RESUMO
Há diversas experiências no mundo que visam ao desenvolvimento de metodologias para alocação de recursos para a saúde, contudo, o que resta saber é até que ponto a equidade é operacionalizada nesses métodos. Por isso, este estudo objetivou analisar o que tem sido produzido nas literaturas nacional e internacional a respeito das metodologias de alocação equitativas de recursos em saúde e suas dimensões. Realizou-se uma revisão integrativa em três portais/bases de dados (Bireme, PubMed e Scopus) de artigos científicos, publicados em português, inglês e espanhol. Foram identificados nos artigos o(s) objetivo(s), o método do estudo utilizado pelos pesquisadores e a abordagem sobre a metodologia de alocação de recursos em saúde no que se refere à discussão/operacionalização da equidade. Ainda são poucos os estudos em que alocação equitativa é tema central. Há certa imprecisão sobre a delimitação entre ‘alocar’ e ‘financiar’. Em geral, as metodologias precisam admitir as implicações (bio)éticas relativas à equidade, devem se basear minimamente na dimensão per capita, em conjunto, compulsoriamente, com a orçamentação incremental, com as questões sociodemográficas, sociossanitárias e epidemiológicas e ter centralidade na ‘necessidade de saúde’, sendo necessário um constante aperfeiçoamento da metodologia ao longo do tempo para refinar a operacionalidade da equidade.
PALAVRAS-CHAVE Alocação de recursos; Financiamento governamental; Sistemas de saúde; Financiamento da assistência à saúde; Literatura de revisão como assunto
ABSTRACT
There are several experiences in the world that aim to develop methodologies for resource allocation for health, however, what remains to be seen is the extent to which equity is operationalized in these methods. Therefore, this study aimed to analyze what has been produced in national and international literature regarding equitable methodologies for the allocation of health resources and their dimensions. An integrative review was conducted in three portals/databases (Bireme, PubMed and Scopus) of scientific articles, published in Portuguese, English and Spanish. The articles identified the objective(s), the study method used by the researchers and the approach on the methodology of health resource allocation with regard to the discussion/operationalization of equity. There are still few studies in which equitable allocation is the central theme. There is some vagueness about the boundary between ‘allocate’ and ‘finance’. In general, methodologies need to admit the (bio)ethical implications related to equity, they must be based minimally on the per capita dimension, together, mandatorily, with incremental budgeting, sociodemographic, socio-sanitary and epidemiological issues and centered on the ‘health needs’, requiring a constant refinement of the methodology over time to refine the operability of equity.
KEYWORDS Resource allocation; Government financing; Health systems; Healthcare financing; Review literature as topic
Introdução
O direito à saúde universal, integral e gratuito, embora positivado pela Constituição Federal de 19881, em seus artigos de 196 a 200, apresenta diversos desafios no que se refere à sua efetivação. Um desses desafios no alcance do princípio da equidade é, sem dúvida, garantir a alocação de recursos do nível federal aos entes subnacionais. Com vistas a alcançar a equidade, é pertinente considerar as dimensões continentais do Brasil, a complexa relação entre os três níveis da federação e a profunda desigualdade de renda, que se manifesta tanto nas classes sociais quanto entre as várias regiões.
No entanto, ao compreender como se consolidou a alocação de recursos em saúde ao longo da história do Sistema Único de Saúde (SUS), precisa-se recorrer ao contexto do subfinanciamento desse sistema, pois a equidade na alocação ganha ainda mais relevância nessa situação. Isso porque os recursos do SUS já partem de um subfinanciamento crônico desde os anos de 1990, e, por isso, Mendes2 e Ocké-Reis, Ribeiro e Piola3 já denunciavam que os recursos do Orçamento da Seguridade Social deveriam, nos anos subsequentes pós-constituinte, ser repartidos entre as três políticas sociais (saúde, previdência e assistência social) que compõem o bloco da seguridade. Contudo, tais recursos nunca foram garantidos à saúde pública brasileira.
Assim, ao contrário do que determina a Carta Magna, os recursos para garantir o financiamento e o pleno funcionamento do SUS foram sendo, ao longo do tempo, restringidos por normas infraconstitucionais2. Fernando Henrique Cardoso, em 1993, asfixiou os repasses para a saúde através da criação do Fundo Social de Emergência (FSE), que, logo em seguida, passou a ser chamado de Desvinculação das Receitas da União (DRU), diminuindo a quantidade de recursos vinculados ao orçamento público em 20%4. Recentemente, após a proposição do Governo Dilma, sendo promulgado pelo Governo Temer, 30% desse valor já é desvinculado desse orçamento, conforme a Emenda Constitucional nº 93/20165.
Contudo, apenas no governo Dilma, após o estabelecido pelo artigo nº 35 da Lei Orgânica da Saúde nº 8.080/1990, ocorre a instituição de critérios de alocação dos recursos federais aos entes subnacionais baseados na dimensão necessidades de saúde, com a publicação da Lei Complementar nº 141 (LC-141), em 20126. Esta se referia a uma pauta histórica de luta dos movimentos sociais e de gestores do sistema para a regulamentação da Emenda Constitucional 29 (EC-29).
Nessa lei, três elementos são aqueles que definem a alocação dos poucos recursos nessa área: (a) a definição do que são as Ações e os Serviços Públicos de Saúde (ASPS); (b) os percentuais mínimos para aplicação da União, estados e municípios em saúde; e (c) as regras (critérios) para transferências de recursos para financiamento da saúde entre os entes federados. Assim, o art. 17 da Lei nº 141 é claro:
Art. 17. O rateio dos recursos da União vinculados a ações e serviços públicos de saúde [...] observará as ‘necessidades de saúde’ da população, ‘as dimensões epidemiológica, demográfica, socioeconômica, espacial’ e de ‘capacidade de oferta’ de ‘ações e de serviços de saúde’ e, ainda, o disposto no art. 35 da Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, de forma a atender os objetivos do inciso II do § 3º do art. 198 da Constituição Federal. [grifo nosso]6.
Ressalte-se, neste ponto, que a LC-141 determina que o governo federal estabeleça e torne pública, todos os anos, uma ‘metodologia’ para que seja realizada a alocação dos recursos financeiros federais para financiamento de ações e serviços públicos de saúde a estados e municípios. Tal metodologia deve considerar todos os critérios descritos no art. 17 (entre aspas simples), e conforme determina, inclusive, o artigo 35 da Lei Orgânica da Saúde nº 8.080/1990.
No entanto, fica a dúvida sobre como operacionalizar tais critérios, haja vista que eleger indicadores, utilizar os melhores do ponto de vista metodológico e ainda articulá-los na tentativa de operacionalizar a equidade não é uma tarefa trivial. Isso se deve ao fato de que o próprio conceito de equidade, mesmo tendo de ser perseguido do ponto de vista prático, é um desafio em si mesmo, conforme já descrito por Porto et al.7, quando a autora criticava a malversação do termo ao discorrer sobre a equidade como a mera distribuição igualitária de recursos.
Conforme nos ensinam Mendes, Leite e Marques8, há diversas experiências no mundo que visam ao desenvolvimento de metodologias para alocação de recursos para a saúde. Nesse sentido, para que a distribuição dos recursos dos poderes centrais para os entes subnacionais seja realizada de forma ‘equitativa’, ela deve levar em conta critérios que abordem as necessidades de saúde da população e que devem ser revisados constantemente7 para sua atualização, considerando-se que as necessidades são dinâmicas.
Contudo, o debate reaparece quando se tenta conhecer metodologias na literatura nacional e internacional que operem essa alocação com indicadores que componham o sentido do termo ‘equidade’, isto é, alocar mais recursos àqueles entes que mais precisam e menos recursos aos entes que menos precisam8.
Assim, compreendendo que este é um debate em aberto, o presente artigo tem o intuito de realizar uma revisão integrativa, a fim de analisar o que tem sido produzido nas literaturas nacional e internacional a respeito das metodologias de alocação equitativas de recursos em saúde e suas dimensões, que, no Brasil, ganharam o nome genérico de ‘critérios de rateio’ para alocar recursos do nível federal para os entes subnacionais no SUS.
Material e métodos
Realizou-se uma revisão integrativa conforme apontado por Soares et al.9. Nesse contexto, este estudo enquadra-se na definição de 1998 recuperada pelas autoras em que as revisões integrativas são relatórios integrados dos conceitos-chave identificados nos estudos que se analisam. A literatura pesquisada abrange todos os estudos que apresentam hipóteses idênticas ou relacionadas à da revisão e deve ser tão rigorosa quanto a dos estudos primários, com aplicação cuidadosa de critérios de avaliação, para minimizar os efeitos da subjetividade.
Assim sendo, para dar continuidade ao processo de revisão, procedeu-se à identificação dos descritores em língua portuguesa, por meio da base de dados dos Descritores em Ciências da Saúde (DeCS), a partir dos itens-chave da pergunta de pesquisa, qual seja: ‘O que há na produção literária nacional e internacional a respeito de experiências governamentais sobre metodologias para alocação de recursos financeiros em sistemas de saúde?’.
Tendo em vista a necessidade de levantamento de produção acadêmica para além das fronteiras da América Latina, sobretudo pelo fato de os sistemas de saúde universais mais bem estabelecidos se encontrarem no continente europeu, foi identificada a correspondência desses descritores em língua inglesa, por meio da utilização dos chamados MeSH Terms, no portal PubMed.
Aqui cabe uma importante observação a respeito de não estarem presentes nas buscas alguns descritores que sejam compostos pelo termo ‘equidade’. Isso não invalida a escolha dos descritores utilizados nas sintaxes finais, haja vista que, ao ler o conteúdo dos descritores, a ideia de equidade estava ali presente.
Após a definição dos dois grupos de descritores, foram iniciadas buscas exploratórias em dois portais de bases de dados: Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde (Bireme) e PubMed, e uma base de dados específica: a Scopus. Combinando-se os descritores por meio dos operadores booleanos AND e OR, foi possível chegar às sintaxes finais para cada base/portais (quadro 1), que apresentaram resultados satisfatórios para responder à indagação motivadora deste artigo, assim como definir as principais variáveis (polos) de interesse da presente pesquisa, quais sejam: (a) alocação de recursos em saúde, (b) financiamento da saúde e (c) governo.
Base/Portais de dados, sintaxe final e número de estudos identificados que potencialmente respondiam à pergunta da revisão. 2019* * A busca dessas sintaxes finais foi realizada em março de 2019. É possível que esse número tenha aumentado, seja pela incorporação de novas bases de dados (no caso do portal Bireme) ou por novos estudos indexados com os descritores acima após março de 2019.
Em seguida, foi realizada leitura sistematizada dos títulos e resumos dos resultados encontrados nas buscas das três plataformas (base/portais), incluindo na seleção para análise apenas artigos científicos, publicados em português, inglês e espanhol, e que abordassem a alocação de recursos financeiros em saúde. Dessa maneira, foram excluídas as produções acadêmicas, como monografias e teses, além de anais de congressos e publicações oficiais. Na subsequente categorização dos resultados das buscas, foram identificadas e excluídas aquelas produções que (a) não tratam da temática geral deste estudo ou (b) tratam da temática, mas não respondem à pergunta da pesquisa. Por fim, chegou-se ao número final de 19 artigos a serem analisados neste estudo que foram considerados como estudos incluídos na revisão (artigos incluídos).
É importante ressaltar que nesta revisão optou-se por focar apenas em estudos primários, portanto, não incluindo revisões já realizadas sobre esse assunto. Neste sentido, não se desejou realizar uma ‘revisão de revisões’, isto é, uma metarrevisão. Em que pese que esta revisão apresenta limites, como todo e qualquer método o tem, reconhece-se que, além de recuperar artigos internacionais, ela possibilitou recuperar, também, artigos nacionais, fundamentais para a discussão da realidade brasileira. Isso pode ser considerado um avanço no debate, pois, ao encontrar essas experiências, evita-se, assim, certo colonialismo da discussão internacional sobre o assunto quando se trata de SUS.
Resultados
A maior parte dos resultados encontrados nas sintaxes finais compreendeu publicações e materiais em línguas inglesa, espanhola e portuguesa, havendo poucos casos de publicações em chinês, em russo e em línguas nórdicas, como sueco e norueguês, em cujo caso as publicações foram excluídas.
Outro importante achado é o fato de que, aproximadamente, 85% dos resultados remanescentes das buscas, depois do filtro dos idiomas, não tratam diretamente sobre a temática de metodologias de alocação equitativa de recursos. De fato, muitos dos artigos e teses excluídos nessa etapa tratavam de algum aspecto do financiamento do setor saúde, de gestão de recursos públicos, de reformas e políticas de determinados sistemas de saúde, de bioética e de priorização de tipos de cuidado. Contudo, não tratavam, nem tangencialmente, do tema desta revisão.
Ainda com relação aos estudos excluídos, destaca-se que pouco menos de 80% dos artigos e publicações remanescentes, muito embora tratem da temática sobre a alocação de recursos para o financiamento da saúde, não respondem à pergunta motriz deste estudo, no sentido de que não abordam aspectos relativos às metodologias para alocação equitativa de recursos financeiros para o setor saúde. Entre estes últimos resultados excluídos, por um lado, grande parte trata sobre o modo como se dão os gastos com políticas públicas de saúde e os impactos de mecanismos distributivos no resultado dessas políticas, mas não se referem a como tais mecanismos foram elaborados pelos respectivos governos. Em outros casos, muitos dos estudos excluídos nessa etapa dizem respeito a como as reformas de sistemas de saúde impactam no funcionamento e na divisão de atribuições e responsabilidades dos diferentes níveis de atenção à saúde ou de governo.
Por fim, após a remoção dos artigos que estavam em duplicata, chegou-se ao número final de 19 publicações científicas que tangenciam o tema ou tratam diretamente sobre experiências voltadas a metodologias para alocação de recursos financeiros em saúde. Após a leitura na íntegra dos 19 artigos incluídos nesta revisão, extraíram-se deles os seguintes conteúdos: autor(es), título, objetivo(s) do estudo, método(s) utilizado(s) pelos autores na construção do estudo e a metodologia de alocação utilizada ou descrita pelos autores com suas dimensões (quando essas dimensões eram apresentadas no artigo) (quadro 2).
Artigos incluídos na revisão: autores, objetivos, método dos estudos e como esses estudos abordam a alocação equitativa de recursos em saúde. Março, 2019
Discussão
Segundo os resultados desta revisão, é possível perceber que há uma variada forma de apropriação, ainda que seja em poucos estudos, do tema das metodologias de alocação equitativa de recursos em saúde. Entre os estudos, é possível perceber que a discussão transita de uma compreensão imprecisa sobre a ideia de ‘alocar’ até os estudos que focam diretamente na apreensão bem delimitada da alocação de forma equitativa. Do ponto de vista dos objetivos dos estudos revisados, podem-se identificar sete blocos de intencionalidades dos pesquisadores ao abordar a temática.
O primeiro bloco de estudos é aquele que considera, apenas tangencialmente, o tema em sua análise. Assim, neste bloco, com apenas três estudos10-12, a discussão da alocação se confunde com o ‘financiamento de sistemas locorregionais e a distribuição dos recursos entre os entes federal-subnacionais’. O segundo bloco de estudos recorta a compreensão da alocação a partir da perspectiva da tríade ‘financiamento-regulação-transferências’13,14. O destaque desses estudos refere-se aos resultados das regras (critérios e condicionantes) que interferem na distribuição, apropriação e no uso de recursos vinculados à saúde nos orçamentos municipais. No terceiro bloco, com apenas um estudo representativo dessa temática, está aquele que, ainda restrito à delimitação pouco clara entre alocação e financiamento, delineia as ‘Mudanças nos esquemas de financiamento’15. Para estes autores, a alocação está circunscrita à lógica das reformas de financiamento dos sistemas de saúde quando visam a descrever as mudanças no esquema de financiamento. Por fim, ainda naqueles estudos que mesclam de forma imprecisa financiar-alocar, há um quarto bloco que é aquele que situa a discussão da alocação de recursos intrínseca à organização entre ‘financiamento-descentralização’16-19.
Nesses quatro primeiros blocos, percebe-se que a ideia de alocar ainda não está bem clara, ou talvez especificada. É pertinente atentar para a diferença entre ‘financiar’ e ‘alocar’. Financiar, especialmente em sistemas de saúde nacionais20, está relacionado com acúmulo de recursos (seja um fundo, uma reserva ou assemelhados), enquanto alocar está relacionado com a destinação de recursos já existentes, ou seja, após a coleta desses recursos para onde eles serão distribuídos4. Por esses conceitos terem esse caráter relacional, e, portanto, relativo, por vezes, confundem-se no senso comum e são refletidos nos artigos que, em certa medida, adotam essa ‘semelhança’ entre o termo alocação e financiamento, dificultando sua análise.
No debate sobre o processo alocativo, os ‘critérios da alocação’ são o tema mais delicado no que se refere ao alcance da equidade. Contudo, a leitura regulacionista da alocação tem como discurso latente a ‘eficiência’ em termos de garantir aos produtores e consumidores suas ‘exigências’, ou seja, aos primeiros, maximizando lucro, e aos outros, maximizando satisfação (utilidade). Assim, qual seria o local da equidade? O que parece estar subjacente ao debate alocativo sobre essa ‘chave’ é a naturalização da ideia de agentes ‘racionais’ e de ‘comportamento maximizador’ entre os entes subnacionais como se estes tivessem acesso à informação completa e uma postura imparcial nessa dinâmica competitiva21. Ora, pensar a alocação sob esses pressupostos pode obscurecer o papel da intencionalidade desses ‘agentes’, especialmente sobre a priorização da equidade em detrimento da eficiência.
Do ponto de vista da descentralização, é importante ser pontuado que o processo alocativo é essencial para esse preceito e que, no Brasil, resulta da discussão sobre a solidariedade entre os entes federados e o financiamento tripartite. Contudo, Nunes et al.22, desde 2001, já apontava que um dos grandes problemas para o desenvolvimento de metodologias alocativas de recursos no Brasil tem sido a falta de sistemas de informações integrados, especialmente quando se trata de entes federativos distintos, tornando a análise das desigualdades em saúde um grande desafio. É por isso que o problema alocação-descentralização ainda persiste, sendo necessário, no caso brasileiro, criar novas formas de captação de informação regular e automática, com sistemas de informação adequadamente alimentados para conferir as informações ideais ao refinamento do conceito de equidade.
Ao adentrar nos estudos que já delimitam bem o conceito de alocação, em detrimento do conceito de financiamento, outros três blocos compõem melhor o tema e dialogam mais diretamente com a pergunta da revisão. Assim, o quinto bloco de estudos é aquele que apresenta ‘proposições e/ou desenvolvimento de fórmulas’23-26 para alocação de recursos em saúde em cenários de diferentes sistemas de saúde. Um sexto bloco de estudo se aproxima mais da temática, à medida que foca diretamente na ‘testagem da aplicação (alocação) dos recursos’27,28. E, por fim, o sétimo e último bloco atinge o cerne da discussão encetada, focando na ‘alocação por equidade’29-31. Assim, três estudos se centram nessa questão. O primeiro explora como o Subsídio de Saúde do Governo (Government Health Subsidy – GHS) foi alocado em diferentes grupos socioeconômicos e o desempenho do sistema de saúde em termos de alocação desse subsídio para diferentes tipos de serviços de saúde. O segundo analisa os progressos alcançados no financiamento equitativo da Atenção Primária à Saúde (APS) na África do Sul e avalia as barreiras ao progresso futuro. O terceiro discute a problemática da ‘alocação dos recursos em saúde’ como uma das questões mais urgentes desenvolvidas no âmbito da bioética. Considera que a questão deve ser analisada em termos de justiça social e de responsabilização moral, tomando-se como ponto de partida a corroboração do direito à saúde.
Ao enfatizar as metodologias, é esperado que proposições e/ou desenvolvimento de fórmulas, suas testagens, simulações ou demonstrações de aplicação dos recursos possam evidenciar se discernem ou não equitativamente os processos de transferência. Contudo, salvo raras exceções, considera-se uma discussão, ainda que abstrata (contudo necessária), sobre como operacionalizar os métodos de alocação equitativa e as simulações com diferentes critérios justamente para serem evitadas diversas formas de aumento das desigualdades, como a drenagem de recursos públicos para subsidiar segurados de planos e de seguros privados32, por exemplo. Em que pese a necessidade de que as metodologias devem levar em consideração a tríade proposição-testagem-aplicação para provarem a equidade de suas competências alocativas33, este debate tende a ser ‘tenso’ na medida em que, em cenários onde não há incremento orçamentário, diversos argumentos que desconstroem os fundamentos éticos da construção da equidade (como a solidariedade) são levantados, aventando, por exemplo, que os vazios assistenciais, as gestões com dificuldades técnicas ou ineficientes (em termos regulacionistas) não mereceriam ganhar mais recursos.
Do ponto de vista do método utilizado pelos autores para tratar da temática, uma miscelânea foi utilizada, desde abordagens menos rigorosas, ou também chamadas descritivo-reflexivas sobre o tema, até aqueles métodos clássicos das ciências estatísticas ou econométricas, ou, ainda, no bojo das abordagens qualitativas.
No primeiro grupo dos estudos, que apresenta um caráter descritivo-reflexivo, predominou o ‘ensaio’ como modalidade textual utilizada11,23,31. Partindo-se para um segundo grupo de estudos, com metodologias mais rigorosas, quatro deles optaram por uma ‘abordagem quantitativa-descritiva’ da alocação de recursos14,17,19,27,29. O terceiro grupo de estudos foi aquele que optou pelo uso de ‘abordagens quantitativas clássicas utilizadas nas ciências econômicas ou na econometria’. Assim, três estudos se assentam nesses métodos24-26. O quarto grupo refere-se àqueles estudos que metodologicamente inovam, a exemplo dos que usam ‘abordagens qualitativas’15,16,18, pouco utilizadas no campo das ciências econômicas. O quinto e último grupo de propostas metodológicas traz ‘abordagens híbridas entre métodos quantitativos e qualitativos’10,12,17.
É importante perceber que, entre as escolhas metodológicas dos artigos revisados, esse amplo espectro metodológico traz mais possibilidades de transladar a equidade do ponto conceitual para o operacional. Esse resultado parece ser importante para construir uma narrativa de levar a equidade desde os seus elementos mais abstratos até os mais concretos com métodos que se adequam às propostas de captura da equidade nesses diferentes aspectos. Espera-se que novos estudos, inclusive, tentem arrojar nas análises empreendidas que mesclem as abordagens, conforme realizado pelo quinto grupo, na tentativa de não restringir o debate apenas às ciências estatísticas ou à mera matematização apenas34.
Ao focar nas metodologias de alocação de recursos e suas dimensões e/ou indicadores, os estudos também apresentam grande diversidade, desde aqueles que não explicitam o método (do ponto de vistas de cálculo, dimensões ou indicadores) até aqueles que detalham todas as características do método com foco no(s) aspecto(s) que cada um privilegia, do ponto de vista operacional, para garantir a equidade. Esses estudos podem ser organizados em 8 grupos por nível de aproximação e refinamento do debate sobre a metodologia.
O primeiro grupo se reserva aos estudos que ‘não descrevem a metodologia, mas a testam’. É o caso do estudo do Qin et al.29, que se dedica a testar a garantia da equidade na metodologia utilizada para alocação de recursos no sistema de saúde chinês.
O segundo grupo, na tentativa teórica de problematizar o tema, discute as ‘implicações (bio)éticas da alocação’, especialmente no cuidado em operacionalizar o princípio da equidade31.
Em seguida, o terceiro grupo, certamente o mais frequente entre os estudos que se dedicam à temática, é composto por aqueles que ‘focam o componente per capita sem avançar na discussão da equidade na alocação’10,19,23,27. Nesses estudos, o enfoque metodológico ressalta o critério per capita, especialmente para o fomento da descentralização das ações10, mas reconhece que o enfoque nesse indicador não garante nem amplia a equidade da alocação dos recursos, não sendo, portanto, o suficiente para tal operacionalização19, especialmente na aquisição de medicamentos via SUS27. Reconhecem que o per capita com base no gasto real por pessoa deve se ajustar a diversas dimensões essenciais à alocação, como: estrutura demográfica, dispersão geográfica, necessidades de saúde (morbidade, ajuste para o último ano de vida, nível educacional, privação etc.), e, ainda, ao catálogo de serviços prestados e seu grau de complexidade, estrutura instalada, entre outros23. Trata-se de, portanto, reconhecer que o per capita é o início de uma metodologia, mas nunca deve ser seu fim.
O quarto grupo de estudos apresenta a ‘orçamentação incremental’ como uma possibilidade. Ainda retoma, especialmente em tempos de crise, o incremento de recursos (novos investimentos) como essencial em quaisquer setores, especialmente na saúde, onde os custos são crescentes. Neste estudo, a orçamentação incremental na atenção básica passou a disputar recursos orçamentários com outras áreas, o que, sem uma análise das desiguais necessidades de saúde de cada região, pode promover problemas do ponto de vista do peso de um setor no orçamento geral30.
Durante muito tempo, os estudos brasileiros, na abordagem da alocação de recursos no SUS, restringiam-se aos cálculos tradicionais (per capita) e à demonstração da diminuição da desigualdade por meio da orçamentação incremental35. Mesmo considerando essa questão importante (e necessária), faz-se mister o avanço do debate metodológico para além desses marcos, já considerados ‘iniciais’ atualmente. Ugá e Lima4 já apontavam que os métodos tradicionais de alocação de recursos têm sido substituídos por sistemas mistos ou complementados. Contudo, o que vem sendo continuamente demonstrado é que, na maioria das vezes, quando se avança na discussão metodológica, ela tem recaído na adição de propostas de indicadores/dimensões que aumentam as desigualdades, como no caso das alocações que têm por critério de pagamento o desempenho (pay for performance), a captação, a produção, entre outros mecanismos iníquos.
À medida que os estudos vão rebuscando suas dimensões para reelaborar as metodologias, a pauta da equidade e sua operacionalidade vão se delineando no método. O quinto grupo de estudo é aquele em que se enfocam as ‘questões sociodemográficas, sociossanitárias e epidemiológicas’ como principais dimensões para elencar os indicadores no método para garantir equidade (ainda que de forma inicial)13,15,26. Vazquez13 destaca a insuficiência dos critérios de repasse do Piso da Atenção Básica para garantir equidade, por desconsiderarem justamente essas dimensões. O uso de critérios como a idade ou o status econômico do paciente, ao definir as regras de acesso para garantir26 a equidade, também é apresentado como uma alternativa. Outros autores15, ao estudarem o sistema de saúde tailandês, defendem os critérios populacionais, etários, além de DRGs (Diagnosis Related Groups), para alta e média complexidade e atenção hospitalar. Quando se pensa em alocar recursos, especialmente em saúde, é essencial abandonar o caráter regressivo das formas de tributação para alcançar progressividade, já que, em termos de operacionalização da equidade, a alocação teria mais potência equitativa.
O ponto de inflexão da narrativa nos estudos acontece no sexto grupo de estudos quando é problematizada nas metodologias a dimensão da ‘necessidade de saúde como centro da discussão’ do alcance de uma alocação equitativa. De forma mais modesta ou em discussões mais refinadas, o debate sobre as necessidades de saúde por cada região, para a maior parte dos estudos, é central, e sua operacionalização um desafio. Os estudos mais modestos se reservam a identificar nos sistemas de informação de seus governos e sistemas de saúde a possibilidade de indicadores que delineiem (nem que seja minimamente) o que seria a ‘necessidade de saúde’, como, por exemplo, os seguintes indicadores: população, cobertura de programas, oferta e produção de serviços12,14. Outros estudos16-18, de forma intermediária, avançam na discussão através da implantação de mecanismos de ajuste anual de acordo com a necessidade de cada região/município17. Outros estudos, mais sofisticados, revisitam o histórico das fórmulas de alocação de recursos ou revisitam as fórmulas na tentativa de melhorar o sistema de alocação na busca da equidade. Esses são os exemplos do estudo sobre o sistema finlandês25, que dividiu os tipos de serviços de saúde em 6 grupos, desenvolvendo indicadores de necessidades de saúde para cada um deles, seja por meio de estudos econométricos, seja por características demográficas e do estudo chileno, ainda que de forma muito microeconômica24. Neste, dois tipos de atividades eram consideradas dimensões com indicadores sobre como operar equitativamente: ‘prestações programadas’ – controles médicos e outras consultas de rotina em que os professionais da saúde influenciam a demanda; ‘morbidade’ – atenção de demanda espontânea, atenção de morbidade e urgência, sendo originadas pelo paciente. Essas duas atividades podem ser desagregadas em elementos que determinam os custos e a demanda.
O sétimo grupo de estudo parte para uma composição mais elaborada da equidade na alocação dos recursos que tenta ‘mediar o macro como microeconômico’. Representado por um estudo23, o autor sugere diversas dimensões de análise que transitam entre a alocação realizada por critérios grupais até os individuais. Assim, critérios de gerenciamento geral, dos gestores em nível central e local, até a gestão da clínica realizada pelo profissional, devem ser indicadores a serem levados em consideração. Ademais, o grau de satisfação dos usuários, a capacidade de resolução dos problemas de ordem clínica, a qualidade da atenção e a eficiência da assistência são indicadores locais importantes segundo esse estudo. Isso tudo não estaria desvinculado da necessidade de uma avaliação externa e, segundo o autor, de um sistema de remuneração.
O oitavo e último grupo de estudos é aquele no qual a ‘operacionalização da equidade está mais desenvolvida metodologicamente’11,16,28. Assim, os autores apontam que o melhoramento e o alcance da equidade na alocação são processos históricos e requerem esforços contínuos, em todos os governos, em adensar a metodologia garantindo a incorporação de novos indicadores (e até criando novos processos de coleta de informação regular e contínua) para refinar a equidade operacionalmente. Para alguns autores11, isso não está desvinculado de novos investimentos, logo, projetar modelos sobre o custo incremental é essencial, para daí partir para quais critérios sobre o atendimento das populações remotas ou marginalizadas devem ser utilizados. Ainda, a definição deve incluir elementos de ‘oportunidade’ e ‘qualidade’, como ‘distância’ ou ‘tempo até pontos de atendimento’ e ‘certeza no acesso a medicamentos e consultas’. Além disso, para garantir a lógica de ‘sistema’, é fundamental adotar procedimentos que vinculem os cuidados primários aos hospitais, o baixo custo para o médico e o paciente. Ademais são necessários mecanismos interativos de informação e comunicação entre hospitais e jurisdições de saúde e outras agências estaduais em um sistema interativo de vinculação a dados da previdência social e outros programas, bem como a provedores privados para o refino do processo alocativo.
Outra experiência bem desenvolvida se refere às dimensões utilizadas no estudo comparativo entre os sistemas de saúde no México, na Nicarágua e no Peru16. Os autores identificam que, em países latino-americanos, as dimensões fundamentais para a metodologia ser equitativa são 6: ‘famílias’, através dos aportes monetários diretamente da renda familiar; ‘empresas’, através dos aportes monetários diretamente dos empregadores (em salários diretos e indiretos etc.); ‘impostos governamentais’, através das amortizações monetárias de impostos federais e locais; ‘créditos governamentais’, por meio dos aportes monetários de créditos com bancos internacionais via governo federal; ‘doações do governo’, por meio das contribuições monetárias de doações de agências internacionais via federal ou governo local; e ‘doações de outras entidades’, como no caso dos aportes monetários diretamente de doações de ONG internacionais e nacionais.
Certamente, o estudo mais completo e que melhor delineia uma metodologia de alocação equitativa é o estudo sobre o sistema de saúde inglês28, que detalha historicamente as fases do aperfeiçoamento por mais de 40 anos do Resource Allocation Working Party (RAWP). Em seus primeiros anos, a metodologia tinha como indicadores o tamanho da população com ajuste para características demográficas (idade e sexo específicos para cada especialidade); uma ponderação adicional para necessidade clínica adicional (medida pelas taxas de mortalidade locais padronizadas para as especialidades específicas), com um ajuste para variações nos preços de insumos dos serviços locais. No seu desenvolvimento, foi incorporada a taxa padronizada de doenças limitantes de longa duração (menos de 75 anos), a taxa de mortalidade padronizada (menos de 75 anos), a proporção de desempregados economicamente ativos, a proporção de idade do aposentado morando sozinho e a proporção de dependentes em famílias com um único cuidador. Em uma terceira fase, incorporaram-se medidas de qualidade dos serviços de saúde, acesso a serviços de saúde e fatores fora do controle direto do sistema de saúde (riqueza, estilo de vida, considerações genéticas e ambientais). Em um quarto momento de aperfeiçoamento, incorporou-se o indicador de ‘mortalidade evitável’, definido como o número de anos de vida perdidos com menos de 75 anos durante um período de três anos. Nos períodos mais recentes, a alocação de recursos diretamente para os médicos generalistas passou a ser o debate, direcionando-se para aqueles médicos que optaram por se tornar ‘administradores de fundos’. Após essa medida, adicionou-se o ‘risco orçamentário’ como indicador, definido como a propensão para as despesas reais variarem das despesas previstas. Então, desde 2008, a ‘alocação de recursos baseada em pessoas’ tem sido a discussão, e sua essência é desenvolver pagamentos de captação individual por idade e sexo, e ajustá-los a qualquer medida inequívoca e universalmente registrada de desvantagem (como recebimento de bem-estar) e a qualquer indicador verificável de diagnóstico prévio de doença.
Ainda que essa metodologia seja a mais aprimorada, os estudos relativos ao RAWP e sua adaptabilidade a outros contextos7,8 já apontavam limitações importantes como, por exemplo, a característica das desigualdades no Brasil. Além disso, é prudente salientar que o processo de ‘refino’ da equidade apresentado no desenvolvimento dessa metodologia tem mais ligação com a incorporação de elementos de mercado no sistema inglês36 do que, necessariamente, com a preocupação de delimitar melhor a vulnerabilidade dos grupos sociais, focando-se nos indivíduos. Recentemente, no Brasil, o modelo de alocação (insistentemente chamado de ‘financiamento’) para a atenção primária, por exemplo, mimetiza várias características do RAWP, entre elas, o problema da centralidade do aspecto operacional do sistema – o cadastramento –, e não a equidade. Isso porque os autores37 dessa proposta enfatizam a problemática da população cadastrada do SUS, enquanto pouco esforço é destinado aos problemas de equidade que a forma de alocação histórica do SUS deixou de considerar.
Mesmo sob a variabilidade de achados que este estudo apresenta, é fundamental reconhecer as limitações que a captura e a análise do objeto apresentam. Em primeiro lugar, o uso de uma revisão do tipo integrativa, apesar de demonstrar um panorama aproximado sobre como um objeto vem sendo estudado, apresenta como limite não focar essencialmente no objeto per si. Isso demonstra o quanto alguns artigos incluídos na revisão não apresentam diretamente as metodologias, mas apenas ‘circundam’ o objeto, trazendo elementos subsidiários para pensar a alocação equitativa, mas sem demonstrar um método acabado e suas dimensões/indicadores. Isso implica dizer que, em estudos posteriores, ampliar o escopo (através de outras bases de dados) e usar outros métodos de revisão de maior precisão na apreensão (revisões sistemáticas, por exemplo) podem ser o caminho para avançar na discussão.
Outro aspecto que chamou atenção na organização da estratégia de busca dos estudos foi a indexação indevida de certos descritores feita pelos autores dos estudos. Isso dificultou a recuperação de estudos feitos por autores consagrados na economia da saúde. Essa é uma limitação importante do processo metodológico, que, porventura, deixou de fora textos considerados clássicos da discussão sobre o tema. Contudo, mesmo sob essa ressalva, procedeu-se à incorporação desse acúmulo do debate no âmbito brasileiro por meio do resgate de seus principais pesquisadores no diálogo com os artigos incluídos. Além disso, é pertinente ressaltar que, devido às estratégias de busca utilizadas, foi possível recuperar estudos que, certamente, não faziam parte do debate corrente na literatura brasileira, trazendo as experiências internacionais e oxigenando a discussão.
Neste debate não se deve furtar da contribuição de outros estudos de revisão sistematizada na literatura mundial sobre a alocação em saúde, mas identificar seus objetos e, também, suas limitações. Alguns estudos versam sobre diversos aspectos: sobre definições de equidade nos cuidados em saúde e na classificação dos domínios que a equidade apresenta38; sobre os critérios para alocação de recursos (sem mencionar o método)39,40; sobre critérios dispostos nas legislações que cada país41 utiliza para alocar; sobre os fatores que influenciam nas decisões de alocação por gerentes42; sobre os estudos de avaliação econômica43-45; sobre atributos de saúde e não relacionados à saúde para priorizar a tomada de decisão46; sobre os estudos que criaram uma metodologia única, segundo os dados de cada país47; e aqueles que analisam os desafios éticos enfrentados pelos gestores do SUS48.
Ainda que se reconheça o valor desses estudos em circundarem o tema, é necessário relembrar que eles não entraram nesta revisão, pois o foco não foi revisar revisões já realizadas. Mesmo que os estudos anteriormente citados fossem estudos primários, eles não focam no método de alocação, garantindo, assim, a originalidade deste estudo aqui realizado, que reside, especificamente, em ter como objeto a metodologia da alocação (desde sua concepção à aplicação).
Mesmo assim, é notório reconhecer que a estratégia metodológica utilizada para este objeto (metodologias de alocação equitativa de recursos financeiros em saúde) é um tema de pesquisa desafiante, e, justamente por isso, poucos estudos na literatura disponibilizada nessas três bases/portais revisadas foram encontrados. Isso revela a importância da adaptação do melhor tipo de revisão em função do objeto pesquisado e sua apresentação na literatura científica. Assim, entende-se que, mesmo sob as limitações do método empreendido, este ainda é o melhor para capturar esse objeto nesse estágio de desenvolvimento da pesquisa científica.
Após ponderadas as limitações deste estudo, é fundamental apontar que suas possibilidades são incontestes ao debate da alocação, especialmente no Brasil, em tempos de crise econômica de longa duração. Por mais que já esteja bastante ratificado na literatura científica que o problema central da questão macroeconômica em saúde seja o desfinanciamento do seu setor público49, alocar recursos admite uma saída, ainda que paliativa. Assim, alocar equitativamente significa, além de melhorar a distribuição dos parcos recursos destinados ao sistema público de saúde é, em última instância, fazer valer a lei e sua consonância constitucional idealizada e arduamente defendida pela reforma sanitária brasileira, desde o primeiro estudo sobre alocação no SUS, que discutiu o artigo 35 da Lei nº 8.080, realizado por Vianna e Piola50.
Conclusões
Pode-se dizer que as metodologias de alocação equitativas de recursos em saúde e suas dimensões são um objeto de estudo em delimitação e que as pesquisas na área ainda precisam avançar em propostas que considerem o que os achados desta revisão proporcionam, ou seja, considerar as implicações (bio)éticas da alocação de recursos, definindo claramente o conceito de equidade utilizado e operacionalizando coerentemente, tanto do ponto de vista da solidariedade como da participação.
Além desse pressuposto, as metodologias devem partir de um componente per capita, mas devem considerar a equidade, principalmente (mas não exclusivamente) através de um conjunto de fatores como a orçamentação incremental, as questões sociodemográficas, sociossanitárias e epidemiológicas, a captura das ‘necessidade de saúde’ (com uma definição clara e operacionalidade coerente) como centro da sua formulação, a mediação entre o macro como microeconômico e, sem dúvida, o entendimento de que esse é um processo que precisa estar sempre em desenvolvimento/aperfeiçoamento.
Talvez esta última característica das metodologias seja a mais sensível, principalmente em cenários de descontinuidades político-administrativas de governos e em países latino-americanos de inserção dependente. Certamente, se a metodologia não é constantemente melhorada ao longo dos anos de implementação, provavelmente, ela deixará de acompanhar a dinâmica da sociedade e, possivelmente, a equidade não alcançará o máximo de sua expressão, perpetuando as desigualdades na alocação e, sobretudo, comprometendo a efetividade do direito à saúde.
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Suporte financeiro: Ministério da Saúde
Agradecimentos
A Bruno Lopes Zanetta, por ter coletado parte dos dados relacionados à revisão.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
16 Nov 2020 -
Data do Fascículo
Jul-Sep 2020
Histórico
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Recebido
19 Out 2019 -
Aceito
30 Abr 2020