RESUMO
Evidencia-se, no Brasil e em outros países da América Latina, o aumento da população de rua, muitos dos quais são usuários de crack. Essa população sofre de estigmas vinculados a uma percepção de fragilidade do caráter, como vontade fraca para interromper o uso da droga e como pessoa perigosa na medida em que é temida pela sociedade, visto que é percebida como agressora. Isso traz consequências como o isolamento social, a perda da autoestima, dificuldade de acesso aos serviços de saúde que provocam o afastamento da busca de suporte social e de saúde por parte do usuário, agravando suas condições de vida. Como metodologia, foram realizadas 48 entrevistas com trabalhadores e usuários das equipes de Consultório na Rua nas quais foi possível reconhecer o estigma internalizado pelas pessoas que se reconhecem como portadoras das características negativas que lhes são imputadas, assim como percepção dos profissionais de saúde da estigmatização sofrida por essa população. O desvelamento dos estigmas e sua análise podem auxiliar na reorientação de um conjunto de práticas de cuidado que garantam direitos básicos de saúde, educação, moradia e trabalho constituintes da cidadania, de modo a fomentar processos de democratização e de inclusão social dessa população estigmatizada em situação de extrema vulnerabilidade.
PALAVRAS-CHAVE Pessoas em situação de rua; Cocaína crack; Estigma social; Empatia
ABSTRACT
People living in the streets, many of whom are crack users, are on the rise in Brazil and other Latin American countries. Such a population suffers from stigmas linked to a perception of fragile character, such as weak willpower to stop drug use, and a dangerous individual feared by society because perceived as an aggressor. The consequences of those stigmas are social isolation, loss of self-esteem, difficulty in accessing health services, which make users withdraw from social and health support, deteriorating their living conditions. Forty-eight interviews were conducted with workers and users of the Street Clinic (Consultório na Rua), which revealed the stigma internalized by people recognized as carriers of the negative traits assigned to them, as well as health professionals’ perception of the stigma suffered by such population. The unveiling of stigmas and their analysis can reorient a set of care practices to ensure fundamental rights in health, education, housing, and work, which underpin citizenship, to promote the democratization and social inclusion process of the stigmatized people living in a situation of extreme vulnerability.
KEYWORDS Homeless persons; Crack cocaine; Social stigma; Empathy
Introdução
O aumento da população que ocupa as ruas como espaço de abrigo e moradia é uma realidade em todo o território brasileiro. Embora não se possa fazer uma correlação entre a vida na rua e o uso de drogas, tem-se observado que muitas pessoas acabam fazendo uso do álcool e outras drogas como estratégia de enfrentamento para suportar a vida nas ruas1.
A População em Situação de Rua (PSR) é um grupo social que vivencia distintas situações de múltiplas vulnerabilidades, processos de marginalização e preconceitos2. Trata-se de uma população marcada por processos de exclusão social e que convive com experiências de desrespeito e ausência de reconhecimento social no seu cotidiano. O estigma perpassa o acesso aos bens públicos, e alguns serviços de saúde se recusam a oferecer atendimento pela ausência de documentação ou domicílio cadastrado. Entende-se aqui o estigma como uma construção social que representa uma marca no indivíduo, delegando a pessoa um status desvalorizado em relação aos demais membros da sociedade.
A Política Nacional para a População em Situação de Rua propõe a superação do estigma do ‘morador de rua’ ao considerar a ‘população em situação de rua’ como um grupo populacional heterogêneo que se encontra abaixo da linha da pobreza, com seus vínculos familiares rompidos ou fragilizados e não possuindo moradia regular, utilizando logradouros públicos e áreas degradadas para morar e viver ou fazendo uso das unidades de acolhimento para pernoite, de modo permanente ou temporário. Tal definição ainda é insuficiente diante da complexidade desses modos de existência que são marcados pela multiplicidade de uma itinerância que é, ao mesmo tempo, material e simbólica3.
Goffman4 denomina estigma social o reconhecimento da diferença, da ‘marca’, somado a um rebaixamento do portador daquela ‘marca’. O termo estigma foi criado pelos gregos para se referirem “a sinais corporais com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresentava” 4(11). Assim, o uso da palavra estigma remete a uma marca, visível ou invisível, física ou social. Atualmente, vem sendo utilizado de modo mais subjetivo do que a necessária evidência corporal.
É importante salientar que o termo estigma é utilizado em referência a alguém, em uma linguagem de relações, e não de atributos em si: “Um atributo que estigmatiza alguém pode confirmar a normalidade de outrem”4(13). Compreende-se que um estigma é um tipo especial de relação de atributo e estereótipo, quando há uma discrepância entre a identidade social virtual (o caráter que imputamos ao indivíduo) e a sua identidade social real (os atributos que o indivíduo possui na realidade). Segundo Goffman4(6):
Tal característica é um estigma especialmente quando seu efeito de descrédito é muito grande – algumas vezes ele também é considerado um defeito, uma fraqueza, uma desvantagem – e constitui uma discrepância específica entre identidade social virtual e a identidade social real.
Desse modo, o estigma se refere a um atributo profundamente depreciativo. A denominação de ‘mendigos’, ‘vagabundos’, ‘fedorentos’, ‘cracudos’ são termos estigmatizantes usados pela sociedade, e reforçados pela mídia, que destaca aspectos considerados negativos, associando a PSR ao crime, e a ‘cracolândia’ a um espaço muito perigoso.
Goffman4 relata três tipos de estigma: 1. as abominações do corpo; 2. as culpas de caráter individual; e 3. os estigmas de raça, nação e religião. O segundo tipo está representado no caso das pessoas em situação de rua ou em uso prejudicial de álcool e outras drogas, na medida em que são estigmas ligados à atitude individual, a uma percepção de fragilidade do caráter como vontade fraca para interromper o uso da droga; vagabundas porque não conseguiram emprego e também perigosas por serem temidas pela sociedade visto que são percebidas como agressoras. O termo ‘cracolândia’ é repleto de estigma. Nas cracolândias, vemos, além do estigma da droga, o estigma da população de rua. Conforme Goffman4(7):
Um indivíduo que poderia ter sido facilmente recebido na relação social quotidiana possui um traço que pode se impor à atenção e afastar aqueles que ele encontra, destruindo a possibilidade de atenção para outros atributos seus. Ele possui um estigma, uma característica diferente da que havíamos previsto. Nós e os que não se afastam negativamente das expectativas particulares em questão serão por mim chamados de normais.
Acrescenta:
por definição, acreditamos que alguém com um estigma não seja completamente humano. Com base nisso fazemos vários tipos de discriminações, através das quais efetivamente, e muitas vezes sem pensar, reduzimos suas chances de vida4(15).
Uma visão moralista, negativa e preconceituosa acerca das condições de vida e do comportamento dos usuários de drogas ou grupos vulneráveis interfere no acesso e na continuidade do cuidado ofertado a esses grupos, já que isso gera, para o usuário, consequências como o isolamento social, a piora de sua qualidade de vida e a perda da autoestima. Esse estigma, muitas vezes, é internalizado pela pessoa que acaba se afastando dos serviços sociais e de saúde, agravando ainda mais as suas condições de vida. Por outro lado, os profissionais da saúde também são influenciados por esse imaginário social que interfere no cuidado a ser oferecido a essa população. A ‘Pesquisa nacional sobre o uso de crack’5, realizada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), confirmou que a maior parte dos usuários já havia vivenciado situações de discriminação social dentro de serviços de saúde e de assistência social e apresentavam maior risco para doenças infecciosas e transmissíveis, com baixa aderência a programas de vacinação e de rastreamento de doenças.
Destarte, a discussão sobre estigma é um tema extremamente relevante na medida em que interfere na adesão do usuário aos serviços de saúde, assim como no cuidado ofertado pelos profissionais, tendo, portanto, implicações na clínica das pessoas em situação de rua e dos usuários de drogas que vivem em situação de rua.
Devido à identificação da dificuldade de acesso da PSR aos serviços de atenção básica, foram criadas, pelo Ministério da Saúde, no âmbito da atenção básica, as equipes de Consultórios na Rua (CnaR) como política de garantia de acesso dessa população aos serviços de saúde6.
Essas equipes são responsáveis pelo acolhimento dessa população e a atendem em parceria com os equipamentos sociais e de saúde presentes no território. Atuam de forma itinerante, a partir de demandas e de necessidades específicas dessa população vulnerável e do contexto em que vive, levando em conta as iniquidades em saúde. Uma das principais características do trabalho é a abordagem direta ao usuário no local onde ele se encontra, o que permite uma percepção ampliada das suas condições de vida e de suas necessidades mais urgentes. A produção do cuidado integral inclui os cuidados em saúde mental dentro da lógica da redução de danos6.
A oportunidade de um contato mais próximo entre a população de rua e os profissionais da saúde, com uma oferta de cuidado que promova a garantia mínima de alguns direitos, são ações que trazem para o debate não apenas o tema das drogas, mas o cuidado pela atenção básica à grupos vulneráveis, que até recentemente não eram objetos de atenção, e a redução do estigma.
Dessa forma, o objetivo deste artigo é identificar, nas falas dos profissionais das equipes de CnaR, como o estigma interfere no cuidado ofertado às pessoas em situação de rua, criando barreiras de acesso à saúde.
Parte-se da premissa que, (re)conhecendo-os como pessoas de direitos, será possível reorientar um conjunto de práticas de cuidado que possa garantir direitos básicos de saúde, educação, moradia, trabalho, entre outros constituintes da cidadania, de modo a fomentar os processos de democratização e inclusão social dessa população estigmatizada e em situação de extrema vulnerabilidade social2.
Material e métodos
Este artigo faz parte de uma pesquisa qualitativa realizada para analisar as práticas das equipes de CnaR do Município do Rio de Janeiro (MRJ), aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp)/Fiocruz sob parecer CAAE número 45742215.6.0000.5240.
O MRJ conta com sete equipes de CnaR: duas no centro da cidade, uma em Antares (Santa Cruz), uma em Bangu, uma em Realengo, uma em Jacarezinho e uma em Manguinhos. Foram realizadas 34 entrevistas com profissionais do CnaR, sendo: 6 assistentes sociais, 3 dentistas, 6 enfermeiros, 6 médicos, 6 psicólogos, um terapeuta ocupacional e 7 agentes de ação social. Este artigo destaca a análise do cuidado dos profissionais das equipes do CnaR que identificam o estigma dos profissionais de saúde em relação às pessoas em situação de rua.
As entrevistas com os profissionais foram realizadas em salas das clínicas da família em que as equipes de CnaR estão alocadas. A Gerência da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro intermediou o contato com as equipes. As entrevistas foram gravadas, com autorização dos participantes e transcritas para análise que se apresenta a seguir. As entrevistas foram codificadas como profissionais (Prof 01 a 34) para garantir o sigilo dos participantes.
Resultados e discussões
Apesar de o Sistema Único de Saúde (SUS) preconizar o acesso universal à saúde, esse, ainda hoje, se apresenta como um dos desafios a serem superados. Os depoimentos nas entrevistas corroboram tal fato, tendo sido citado o comportamento dos profissionais de saúde como uma barreira no acesso ao cuidado a saúde da PSR.
Então, esse acesso [antes da criação da eCnaR] era um acesso muito comprometido, muito complexo, porque primeiro assim, quando tentavam na maioria das vezes não conseguiam ou quando conseguiam era um atendimento muito precário né? (Prof 5).
Tanto da questão do preconceito tanto das questões burocráticas, mesmo de solicitar documentação dessa população, não tem, isso [a documentação] foi se perdendo ao longo da vida ou nunca teve. Então são muitas barreiras de acesso que existem ainda hoje. (Prof 26).
A dificuldade de conseguir acesso muitas vezes faz com que a PSR não se cuide: “São tantas tentativas negativas que a pessoa até desiste de estar indo buscar seus direitos” (Prof 14).
A dificuldade do acesso fica mais evidente quando a PSR procura atendimento em outros níveis de cuidado com maior complexidade. Os trabalhadores da equipe do CnaR relataram que muitos profissionais de outros setores, como serviços diagnóstico, hospitais e Unidades de Pronto Atendimento (UPA), só atendem uma pessoa em situação de rua quando ela é acompanhada pela equipe de CnaR. O profissional relata a experiência de um dos seus usuários a ir sozinho a um desses serviços: “[...] Quando alguns moradores de rua chegam na UPA, já aconteceu comigo, empurra a gente, bate, joga lá fora e não somos atendidos” (Prof 9).
Então na maioria das vezes a gente acompanha o usuário até esse outro nível de saúde, seja secundário, terciário, para que o atendimento dele seja garantido, porque muitas das vezes esse usuário vai até essa consulta que foi agendada nesse nível secundário e ele não é atendido ou então ele é atendido, mas não é dado a ele a devida atenção, então muitas das vezes precisa acompanhar até a consulta dele para que seja realizada realmente essa consulta de qualidade, entendeu? (Prof 8).
Eu já cheguei no hospital com paciente, que chegou lá e eles mandaram deixar lá no canto. Ela ‘aí, só vocês mesmos’. Chega ainda fala que tá com mal cheiro. Eles não gostam, às vezes, de atender as pessoas que tão sujas. (Prof 32).
Então assim, acho que esse problema tá nos profissionais que trabalham na rede e que não conseguem enxergar essa pessoa da forma que ela deveria ser enxergada, então assim, o acesso sempre foi muito difícil pra essas pessoas e isso é inegável, não é à toa que o CnaR existe. (Prof 5).
Os profissionais dos serviços de saúde produzem barreiras no acesso à PSR desde a exigência da documentação para ser atendida até a obrigatoriedade da abstinência para a consulta, o que mantém esse grupo, muitas vezes, excluído do cuidado à saúde.
Às vezes o profissional vai atender e não tem o olhar adequado para essas pessoas. Eles têm um olhar preconceituoso e atrapalha. Acho que o grande problema são as pessoas que trabalham na rede. (Prof 25).
Além disso, as pessoas em situação de rua são estigmatizadas por seu aspecto físico, e muitas vezes são vinculadas a sua aparência suja e com mau cheiro. A promoção do cuidado pela equipe do CnaR promove um autocuidado nos usuários que se organizam para ir à consulta na Unidade Básica de Saúde, conforme a fala de um profissional do CnaR
Tem uma coisa que é física: você vê que a pessoa tomou um banho e se arrumou, se arrumaram pra vim pro dia de consulta, a gente fica p. da vida que está com pressa no carro e o paciente, ‘- mas não, vou só tomar um banho e aí demora meia hora pra vim’, ‘- não mas a gente não tá nem aí, pode vim sujo’, mas aí é isso, se arrumando para ir na consulta, aí um empresta o chinelo para o outro ir, tem esse movimento que é legal e um sentimento de ter direito a saúde como todas as pessoas. (Prof 5).
Por vezes, o estigma é internalizado pelo próprio grupo estigmatizado pela sociedade, que se reconhece como portador das características negativas que lhe são imputadas:
[...], porém o morador de rua guardou esse estigma por achar que ‘-ah, estou mal vestido, mal cheiroso, a pessoa olhou atravessado para mim, olhou assim, atravessado’. (Prof. 32).
Um ponto importante trazido na obra de Goffman4 é que os indivíduos estigmatizados tendem a ter as mesmas crenças sobre identidade que nós temos. Isso gera a percepção de que, na verdade, eles não são aceitos e os outros não estão dispostos a manter com eles um contato em ‘bases iguais’. Isso pode provocar um sentimento de vergonha, de que o indivíduo ficou abaixo do que realmente deveria ser. Esse sentimento de autodepreciação é muito comum nas pessoas em situação de rua: “quem mora na rua é atropelado, é morador de calçada” (Prof 12).
Nesse caso, quando ocorre a internalização do estigma, fazem-se necessários, também, trabalhos individuais ou em grupo com essa população7.
Muitas vezes, a PSR não se reconhece como pessoa de direito ao acesso à saúde, o que fica claro na fala de um profissional quando diz que muitos usuários ficam extremamente gratos pelo cuidado pela equipe de CnaR e que os chamam de ‘anjos’:
Isso acontece o tempo inteiro, que acharem que a gente está fazendo um favor, de agradecerem muito, de falarem que somos anjos, então quando a pessoa trata a gente assim não é porque a gente é muito legal, mas assim também entendendo que não estou dizendo que... enfim, claro que a pessoa pode estar muito grata por aquele profissional, mas isso fala também de um não entendimento do serviço como direito, de achar que enfim, a pessoa está fazendo um favor e a gente está aqui fazendo valer o SUS. (Prof 19).
Tendo em vista que o estigma social é uma forte desaprovação de características ou crenças pessoais que vão contra as normas culturais vigentes, esses estigmas sociais frequentemente levam à marginalização entendendo-a como um processo social de se tornar ou ser tornado marginal; relegar ou confinar alguém a uma condição social inferior, à beira ou à margem da sociedade8. Ser marginalizado significa estar separado do resto da sociedade, forçado a ocupar as beiras ou as margens e a não estar no centro das coisas. Pessoas marginalizadas não são consideradas parte da sociedade.
‘Tá na rua é porque é um sem vergonha, que na rua ganha tudo’. Você ouve isso 24 horas, e aí você fazer com que as outras pessoas, não os que estão com a gente, mas que outras pessoas percebam isso; percebam o que o levou aquela condição e que ninguém tá livre dela. (Prof 12).
O estigma é uma construção social que representa uma marca ao indivíduo delegando-o a um status desvalorizado em relação aos demais membros da sociedade. Goffman4 denomina de estigma social o reconhecimento da diferença, da ‘marca’. Ele aborda também a questão dos grupos, usando o termo ‘categoria’ para situar grande parte dos indivíduos que se incluem em uma determinada categoria de estigma, por exemplo, ‘pessoas em situação de rua’ ou ‘usuários de crack’. Os membros de uma determinada categoria de estigma particular, como os ‘mendigos’, os ‘cracudos’, tendem a reunir-se em pequenos grupos sociais cujos membros derivam todos da mesma categoria, estando esses próprios grupos sujeitos a uma organização que os engloba em maior ou menor medida. As ‘cracolândias’ são espaços ou cenas de uso que agregam diversos usuários de crack e outras drogas cujos estigmas dessa categoria de usuários estão relacionados com o uso da droga, associado a uma desvalorização do portador daquela ‘marca’9.
Cabe ressaltar que problemas econômicos, rupturas dos laços familiares e a exclusão social são, geralmente, o que levam as pessoas ao uso prejudicial do álcool e outras drogas, e não o contrário, ou seja, não são as drogas que levam as pessoas à rua, mas são as vulnerabilidades do contexto da rua que levam ao uso de drogas para tornar essa situação mais suportável1,10. Atualmente, o crack é a droga da vez, que atrai mais visibilidade pela forma de organização, já que o espaço de consumo é, ao mesmo tempo, o local onde se comercializa a droga, criando grandes cenas de uso que foram denominadas de ‘cracolândias’. A própria denominação de ‘cracolândia’ foi duramente criticada por Carl Hart10 ao sinalizar que há racismo associado ao termo. Segundo o autor, o termo cracolândia
é horroroso, tem que parar de usá-lo, porque ali não é a terra do crack; e quando as pessoas usam esse termo, ele isenta as pessoas de fazerem alguma coisa. Porque o crack não é o problema, o problema é a pobreza, a saúde mental, racismo é o problema10.
Pelo relato dos profissionais, evidencia-se ser frequente os usuários incorporarem os estigmas que lhes são atribuídos pelo uso de drogas e por viverem na rua, conforme o depoimento a seguir:
Em torno da população de rua rola um estigma que todos usam droga, todos são analfabetos, todos são ladrões, todos são cracudos, então é muito difícil se manter num emprego quando fala que é morador de rua ou entrar em qualquer ambiente. (Prof 9).
Outro termo importante na obra de Goffman4(27) é o de ‘informados’ definido como
os homens marginais diante dos quais o indivíduo que tem um defeito não precisa se envergonhar nem se autocontrolar porque sabe que será considerado como uma pessoa comum.
Esse termo ‘informados’ leva a reflexão sobre o trabalho dos profissionais de saúde que compõem as Equipes de CnaR que precisam ter seus preconceitos colocados ‘entre parênteses’ para que possam ofertar um cuidado às pessoas em situação de rua, em parte, usuários de drogas.
Poderiam ser os profissionais do CnaR denominados de ‘informados’? Goffman4 prossegue dizendo que um tipo de pessoa informada é aquela cuja informação vem de seu trabalho em um lugar que cuida não só das necessidades daqueles que tem têm um estigma particular, quanto como também das ações empreendidas pela sociedade em relação a eles. Nesse sentido, trabalhar os estigmas das pessoas em situação de rua no campo da saúde se faz necessário para a promoção de um cuidado adequado. Esse autor ressalta, ainda, que os estigmatizados podem ser avaliados pelos demais de forma diferente. Uma pequena ação pode ser considerada algo notável. Exemplifica com os atos de uma pessoa cega ao andar sozinha, comer sozinha que podem ser considerados como atos notáveis e causar o mesmo tipo de admiração que se tem de um mágico que tira coelhos da cartola.
Goffman4 vai se ocupar, ainda, da questão dos ‘contatos mistos’, quer dizer, os momentos em que os estigmatizados e os ditos normais estão na mesma situação social, ou seja, na presença física imediata um do outro. Sugere, então, que os indivíduos visivelmente estigmatizados – que podemos considerar os grupos vulneráveis, PSR e os usuários de drogas nessa situação – terão motivos para sentir que as interações mistas causam uma angústia na interação com outros indivíduos. Há um mal-estar na relação entre estigmatizados e não estigmatizados ou denominados normais. Talvez por isso não seja comum as pessoas em situação de rua buscar os serviços de saúde de forma espontânea. Como os profissionais da equipe do CnaR vão até os territórios, apresentam-se ofertando um espaço de escuta e cuidado, é possível que esse mal-estar seja menor e tenda a desaparecer com a promoção do vínculo e que as pessoas se sintam mais confortáveis para buscar o CnaR. Relatos dos profissionais do CnaR demonstram que outros profissionais da saúde se sentem desconfortáveis em atender as pessoas em situação de rua:
Os usuários precisavam passam pelas escadas, usar elevador, às vezes, que nem todo mundo consegue tomar banho todo dia, tem as feridas que às vezes estão com um cheiro muito forte. E aí a gente sabe o quanto que essas características, principalmente a questão do odor.... Então uma questão também que as pessoas têm de que a pessoa, esse medo do perigo, de que vai roubar, de que vai fazer... e aí a gente sabe o quanto era incômodo pra unidade. (Prof 27).
Chegou lá e esperou 6 meses pra chegar naquele local, atendimento especializado. Aí a gente presencia situações de preconceito, estigma com a população. Às vezes até de desrespeito com nós profissionais, de achar que a gente tá tutelando aquela pessoa, assim, como se fosse um... ‘- Ah, agora a prefeitura também está fazendo Uber’. Alguma coisa assim sabe, neste sentido. Embora também a gente encontre muitos profissionais que, assim, ficam encantados. ‘- Poxa, que bom que existe esse serviço, que a pessoa consegue acessar, que vocês trazem’. (Prof 32).
A gerente da Clínica da Família, ainda hoje liga para falar que tem uma pessoa em situação de rua na porta da clínica dela precisando de atendimento né? ‘Então porque você não presta atendimento, né? É sua função independente de ser morador de rua’, aí a gente tenta reforçar que eles têm que ser atendidos na rede né? (Prof 48).
A dificuldade do atendimento intrasetorial da saúde nos remete a uma função estratégica do CnaR que é realizar o matriciamento de profissionais da atenção básica e da rede de saúde referente ao atendimento a essa população, para evitar que situações como as relatadas anteriormente continuem se repetindo. Já há algumas boas experiências com serviços que receberam apoio matricial e que vêm, em um processo de construção compartilhada, construindo propostas de intervenção.
Então eles [os profissionais da rede] passaram também a compreender que não é um bicho de sete cabeças o atendimento da população de rua, mas a gente não largava isso. (Prof 34).
A gente sabe que tem estigma, mau cheiro, malvestido, alcoolizado, saindo do uso da droga procura a unidade de saúde, então a proposta foi dos profissionais do consultório de sensibilizar os profissionais do acolhimento a essas pessoas em situação de rua para unidades de saúde. (Prof 22).
Outra questão central no cuidado a PSR é a intersetorialidade. Em relação ao trabalho, o estigma da sociedade em relação às pessoas em situação de rua, seja pela aparência, seja por questões subjetivas, muitas vezes dificulta ou mesmo impede a reinserção social dessas pessoas.
Às vezes, elas não conseguem se inserir no mercado por conta dos preconceitos entendeu, se a gente pudesse conversar né, e olhar diferente para essas pessoas a gente podia ajudar muito mais. (Prof 25).
Um profissional de uma das equipes do CnaR relatou a importância dos dentes para a inserção no mercado de trabalho:
Sobre a minha área, saúde bucal, uma coisa é a pessoa com dente outra é a pessoa sem dente, assim isso é uma coisa que muda totalmente a vida dessas pessoas, o jeito delas estarem, se colocarem, é muito comum aqui pra gente as pessoas chegam com essa demanda. ‘Poxa quase consegui um trabalho, como garçom no bar, mas o cara disse que não dá pra trabalhar com alimento sem dentes, porque passa uma impressão de sujeira, precariedade’. Enfim... (Prof 29).
Quando ocorre o cuidado humanizado – fornecido pela equipe de CnaR –, ele promove o reconhecimento do sujeito enquanto uma pessoa de direito, uma pessoa que merece ser cuidada, e isso gera um aumento na autoestima e tem um efeito importante na promoção do seu autocuidado. Assim, o princípio da equidade fica mais evidente no cuidado à PSR6 porque promove cuidado para os que mais precisam, entendendo essa população como um grupo vulnerável submetido a questões como violência física, estigma dos profissionais, ambiente insalubre, alimentação deficitária entre outros aspectos.
Entender um pouco a particularidade, pessoas que estão em uma situação mais fragilizada, e se o SUS parte do princípio de equidade, não é porque são feios, equidade é isso, reconhecer as desigualdades. (Prof 10).
A Política Nacional de Equidade11 incluiu a PSR como um dos seus grupos de intervenção, reconhecendo essa população como um grupo vulnerável que precisa de um cuidado integral e equitativo.
Uma das estratégias mais efetivas para reduzir o estigma é o contato entre quem estigmatiza e a população estigmatizada. O contato é uma oportunidade de reduzir a generalização de opiniões e conceitos em relação a grupos específicos entre a população geral. Foi possível notar que os trabalhadores do CnaR, que tem contato diário com a PSR, não manifestaram preconceito em relação a essa população, mas em suas falas destacaram a percepção de situações estigmatizantes em outras equipes de saúde que atuam pontualmente com a PSR.
Andrade e Ronzani apresentaram ferramentas para o enfrentamento do estigma dos profissionais de saúde. No caso das pessoas em uso prejudicial nas cenas de uso de drogas, o primeiro passo seria compreender a droga como um objeto inanimado, sendo, portanto, necessário entender como a pessoa se relaciona com a droga dentro de determinado contexto, para que seja organizada a oferta de cuidado, e não pensar apenas em uma intervenção sobre a droga em si. Outro passo seria trazer à luz qual a visão que os profissionais têm sobre usuários vulneráveis. É preciso que eles estejam conscientes sobre suas crenças, já que “para enfrentar o estigma é preciso falar sobre o estigma”7(13).
Nesse sentido, a discussão do estigma está ligada diretamente ao debate sobre Direitos Humanos (DH), devendo ser empregada na construção de uma agenda de trabalho que vise à oferta de ações de cuidado e proteção às pessoas em situação de rua que fazem ou não uso prejudicial de drogas. Tais direitos podem ser imaginados como potentes instrumentos a serem empregados contra a violência institucional e simbólica a que essas pessoas estão submetidas; contra ao não reconhecimento delas como sujeitos políticos de direitos, em especial, aqueles que se encontram inseridos em realidades marcadas pela pobreza, violência, racismo e preconceitos de diferentes ordens e que têm seu status de cidadania parcialmente reconhecido pelo Estado, não sendo, portanto, entendidos como indivíduos dignos de gozar sua liberdade e autonomia12.
Diante da análise desses relatos coletados pelas entrevistas, foi possível evidenciar o quanto o estigma promove uma barreira de acesso ao cuidado da PSR no sistema de saúde, além de barreiras no processo de reinserção social, sendo importante ainda sensibilizar a rede de saúde e intersetorial para o acolhimento e cuidado humanizado à luz da equidade na qual todos são sujeitos de direitos.
Considerações finais
A PSR em uso ou não de drogas é alvo de estigma que, no limite, a exclui do direito ao cuidado à saúde. O estigma está presente nos profissionais de saúde, nas próprias pessoas que internalizam o preconceito que recai sobre elas e na sociedade. É necessário pensar formas de lidar com o estigma dos trabalhadores de saúde e dos próprios usuários, tendo em meta um cuidado ampliado.
Como já abordado, as pessoas em situação de rua, independentemente do uso prejudicial de drogas, são vistas como pessoas que possuem uma falha de caráter, e não como um grupo que precisa ser priorizado pela saúde pública. Essa visão, com conotação moralista, negativa e preconceituosa acerca das condições de saúde e do comportamento de grupos vulneráveis, interfere diretamente no acesso e na continuidade do tratamento oferecido a esses grupos. Para o usuário, a consequência é o isolamento social, a perda da autoestima e o afastamento dos serviços públicos devido à barreira de acesso. Já no caso dos profissionais da rede intrasetorial e intersetorial que lidam com essa realidade, a imagem distorcida que eles internalizam dificulta a relação com os usuários, o acolhimento e o vínculo, impedindo-os de realizar uma intervenção adequada. Por outro lado, fica evidenciado que o CnaR é um dispositivo importante, não apenas para garantir o acesso, mas para reduzir o estigma desse grupo vulnerável haja vista as formas de acolhimento ampliadas, o fortalecimento da autoestima e o reconhecimento dos usuários como sujeitos de direitos.
É fundamental assegurar políticas públicas orientadas pela equidade, solidariedade e universalidade com articulação dos setores da saúde, educação, trabalho, direitos humanos e assistência social. Dentro dessa perspectiva, precisam ser ofertados cuidados baseados na noção de respeito à dignidade desses usuários, sua autonomia e liberdade, pois se trata de cidadãos detentores de direitos constitucionalmente garantidos, ainda que tenham feito escolhas de vida não necessariamente saudáveis do ponto de vista individual e coletivo.
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Suporte financeiro: Edital Rede PMA – Programa de Políticas Públicas, Modelos de Atenção e Gestão à Saúde (PMA) da Vice-presidência de Pesquisa e Coleções Biológicas da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) 2016-2019
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Orcid (Open Researcher and Contributor ID).
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
13 Jul 2020 -
Data do Fascículo
2019
Histórico
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Recebido
21 Mar 2019 -
Aceito
13 Set 2019