Open-access Ora sujeito, ora objeto: uma análise da condição feminina nas proposições 478/2007 e 882/2015

Women and the legal practices: an analysis of the bills 478/2007 and 882/2015

RESUMO

Embora a regulamentação do abortamento voluntário diga respeito diretamente à vida das mulheres, o debate sobre a criminalização/descriminalização da prática fica frequentemente restrito à controvérsia moral acerca do momento em que a vida humana se inicia. Nesse contexto, a proposta deste artigo é analisar como as mulheres são posicionadas nos Projetos de Lei nº 478/2007 e nº 882/2015, dois projetos de lei emblemáticos e que buscam modificar a legislação atual. Para atingir nosso objetivo, recorremos ao referencial teórico-metodológico da pesquisa com práticas discursivas e a análise de repertórios linguísticos como ferramenta de análise. Nossos resultados indicam que a proposição 478/2007, que busca tornar a legislação ainda mais restritiva, toma as mulheres meramente como corpos que devem ser objeto de controle do Estado. De maneira contrastante, na proposição 882/2015 as mulheres são concebidas como sujeitos de direito. Concluímos que esta última concepção é fundamental para superar os efeitos negativos na saúde das mulheres, fazendo-se preciso, ainda, que as mulheres possam se constituir como sujeitos morais de suas próprias condutas.

PALAVRAS-CHAVE: Aborto; Direitos sexuais e reprodutivos; Saúde reprodutiva.

ABSTRACT

Although the regulamentation of voluntary abortion directly concerns women’s lives, the debate about the criminalization/decriminalization of the practice is often restricted to the moral controversy about the beginning of life. In this context, our aim is to analyze how women are positioned in two emblematic bills that seek to modify the current legal framework, No. 478/2007 and No. 882/2015. To do so, we used linguistic repertoires as an analysis tool. According to our results, under bill 478/2007 women are seen merely as objects of control, whereas abortion is turned into a matter of women’s reproductive rights within the proposition 882/2015. In conclusion, the latter conception is fundamental to overcoming the negative effects on women’s health, but it is also necessary to build a context where women are able to constitute themselves as morally autonomous to make their own decisions.

KEYWORDS: Abortion; Reproductive rights; Reproductive health.

Introdução

As normas legais para a interrupção da gestação no Brasil foram elaboradas na década de 1940 e estão vigentes desde então, salvo discretas alterações. De acordo com o Código Penal1 e seus arts. 124 e 126, o abortamento voluntário está entre os crimes contra a vida e é punível com pena de reclusão. À gestante que provocar o aborto ou autorizar alguém a fazê-lo, a legislação brasileira prevê pena de um a três anos. As exceções, previstas no art. 128, dizem respeito às situações em que a gestação representa perigo à vida da mulher e pessoa gestante e a interrupção se faz necessária ou casos em que a gravidez resulta de estupro. Embora não esteja previsto como exceção no Código Penal, desde 2012, a interrupção da gestação em casos de anencefalia ou incompatibilidade com a vida extrauterina é permitida, uma vez que o Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo constitui crime contra a vida2.

Apesar da tendência de queda, estima-se que 13% das mulheres passam pela experiência até os 40 anos, de modo que pelo menos uma em sete mulheres interromperam voluntariamente uma gestação durante sua vida reprodutiva. Segundo a Pesquisa Nacional de Aborto, a prática pode ser observada entre mulheres de todas as raças, classes sociais, níveis de instrução e religiões. Embora tenha havido redução da taxa de internação, o abortamento voluntário ainda se apresenta como problema de saúde pública, com necessidade de hospitalização em aproximadamente 43% dos casos. A taxa de mortalidade materna por complicações decorrentes da interrupção da gestação é significativa, colocando-a, com frequência, entre as principais causas3,4.

Frente à legislação de longa data, seu caráter violador de direitos humanos, sua ineficiência na coibição da prática e seus efeitos negativos na vida das mulheres têm sido problematizados desde a década de 1970, principalmente por movimentos feministas e de mulheres5. Em linhas gerais, argumenta-se que a interrupção legal e segura da gestação deve ser enquadrada como direito sexual e reprodutivo, cuja garantia é condição fundamental para o respeito ao direito à vida, à segurança e à autodeterminação das mulheres6. O risco de morbimortalidade decorrente da criminalização da prática é maximizado, sobretudo, nas situações em que o procedimento é realizado em condições inseguras, de modo que a criminalização da prática impacta de maneira mais preocupante mulheres negras e em vulnerabilidade socioeconômica.

Tendo em vista a persistência da interrupção da gestação entre as mulheres, mesmo com a legislação proibitiva, evidencia-se ainda mais a desproporcionalidade do arcabouço jurídico em relação ao abortamento voluntário no Brasil. Nesse contexto, o Poder Judiciário não tem se furtado ao debate sobre a inconstitucionalidade da criminalização, incorporando, inclusive, os argumentos supracitados. Na ocasião do julgamento do Habeas Corpus nº 124.306, que afastava a prisão preventiva de duas pessoas que haviam sido presas em flagrante em uma clínica clandestina, a primeira turma do STF firmou entendimento de que o abortamento voluntário durante o primeiro trimestre de gestação não é crime. De acordo com o voto-vista do Ministro Luís Roberto Barroso, a criminalização da prática é incompatível com a garantia de direitos fundamentais das mulheres, ferindo direitos fundamentais dessa categoria7.

Atualmente, encontra-se em apreciação no STF a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, que trata da inconstitucionalidade da criminalização do abortamento voluntário até a 12ª semana de gestação. Declarado em setembro de 2023, o voto da relatora, a então Ministra Rosa Weber, considerou que os arts. 124, 126 do Código Penal desrespeitam a Constituição Federal na medida em que ferem o direito à autodeterminação igualitária, além de impedir a garantia de direitos sexuais e reprodutivos e o acesso à atenção segura ao abortamento, contribuindo para a mortalidade materna8.

O Poder Judiciário tem se valido da inércia legislativa frente ao problema de saúde pública e o desrespeito a direitos fundamentais que decorrem da criminalização do abortamento voluntário. Contudo, há no momento 18 projetos de lei em tramitação, apresentados entre os anos de 2007 e 2022, que buscam diretamente aumentar a pena para o abortamento voluntário, penalizar as exceções já previstas no Código Penal ou modificar as condições para o acesso ao abortamento legal. Nesse contexto, apesar da aparente inércia, há uma ofensiva conservadora em andamento. Entre os projetos de lei apresentados, encontra-se o paradigmático Projeto de Lei (PL) nº 478/2007, com a proposta do Estatuto do Nascituro.

O atual enquadramento da interrupção voluntária da gestação no Código Penal e a ofensiva conservadora são justificados pela ‘defesa da vida’, mas pode ser compreendido à luz dos discursos normativos direcionados ao corpo de mulheres com aparente capacidade de gestar, acentuados a partir do fim do século XVIII. Esse processo se relaciona com a emergência de uma nova tecnologia de poder, chamada por Foucault9 de biopolítica, que assume a população como problema de governo e passa a tomar o corpo feminino como objeto privilegiado de poder para atingir tal fim. Visando ao controle da natalidade, o corpo feminino se constitui como um dos primeiros objetos de saber e alvos de controle da biopolítica, sendo patologizado e vinculado a uma sexualidade bruta, associada a uma natureza que deve ser disciplinada, colonizada e controlada por meio de discursos que operam uma responsabilização biológico-moral.

Tais discursos expressam o lugar de interesse que a maternidade passou a ocupar na moral iluminista e sua noção de ‘boa mulher’ baseada em uma suposta natureza. No século XVIII, tornaram-se recorrentes os esforços para naturalizar o papel inerente à condição feminina, sejam tratados médicos ou filosóficos, reforçando o imperativo da satisfação das necessidades do homem e, posteriormente, de seus filhos. A maternagem passou a ser declarada como destino inexorável das mulheres e a vida reprodutiva tornou-se objeto de preocupação e controle do Estado10,11.

Embora testemunhemos uma grande quantidade de projetos de lei que utilizam a justificativa da defesa da vida para tornar a legislação acerca do abortamento voluntário ainda mais restritiva, há proposições em tramitação que situam o problema no âmbito da temática supracitada. Entre eles, destaca-se o PL nº 882/2015, apresentado pelo então deputado Jean Wyllys (PSOL/RJ), que visa “garantir direitos fundamentais no âmbito da saúde sexual e dos direitos reprodutivos e regular as condições da interrupção voluntária da gravidez”12.

Em um contexto de disputas de poder que incidem concretamente sobre o corpo feminino, a proposta deste artigo consiste em analisar o modo como as mulheres são posicionadas por meio dos repertórios identificados em dois PL, a saber: o nº 478/2007 e nº 882/2015. Na medida em que representam opostos em relação a uma temática que condensa disputas de poder envolvendo o corpo feminino, ambos se apresentam como objetos privilegiados para compreender o modo como as mulheres são posicionadas no âmbito do ordenamento jurídico-político.

Material e métodos

Para identificar o modo como as mulheres são posicionadas em ambos os projetos de lei, utilizamos a análise de repertórios linguísticos como ferramenta metodológica. Os repertórios compreendem um dos elementos constitutivos das práticas discursivas e dizem respeito aos conteúdos culturais que compõem os discursos de determinada época, permitindo que nos familiarizemos com os conhecimentos institucionalizados, produzidos e reinterpretados por diferentes domínios do saber13. Em consonância com as reflexões de Spink, entendemos que, além de condensar posicionamentos e repertórios em circulação, os projetos de lei também funcionam como dispositivos de construção e reconstrução da realidade, tendo em vista o caráter performativo da linguagem. Desse modo, enquanto documentos de domínio público, as proposições apresentadas são práticas discursivas em sua forma e conteúdo14.

Apesar de sugestões de mudanças terem sido realizadas no processo de tramitação dos projetos de lei, entendemos que as proposições iniciais são práticas discursivas cujo conteúdo é passível de análise e interpretação para acessarmos os repertórios e sentidos circulantes. Por esse motivo, mantivemos, como objeto de nossa análise, o texto dos autores submetido à apreciação na Câmara dos Deputados.

Para a análise dos documentos em questão, iniciamos com uma leitura crítica das proposições, o que resultou na delimitação de duas categorias, a saber: corpo feminino como objeto de controle das práticas jurídicas e as mulheres como sujeitos de direito. Posteriormente, identificamos os repertórios relativos a cada uma delas e os agrupamos, conforme discute-se a seguir.

Resultados e discussão

De autoria de Miguel Martini (PHS/MG) e Luiz Bassuma (PT/BA), a proposição 478 foi apresentada ao plenário no dia 19 de março de 200715, sendo apreciada pelas devidas comissões antes de ir ao plenário, de acordo com o Regimento Interno da Câmara dos Deputados. Na Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF), aprovou-se parecer da relatora designada, Solange Almeida (PMDB/RJ), em favor da aprovação da proposta com mudanças substanciais. No substitutivo, o aborto deixa de ser tipificado como crime hediondo, nem se prevê como crime a modalidade do ‘aborto culposo’. Sugeriu-se também a supressão da proposta de aumento das penas de reclusão previstas nos arts. 124, 125 e 126 do Código Penal e a modificação do art. 13 da proposição, que dispõe sobre os direitos assegurados ao nascituro concebido em ato de estupro, acrescentando a seguinte expressão: “Ressalvados o disposto no art. 128 do Código Penal Brasileiro”16.

Posteriormente, encaminhou-se o projeto de lei e o substitutivo da CSSF à Comissão de Finanças e Tributação (CFT). O relator designado, deputado Eduardo Cunha, apresentou parecer com emenda de adequação financeira e orçamentária, aprovado em 6 de junho de 201317. Ainda no mesmo mês, a proposição foi encaminhada à Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC). O texto do relator designado, deputado Marcos Rogério (DEM/RO), aprova o projeto de lei e o substitutivo em relação à constitucionalidade e à juridicidade, com ressalva ao art. 28 da proposição, uma vez que, segundo o relator, ninguém pode ser criminalizado ou criminalizada por defender a mudança de uma lei em vigor, o que fere o direito à liberdade de expressão18.

Em função de requerimento apresentado em junho de 2017 pelo deputado Glauber Braga, então filiado ao PSOL/RJ, a proposição foi enviada à Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher (CMULHER). O primeiro relator designado, Diego Garcia (PHS/PR), emitiu parecer pela aprovação do projeto de lei na forma do Substitutivo da CSSF e com a emenda da CFT. Em 2022, os relatores nº 2 e 3 apresentaram parecer recomendando a aprovação do projeto de lei na forma do Substitutivo da CSSF.

Desde a emissão do parecer do primeiro relator designado da CMULHER, foram submetidos 3 requerimentos de realização de Audiência Pública para discussão da proposição. Atualmente, a proposição encontra-se em apreciação no Plenário, com a deputada Priscila Costa (PL/CE) como relatora designada. Em setembro de 2023, também foram apresentados requerimentos para apreciação urgente (nº 3343/2023, apresentado pela deputada Chris Tonietto, do PL/RJ) e tramitação em regime de urgência (nº 3345/2023, apresentado pela deputada Bia Kicis, do PL/DF)15.

Apresentada ao Plenário em março de 2015 pelo deputado Jean Wyllys (PSOL/RJ), a proposição 882/2015 foi apensada ao PL nº 313/2007, passando a tramitar em conjunto com a proposição15. O autor apresentou requerimento para a desapensação do projeto de lei ao Plenário e à CSSF, na qual esta última e os demais apensados que tramitam em conjunto aguardam, sob a justificativa de que o PL nº 882/2015 trata temas díspares e mais amplos do que o planejamento familiar, entre eles “o direito a uma vida sexual segura e à interrupção voluntária da gravidez”12. Desde então, a proposição seguiu tramitando em conjunto até seu arquivamento, em 31 de janeiro de 2019, do qual foi retirado por ocasião do Requerimento 174/2019. Atualmente, junto ao PL nº 313/2007, encontra-se apensado o PL nº 806/2021, que altera a Lei nº 9. 263, de 12 de janeiro de 1996, que regula o planejamento familiar e reprodutivo no Brasil, a fim de pautar a universalização do acesso a populações vulneráveis.

Em suma, apesar das modificações sugeridas e posteriormente aprovadas, destaca-se que o PL nº 478/2007 se encontra em tramitação e, atualmente, 18 projetos de lei se encontram apensados a ele. Em contrapartida, PL nº 882/2015, rapidamente apensado a proposições que dispõem sobre o planejamento familiar e reprodutivo.

O corpo feminino como objeto de controle das práticas jurídicas: o Projeto de Lei nº 478/2007

Corroborando os achados de Mortelaro, Spink e Brigagão19, identificamos que o PL nº 478/2007 apresenta uma proposta de legislação que incide sobre o corpo feminino sem ao menos citá-lo diretamente. No máximo, essa categoria aparece como de maneira indireta ou como coadjuvante, especialmente quando o projeto de lei coloca em conflito direitos da mulher e a expectativa de direitos do embrião/feto.

Em primeiro lugar, a proposta de legislação sobre o corpo e os direitos femininos pode ser identificada nos artigos que determinam a penalização das exceções já previstas no Código Penal. O art. 9º da proposição veda a privação do nascituro da expectativa de algum direito em função de qualquer uma de suas características:

Art. 9º É vedado ao Estado e aos particulares discriminar o nascituro, privando-o da expectativa de algum direito, em razão do sexo, da idade, da etnia, da origem, da deficiência física ou mental ou da probalidade [sic] de sobrevida20.

A expectativa do direito à vida do embrião/feto deve, portanto, sobrepor-se ao direito de interrupção voluntária da gestação em função de condição incompatível com a vida extrauterina, garantido pela ADPF 54. A interrupção voluntária em casos de gravidez resultante de estupro também deixaria de ser um direito garantido à mulher submetida à violência sexual, mediante a justificativa de dar “basta” nas atrocidades cometidas com o embrião/feto, inclusive “a condenação de bebês à morte por causa de deficiências físicas ou por causa de crime cometido por seus pais”20.

A proposição ainda prevê a inclusão do aborto nos crimes hediondos, com a alteração da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, bem como o aumento das penas de reclusão previstas nos artigos 124 e 126 do Código Penal:

Art. 30 Os arts. 124, 125 e 126 do Código Penal (Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940) passam a vigorar com a seguinte redação:

Art. 124.......................................................................

Pena - reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos (NR).

Art. 125.......................................................................

Pena - reclusão de 6 (seis) a 15 (quinze) anos (NR).

Art. 126.......................................................................

Pena - reclusão de 4 (quatro) a 10 (dez) anos (NR)19.

Além disso, prevê-se a modalidade culposa do aborto e tipifica-se como crime o anúncio de processo, substância ou objeto destinado a provocar aborto, sob pena de detenção de um a dois anos e multa20. Além disso, aumenta-se a pena em um terço se o processo, substância ou objeto são apresentados como métodos anticoncepcionais. Além disso, fazer publicamente apologia do aborto ou de quem o praticou, bem como incitar publicamente a sua prática passam a ser atos criminalizados, sob pena de detenção de seis meses a um ano e multa. Esta última especificação criminaliza o debate e qualquer proposta de descriminalização da interrupção da gestação.

Ao fim do projeto de lei, os autores justificam as disposições apresentadas com a necessidade de um dispositivo legal que tenha como objetivo evitar os “abusos com seres humanos não nascidos”, dentre os quais figuram, entre outros, “a condenação de bebês à morte”, inclusive por razões que o Código Penal e a ADPF 54 não compreendem como crime contra a vida20. A justificativa dos autores da proposição indica que há uma concepção subjacente do aborto como assassinato de uma vida - a da “criança por nascer”19 - que se iniciou a partir da concepção e, consequentemente, um enquadramento de assassinas as mulheres que recorrem a ele.

Sua condição de não nascido implica, necessariamente, uma relação de dependência com o organismo de uma mulher, embora o projeto de lei busque operar uma cisão e uma polarização entre direitos do nascituro e direitos femininos, no âmbito da qual direitos do nascituro devem prevalecer com absoluta prioridade:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar ao nascituro, com absoluta prioridade, a expectativa do direito à vida, à saúde, à alimentação, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar, além de colocá-lo a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão20.

Para compreender o que confere absoluta prioridade à expectativa de direitos por parte do nascituro, é preciso voltar à definição de nascituro elaborada pelos próprios autores da proposição:

Art. 2º Nascituro é o ser humano concebido, mas ainda não nascido.

Parágrafo único. O conceito de nascituro inclui os seres humanos concebidos ‘in vitro’, os produzidos através de clonagem ou por outro meio científica e eticamente aceito.

Art. 3º O nascituro adquire personalidade jurídica ao nascer com vida, mas sua natureza humana é reconhecida desde a concepção, conferindo-lhe proteção jurídica através deste estatuto e da lei civil e penal20.

Frente à oposição e hierarquização entre direitos do nascituro e direitos das mulheres que o texto da proposição opera, a afirmação da natureza humana do embrião/feto incorre, necessariamente, na negação da humanidade de mulheres e, portanto, na impossibilidade de se constituírem como sujeitos de direito, conforme já argumentaram Mortelaro, Spink e Brigagão19. Esse movimento reflete uma versão do direito impregnada de dualismos hierárquicos característicos da colonialidade de gênero21 e tem intrínseca relação com certa normatividade patriarcal22. Nesse sentido, o princípio dessa colonialidade se perpetua no controle e nas estratégias de minimização da autonomia reprodutiva das mulheres na medida em que tais práticas só são possíveis a partir de uma redução das mulheres a uma corporalidade despessoalizada e que deve ser colocada em serviço de um propósito moralmente superior, a maternidade, mesmo que isso implique na restrição de direitos.

Nesse contexto, coloca-se em questão direitos femininos já garantidos por lei e efetivados por meio de políticas de saúde com o objetivo de garantir a preservação irrestrita da expectativa do direito à vida conferida ao embrião/feto. Vidas e corpos femininos são, portanto, posicionados apenas como objeto de governo, seja por meio da lei ou pela normatividade subjacente a ela, tendo em vista a íntima relação entre direito e normatividade apontada por Fonseca23. Enfim, as mulheres também são tomadas como objeto de penalidade caso transgridam a interdição jurídica e social à interrupção da gestação.

As mulheres como sujeitos de direito: o Projeto de Lei nº 882/2015

De acordo com o art. 1º da proposição apresentada pelo então deputado Jean Wyllys (PSOL/RJ), seu objetivo é garantir os

direitos fundamentais no âmbito da saúde sexual e dos direitos reprodutivos, regular as condições da interrupção voluntária da gravidez e estabelecer as correspondentes obrigações dos poderes públicos24.

No que se refere à questão do abortamento, são estabelecidas certas condições para a interrupção da gestação. Em primeiro lugar, todas as mulheres têm o direito de realizá-la, se assim decidirem, até a décima segunda semana de gestação, conforme art. 11:

Art. 11 - Toda mulher tem o direito a decidir livremente pela interrupção voluntária de sua gravidez durante as primeiras doze semanas do processo gestacional24.

Dessa maneira, a proposição revoga os arts. 124, 126 e 128 do Código Penal, mantendo-se apenas a penalização do abortamento provocado sem o consentimento da mulher gestante, com aumento da pena de detenção previsto no art. 127 do Código Penal:

Art. 19 - Ficam revogados os artigos 124, 126 e 128 do Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940.

Art. 20 - O artigo 127 do Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 passa a vigorar com a seguinte redação:

Art. 127. A pena cominada no artigo 125 deste Código será aumentada de 1/3 (um terço) se, em consequência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofrer lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevier a morte24.

Entretanto, o abortamento poderia ser realizado até a vigésima segunda semana em casos de estupro, respeitando-se o critério do peso fetal de até 500 g, violência sexual ou ato atentatório à liberdade sexual. Assim como permite a política de saúde atual, não haveria necessidade de apresentação de boletim de ocorrência ou laudo médico-legal. Finalmente, nos casos em que a gestação apresente risco à vida ou à saúde mulher ou inviabilidade de vida extrauterina do feto a interrupção da gestação poderia ser realizada a qualquer momento:

Art. 12 - Ultrapassado o prazo estabelecido no artigo 11 da presente Lei, a interrupção voluntária da gravidez somente poderá ser realizada:

I - Até a vigésima segunda semana, desde que o feto pese menos de quinhentos gramas, nos casos de gravidez resultante de estupro, violência sexual ou ato atentatório à liberdade sexual, sem a necessidade de apresentação de boletim de ocorrência policial ou laudo médico-legal.

II - A qualquer tempo, nos casos de risco de vida para a gestante, comprovado clinicamente.

III - A qualquer tempo, nos casos de risco à saúde da gestante, comprovado clinicamente.

III - A qualquer tempo, nos casos de incompatibilidade e/ou inviabilidade do feto com a vida extrauterina, comprovado clinicamente24.

Em caso de manifestação do desejo de interromper a gestação, a lei determina que as mulheres que o façam recebam informações sobre saúde e direitos sexuais e reprodutivos, sobre os métodos de interrupção, sobre as condições previstas por lei, sobre os equipamentos de saúde aos quais deve se dirigir e, por fim, sobre os trâmites para realizar o abortamento, conforme art. 13:

Art. 13 - Todas as gestantes que manifestem sua intenção de submeter-se a uma interrupção voluntária de gravidez receberão informação sobre:

I - saúde sexual e reprodutiva e direitos reprodutivos;

II - os distintos métodos de interrupção da gravidez;

III - as condições para a interrupção previstas na presente Lei;

IV - as unidades de saúde disponíveis e acessíveis a que deva se dirigir;

V - os trâmites para obter a prestação do serviço24.

Para as mulheres que optem pela interrupção, determina-se que seja distribuído material contendo informações sobre as políticas públicas disponíveis para mulheres gestantes e sobre os equipamentos que fornecem atenção à saúde durante a gestação e o parto, sobre os direitos trabalhistas em relação à gestação e à maternidade, sobre políticas públicas que respaldem o cuidado oferecido às crianças, sobre os equipamentos que disponibilizam informações adequadas sobre contracepção e sexo seguro e, finalmente, sobre os locais nos quais se possa receber acompanhamento antes, durante e depois da interrupção da gravidez24.

Para a realização do procedimento, o projeto de lei determina a obtenção do consentimento expresso e por escrito da mulher gestante maior de dezoito anos, do/a representante legal juntamente com a mulher gestante maior de dezesseis e menor de dezoito anos e dos pais, representantes ou responsáveis legais nos casos em que a gestante tiver idade inferior a dezesseis anos. Caso a adolescente expresse o desejo de não interromper a gestação, mesmo contra a vontade de seus pais ou representantes legais, deverá prevalecer sua vontade. Nesses casos, será obrigatória a manifestação do Ministério Público e, caso a gestante ou sua família estiverem em condições de vulnerabilidade, deverão ser assistidos pela Defensoria Pública. Se a mulher é declarada incapaz em juízo, requer-se consentimento de seu/sua representante legal24.

Nesse sentido, o projeto de lei compreende a possibilidade da interrupção da gestação como uma das condições para a vivência livre e segura da vida sexual e reprodutiva, conforme os direitos e deveres estabelecidos na Constituição Federal, responsabilizando o Estado pela garantia do direito à reprodução consciente e responsável, reconhecendo o valor social da maternidade na garantia da vida humana:

Art. 3º - O Estado garantirá o direito à reprodução consciente e responsável, reconhecendo o valor social da maternidade na garantia da vida humana, e promoverá o exercício pleno dos direitos sexuais e reprodutivos de toda a população, entendendo-se que a interrupção voluntária da gravidez não constitui um instrumento de controle de natalidade24.

Nessa perspectiva, a descriminalização do abortamento voluntário está prevista em conjunto com o desenvolvimento de políticas de atenção integral à saúde da mulher que, além da atenção à interrupção voluntária da gestação, ofereçam também educação sexual e reprodutiva e acesso universal aos serviços, ações e programas de saúde, resultando no uso correto e consciente de métodos contraceptivos disponíveis por parte da população. Para garantir a efetivação de tais políticas, propõe-se o fortalecimento da área técnica de Saúde da Mulher do Ministério da Saúde, a fim de fortalecer as políticas públicas de atenção integral à saúde da mulher e, mais especificamente, garantir a efetividade dos serviços de interrupção voluntária da gravidez e assegurar a qualificação dos profissionais de saúde para a realização do procedimento, conforme disposto no Capítulo II da proposição24.

O deputado Jean Wyllys justifica sua proposição trazendo a invalidade dos argumentos comumente apresentados para manter a legislação proibitiva e criminalizar as mulheres que interrompem a gestação. Nesse sentido, a legislação atual seria sustentada por um “conjunto mal articulado de mentiras, omissões e hipocrisias”24, que encontram seu ponto de ancoragem em uma parcela do sistema político e das instituições religiosas e na imposição de suas crenças e preceitos morais, ferindo a laicidade do Estado. Entretanto, apesar da invalidade, uma vez que tais argumentos garantem a manutenção da criminalização da prática, eles têm efeitos muito concretos nas taxas de morbimortalidade da população feminina. Efeitos em vidas humanas cujo status, segundo o deputado, é inquestionável em qualquer esfera de saber: “vidas de mulheres já nascidas”24. Ainda, a justificativa pontua que, no interior desse conjunto de falácias, encontra-se aquela segundo a qual a criminalização ou a descriminalização teria impacto real na prevalência da prática entre a população feminina brasileira. Este é o ensejo utilizado pelo autor da proposição para argumentar que a criminalização do abortamento voluntário possui “inutilidade prática”24, embora, em contrapartida, produza danos sociais importantes, o que transforma o abortamento em uma questão de saúde pública e não de direito penal.

Nesse contexto, segundo o deputado, a segunda falácia consiste na utilização da defesa da vida como argumento para a manutenção da legislação, pois os impactos das leis proibitivas podem ser medidos em termos de mortalidade feminina. O deputado destaca que a terceira falácia consiste no caráter universal da criminalização do abortamento, uma vez que, na prática, as mulheres que possuem condições financeiras têm acesso ao aborto seguro, enquanto as mulheres pobres vivenciam os efeitos da criminalização24.

A justificativa da proposição destaca que os empecilhos para a descriminalização da prática têm suas raízes na desinformação generalizada da população, que, por sua vez, relaciona-se de modo especial a argumentos falaciosos, falsas informações e mentiras “difundidas pelas forças patriarcais reacionárias e seus aliados”24. Nesse sentido, o deputado destaca que a autodeterminação reprodutiva das mulheres só pode ser possível por meio da “implantação de um conjunto de medidas e políticas que promovam direitos, enfrentem a cultura política patriarcal, o racismo e a desigualdade social”24. Por fim, o deputado argumenta que o direito ao abortamento legal e seguro se fundamenta no âmbito do debate internacional dos Direitos Humanos, cujos pactos e convenções o Brasil é signatário, como Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento e a Conferência Mundial sobre a Mulher25.

Partindo desse solo, a proposição baseia-se no reconhecimento das mulheres como sujeitos de direito, não apenas a uma corporeidade bruta que deve ser governada e controlada, deslocando-se da discussão sobre o início da vida e, portanto, dando outro enquadramento possível para o debate sobre a descriminalização do abortamento voluntário, assim como o que já tem sido feito no Poder Judiciário. Nesse sentido, a noção da justiça reprodutiva, também presente no voto da então Ministra Rosa Weber8, fundamenta a proposição, o que fica ainda mais evidente em sua justificativa. As mulheres são situadas no âmbito de um amplo contexto de saúde sexual e reprodutiva, um cenário no qual a descriminalização do abortamento não é um fim em si mesmo, mas um dos passos necessários para garantir plenamente a saúde e a segurança das mulheres, aqui entendidas como sujeitos de direitos.

Nesse sentido, a proposição 882/2015 se vale do próprio ordenamento jurídico - o mesmo campo em que a vida das mulheres é situada como objeto de normalização e controle - para implementar estratégias de resistência à normatividade e reivindicar a autonomia reprodutiva como um direito humano, reconhecendo as mulheres em sua pessoalidade, bem como a concretude de experiências que extrapolam o imperativo da maternidade e suas pretensões universais. Tal gesto é fundamental e pode consolidar um cenário em que as políticas de saúde que, além de entregar soluções para a questão do aborto voluntário como problema de saúde pública, possam se colocar como ferramentas de promoção de autonomia reprodutiva.

Considerações finais

Na análise discursiva de ambas as proposições pudemos notar que as mulheres são posicionadas de maneiras contrastantes e opostas. O PL nº 478/2007 as toma como objeto de normalização de controle, visando à preservação da expectativa do direito à vida por parte do embrião/feto. Nesse contexto, a interdição legal do abortamento voluntário é apresentada como um gesto de defesa da vida e a controvérsia moral sobre o início da vida é utilizada para justificar a proposta, embora qualquer tipo de argumento sobre os impactos negativos da criminalização na saúde e na vida das mulheres seja ignorada.

A proposição 882/2015, por sua vez, concebe as mulheres como sujeitos de direito, e, partindo do pressuposto de que direitos sexuais e reprodutivos são direitos humanos, utiliza discursivamente esse arcabouço conceitual para propor a descriminalização do aborto voluntário. As tensões entre os diferentes enquadramentos resultam em uma aparente inércia legislativa, apesar do tema ser matéria de inúmeras proposições, com pouquíssimas mudanças no arcabouço jurídico em relação à interrupção voluntária da gestação decorrente da atuação do Poder Judiciário, mesmo com o problema de saúde pública a ser manejado decorrente da interdição à prática.

Nesse contexto, o desafio que se coloca é encontrar meios para superar a tensão entre os diferentes enquadramentos da prática e seus efeitos concretos na vida das mulheres sem cair na velha e improdutiva controvérsia sobre o início da vida, controvérsia no âmbito da qual se agenciam argumentos para defender a sacralidade da vida do concepto embasados por uma moralidade inegociável, cegamente universalizante e profundamente colonial. Tendo em vista os efeitos negativos na vida e na saúde das mulheres, é preciso forjar um mundo onde elas não sejam apenas reconhecidas como sujeitos de direito, mas onde cada mulher possa se constituir como sujeito moral de sua própria conduta, deixando de ser meramente objeto de normas e interdições que emanam de uma moralidade que lhes é estranha, forjada sem considerar a concretude de suas experiências.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

Editado por

  • Editora responsável:
    Ana Maria Costa

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Nov 2024
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2024

Histórico

  • Recebido
    10 Nov 2023
  • Aceito
    29 Abr 2024
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