RESUMO
A trajetória da política de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) no Brasil expressa a construção de estratégias de governança para viabilizar a participação social e a articulação entre setores. Nesse processo, destacam-se as Conferências Nacionais, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e a Câmara Intersetorial de Segurança Alimentar e Nutricional (Caisan), composta por ministérios e secretarias governamentais. O objetivo deste artigo é analisar a atuação da Caisan, de 2012 a 2016, na coordenação intersetorial da política no governo federal. A pesquisa se baseou na literatura sobre governança, considerando dois eixos de análise: estrutura e dinâmica de atuação da Câmara; a agenda da Caisan e sua relação com o Consea. As estratégias metodológicas foram: revisão bibliográfica, análise documental e entrevistas semiestruturadas. Observou-se que a atuação da Caisan favoreceu a coordenação intersetorial da política, influenciando medidas governamentais em resposta a demandas das Conferências e do Consea. Contudo, constataram-se fragilidades, como baixa participação de representantes governamentais com poder decisório e limitado enfrentamento de desafios em áreas que expressam conflitos entre interesses econômicos e sanitários. Conclui-se que o seu fortalecimento é essencial, sobretudo após a extinção do Consea, que favorecia a participação social e a intersetorialidade na política de SAN.
PALAVRAS-CHAVE
Segurança alimentar; Políticas públicas; Colaboração intersetorial; Governança
ABSTRACT
The trajectory of the Food and Nutrition Security Policy in Brazil expresses the construction of governance strategies to enable social participation and articulation between sectors. Noteworthy in this process are the National Conferences, the National Council for Food and Nutrition Security (Consea), and the Intersectoral Chamber for Food and Nutrition Security (Caisan), made up of government ministries and secretariats. The purpose of this article is to analyze Caisan’s performance from 2012 to 2016 in the intersectoral coordination of politics in the federal government. The research was based on the literature on governance, considering two axes of analysis: structure and dynamics of the Chamber’s performance; the Caisan agenda and its relationship with Consea. The methodological strategies were: literature review, document analysis, and semi-structured interviews. It was observed that Caisan’s performance favored the intersectoral coordination of the policy, influencing governmental measures in response to demands from the Conferences and Consea. However, weaknesses were expressed, such as low participation of government representatives with decision-making power and limited coping with challenges in areas that express conflicts between economic and health interests. It is concluded that its strengthening is essential, especially after the end of Consea, which favored social participation and intersectoriality in policy.
KEYWORDS
Food security; Public policies; Intersectoral collaboration; Governance
Introdução
Diante das transformações nos padrões de produção e consumo de alimentos, intensifica-se na agenda pública brasileira o tema da Segurança Alimentar e Nutricional (SAN). A sociedade civil desempenhou um papel importante na construção de políticas de SAN, em parceria com governos para elaboração de diretrizes, propostas e monitoramento de ações11 Costa CA, Bógus CM. Significados e apropriações da noção de segurança alimentar e nutricional pelo segmento da sociedade civil do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Saúde e Soc. 2012; 21(1):103-114..
Na década de 1980, a pressão de organizações sociais, especialmente acadêmicas e profissionais, impulsionou a realização da I Conferência Nacional de Alimentação e Nutrição, que abordou o tema de forma ampla e apontou a importância do Direito Humano à Alimentação Adequada e da configuração um Conselho suprassetorial e participativo, que se concretizaria com a criação, em 1993, do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea)22 Burlandy L. A atuação da sociedade civil na construção do campo da Alimentação e Nutrição no Brasil: elementos para reflexão. Ciênc. Saúde Colet. 2011; 16(1):63-72..
Por meio da mobilização social em torno da questão alimentar, realizou-se a I Conferência Nacional de Segurança Alimentar, cujos debates orientaram, em fins de 1994, as diretrizes para uma Política Nacional de Segurança Alimentar. Essa Conferência contribuiu para ampliar o leque de representações da sociedade civil envolvida com a construção de um projeto democrático-participativo da SAN33 Maluf RS, Reis MC. Conceitos e princípios de Segurança Alimentar e Nutricional. In: Rocha C, Burlandy L, Magalhães R, organizadores. Segurança alimentar e nutricional: perspectivas, aprendizados e desafios para as políticas públicas. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2013. p. 15-42..
O Consea foi extinto em 1995 e recriado em 2003, no primeiro ano do governo Lula, que colocou o combate à pobreza e à fome no Brasil no centro da agenda governamental44 Tomazini CG, Leite CKS. Programa Fome Zero e o paradigma da segurança alimentar: ascensão e queda de uma coalizão? Rev. Sociol. Polit. 2016; 24(58):13-30.. Com o apoio do Consea, em 2004, após dez anos de realização da I Conferência, ocorreu a II Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional; e em 2007, a III Conferência Nacional55 Burlandy L. A construção da política de segurança alimentar e nutricional no Brasil: estratégias e desafios para a promoção da intersetorialidade no âmbito federal de governo. Ciênc. Saúde Colet. 2009; 14(3):851-860..
Nos anos seguintes, as Conferências Nacionais de Segurança Alimentar e Nutricional e o Consea ampliaram progressivamente o escopo do debate e a diversidade no que se refere à participação da sociedade civil, por meio da interlocução do governo com organizações sociais22 Burlandy L. A atuação da sociedade civil na construção do campo da Alimentação e Nutrição no Brasil: elementos para reflexão. Ciênc. Saúde Colet. 2011; 16(1):63-72.. Alguns méritos na coordenação e monitoramento intersetorial das políticas de SAN são atribuídos às Conferências e ao Consea, como espaços importantes para a tomada de decisões na área66 Gabe KT, Jaime PC. Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. In: Jaime PC, organizadora. Políticas públicas de alimentação e nutrição. Rio de Janeiro: Atheneu; 2019. p. 41-49..
Um avanço expressivo foi a promulgação da Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional em 2006, que definiu atribuições para a atuação do Consea, expressando a preocupação com a institucionalização e a continuidade das políticas na agenda governamental22 Burlandy L. A atuação da sociedade civil na construção do campo da Alimentação e Nutrição no Brasil: elementos para reflexão. Ciênc. Saúde Colet. 2011; 16(1):63-72.. Além disso, a lei instituiu o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan), integrado por conselhos e conferências que congregam órgãos e entidades de diferentes setores em todos os níveis de governo, e a Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (Caisan), composta pelos ministros de Estado e secretarias federais de várias áreas66 Gabe KT, Jaime PC. Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. In: Jaime PC, organizadora. Políticas públicas de alimentação e nutrição. Rio de Janeiro: Atheneu; 2019. p. 41-49..
A trajetória da SAN no Brasil expressa, portanto, a busca de construção de estratégias de governança para viabilizar a participação social e a articulação entre setores na construção e implementação de uma política complexa. A governança em políticas públicas é aqui compreendida como
Conjuntos de atores estatais e não-estatais interconectados por laços formais e informais, operando dentro do processo de elaboração de políticas e incorporados em contextos institucionais específicos77 Marques E. Governo, atores políticos e governança nas políticas urbanas no Brasil e em São Paulo: conceitos para uma agenda de pesquisas futuras. Bras. Sci. político. Rev. 2013; 7(3):8-35.(31).
Se as Conferências e o Consea foram fundamentais para promover o envolvimento da sociedade civil na definição da agenda da política, os desafios de operacionalização de estratégias intersetoriais exigiram a construção de um modelo de governança alicerçado na atuação conjunta de diferentes órgãos do Estado, o que levou à constituição de uma instância adicional de articulação. A Caisan nacional, composta por membros de ministérios e secretarias que atuam direta ou indiretamente com a SAN, é uma instância governamental, responsável pela coordenação e pelo monitoramento intersetorial das políticas de SAN55 Burlandy L. A construção da política de segurança alimentar e nutricional no Brasil: estratégias e desafios para a promoção da intersetorialidade no âmbito federal de governo. Ciênc. Saúde Colet. 2009; 14(3):851-860., tendo, portanto, um papel diferente e complementar ao do Consea.
Tal arranjo de governança com base em duas instâncias de coordenação - uma somente governamental e outra mista, com participação social - seria alterado pela extinção do Consea em 201988 Castro I. A extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e a agenda de alimentação e nutrição. Cad. Saúde Pública. 2019; 35(2):e00009919., o que ressalta ainda mais a necessidade de compreender a relevância da Caisan no período anterior, quando as duas instâncias estiveram em pleno funcionamento e em interação.
Dessa forma, o objetivo deste artigo é analisar a atuação da Caisan de 2012 a 2016 na coordenação intersetorial da política no âmbito do governo federal. Tal foco se justifica pela relativa escassez de estudos específicos sobre a atuação dessa instância, em comparação com a maior frequência de estudos sobre o Consea. Busca-se ainda explorar como a agenda construída com participação social nas Conferências e no Consea pautou as ações dessa instância governamental no período, expressando as conexões entre instâncias colegiadas dentro do singular desenho de governança construído para a política de SAN, que procurou articular participação social e coordenação intersetorial de políticas públicas.
Metodologia
A pesquisa se baseou em contribuições da literatura sobre governança em políticas públicas, considerando a relevância da interação de atores, instituições e redes, que expressam ideias, interesses e conflitos77 Marques E. Governo, atores políticos e governança nas políticas urbanas no Brasil e em São Paulo: conceitos para uma agenda de pesquisas futuras. Bras. Sci. político. Rev. 2013; 7(3):8-35.. A governança de políticas voltadas para problemas complexos, como os da área de SAN, exige o envolvimento de diferentes órgãos e áreas. Nesse sentido, a reflexão conceitual sobre intersetorialidade associada à governança é importante:
A intersetorialidade implica articulação estratégica voltada à convergência de iniciativas e integração de recursos gerenciais, financeiros e humanos com o objetivo de dar novos contornos ao padrão tradicionalmente fragmentado das agências públicas. No campo da saúde, a intersetorialidade contribui para o alcance de resultados e mudanças sustentáveis e equitativas99 Magalhães R. Governança, redes sociais e promoção da saúde: reconfigurando práticas e institucionalidades. Ciênc. Saúde Colet. 2018; 23(10):3143-3150.(1428).
O estudo enfocou a atuação da Caisan como uma das instâncias de coordenação da Política Nacional de SAN de janeiro de 2012 a maio de 2016, considerando dois eixos de análise: estrutura e dinâmica de atuação da Câmara; a agenda da Caisan e sua relação com o Consea. O primeiro eixo se relaciona com a descrição da estrutura, organização, composição e dinâmica de funcionamento, incluindo a participação de representantes dos órgãos nas reuniões da Caisan. O segundo eixo se refere à agenda da Caisan, incluindo os temas priorizados e sua relação com proposições do Consea. Busca-se contribuir para compreender como atores estatais e não estatais se relacionaram na coordenação da política de SAN.
A Câmara, apesar de criada em 2007, começou a ter o registro das reuniões em atas em 2012, o que definiu o ano inicial da pesquisa. O encerramento em 2016 se deve à reestruturação ministerial consequente à mudança de governo, que alterou o contexto e relações entre órgãos e atores envolvidos na política. O período do estudo foi de atuação plena das duas instâncias - Caisan e Consea -, favorecendo a análise da governança da política.
As técnicas de pesquisa envolveram revisão bibliográfica sobre políticas de SAN e análise documental (leis, decretos, normas, publicações oficiais, regimentos internos, documentos da Caisan, do Consea e das Conferências Nacionais de Segurança Alimentar e Nutricional). Destacaram-se como fontes as atas, pautas e listas de presença das plenárias da Caisan e do Consea, e as recomendações e exposições de motivos emitidas pelo Consea (visando identificar sua relação com a agenda da Caisan). Os documentos não disponíveis na página oficial das instâncias foram solicitados por intermédio do Sistema Eletrônico do Serviço de Informação ao Cidadão do governo federal.
Adicionalmente, foram realizadas, em 2018, 14 entrevistas semiestruturadas com atores que participaram do Consea, Caisan e das Conferências, sendo 7 representantes do governo e 7 da sociedade civil. As entrevistas, com duração aproximada de uma hora, foram gravadas e transcritas, procedendo-se posteriormente à análise de conteúdo. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (parecer: 2.344.180).
Na apresentação dos resultados, para assegurar o anonimato dos entrevistados, a menção às entrevistas foi realizada com códigos entre parênteses, conforme classificação do quadro 1. Destaca-se que os entrevistados representantes do governo exerceram distintas funções, considerando-se para a organização do quadro a de maior relevância para a pesquisa.
Resultados
Estrutura e dinâmica de atuação da Caisan
A Caisan foi criada em novembro de 2007, mas suas reuniões tornaram-se periódicas e registradas em atas a partir de 2012. A Câmara, desde sua criação, ficou vinculada à Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sesan) sob coordenação do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). Alguns entrevistados apontaram que a decisão sobre o lócus institucional e membros dessa instância foi alvo de controvérsias e debates (E2; E5) ou argumentaram que a intersetorialidade poderia ser fortalecida caso essa instância tivesse uma vinculação suprassetorial (como o Consea), e não a um ministério específico (E5; E8).
Em 2010, compunha a sua estrutura organizacional a presidência, a secretaria executiva, os comitês técnicos e dois plenos: o ministerial (ministros integrantes do Consea) e o pleno executivo (representantes dos ministérios)1010 Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário; Câmara Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Resolução nº 4, de 30 de dezembro de 2010. Dispõe sobre o Regimento Interno da Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional - CAISAN. Diário Oficial da União. 31 Dez 2010..
A única reunião registrada do pleno ministerial ocorreu no segundo semestre de 2011, quando foi aprovado o Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Plansan) (2012-2015). Tal reunião contou com a participação de muitos suplentes e com a presença dos seguintes ministros: Desenvolvimento Social e Combate à Fome; Desenvolvimento Agrário; Meio Ambiente, Pesca e Aquicultura; Secretaria de Políticas para Mulheres da Presidência da República; Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República; Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República.
Em 2016, a Câmara teve a sua composição modificada, passando a ter um único pleno formado pelos representantes governamentais titulares (ministros) e suplentes (designados pelo ministro) do Consea1111 Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário/Câmara Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Brasil). Resolução nº 1, de 26 de dezembro de 2016. Aprova o Regimento Interno da Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional. Diário Oficial. 28 Dez 2016.. Tal mudança decorreu da dificuldade de reunir todos os ministros, que ocasionava a demora na expedição de resoluções e recomendações internas do governo, dificultando a gestão nesse espaço (E3; E4; E11).
Buscou-se então conformar um único pleno composto por titulares e suplentes, visando à autonomia e agilidade decisória. A Câmara passou a apresentar a seguinte organização: pleno da Caisan (ministros, secretários, diretores e outros técnicos do governo), presidência, secretaria executiva, comitês gestores (incluídos em 2014) e comitês técnicos1111 Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário/Câmara Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Brasil). Resolução nº 1, de 26 de dezembro de 2016. Aprova o Regimento Interno da Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional. Diário Oficial. 28 Dez 2016..
Os comitês gestores tinham por finalidade apoiar e acompanhar as ações necessárias à operacionalização de programas ou planos intersetoriais relativos à Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (PNSAN). Tais comitês eram compostos por representantes dos ministérios e secretarias especiais, podendo ter a participação de convidados de outros órgãos, entidades públicas e da sociedade civil1111 Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário/Câmara Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Brasil). Resolução nº 1, de 26 de dezembro de 2016. Aprova o Regimento Interno da Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional. Diário Oficial. 28 Dez 2016..
Os comitês técnicos eram órgãos de assessoramento da Caisan que subsidiavam as tomadas de decisão. Possuíam a mesma composição dos comitês gestores, e sua duração deveria ser delimitada, podendo ser prorrogada quando necessário1010 Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário; Câmara Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Resolução nº 4, de 30 de dezembro de 2010. Dispõe sobre o Regimento Interno da Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional - CAISAN. Diário Oficial da União. 31 Dez 2010.. Durante o período estudado, a Câmara instituiu 13 comitês técnicos.
Segundo entrevistados, os comitês técnicos foram importantes para que as discussões fossem aprofundadas e estruturadas, contribuindo para a definição de ações intersetoriais (E4; E3). A maior parte dos comitês técnicos abordou a construção, o monitoramento e a avaliação do Plansan, que foi mencionado como o principal instrumento de conexão entre setores e promoção da intersetorialidade (E12).
Em relação à composição, a Caisan era integrada por membros governamentais titulares e suplentes do Consea, compreendendo, em 2016, representantes de 20 órgãos do governo federal (quadro 2).
A análise da participação dos representantes dos ministérios nas reuniões da Câmara, a partir das atas e listas de presenças, mostra que nenhuma plenária foi presidida pelo Ministro de Desenvolvimento Social, que exerceria a função de secretário-geral. Todas foram dirigidas pelos secretários executivos da Câmara. O gráfico 1 ilustra a participação dos órgãos governamentais nas plenárias no período.
O MDS e o Ministério da Saúde estiveram presentes em todas as reuniões, em geral, com mais de um representante. Depois desses, o secretário executivo do Consea, os membros dos Ministérios da Educação e das Relações Exteriores foram os mais participativos.
A rotatividade de representantes e a baixa participação de alguns órgãos dentro da Caisan foram mencionadas como desafios iniciais dessa instância (E;3; E4; E9; E11). A secretaria do governo da Presidência da República, os Ministérios de Relação Exteriores e Educação se destacaram pela baixa alternância de representantes.
Os mesmos participantes frequentes nas plenárias da Caisan compareciam de forma assídua nas reuniões da Consea, o que teria favorecido encaminhamentos mais qualificados dos debates do Conselho para a Câmara (E12).
A agenda da Caisan e sua relação com o Consea
A agenda política da Caisan no período abrangeu uma diversidade de temas, expressos nas pautas. As principais temáticas se originaram nos debates realizados no Consea. Entretanto, os representantes dos ministérios, com assento na Câmara, também poderiam propor assuntos, independentemente das demandas do Conselho. O gráfico 2 demonstra os temas mais frequentes nas pautas dessa instância.
O tema mais frequente foi o planejamento da política, compreendendo discussões sobre o Plansan, o Plano Intersetorial de Prevenção e Controle da Obesidade, o Sisan e a PNSAN. O Plano teve destaque nos debates, com ênfase na sua construção e monitoramento, o que é consoante com as atribuições previstas no decreto de criação da Câmara. Apesar da construção da Política Nacional não ter sido explicitada com frequência nas plenárias, o Plansan é um instrumento que materializa a política, havendo forte relação entre a construção do Plano e o fortalecimento da PNSAN (E14).
O tema preparação para a plenária do Consea foi o segundo mais frequente, referindo-se, em geral, a discussões prévias das pautas que seriam abordadas no Conselho. Isso contribuía para que o governo chegasse mais articulado em suas posições, acelerando a tomada de decisão para determinados temas. Essa questão foi abordada de forma positiva por entrevistados, visto que deixava os debates mais produtivos (E12; E14).
O assunto referente à organização das Conferências foi o terceiro mais debatido, compreendendo a programação do evento, debates sobre a participação do governo nas subcomissões de preparação, elaboração dos documentos de referência e balanço das conferências estaduais. Observou-se sinergia entre o Consea e a Caisan na preparação das Conferências, bem como a importância desse evento na agenda (E10). De maneira geral, os entrevistados apontaram as Conferências como um processo de aprendizagem institucional tanto pelo governo quanto pela sociedade civil, que pressupõe escuta, diálogo e tensões. Os relatos também reconheceram as Conferências como um espaço participativo e democrático que logrou resultados positivos em importantes áreas (E5; E6; E7; E10; E11; E14).
O debate acerca do Planejamento/Gestão da Caisan foi o quarto tema mais frequente. Envolveu apresentações sobre as ações desenvolvidas, eleições para os temas centrais a serem discutidos, criação dos comitês técnicos, elaboração dos regimentos internos e balanço das atividades, apresentando avanços e desafios. Destaca-se que o tema Planejamento/Gestão do Consea também foi frequente nas pautas do Conselho, o que pode estar relacionado com o esforço de institucionalização e fortalecimento dessas instâncias.
A discussão sobre o Plano Plurianual (PPA) foi o quinto assunto mais debatido, com ênfase na metodologia da sua elaboração e na construção do programa temático de SAN no novo PPA (2016-2019). Durante a elaboração desse programa temático, buscou-se compatibilizar as demandas recebidas das instâncias de participação da sociedade civil (Fórum Interconselhos e debates gerados em todo o País). A participação da sociedade e do governo nesses fóruns de discussão foi avaliada de forma positiva pelos representantes da Câmara. Mencionou-se, como desafio para o PPA, a construção de um programa que refletisse a intersetorialidade da SAN, que tivesse um caráter estratégico, metas robustas e que respondesse aos desafios da SAN (E10). A construção do PPA temático foi destacada nas entrevistas como uma conquista intersetorial importante da Câmara (E9; E10).
Apesar de o tema da Agricultura Familiar não aparecer de forma frequente nas pautas, existia um comitê técnico que abordava a agricultura urbana e periurbana. Essa iniciativa visava à formalização de parcerias para promover a agricultura urbana com enfoque na produção orgânica sustentável, utilizando terrenos públicos, de escolas e áreas disponíveis para fazer hortas comunitárias, com a produção feita por cooperativas de agricultores. Vários entrevistados apontaram limites institucionais para avançar na questão da distribuição da terra, pela posição contrária do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) (E1; E3; E8; E9; E13; E14).
O tema da relação entre o Consea e a Caisan foi pouco frequente nas atas das plenárias, mas foi destacado pelos entrevistados, que, em sua maioria, ressaltaram o diálogo e a sinergia entre as duas instâncias (E2; E12). Apesar do predomínio de relações de colaboração e complementação entre tais instâncias, em certas ocasiões, ocorriam tensões, caso representantes da sociedade civil no Consea e nas Conferências considerassem que a Câmara estaria dando respostas insuficientes para as demandas.
Além dos temas principais, outras questões foram debatidas nas plenárias da Caisan, reafirmando a expressiva amplitude da política de SAN, conforme resumido no quadro 3.
Alguns desses temas também estiveram presentes na agenda do Consea, o que demonstra a similaridade das discussões e a possibilidade de a Caisan articular respostas junto aos ministérios. Entretanto, no período estudado, temas conflitivos que mobilizam fortes interesses econômicos, como a regulação do uso de agrotóxicos e da indústria de alimentos, não foram muito debatidos nas plenárias da Caisan. Isso sugeriu certa fragilidade dessa instância para orientar a ação do Estado no que se refere a questões envolvendo disputas de interesses entre agentes econômicos e dos setores sociais.
Sobre a capacidade de a Câmara tomar decisões intersetoriais, os entrevistados apontaram que as plenárias apresentavam capacidade de deliberação e pactuação sobre algumas ações e programas. Todavia, muitas de suas decisões tinham que ser encaminhadas e negociadas com os ministérios para assegurar a execução das demandas e viabilizar programas e políticas da área (E2; E9).
Discussão
A pesquisa identificou que a Câmara demorou cinco anos para funcionar plenamente. Outro estudo já havia relatado as dificuldades de estruturação da Caisan na esfera federal e, também, de criação dessas instâncias na esfera estadual1212 Nascimento RCDO. O papel do CONSEA na construção da Política e do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. [tese]. Rio de Janeiro: Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro; 2012.. A Câmara é um órgão muito complexo, uma vez que cada ministério possui um poder muito elevado e que, entre os ministérios, há interesses divergentes e pesos orçamentários assimétricos1313 Custódio MB. Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional no Brasil: Arranjo Institucional e Alocação de Recursos. [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2009..
Compreende-se que a construção de um novo modelo de governança, envolvendo a atuação conjunta de diferentes setores do governo, é um processo desafiador que requer tempo e acordos para estruturação e alcance dos objetivos propostos. Além disso, demanda valorização para que se constitua como um espaço decisório da agenda estratégica no âmbito do governo. A pesquisa observou que a demora para a estruturação da Caisan esteve relacionada principalmente com discussões sobre como seria seu formato, sua composição e seu lócus institucional.
No que concerne à inserção da Câmara, houve amplo debate entre os integrantes do Consea. A Caisan era vinculada ao MDS, e não à Casa Civil da Presidência da República, como o Consea. A vinculação a um ministério específico pode trazer desafios para a promoção da instersetorialidade55 Burlandy L. A construção da política de segurança alimentar e nutricional no Brasil: estratégias e desafios para a promoção da intersetorialidade no âmbito federal de governo. Ciênc. Saúde Colet. 2009; 14(3):851-860..
No entanto, a pesquisa revelou que, após alguns anos de experiência, a Câmara, mesmo vinculada ao MDS, desempenhou bem suas funções, ao manter a constância no trabalho e a interação entre diversos setores. Nesse sentido, um desafio seria compatibilizar ações intersetoriais com fluxos decisórios que assegurem a participação de atores decisivos, sem colidir com a organização hierárquica do governo e o processo político.
Em relação à constituição de espaços internos na Caisan, observou-se que a maioria dos comitês técnicos abordou o Plansan. Segundo Machado1414 Machado ML, Gabriel CG, Soar C, et al. Adequação normativa dos planos estaduais de segurança alimentar e nutricional no Brasil. Cad. Saúde Pública. 2017; 33(1):2-14., a construção desses planos depende de um trabalho conjunto das diversas secretarias de governo. O presente estudo identificou que os comitês técnicos contribuíram para articular os setores e atores da política e aprofundar os debates, favorecendo a tomada de decisão e a construção intersetorial do Plansan.
Quanto à participação dos representantes governamentais nas plenárias, observou-se o engajamento expressivo de algumas áreas e atores. A pesquisa revelou a presença ativa e frequente nas reuniões de quatro ministérios: Desenvolvimentos Social, Saúde, Educação e Relações Exteriores, com baixa rotatividade dos representantes, sugerindo a implicação dessas áreas com a política de SAN. Além desses setores, o secretário executivo do Consea teve participação frequente na Caisan. Resultado similar foi encontrado na análise da presença dos representantes governamentais nas plenárias do Consea.
A Câmara potencializa a participação dos primeiros escalões de governo e os compromete em torno da construção de uma agenda própria de negociação (considerando as dificuldades prévias de participação sistemática dos mais altos escalões no Consea)66 Gabe KT, Jaime PC. Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. In: Jaime PC, organizadora. Políticas públicas de alimentação e nutrição. Rio de Janeiro: Atheneu; 2019. p. 41-49.. Entretanto, identificou-se na pesquisa que os suplentes dos ministros compareciam mais nas reuniões. Outro estudo realizado na esfera municipal observou que os participantes da Câmara local eram majoritariamente técnico-administrativos, sem poder decisório, que desconheciam a política de SAN, indicados pelos primeiros escalões das secretarias municipais1515 Marano D, Morgado CMC, Franco AS, et al. Relato de Experiência: percurso e desafios para adesão municipal ao Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Demetra 2021; (16):e50901.. A presença mais frequente de técnicos, a baixa participação de alguns órgãos governamentais e de atores com poder de decisão, e a alta rotatividade entre os representantes, foram identificadas no presente estudo como limites à atuação do Câmara Nacional.
Tais fragilidades podem dificultar a implementação das políticas da área da SAN, uma vez que as ações poderiam ser potencializadas quando realizadas de forma articulada entre ministérios. No entanto, a Caisan, mesmo com fragilidades, permitiu no período a relação de apoio mútuo entre os ministérios, estabelecendo processos que concretizam a prática intersetorial.
Vale mencionar a existência de outras instâncias que tratam de temas relacionados com a SAN, como a Comissão e a Câmara Interministerial de Agroecologia e Produção Orgânica (Ciapo), responsáveis pela coordenação da Política Nacional de Agroecologia e Produção, com composição semelhante ao Consea e à Caisan respectivamente. Como na experiência da Caisan, não houve consenso em relação à inserção institucional da Ciapo, e seus representantes não possuíam força no ministério para implementar as demandas colocadas nas reuniões1616 Sambuichi RHR, Spínola PAC, Mattos LM, et al. Análise da Concepção da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica. In: Sambuichi RHR, Moura IF, Mattos LM, et al., organizadores. A política nacional de agroecologia e produção orgânica no Brasil: uma trajetória de luta pelo desenvolvimento rural sustentável. Brasília, DF: Ipea; 2017. p. 117-147.. A análise de semelhanças e diferenças entre a Ciapo e a Caisan pode ser objeto de estudos futuros.
Em relação à agenda da Caisan, a pesquisa identificou que os principais temas debatidos envolviam a intersetorialidade e a participação social. O tema de planejamento da política incluiu: o Plansan, o Plano Intersetorial de Prevenção e Controle da Obesidade, o Sisan e a PNSAN.
As prioridades do Plansan foram definidas com participação da sociedade civil, mediante a realização de Conferências Nacionais de SAN. A partir de 2011, as Conferências passaram a definir as prioridades para a elaboração do Plano que deviam ser consideradas para o período quadrienal posterior55 Burlandy L. A construção da política de segurança alimentar e nutricional no Brasil: estratégias e desafios para a promoção da intersetorialidade no âmbito federal de governo. Ciênc. Saúde Colet. 2009; 14(3):851-860.. A atribuição específica da criação do Plansan exigiu certo grau de comprometimento do governo e foi importante para efetivar a intersetorialidade.
O Plano Intersetorial de Prevenção e Controle da Obesidade buscou organizar as orientações de forma articulada, conjunta e intersetorial para o enfrentamento do sobrepeso e obesidade e seus determinantes no País1717 Rauber F, Jaime PC. Políticas Públicas de Alimentação e Nutrição voltadas ao sobrepeso e obesidade. In: Jaime PC, organizadora. Políticas públicas de alimentação e nutrição. Rio de Janeiro: Atheneu; 2019. p. 123-131.. Essa estratégia ganhou notoriedade na agenda pelo crescente aumento de sobrepeso e obesidade na população brasileira. Dados da pesquisa do Vigitel, realizada em 2017, demonstram que 54% da população brasileira sofre com excesso de peso11 Costa CA, Bógus CM. Significados e apropriações da noção de segurança alimentar e nutricional pelo segmento da sociedade civil do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Saúde e Soc. 2012; 21(1):103-114.. Para o enfrentamento do problema, foi necessário o envolvimento de diversos ministérios, especialmente o Ministério da Saúde, e a sociedade civil, explicitando esforços para ampliar as ações integradas.
Outro assunto frequente foi a organização das Conferências. Durante o período analisado, ocorreu uma Conferência cujas deliberações orientaram a PNSAN e o Plansan. As Conferências de SAN se destacam pela forte participação de diversas representações da sociedade civil e pela parceria estabelecida com o Estado no desenvolvimento de políticas para área1919 Zimmermann SA. A Pauta do Povo e o Povo em Pauta: As Conferências Nacionais de Segurança Alimentar e Nutricional Brasil - Democracia, Participação e Decisão Política. [tese]. Rio de Janeiro: Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro; 2011.. A pesquisa corroborou o reconhecimento das Conferências como um espaço participativo relevante para o alcance de resultados positivos na política.
O tema da preparação para a plenária do Consea e da relação entre o Consea e a Caisan demonstrou como a articulação entre essas duas instâncias é importante para a operacionalidade das ações. Nesse sentido, observou-se que a coexistência desses dois espaços - Consea e Caisan - favoreceu o alinhamento entre áreas e a complementaridade das atividades. Corroborando esse achado, um estudo sobre as políticas de SAN no período de 2003 a 2019, que analisou documentos publicados por essas duas instâncias, destacou que a apresentação de propostas e conteúdos são complementares entre si e alinhados aos contextos políticos e históricos de cada momento2020 Oliveira ASB, Casemiro JP, Brandão AL, et al. Monitoramento e Avaliação da Segurança Alimentar e Nutricional: um olhar sobre as publicações oficiais. Ciênc. Saúde Colet. No prelo 2020..
Cabe ainda ressaltar o trabalho importante desses órgãos tanto no acompanhamento das decisões em âmbito federal como no desenvolvimento de ações e proposições2020 Oliveira ASB, Casemiro JP, Brandão AL, et al. Monitoramento e Avaliação da Segurança Alimentar e Nutricional: um olhar sobre as publicações oficiais. Ciênc. Saúde Colet. No prelo 2020.. A institucionalização de espaços de diálogo como a Caisan, que tem a possibilidade de dar consequência às manifestações produzidas pelo Consea e, posteriormente, monitorar as ações, atenua a fragmentação na construção da PNSAN.
O Sisan pode ser caracterizado como um sistema aberto em função do seu propósito de organizar e monitorar as ações e políticas públicas dos diversos setores governamentais e não governamentais, articulando-as numa política nacional de SAN.
As diretrizes da intersetorialidade e da participação social, norteadoras do Sisan, tendo como pilares a Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, o Consea e a Caisan2222 Leão M, Maluf RS, organizadores. A construção social de um sistema público de segurança alimentar e nutricional: a experiência brasileira. Brasília, DF: ABRANDH; 2012., contribuem para a governança na área no País. No entanto, Zimmermann1919 Zimmermann SA. A Pauta do Povo e o Povo em Pauta: As Conferências Nacionais de Segurança Alimentar e Nutricional Brasil - Democracia, Participação e Decisão Política. [tese]. Rio de Janeiro: Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro; 2011. argumenta que é importante assumir que o Sistema está em construção, mostrando-se como um desafio para a gestão governamental, visto que é integrado por câmaras intersetoriais e Conselhos, ambos presentes nas três esferas de governo.
Destaque-se que dados da Pesquisa de Orçamento Familiar revelam que, entre os anos 2017-2018, ocorreu um aumento expressivo de todos os graus associados à situação de Insegurança Alimentar (IA) - leve, moderada e grave -, que vinham em um cenário de redução no Brasil2323 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de orçamentos familiares 2017-2018: análise da segurança alimentar no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE; 2020.. A complexidade dos problemas envolvidos com a IA demonstra a pertinência de aprimorar mecanismos de governança que promovam uma maior convergência e articulação entre setores, no sentido de garantir a realização do Direito Humano à Alimentação Adequada e fortalecer a PNSAN nos seus diferentes níveis (global, regional, nacional e local).
A construção da PNSAN resultou do protagonismo da sociedade civil, cuja mobilização e engajamento com a temática impulsionaram a entrada da SAN na agenda pública brasileira55 Burlandy L. A construção da política de segurança alimentar e nutricional no Brasil: estratégias e desafios para a promoção da intersetorialidade no âmbito federal de governo. Ciênc. Saúde Colet. 2009; 14(3):851-860.. A Câmara teria a potência de viabilizar o planejamento conjunto, criando um espaço de governança intersetorial que se torna fundamental para a gestão de uma política complexa.
A governança construída para política de SAN no período estudado representa um desenho singular e complexo, ao compreender um conselho com participação da sociedade civil e representantes governamentais (o Consea) e uma instância somente de órgãos governamentais (a Caisan), ambos fortemente orientados pelos debates e diretrizes de Conferências participativas. Outras políticas que exigem coordenação e articulação intersetorial não apresentam esse tipo de configuração. Por exemplo, no caso das políticas para os idosos, existe o Conselho Nacional de Direitos dos Idosos (CNDI), que tem representantes da sociedade civil e do governo2424 Souza MS, Machado CV. Governança, intersetorialidade e participação social na política pública: o Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa. Ciênc. Saúde Colet. 2018; 23(10):3189-3200., mas não existe uma instância formal de composição apenas governamental. Já no caso da Política Nacional de Controle do Tabaco, a Comissão Nacional para a Implementação da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco reúne representantes de diferentes órgãos governamentais2525 Portes LH, Machado CV, Turci SRB. Coordenação governamental da Política de Controle do Tabaco no Brasil. Ciênc. Saúde Colet. 2019; 24(7):2701-2714., mas não existe um conselho amplo com participação da sociedade civil (em que pese sua importância na política). A existência de duas instâncias, no caso da SAN, oferecia um rico potencial de aliar o processamento das demandas da sociedade com mecanismos adicionais de coordenação entre áreas de governo para a operacionalização de políticas propostas, valorizando tanto a participação social como a intersetorialidade.
Por outro lado, temas conflitivos muito debatidos no Consea e nas Conferências, como o orçamento, a regulação dos agrotóxicos, dos transgênicos e da rotulagem e publicidades de alimentos, não foram frequentes na agenda da Caisan, no período estudado. Segundo outro estudo, a abordagem associada à garantia da SAN, da Alimentação Adequada Saudável e do Direito Humano à Alimentação Adequada, bem como os princípios, os valores e as estratégias que vêm sendo construídos no País nesses âmbitos de ação política, são incompatíveis com os produtos e as práticas mercadológicas do setor privado comercial2626 Burlandy L, Alexandre VP, Gomes FS, et al. Políticas de promoção da saúde e potenciais conflitos de interesses que envolvem o setor privado comercial. Ciênc. Saúde Colet. 2016; 21(6):1809-1818.. A Caisan, que poderia enfrentar os interesses econômicos das corporações privadas de forma mais efetiva, pareceu ter limitada influência sobre questões consideradas estruturantes.
Além disso, com a extinção do Consea e a consequente interrupção de atuação conjunta entre esses dois espaços, observou-se ausência de movimentações para a construção de novas ações, gerando incerteza de continuidade de esforços que vinham sendo empreendidos2020 Oliveira ASB, Casemiro JP, Brandão AL, et al. Monitoramento e Avaliação da Segurança Alimentar e Nutricional: um olhar sobre as publicações oficiais. Ciênc. Saúde Colet. No prelo 2020.. Nesse sentido, a Câmara necessita ser fortalecida para proporcionar que as propostas de instâncias participativas (como era o Consea) e que demandas da sociedade civil tenham uma articulação efetiva dentro do governo, contribuindo para a implementação das diferentes dimensões da SAN. É necessário também mobilizar a população, expandir o debate e ampliar o conhecimento sobre essa temática para concretizar a defesa dessa agenda com ampla participação da sociedade.
Conclusões
Em que pese a complexidade da articulação de múltiplos órgãos governamentais e interesses, a pesquisa mostrou que, no período estudado, a Caisan favoreceu o planejamento conjunto e ações integradas entre diferentes setores do governo. Esse modelo de governança intersetorial foi também importante por proporcionar a interlocução e o processamento pelos órgãos de governo das demandas da sociedade civil provenientes do Consea e das Conferências.
Contudo, ainda persistem desafios para fortalecer a efetividade da Caisan na gestão e implementação de políticas intersetoriais. A baixa presença de representantes com maior poder de decisão e de alguns órgãos governamentais, a alta rotatividade entre os representantes e o pouco envolvimento com decisões políticas em áreas críticas impuseram limites à sua atuação. Desse modo, promover seu fortalecimento e a inclusão das questões da SAN na agenda federal é essencial para a consolidação das políticas públicas de SAN.
A literatura sugere uma escassez de estudos específicos sobre a Caisan. Outras pesquisas são necessárias para acompanhar como essa instância tem atuado no período mais recente na gestão da PNSAN, sobretudo após a extinção do Consea, um espaço que favorecia a participação social e a intersetorialidade na construção de uma política estratégica para a o bem-estar social e saúde da população.
Referências
-
1Costa CA, Bógus CM. Significados e apropriações da noção de segurança alimentar e nutricional pelo segmento da sociedade civil do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Saúde e Soc. 2012; 21(1):103-114.
-
2Burlandy L. A atuação da sociedade civil na construção do campo da Alimentação e Nutrição no Brasil: elementos para reflexão. Ciênc. Saúde Colet. 2011; 16(1):63-72.
-
3Maluf RS, Reis MC. Conceitos e princípios de Segurança Alimentar e Nutricional. In: Rocha C, Burlandy L, Magalhães R, organizadores. Segurança alimentar e nutricional: perspectivas, aprendizados e desafios para as políticas públicas. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2013. p. 15-42.
-
4Tomazini CG, Leite CKS. Programa Fome Zero e o paradigma da segurança alimentar: ascensão e queda de uma coalizão? Rev. Sociol. Polit. 2016; 24(58):13-30.
-
5Burlandy L. A construção da política de segurança alimentar e nutricional no Brasil: estratégias e desafios para a promoção da intersetorialidade no âmbito federal de governo. Ciênc. Saúde Colet. 2009; 14(3):851-860.
-
6Gabe KT, Jaime PC. Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. In: Jaime PC, organizadora. Políticas públicas de alimentação e nutrição. Rio de Janeiro: Atheneu; 2019. p. 41-49.
-
7Marques E. Governo, atores políticos e governança nas políticas urbanas no Brasil e em São Paulo: conceitos para uma agenda de pesquisas futuras. Bras. Sci. político. Rev. 2013; 7(3):8-35.
-
8Castro I. A extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e a agenda de alimentação e nutrição. Cad. Saúde Pública. 2019; 35(2):e00009919.
-
9Magalhães R. Governança, redes sociais e promoção da saúde: reconfigurando práticas e institucionalidades. Ciênc. Saúde Colet. 2018; 23(10):3143-3150.
-
10Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário; Câmara Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Resolução nº 4, de 30 de dezembro de 2010. Dispõe sobre o Regimento Interno da Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional - CAISAN. Diário Oficial da União. 31 Dez 2010.
-
11Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário/Câmara Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Brasil). Resolução nº 1, de 26 de dezembro de 2016. Aprova o Regimento Interno da Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional. Diário Oficial. 28 Dez 2016.
-
12Nascimento RCDO. O papel do CONSEA na construção da Política e do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. [tese]. Rio de Janeiro: Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro; 2012.
-
13Custódio MB. Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional no Brasil: Arranjo Institucional e Alocação de Recursos. [tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 2009.
-
14Machado ML, Gabriel CG, Soar C, et al. Adequação normativa dos planos estaduais de segurança alimentar e nutricional no Brasil. Cad. Saúde Pública. 2017; 33(1):2-14.
-
15Marano D, Morgado CMC, Franco AS, et al. Relato de Experiência: percurso e desafios para adesão municipal ao Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Demetra 2021; (16):e50901.
-
16Sambuichi RHR, Spínola PAC, Mattos LM, et al. Análise da Concepção da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica. In: Sambuichi RHR, Moura IF, Mattos LM, et al., organizadores. A política nacional de agroecologia e produção orgânica no Brasil: uma trajetória de luta pelo desenvolvimento rural sustentável. Brasília, DF: Ipea; 2017. p. 117-147.
-
17Rauber F, Jaime PC. Políticas Públicas de Alimentação e Nutrição voltadas ao sobrepeso e obesidade. In: Jaime PC, organizadora. Políticas públicas de alimentação e nutrição. Rio de Janeiro: Atheneu; 2019. p. 123-131.
-
18Brasil. Ministério da Saúde. Vigitel Brasil 2017: vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico: estimativas sobre frequência e distribuição sociodemográfica de fatores de risco e proteção para doenças crônicas nas capitais dos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal em 2017. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2018.
-
19Zimmermann SA. A Pauta do Povo e o Povo em Pauta: As Conferências Nacionais de Segurança Alimentar e Nutricional Brasil - Democracia, Participação e Decisão Política. [tese]. Rio de Janeiro: Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro; 2011.
-
20Oliveira ASB, Casemiro JP, Brandão AL, et al. Monitoramento e Avaliação da Segurança Alimentar e Nutricional: um olhar sobre as publicações oficiais. Ciênc. Saúde Colet. No prelo 2020.
-
21Maluf RS. O Consea na construção do sistema e da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. In: Silva JGDA, Del Grossi ME, França CGDE, organizadores. Fome Zero: a experiência brasileira. Brasília, DF: Ministério do Desenvolvimento Agrário; 2010. p. 265-287.
-
22Leão M, Maluf RS, organizadores. A construção social de um sistema público de segurança alimentar e nutricional: a experiência brasileira. Brasília, DF: ABRANDH; 2012.
-
23Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de orçamentos familiares 2017-2018: análise da segurança alimentar no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE; 2020.
-
24Souza MS, Machado CV. Governança, intersetorialidade e participação social na política pública: o Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa. Ciênc. Saúde Colet. 2018; 23(10):3189-3200.
-
25Portes LH, Machado CV, Turci SRB. Coordenação governamental da Política de Controle do Tabaco no Brasil. Ciênc. Saúde Colet. 2019; 24(7):2701-2714.
-
26Burlandy L, Alexandre VP, Gomes FS, et al. Políticas de promoção da saúde e potenciais conflitos de interesses que envolvem o setor privado comercial. Ciênc. Saúde Colet. 2016; 21(6):1809-1818.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
18 Out 2021 -
Data do Fascículo
Jul-Sep 2021
Histórico
-
Recebido
27 Out 2020 -
Aceito
13 Jul 2021