bebedouros e locais para lavagem de roupas. Dessa forma, a construção de locais que atendam às necessidades de higiene pessoal e excreção são fundamentais para essas necessidades básicas, assim como também contribuem para o autocuidado e favorecimento das condições de saúde.

A pesquisa possibilitou a compreensão sobre os diversos aspectos relacionados à vivência nas ruas que interferem na saúde, destacando o medo de sofrerem violência física e sexual, relatada por praticamente todas as entrevistadas. Essas informações revelam a necessidade de olhar mais sensível do poder público para a situação da mulher que está na rua e para suas demandas específicas. Poucas são as pesquisas com foco nessas mulheres. O incentivo ao desenvolvimento de tais pesquisas contribuiria para o atendimento de suas demandas.

A pesquisa apresentada possui algumas limitações. Pelo fato de ser uma pesquisa qualitativa, a compreensão do fenômeno ocorreu no período em que se realizou a coleta de dados no Município, que pode ter sofrido mudanças positivas ou negativas em consequência das mudanças no contexto político e social do País.

Só é possível que o acesso à saúde seja contemplado de maneira efetiva se os aspectos que a determinam forem considerados. Espera-se que as dificuldades aqui apresentadas, dentre outras, sejam acompanhadas pelo poder público, com intervenção intersetorial, para que assim haja a transformação no cotidiano das pessoas que enfrentam a dureza das ruas.

  • Suporte financeiro: não houve

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Maio 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2020

Histórico

  • Recebido
    25 Jun 2019
  • Aceito
    16 Out 2019
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