Acessibilidade / Reportar erro

Cuidados Paliativos em hospital oncológico de referência: atenção primária, diagnóstico tardio e mistanásia

Palliative Care in a referral oncology hospital: Primary Health Care, late diagnoses and mysthanasia

RESUMO

Estudo retrospectivo, observacional, transversal que analisou os encaminhamentos de 120 pacientes oncológicos para uma equipe de Cuidados Paliativos (CP) em hospital público de referência em oncologia no norte do Paraná, em fevereiro de 2020. Os dados foram coletados nos prontuários e analisados com base no suporte teórico da bioética. Observou-se que expressiva maioria dos pacientes 82,5% chegou ao hospital com doença avançada e 59,7% foram encaminhados para CP em menos de seis meses após a entrada no serviço. Parte importante dos pacientes chegou sem possibilidade de terapia específica oncológica, sendo, por isso, rapidamente encaminhados aos CP. Esses e outros achados da pesquisa sustentam uma discussão entre cuidados paliativos, atenção primária à saúde e diagnóstico oncológico tardio. O artigo conclui que, no contexto dos CP, as mortes relacionadas ao diagnóstico oncológico tardio, antecedidas de sofrimentos evitáveis e decorrentes de falhas estruturais em políticas públicas de saúde, expressam uma problemática forma de mistanásia.

PALAVRAS-CHAVES
Cuidados paliativos; Oncologia; Atenção Primária à Saúde; Bioética

ABSTRACT

This retrospective study analyzed the referrals of 120 cancer patients to a Palliative Care (PC) team in a public oncology referral hospital in northern in northern Paraná, in February 2020. It was observed that the vast majority of patients (82.5%) arrived at the hospital with advanced disease, while 59.7% were referred to PC in less than six months after entering the service. An important part of the patients arrived with no possibility of specific oncological therapy, and were therefore quickly referred to PC. These and other research data support a discussion between palliative care, primary health care and late cancer diagnosis. The article concludes that, in the context of PC, deaths related to late cancer diagnosis, preceded by avoidable suffering due to structural failures in public health policies, are characterized as a problematic form of mysthanasia.

KEYWORDS
Palliative care; Medical oncology; Primary Health Care; Bioethics

Introdução

Os Cuidados Paliativos (CP) desenvolveram-se nas últimas décadas a partir de uma prática focada no fim da vida para uma abordagem interprofissional e interdisciplinar que inclui o gerenciamento de sintomas físicos e psicossociais, cuidados espirituais, apoio aos familiares e cuidadores, facilitação na comunicação e tomada de decisões complexas11 Radbruch L, Lima L, Knaul F, et al. Redefining Palliative Care - A New Consensus-Based Definition. J Pain Symptom Manage. 2020; 60(4):754-764. [acesso em 2023 ago 6]. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.jpainsymman.2020.04.02.
https://doi.org/10.1016/j.jpainsymman.20...
, 22 World Health Organization. Palliative care. 2020. [acesso em 2023 ago 6]. Disponível em: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/palliative-care.
https://www.who.int/news-room/fact-sheet...
, 33 The International Association for Hospice and Palliative Care. Global Consensus based palliative care definition. Houston: IAHPC; 2018. [acesso em 2023 ago 6]. Disponível em: https://hospicecare.com/what-we-do/projects/consensus-based-definition-of-palliative-care/definition/.
https://hospicecare.com/what-we-do/proje...
.

Portanto, os CP são mais do que um processo relacionado à morte e ao morrer, mas envolvem o cuidado integral, o mais precocemente possível, de pessoas que apresentam doenças graves e potencialmente geradoras de sofrimento durante todo o seu curso, tal como ocorre nas doenças oncológicas, para as quais os CP têm se desenvolvido para serem ofertados precocemente, no início do tratamento antineoplásico44 Caglayan A, Redmond S, Rai S, et al. The integration of palliative care with oncology: the path ahead. Ann Palliat Med. 2023 [acesso em 2024 abr 6]; 12(6):1371-1381. Disponível em: https://dx.doi.org/10.21037/apm-22-1154.
https://dx.doi.org/10.21037/apm-22-1154....
.

Desde um ponto de vista ético, os CP podem ser entendidos como a proposta em que a dimensão do cuidado é levada a seu máximo, envolvendo a incondicional aceitação e o acolhimento do outro55 Floriani CA. Bioethical considerations on models for end-of-life care. Cad. Saúde Pública. 2021; 37(9):1-13.. Nessa relação de cuidado, os processos compartilhados de tomada de decisão envolvendo pacientes, familiares e profissionais de saúde adquirem particular importância66 Vidal EIO, Kovacs MJ, Silva JJ, et al. Posicionamento da ANCP e SBGG sobre tomada de decisão compartilhada em cuidados paliativos. Cad. Saúde Pública. 2022; 38(9):e00130022..

No Brasil, uma confluência de fatores envolvendo os processos de determinação social da saúde, as transições demográficas e epidemiológicas, além da crescente incorporação de novas tecnologias nos cuidados em saúde, implica desafios éticos importantes aos CP não apenas na dimensão terciária do cuidado, mas, também, na atenção primária e na formulação e execução de políticas públicas77 Paraizo-Horvath CMS, Fernandes DS, Russo TMS, et al. Identificação de pessoas para cuidados paliativos na atenção primária: revisão integrativa. Ciênc. saúde coletiva. 2022; 27(9):3547-3557., 88 Junges JR, Schaefer R, Lopes PPS, et al. Cuidados Paliativos na atenção primária à saúde: discussão de um caso. Sanare. 2022; 21(2):23-33., 99 Ribeiro JR, Poles K. Cuidados Paliativos: Prática dos Médicos da Estratégia Saúde da Família. Rev. Bras. Educ. Med. 2019; 43(3):62-72..

Os CP apresentam particular importância aos pacientes oncológicos, na medida em que evidências apontam que esses cuidados complementam a terapêutica oncológica, otimizando o status de desempenho, funcionamento, controle de sintomas e qualidade de vida, além de melhorarem a adesão ao tratamento e, portanto, o bem-estar dos pacientes e de seus familiares1010 Lundeby T, Hjermstad MJ, Aass N, et al. Integration of palliative care in oncology – the intersection of cultures and perspectives of oncology and palliative care. Ecancermedicalscience. 2022; 16:1376..

Apesar dessa importância, evidências indicam que, no Brasil, são poucos os pacientes que recebem o cuidado de forma adequada1111 Freitas R, Oliveira LC, Mendes GLQ, et al. Barreiras para o encaminhamento para o cuidado paliativo exclusivo: a percepção do oncologista. Saúde debate. 2022; 46(133):331-345., e também são poucos os estudos que analisam empiricamente a relação entre CP oncológicos e diagnósticos tardios a partir da ótica do paciente1212 Rodrigues DMV, Abrahão AL, Lima FLT. Do começo ao fim, caminhos que segui: itinerações no cuidado paliativo oncológico. Saúde debate. 2020; 44(125):349-361., 1313 Barbosa GS, Barbosa DS, Favero GM, et al. Pacientes atendidos pelo núcleo de cuidados paliativos em um hospital universitário. Res. Soc. Dev. 2023; 12(5):e19112541541..

Por esse motivo, este estudo buscou analisar esse cenário em um hospital do norte do Paraná, estabelecendo uma análise retrospectiva, com base em prontuários, discutindo os resultados a partir do suporte teórico da bioética. Essa base teórica foi escolhida porque ambos os campos – cuidados paliativos e bioética – partem de abordagens interdisciplinares sobre o processo de saúde e doença, além de atuarem com base em valores comuns, como a proteção da dignidade e da autodeterminação55 Floriani CA. Bioethical considerations on models for end-of-life care. Cad. Saúde Pública. 2021; 37(9):1-13., 1414 Lima MA, Manchola-Castillo C. Bioética, cuidados paliativos e libertação: contribuição ao “bem morrer”. Rev. Bioética. 2021; 29(2):268-278..

O estudo discute especificamente a categoria da mistanásia, entendida como a morte miserável, precoce, evitável, causada por falhas estruturais e programáticas de políticas públicas1515 Ferreira S, Porto D. Mistanásia × Qualidade de vida. Rev. Bioética. 2019; 27(2):191-195., 1616 Anjos MF. Eutanásia em chave de libertação. Bol. do Inst. Camiliano Pastor da Saúde. 1989; 57., como forma de lançar luzes sobre os problemas de CP relacionados à atenção primária à saúde, o diagnóstico tardio e os cuidados de pacientes oncológicos.

Metodologia

Trata-se de estudo retrospectivo, observacional e transversal, realizado a partir da análise dos prontuários de pacientes encaminhados à equipe de CP de um hospital público de referência na região do norte do Paraná, durante o mês de fevereiro de 2020. O hospital atende mais de 100 municípios da região, sendo centro de referência para acompanhamento e tratamento do câncer em adultos para cinco regionais de saúde e para crianças em oito regionais. Trata-se de um hospital filantrópico que tem mais de 90% do seu atendimento destinado ao Sistema Único de Saúde (SUS).

Os pacientes das cinco regionais atendidas no hospital, quando recebem diagnóstico de doença oncológica por exames de imagem ou de anatomia patológica, são encaminhados pela Unidade Básica de Saúde (UBS) ao hospital de referência, onde ocorre uma triagem para as ‘clínicas de entrada’ no serviço. Essas clínicas são a porta do serviço para a população, em sua maioria, clínicas cirúrgicas, entre elas, Gastrocirurgia, Ginecologia, Torácica, Urologia, Cabeça e Pescoço e Neurocirurgia.

A equipe interdisciplinar de CP existe no hospital desde 2010 e conta com médicos especialistas em diversas áreas, na sua maioria, medicina paliativa, enfermeiros, psicólogo, assistente social, nutricionista, fisioterapeuta, fonoaudióloga, farmacêutico e capelão. Realiza atendimentos nas modalidades ambulatorial, domiciliar e internação hospitalar em unidade própria de CP, além das interconsultas realizadas de forma conjunta às demais especialidades em internações realizadas em setores gerais do hospital. Os pacientes são encaminhados à equipe de CP por meio de solicitação de parecer pelo sistema eletrônico pela equipe titular.

Foram avaliados todos os prontuários eletrônicos de pacientes encaminhados em fevereiro de 2020 em todas as modalidades de atendimento (ambulatorial e internação hospitalar). Os dados coletados dos prontuários foram: data de nascimento, idade, clínica de entrada (aquela que recebeu o paciente no hospital), data de entrada no hospital, diagnóstico oncológico, estadiamento na chegada ao hospital (avaliado como avançado ou inicial), tratamentos realizados (quimioterapia curativa ou paliativa, radioterapia curativa ou paliativa e cirurgia), clínica que realizou o encaminhamento aos cuidados paliativos, o motivo do encaminhamento e a data do encaminhamento, a partir da qual calculou-se tempo do paciente no hospital antes de ser encaminhado à equipe de cuidados paliativos.

Para análise dos dados, considerou-se uma análise estatística descritiva realizada no software Excel, em que foram construídas as tabelas para o auxílio da caracterização dos pacientes em questão. Aos pacientes foram assegurados todos os parâmetros éticos previstos pela Resolução n° 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (CAAE 36219920.8.0000.0020, parecer 4.293.047).

Resultados

Foram avaliados todos os prontuários eletrônicos de pacientes encaminhados em fevereiro de 2020 em todas as modalidades de atendimento (ambulatorial e internação hospitalar), totalizando 124. Após uma validação dos dados, foram excluídos três, por estarem em duplicidade, e outro por estar equivocado, pois o encaminhamento seria para oncologia clínica, mas realizado de forma errônea no sistema eletrônico. Restaram 120 prontuários analisados.

A análise dos dados permitiu, inicialmente, traçar um perfil dos pacientes encaminhados aos CP no mês de fevereiro de 2020. A tabela 1 apresenta o perfil dos pacientes.

Tabela 1
Perfil dos pacientes encaminhados aos Cuidados Paliativos. Londrina, 2020

Foram analisados os diagnósticos mais frequentes nos pacientes encaminhados, pois condizem com as clínicas que mais encaminham. Os tumores gastrointestinais, quando somados, são responsáveis por 32,6% dos encaminhamentos para os CP, sendo eles os de fígado, intestino, pâncreas e vias biliares, esôfago e estômago. Os cânceres de cabeça e pescoço são os mais comuns de forma isolada, com 12,5%, seguidos pelo câncer de mama, com 10,8%, próstata, com 7,5%, e colo uterino, pulmão, hematológico e glioblastoma, todos com 5,0%. Os 16,6% restantes referem-se a diversas formas de câncer menos prevalentes, como adrenal, pênis, pele, indeterminados, entre outros.

Com relação aos motivos dos encaminhamentos, as informações dos prontuários indicaram o seguinte: 71,7% foram encaminhados aos CP para criação de vínculo com a equipe, isto é, pacientes com doença avançada encaminhados para iniciar vínculo com equipe, uma vez que estariam fora da possibilidade de cura.

Outros 15,8% tinham indicações de criação de vínculo e controle de sintomas, isto é, início de vínculo com equipe para possível posterior atendimento exclusivo, mas, no momento, com necessidade, também, de controle de sintomas difíceis; e 3,3% tiveram indicação apenas de controle de sintomas.

Apenas 3,3% tinham indicação de piora clínica importante, necessitando de CP exclusivo, enquanto 2,5% tiveram indicação de controle de sintoma em doenças avançadas. Finalmente, 1,7% chegou ao serviço por busca ativa pela equipe de CP da UTI, 0,8% por pedido de familiares e apenas 0,8% com indicação expressa de cuidados de fim de vida.

Com relação aos tratamentos a que todos os 120 pacientes encaminhados foram submetidos, é importante destacar que alguns deles receberam mais de uma modalidade. Um paciente pode ter recebido quimioterapia paliativa com radioterapia paliativa, ou ter recebido quimioterapia curativa em um primeiro momento e, posteriormente, quimioterapia paliativa, justificando o motivo de se obter a soma maior que 100% na tabela 2.

Tabela 2
Modalidades de tratamento. Londrina, 2020

Também foram avaliados os pacientes que foram encaminhados ao serviço de CP em estadiamento avançado, ou seja, sem possibilidade de terapêutica curativa, mas apenas para controle e estabilização da doença oncológica. No total dos 120 encaminhamentos, 82,5% (n=99) estavam nessa situação.

Avaliaram-se todas as possíveis combinações de tratamentos realizados pelos pacientes em estadiamento avançado ao diagnóstico, cujos resultados estão na tabela 3, onde se observa que cerca de 69% (68) dos pacientes realizaram algum tratamento ou alguma combinação. Os tratamentos mais frequentes foram a quimioterapia paliativa exclusiva 16,2% (16) e a quimioterapia curativa exclusiva 11,1% (11) Além disso, entre os 99 pacientes em estadiamento avançado, 31,3% (31) não receberam nenhum tratamento modificador de doença (quimioterapia, radioterapia e/ou cirurgia).

Tabela 3
Combinações de tratamentos de estadiamentos avançados. Londrina, 2020

Quanto ao tempo de encaminhamento para os CP a partir da entrada no serviço, a maioria, 59,7% (59) dos pacientes, foi encaminhada à equipe especializada de CP com menos de seis meses de início do seu tratamento. Especificamente, 25,3% (n=25) foram encaminhados apenas com um mês após a chegada ao Hospital. 18,2% (n=18) foram encaminhados em até 3 meses, enquanto 16,2% (n=16) foram encaminhados entre 3 e 6 meses. Já 17,2% (n=17) receberam encaminhamento entre 6 meses e 1 ano, 10,1% (n=10) entre 1 e 2 anos; e o restante, 13,1% (n=13), foi encaminhado aos CP depois de mais de 2 anos de entrada no serviço.

Observa-se, também, a partir dos dados encontrados, que os pacientes que não chegaram a ser acompanhados pela equipe – prováveis óbitos antes da resposta de parecer –, em sua maioria, 61,5% (61), foram aqueles que tiveram solicitação de parecer até 3 meses desde sua entrada no serviço.

Analisando o tempo de encaminhamento dos pacientes para CP após a entrada no serviço, observou-se que 25,3% (25) foram encaminhados já no primeiro mês de atendimento, 18,2% (18) dos pacientes receberam encaminhamentos entre um e três meses, e 16,2% (16) entre três e seis meses após a chegada ao hospital. Essa distribuição temporal sugere uma atenção especial à necessidade de suporte paliativo em hospitais oncológicos.

Ao analisar a relação entre o tempo até o encaminhamento para os CP e a proposta inicial de tratamento para o paciente, observa-se que, entre pacientes que receberam proposta curativa e proposta paliativa, não houve diferença no tempo de seguimento, sendo os primeiros encaminhados, em média, com 269 dias, e os demais com média de 246 dias. Observando os pacientes sem proposta de tratamento curativo oncológico, nota-se que esses foram encaminhados com média de 98 dias.

Por fim, na tabela 4, verifica-se se a média de tempo de seguimento com a equipe, a depender do tempo que os pacientes levaram para ser encaminhados. Percebe-se, assim, que os pacientes com indicação de CP nos primeiros 3 meses de chegada ao hospital foram os que tiveram menor tempo de acompanhamento em razão do óbito precoce.

Tabela 4
Relação entre tempo de encaminhamento e seguimento com a equipe de CP. Londrina, 2020

Esses dados mostram que pacientes que foram encaminhados para equipe nos primeiros 30 dias viveram 39 dias, em média; os que foram encaminhados de um a três meses, viveram a média de 10 dias após avaliação da equipe. Pacientes que demoraram dois anos para ter seu encaminhamento à equipe, viveram em média 105 dias após a avaliação, provavelmente por se tratar de neoplasia com característica indolente ou por esses pacientes terem chegado ao serviço de oncologia de forma mais precoce, com possibilidade de tratamento modificador de doença.

Discussão

Os dados da pesquisa sugerem que os pacientes atendidos pelo hospital oncológico de referência no norte do Paraná chegam de forma tardia ao serviço, muitas vezes sem possibilidade de terapia modificadora específica, sendo, por isso, rapidamente encaminhados aos CP. Esses achados corroboram dados das literaturas nacional1111 Freitas R, Oliveira LC, Mendes GLQ, et al. Barreiras para o encaminhamento para o cuidado paliativo exclusivo: a percepção do oncologista. Saúde debate. 2022; 46(133):331-345., 1313 Barbosa GS, Barbosa DS, Favero GM, et al. Pacientes atendidos pelo núcleo de cuidados paliativos em um hospital universitário. Res. Soc. Dev. 2023; 12(5):e19112541541., 1717 Nunes LMP, Silvino ZR, Moreira MC, et al. Encaminhamentos aos cuidados paliativos para pacientes com câncer: revisão integrativa. Rev. Enferm. Atual. Derme. 2019; 77(15):51-59. e internacional1818 Gebel C, Basten J, Kruschel I, et al. Knowledge, feelings, and willingness to use palliative care in cancer patients with hematologic malignancies and solid tumors: a prospective, cross-sectional study in a comprehensive cancer center in Germany. Support Care Cancer. 2023; 31(7):445., 1919 Hui D, Kim S-H, Kwon JH, et al. Access to Palliative Care Among Patients Treated at a Comprehensive Cancer Center. Oncologist. 2012; 17(12):1574-1580., 2020 Wiegert EVM, Oliveira LC, Calixto-Lima L, et al. Cancer cachexia: Comparing diagnostic criteria in patients with incurable cancer. Nutrition. 2020; 79-80:110945. que apontam desafios tanto para o diagnóstico precoce de câncer quanto para o encaminhamento precoce aos CP. Indicam, também, a possibilidade de ocorrência de conflitos bioéticos relacionados à mistanásia, ou seja, à morte evitável causada por falhas ou problemas estruturais de políticas públicas1515 Ferreira S, Porto D. Mistanásia × Qualidade de vida. Rev. Bioética. 2019; 27(2):191-195., 1616 Anjos MF. Eutanásia em chave de libertação. Bol. do Inst. Camiliano Pastor da Saúde. 1989; 57..

Os dados também corroboram achados de outras pesquisas que abordaram a relação entre doenças oncológicas e cuidados paliativos, como, por exemplo, o estudo em que Barbosa et al.1313 Barbosa GS, Barbosa DS, Favero GM, et al. Pacientes atendidos pelo núcleo de cuidados paliativos em um hospital universitário. Res. Soc. Dev. 2023; 12(5):e19112541541. identificaram que o tempo entre a internação e o encaminhamento aos CP em um hospital universitário foi menor quando o paciente era portador de neoplasias em comparação com pacientes com hipertensão arterial sistêmica.

Na presente pesquisa, esse problema fica claro quando se observa o tempo decorrido desde o início de tratamento e acompanhamento oncológico para o encaminhamento a uma equipe de CP. Verifica-se que 25,3% (25) dos pacientes foram encaminhados com menos de um mês, 18,2 % (18) de um a três meses, e 16,2 % (16) de três a seis meses. Ou seja, 59,7% (59) foram encaminhados aos CP com menos de seis meses de início do seu tratamento e do seu provável diagnóstico.

Rodrigues et al.1212 Rodrigues DMV, Abrahão AL, Lima FLT. Do começo ao fim, caminhos que segui: itinerações no cuidado paliativo oncológico. Saúde debate. 2020; 44(125):349-361., em um estudo que identificou os itinerários de pacientes com câncer em cuidados paliativos, identificaram dificuldades quanto ao diagnóstico nos diferentes espaços da rede de atenção à saúde, o que pode ter levado à chegada tardia dos usuários na unidade de tratamento do câncer.

Essa também é a hipótese para os achados da presente pesquisa, uma vez que o relativamente breve espaço de tempo entre o início do tratamento no hospital e o encaminhamento aos CP de quase 60% dos pacientes, somado ao fato de o hospital ser a única referência em oncologia na região, sugere a ocorrência de diagnóstico tardio oncológico no território. Esses dados reforçam, também, as indicações da literatura acerca das problemáticas que relacionam cuidados paliativos, atenção primária e estrutura da rede de saúde77 Paraizo-Horvath CMS, Fernandes DS, Russo TMS, et al. Identificação de pessoas para cuidados paliativos na atenção primária: revisão integrativa. Ciênc. saúde coletiva. 2022; 27(9):3547-3557., 88 Junges JR, Schaefer R, Lopes PPS, et al. Cuidados Paliativos na atenção primária à saúde: discussão de um caso. Sanare. 2022; 21(2):23-33..

O acesso limitado ou ineficaz à detecção precoce e a tratamentos oportunos para doenças oncológicas, quando decorrente de falhas estruturais em políticas públicas de saúde, implica graves conflitos éticos e sanitários relacionados a diversas formas de desigualdades e vulnerabilidades2121 Cabral ALLV, Giatti L, Casale C, et al. Social vulnerability and breast cancer: Differentials in the interval between diagnosis and treatment of women with different sociodemographic profiles. Ciênc. saúde colet. 2019; 24(2):613-622.. Ao mesmo tempo, a ênfase unidimensional em rastreamento e detecção precoce também pode gerar problemas éticos e sanitários, sobretudo relacionados a sobrediagnóstico e sobretratamento2222 Crosby D, Bhatia S, Brindle KM, et al. Early detection of cancer. Science. 2022; 375(6586):eaay9040..

Por isso, uma adequada análise bioética dessa situação deve partir do reconhecimento das interseccionalidades de diversas formas de vulnerabilidades2323 Ayres JR. Vulnerabilidade, Cuidado e integralidade: reconstruções conceituais e desafios atuais para as políticas e práticas de cuidado em HIV/Aids. Saúde debate. 2022; 46(esp7):196-206., que podem estar relacionadas aos CP em doenças oncológicas, incluindo a vulnerabilidade biológica, e relacionadas às próprias condições das doenças dos pacientes oncológicos2424 Ring A, Nguyen-Sträuli BD, Wicki A, et al. Biology, vulnerabilities and clinical applications of circulating tumour cells. Nat. Rev. Cancer. 2023; 23(2):95-111., as vulnerabilidades sociais, relacionadas aos fatores socioeconómicos que podem estar na base dos processos de adoecimento e encaminhamento tardio a tratamento de câncer2525 Ferreira MC, Sarti FM, Barros MBA. Social inequalities in the incidence, mortality, and survival of neoplasms in women from a municipality in Southeastern Brazil. Cad. Saúde Pública. 2022 [acesso em 2024 abr 6]; 38(2):e00107521. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0102-311X00107521.
https://doi.org/10.1590/0102-311X0010752...
, além das vulnerabilidade programáticas, relacionadas às falhas sistêmicas no sistema de saúde2626 Siqueira FD, Neves ET, Sehnem GD. Vulnerabilidade de adolescentes e jovens rurais: reflexões envolvendo o tratamento oncológico. Contrib. Las Ciencias Soc. 2024; 17(2):e4490. e que podem levar ao cenário potencialmente mistanásico encontrado nesta pesquisa.

De um ponto de vista de estruturação de políticas públicas, de acordo com Paraizo-Horvath e colegas77 Paraizo-Horvath CMS, Fernandes DS, Russo TMS, et al. Identificação de pessoas para cuidados paliativos na atenção primária: revisão integrativa. Ciênc. saúde coletiva. 2022; 27(9):3547-3557., a atenção primária à saúde é nível ideal de assistência à saúde para a prestação e coordenação dos cuidados paliativos, na medida em que esse nível de assistência possui maior proximidade e vínculo com a população, o que favorece um cuidado humanizado. Essa proximidade pode contribuir para que as pessoas recebam diagnósticos oncológicos antecipadamente, além de viabilizar acessos a tratamentos específicos e abordagens para criação de vínculos com a abordagem paliativa no tempo adequado. Tais medidas podem contribuir, também, para uma menor pressão de demanda para hospitais de referência, além da redução dos impactos éticos e sanitários das diferentes intersecções de vulnerabilidades discutidas.

Os dados deste estudo que relacionam um problema estrutural de diagnósticos tardios de câncer na região são reforçados quando se observa o fato de que os pacientes que não chegaram a ser acompanhados pela equipe de CP – por provável óbito antes da resposta de parecer – foram, na maioria 61,5% (61), aqueles com solicitação de parecer emitida até 3 meses desde sua entrada no serviço, indicando que pacientes chegam ao serviço de referência oncológico com doenças graves, avançadas e já no final de vida.

As neoplasias que, segundo o Ministério da Saúde2727 Brasil. Ministério da Saúde. Cadernos de Atenção Primária n. 29. Rastreamento. (Série A). Normas e Manuais Técnicos. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2010., são passíveis de diagnóstico precoce e tratamento precoce são: neoplasia de mama, de colo uterino, cólon e reto, cavidade oral, nasofaringe, laringe, estômago, pele (melanoma), outros cânceres de pele, bexiga, próstata, retinoblastoma e testículo. Conforme verificado neste estudo, entre as doenças mais prevalentes dos encaminhamentos à equipe de CP, muitas fazem parte do rastreamento precoce preconizado pelo Ministério da Saúde.

Finalmente, conforme demonstrado, muitos dos pacientes, 82,5% (99), já chegaram ao hospital com doenças bastante avançadas, algumas sem proposta de tratamento oncológico específico. Isso sugere que essas doenças poderiam ter sido diagnosticadas mais precocemente, aos primeiros sinais de alerta, conforme preconizado na literatura que aborda diferentes tipos de câncer44 Caglayan A, Redmond S, Rai S, et al. The integration of palliative care with oncology: the path ahead. Ann Palliat Med. 2023 [acesso em 2024 abr 6]; 12(6):1371-1381. Disponível em: https://dx.doi.org/10.21037/apm-22-1154.
https://dx.doi.org/10.21037/apm-22-1154....
, 2828 Krann R, Colussi CF. Estudo de avaliabilidade das ações para detecção precoce do câncer de mama na atenção primária. Saúde debate. 2023; 47(137):101-115., 2929 Santos ROM, Ramos DN, Migowski A. BdT - Barriers to implementing early breast and cervical cancer detection guidelines in Brazil. Physis (Rio J). 2019 [acesso em 2023 ago 6]; 29(4):e290402-e290402. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-73312019000400600.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, reforçando as possibilidades de vulnerabilidades programáticas e dos consequentes processos mistanásicos.

De acordo com Krann e Colussi2828 Krann R, Colussi CF. Estudo de avaliabilidade das ações para detecção precoce do câncer de mama na atenção primária. Saúde debate. 2023; 47(137):101-115., no Brasil, no caso do câncer de mama, um dos principais fatores para a insuficiência na detecção precoce é a ausência de estruturação de equipes de Saúde da Família e/ou de rede básica completa nos territórios. Outras barreiras encontradas por Santos, Ramos e Migowsk2929 Santos ROM, Ramos DN, Migowski A. BdT - Barriers to implementing early breast and cervical cancer detection guidelines in Brazil. Physis (Rio J). 2019 [acesso em 2023 ago 6]; 29(4):e290402-e290402. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-73312019000400600.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
são a baixa adesão dos profissionais aos protocolos de diagnóstico precoce, a desorganização dos serviços de saúde, especialmente pela alta rotatividade de profissionais da atenção básica, além de conflito entre diretrizes de sociedades médicas.

A constatação de que expressiva parte dos pacientes deste estudo, mais de 80%, chegou ao hospital de referência sem possibilidade de tratamento oncológico específico, sendo rapidamente encaminhada aos CP, indica que pode haver na região problemas estruturais discutidos na literatura correlata, tais como deficiências nos programas de rastreamento e detecção precoce do câncer na atenção primária2828 Krann R, Colussi CF. Estudo de avaliabilidade das ações para detecção precoce do câncer de mama na atenção primária. Saúde debate. 2023; 47(137):101-115., lacunas na capacitação dos profissionais para identificação dos sinais de alerta3030 Ferreira MCM, Nogueira MC, Ferreira LCM, et al. Early detection and prevention of cervical cancer: knowledge, attitudes and practices of FHS professionals. Ciênc. saúde coletiva. 2022; 27(6):2291-2302. e outros problemas gerais relacionados à estrutura de promoção e assistência à saúde frente às doenças oncológicas no País3131 Paiva KM, Besen E, Moreira E, et al. Incidência de câncer nas regiões brasileiras e suas associações às Políticas de Saúde. Saúde Pesqui. 2021; 14(3):e7969..

A hipótese acerca da presença desses problemas estruturais precisa ser confirmada por outros estudos que avaliam especificamente o processo de diagnóstico de câncer na região estudada, no entanto, os dados desta pesquisa representam importante alerta para formuladores de políticas públicas, gestores e pesquisadores em saúde coletiva da região.

Além disso, tal como inicialmente indicado, ilustram, também, a possibilidade de ocorrência de importantes conflitos de natureza bioética. Isto ocorre porque, ao chegarem ao hospital referência com doenças avançadas, sem expectativa de reversão por meio de tratamento oncoespecífico, mesmo que em caráter paliativo, os pacientes terão vivido aquilo que a bioética chama de mistanásia (do grego mys = infeliz; thanathos = morte; morte infeliz), ou seja, a morte ‘miserável’, fora de seu tempo, marcada pela presença de sofrimentos evitáveis e decorrentes da ausência de estruturas adequadas de políticas e redes de atenção à saúde1515 Ferreira S, Porto D. Mistanásia × Qualidade de vida. Rev. Bioética. 2019; 27(2):191-195., 1616 Anjos MF. Eutanásia em chave de libertação. Bol. do Inst. Camiliano Pastor da Saúde. 1989; 57., 3232 Paiva W, Cunha T. Mistanásia em tempos de pandemia do COVID-19: reflexões iniciais a partir da Bioética Global. In: Dadalto L, organizador. Bioética e COVID-19. Indaiatuba: Foco; 2020., 3333 Oliveira CC. Mistanásia: Responsabilidade Estatal e o Acesso à Saúde. Londrina: Thoth; 2020..

A categoria da mistanásia foi cunhada por Marcio Fabri dos Anjos, em 1989, para substituir o termo então usual de ‘eutanásia social’, pois, de acordo com o autor, enquanto eutanásia remete à ‘boa morte’, ou seja, a morte antecipada por compaixão, para aliviar um sofrimento, a mistanásia destaca a ‘má-morte’, a morte triste, evitável, com sofrimento, causada por problemas estruturais de ordem política e econômica1616 Anjos MF. Eutanásia em chave de libertação. Bol. do Inst. Camiliano Pastor da Saúde. 1989; 57..

Conforme destaca Wanssa3434 Wanssa M. Morte digna e lugar onde morrer: percepção de pacientes oncológicos e de seus familiares. [tese]. Porto: U niversidade do Porto; 2012., dentro dos CP, pode-se dizer que a mistanásia por imprudência ocorre quando a estrutura do serviço não dá importância aos CP, que deveriam ser instituídos a pacientes com doença em estágio terminal, o que acaba provocando uma morte com sofrimento e que seria potencialmente evitável se esses pacientes fossem atendidos por equipe capacitada em alívio do sofrimento.

Nosso estudo amplia essa relação entre mistanásia e CP ao discutir que o diagnóstico tardio, revelado na chegada de pacientes oncológicos em estágio avançado ao hospital de referência, bem como na consequente chegada tardia aos CP, constitui uma dimensão importante da mistanásia, na medida em que os sofrimentos do desfecho poderiam ser reduzidos no curso de todo o adoecimento.

Outro dado que permite levantar o debate sobre a mistanásia por diagnóstico oncológico tardio é o que aponta que 82,5% (n=99) deram entrada em estado avançado, sendo que 31,3% (n=31) não receberam nenhuma modalidade de tratamento.

Tendo em vista que o hospital em questão é tido como o serviço de referência da região, ou seja, único local para referenciamento dessa população com doenças oncológicas, sugere-se que o rastreio e a detecção precoce das neoplasias não ocorrem de forma eficaz, apesar de preconizados, indicando a presença de uma forma específica de mistanásia, que se caracteriza não exclusivamente pela morte evitável, mas por uma forma em que o sofrimento extremo no momento da morte poderia ser evitado ou, ao menos, minimizado3232 Paiva W, Cunha T. Mistanásia em tempos de pandemia do COVID-19: reflexões iniciais a partir da Bioética Global. In: Dadalto L, organizador. Bioética e COVID-19. Indaiatuba: Foco; 2020..

Além disso, conforme observado no estudo, apenas 15,8% (19) dos pacientes do hospital foram encaminhados para vínculo com a equipe de CP e controle de sintomas, e apenas 3,3% (4) foram encaminhados para controle de sintomas exclusivamente. As doenças oncológicas, bem como o tratamento dessas doenças, como radioterapia e quimioterapia, são fonte de sintomas desagradáveis, sendo o encaminhamento para uma equipe de CP importante aliado para o manejo da dor, do controle dos sintomas e acolhimento integral dos pacientes3535 Lopes-Júnior LC, Rosa GS, Pessanha RM, et al. Efficacy of the complementary therapies in the management of cancer pain in palliative care: a systematic review. Rev. Lat. Am. Enfermagem. 2020; 28:1-17..

O controle adequado de sintomas – não somente sintomas físicos, mas tendo em vista, também, esferas holísticas, como social, emocional e espiritual – melhora a vivência do paciente durante o tratamento oncológico, contribuindo, também, para a aderência ao tratamento, podendo impactar positivamente o curso da doença e o processo do morrer3636 Mendes BV, Donato SCT, Silva TL, et al. Bem-estar espiritual, sintomas e funcionalidade de pacientes em cuidados paliativos. Rev. Bras. Enferm. 2023; 76(2):e20220007., contribuindo, assim, para a redução das possibilidades das ‘mortes tristes’, entendidas como mistanásia.

Outros dados da pesquisa – 71,7% (86) dos pacientes encaminhados para criação de vínculo com a equipe de CP – mostram que, no contexto do serviço, os encaminhamentos dos pacientes para a equipe de CP seguem um tempo adequado, uma vez que é possível estabelecer aproximações com a equipe antes dos cuidados propriamente de fim de vida, contribuindo para um processo humanizado de ‘bem-morrer’1414 Lima MA, Manchola-Castillo C. Bioética, cuidados paliativos e libertação: contribuição ao “bem morrer”. Rev. Bioética. 2021; 29(2):268-278..

No entanto, para os pacientes que chegaram ao hospital com doenças já avançadas, como os 31,3% (31) dos pacientes que não tiveram indicação de tratamento oncológico específico, a morte foi potencialmente uma expressão de mistanásia, causada por problemas estruturais que levaram os pacientes a chegar ao serviço em condições irreversíveis.

Conclusões

Este estudo encontrou, por meio da análise de encaminhamentos de pacientes oncológicos aos CP em um hospital oncológico do norte do estado do Paraná, que os usuários da rede estão chegando ao serviço referência com doença avançada, em sua maioria, sem possibilidade de tratamento oncológico e com indicação de CP por doença avançada, ou seja, sem possibilidade de serem submetidos a tratamentos específicos modificadores oncológicos, tendo como consequência mortes que ocorrem de forma potencialmente precoce e/ou com sofrimentos evitáveis, o que a literatura em bioética denomina como mistanásia.

O estudo discutiu que os encaminhamentos tardios e a redução das possibilidades de tratamento curativo ou de cuidados mais adequados no âmbito paliativo resultam de deficiências estruturais que se iniciam nas políticas de prevenção e promoção à saúde, as quais se sobrepõem às demais deficiências organizacionais no sistema de saúde.

O estudo apresenta limitações por se tratar de uma amostra localizada, proveniente de um único hospital público de referência. Pesquisas mais amplas, multicêntricas e com delineamentos mistos são necessárias para aprofundar os achados e suas hipóteses. O viés de informação pela utilização exclusiva de dados secundários de prontuários também deve ser considerado em suas limitações.

Os problemas aqui levantados devem, então, ser analisados com maior atenção em trabalhos futuros no campo da saúde coletiva, dos cuidados paliativos, da bioética e de outras áreas interdisciplinares. Sugere-se a realização de estudos qualitativos para explorar com maior profundidade as trajetórias e experiências dos pacientes e seus familiares, assim como os contextos locais e institucionais que podem influenciar o diagnóstico tardio e, portanto, os processos de mortes que se caracterizam como mistanásia. Recomendam-se, ainda, investigações focadas nas estruturas e nos processos da atenção primária que determinam o encaminhamento tardio de casos suspeitos, bem como da inserção de serviços de CP nesse nível de atenção.

Em perspectiva programática, reconhecer a atenção primária como alicerce para o fortalecimento da rede de atenção à saúde oncológica é uma recomendação fundamental que resulta deste estudo, uma vez que pode facilitar uma transição mais suave para os CP quando necessário, garantindo que o manejo da dor e dos sintomas seja iniciado prontamente, aliviando o sofrimento e promovendo uma melhor qualidade de vida mesmo diante de prognósticos desfavoráveis. A mudança de paradigma em direção a uma saúde pública mais responsiva e ética é urgente e necessária para endereçar as raízes profundas da mistanásia, além de reduzir as diversas formas de vulnerabilidades presentes no cenário.

Por fim, é importante reforçar que a mistanásia neste trabalho – enquanto a caracterização de mortes marcadas por sofrimento evitável, decorrentes de falhas estruturais de políticas públicas de saúde – não se configura como um dispositivo jurídico, mas como uma categoria ética e política que deve servir de alerta para pesquisadores, gestores e formuladores de políticas públicas.

Assim, ao discutir a dimensão da mistanásia, não foi objetivo deste trabalho apontar responsabilizações jurídicas de pessoas ou instituições, mas destacar os aspectos bioéticos de processos de terminalidade da vida que poderiam ter um melhor desfecho se houvesse estruturas adequadas para promoção, prevenção e atenção integral à saúde da população.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

  • 1
    Radbruch L, Lima L, Knaul F, et al. Redefining Palliative Care - A New Consensus-Based Definition. J Pain Symptom Manage. 2020; 60(4):754-764. [acesso em 2023 ago 6]. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.jpainsymman.2020.04.02.
    » https://doi.org/10.1016/j.jpainsymman.2020.04.02.
  • 2
    World Health Organization. Palliative care. 2020. [acesso em 2023 ago 6]. Disponível em: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/palliative-care.
    » https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/palliative-care.
  • 3
    The International Association for Hospice and Palliative Care. Global Consensus based palliative care definition. Houston: IAHPC; 2018. [acesso em 2023 ago 6]. Disponível em: https://hospicecare.com/what-we-do/projects/consensus-based-definition-of-palliative-care/definition/.
    » https://hospicecare.com/what-we-do/projects/consensus-based-definition-of-palliative-care/definition/.
  • 4
    Caglayan A, Redmond S, Rai S, et al. The integration of palliative care with oncology: the path ahead. Ann Palliat Med. 2023 [acesso em 2024 abr 6]; 12(6):1371-1381. Disponível em: https://dx.doi.org/10.21037/apm-22-1154.
    » https://dx.doi.org/10.21037/apm-22-1154.
  • 5
    Floriani CA. Bioethical considerations on models for end-of-life care. Cad. Saúde Pública. 2021; 37(9):1-13.
  • 6
    Vidal EIO, Kovacs MJ, Silva JJ, et al. Posicionamento da ANCP e SBGG sobre tomada de decisão compartilhada em cuidados paliativos. Cad. Saúde Pública. 2022; 38(9):e00130022.
  • 7
    Paraizo-Horvath CMS, Fernandes DS, Russo TMS, et al. Identificação de pessoas para cuidados paliativos na atenção primária: revisão integrativa. Ciênc. saúde coletiva. 2022; 27(9):3547-3557.
  • 8
    Junges JR, Schaefer R, Lopes PPS, et al. Cuidados Paliativos na atenção primária à saúde: discussão de um caso. Sanare. 2022; 21(2):23-33.
  • 9
    Ribeiro JR, Poles K. Cuidados Paliativos: Prática dos Médicos da Estratégia Saúde da Família. Rev. Bras. Educ. Med. 2019; 43(3):62-72.
  • 10
    Lundeby T, Hjermstad MJ, Aass N, et al. Integration of palliative care in oncology – the intersection of cultures and perspectives of oncology and palliative care. Ecancermedicalscience. 2022; 16:1376.
  • 11
    Freitas R, Oliveira LC, Mendes GLQ, et al. Barreiras para o encaminhamento para o cuidado paliativo exclusivo: a percepção do oncologista. Saúde debate. 2022; 46(133):331-345.
  • 12
    Rodrigues DMV, Abrahão AL, Lima FLT. Do começo ao fim, caminhos que segui: itinerações no cuidado paliativo oncológico. Saúde debate. 2020; 44(125):349-361.
  • 13
    Barbosa GS, Barbosa DS, Favero GM, et al. Pacientes atendidos pelo núcleo de cuidados paliativos em um hospital universitário. Res. Soc. Dev. 2023; 12(5):e19112541541.
  • 14
    Lima MA, Manchola-Castillo C. Bioética, cuidados paliativos e libertação: contribuição ao “bem morrer”. Rev. Bioética. 2021; 29(2):268-278.
  • 15
    Ferreira S, Porto D. Mistanásia × Qualidade de vida. Rev. Bioética. 2019; 27(2):191-195.
  • 16
    Anjos MF. Eutanásia em chave de libertação. Bol. do Inst. Camiliano Pastor da Saúde. 1989; 57.
  • 17
    Nunes LMP, Silvino ZR, Moreira MC, et al. Encaminhamentos aos cuidados paliativos para pacientes com câncer: revisão integrativa. Rev. Enferm. Atual. Derme. 2019; 77(15):51-59.
  • 18
    Gebel C, Basten J, Kruschel I, et al. Knowledge, feelings, and willingness to use palliative care in cancer patients with hematologic malignancies and solid tumors: a prospective, cross-sectional study in a comprehensive cancer center in Germany. Support Care Cancer. 2023; 31(7):445.
  • 19
    Hui D, Kim S-H, Kwon JH, et al. Access to Palliative Care Among Patients Treated at a Comprehensive Cancer Center. Oncologist. 2012; 17(12):1574-1580.
  • 20
    Wiegert EVM, Oliveira LC, Calixto-Lima L, et al. Cancer cachexia: Comparing diagnostic criteria in patients with incurable cancer. Nutrition. 2020; 79-80:110945.
  • 21
    Cabral ALLV, Giatti L, Casale C, et al. Social vulnerability and breast cancer: Differentials in the interval between diagnosis and treatment of women with different sociodemographic profiles. Ciênc. saúde colet. 2019; 24(2):613-622.
  • 22
    Crosby D, Bhatia S, Brindle KM, et al. Early detection of cancer. Science. 2022; 375(6586):eaay9040.
  • 23
    Ayres JR. Vulnerabilidade, Cuidado e integralidade: reconstruções conceituais e desafios atuais para as políticas e práticas de cuidado em HIV/Aids. Saúde debate. 2022; 46(esp7):196-206.
  • 24
    Ring A, Nguyen-Sträuli BD, Wicki A, et al. Biology, vulnerabilities and clinical applications of circulating tumour cells. Nat. Rev. Cancer. 2023; 23(2):95-111.
  • 25
    Ferreira MC, Sarti FM, Barros MBA. Social inequalities in the incidence, mortality, and survival of neoplasms in women from a municipality in Southeastern Brazil. Cad. Saúde Pública. 2022 [acesso em 2024 abr 6]; 38(2):e00107521. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0102-311X00107521.
    » https://doi.org/10.1590/0102-311X00107521.
  • 26
    Siqueira FD, Neves ET, Sehnem GD. Vulnerabilidade de adolescentes e jovens rurais: reflexões envolvendo o tratamento oncológico. Contrib. Las Ciencias Soc. 2024; 17(2):e4490.
  • 27
    Brasil. Ministério da Saúde. Cadernos de Atenção Primária n. 29. Rastreamento. (Série A). Normas e Manuais Técnicos. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2010.
  • 28
    Krann R, Colussi CF. Estudo de avaliabilidade das ações para detecção precoce do câncer de mama na atenção primária. Saúde debate. 2023; 47(137):101-115.
  • 29
    Santos ROM, Ramos DN, Migowski A. BdT - Barriers to implementing early breast and cervical cancer detection guidelines in Brazil. Physis (Rio J). 2019 [acesso em 2023 ago 6]; 29(4):e290402-e290402. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-73312019000400600.
    » http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-73312019000400600.
  • 30
    Ferreira MCM, Nogueira MC, Ferreira LCM, et al. Early detection and prevention of cervical cancer: knowledge, attitudes and practices of FHS professionals. Ciênc. saúde coletiva. 2022; 27(6):2291-2302.
  • 31
    Paiva KM, Besen E, Moreira E, et al. Incidência de câncer nas regiões brasileiras e suas associações às Políticas de Saúde. Saúde Pesqui. 2021; 14(3):e7969.
  • 32
    Paiva W, Cunha T. Mistanásia em tempos de pandemia do COVID-19: reflexões iniciais a partir da Bioética Global. In: Dadalto L, organizador. Bioética e COVID-19. Indaiatuba: Foco; 2020.
  • 33
    Oliveira CC. Mistanásia: Responsabilidade Estatal e o Acesso à Saúde. Londrina: Thoth; 2020.
  • 34
    Wanssa M. Morte digna e lugar onde morrer: percepção de pacientes oncológicos e de seus familiares. [tese]. Porto: U niversidade do Porto; 2012.
  • 35
    Lopes-Júnior LC, Rosa GS, Pessanha RM, et al. Efficacy of the complementary therapies in the management of cancer pain in palliative care: a systematic review. Rev. Lat. Am. Enfermagem. 2020; 28:1-17.
  • 36
    Mendes BV, Donato SCT, Silva TL, et al. Bem-estar espiritual, sintomas e funcionalidade de pacientes em cuidados paliativos. Rev. Bras. Enferm. 2023; 76(2):e20220007.

Editado por

Editora responsável: Maria Lucia Frizon Rizzotto

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2024

Histórico

  • Recebido
    23 Out 2023
  • Aceito
    15 Abr 2024
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde Av. Brasil, 4036, sala 802, 21040-361 Rio de Janeiro - RJ Brasil, Tel. 55 21-3882-9140, Fax.55 21-2260-3782 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revista@saudeemdebate.org.br