Open-access Um nada ‘admirável mundo novo’: medo, risco e vulnerabilidade em tempos de Covid-19

RESUMO

Um novo coronavírus, designado inicialmente como 2019-nCoV e pouco depois como Sars- CoV-2, surgiu em Wuhan, China, no final de 2019. Em janeiro de 2020, pelo menos 830 casos haviam sido diagnosticados em diversos países. O Sars-CoV-2 é o terceiro coronavírus a surgir na população humana nas últimas duas décadas – uma emergência que colocou as instituições globais de saúde pública em alerta máximo. Pouco mais de um ano depois, registram-se casos e óbitos na escala dos milhões no mundo, com o Brasil ocupando posição destacada tanto em número de casos quanto de óbitos. A sucessão de eventos desse período recente atualizou questões de grande importância: o esgarçamento civilizacional, a potencialização das vulnerabilidades de toda ordem e os riscos decorrentes. Neste ensaio, propõe-se uma reflexão sobre as consequências sociais da pandemia a partir de uma perspectiva socioantropológica, revisitando temas clássicos da saúde e das ciências sociais, como medo, risco e vulnerabilidade. Observou-se o recrudescimento de tendências e acirramento de tensões que fazem olhar o horizonte com preocupação, especialmente com relação à expansão de dispositivos de biopoder. Assim, o presente artigo associa-se ao esforço reflexivo em curso sobre efeitos potenciais da pandemia da Covid-19 sobre as formas de socialidade e as relações de poder no mundo atual.

PALAVRAS-CHAVE Pandemia por Covid-19; Medo; Alto risco social; Vulnerabilidade social; Biopoder

ABSTRACT

A new coronavirus, initially designated as 2019-nCoV and after that as SARS-CoV-2, emerged in Wuhan, China, in late 2019. By January 2020, at least 830 cases had been diagnosed in several countries. SARS-CoV-2 is the third coronavirus to emerge in the human population in the last two decades – an emergency that has set global public health institutions on high alert. A little more than a year later, cases and deaths are counted in millions worldwide, with Brazil holding a prominent position in the number of cases and deaths. The succession of events in this recent period brought up highly relevant issues: civilizational fraying, increased vulnerabilities, and resulting risks. In this essay, we propose some reflections on the social consequences of the pandemic from a socio-anthropological perspective, revisiting classic public health and social sciences themes such as fear, risk, and vulnerability. We observed resurging trends and escalating tensions, which leaves us with a horizon of great concern, especially regarding the expanding biopower devices. Thus, we join the ongoing reflexive effort on the potential effects of the COVID-19 pandemic on sociality and power relationship forms in today’s world.

KEYWORDS Pandemic, COVID-19; Fear; High social risk; Social vulnerability; Biopolitics

Introdução

Ninguém sobreviveu como a pessoa que tinha sido.

John Gray1

A pandemia da Covid-19 pôs em evidência, de maneira dramática, o problema das iniquidades em saúde. Como amplamente demonstrado pela pesquisa epidemiológica, diferenças nas condições de saúde estão associadas a fatores sociais – aspectos nutricionais e hábitos cotidianos; diferenças de gênero e étnico-raciais; ocupação, trabalho e renda; condições de moradia e aspectos ambientais diversos; acesso à educação e a serviços de saúde; assim como a fatores de natureza macrossocial, como as políticas de saúde e macroeconômicas, organização do Estado e o ‘contexto socioeconômico e político’ em sentido amplo. As iniquidades em saúde apresentam-se nas sociedades nacionais sob formas diversas, como, por exemplo: doenças transmissíveis endêmicas, que resultam em perdas evitáveis de anos de vida por morte ou incapacitação, e afetam proporcionalmente mais os pobres; acesso desigual a cuidados e tecnologias de saúde e a recursos culturais e educacionais; ambientes insalubres e contextos sociais precários e violentos2,3.

Tendo como ponto de partida a China, o vírus se difundiu através de portos e aeroportos, chegando em poucas semanas à Europa e às Américas. Os portadores do vírus, ao que tudo indica, foram grupos de indivíduos que transitam entre diferentes lugares do mundo como turistas ou a negócios. Não por acaso, as portas de entrada do vírus na América e na Europa foram as grandes metrópoles e os centros financeiros, industriais e comerciais.

O adoecimento e a morte de um grande número de pessoas e a pressão sobre os serviços de saúde por si sós afetariam em grande amplitude toda a economia. Os medos, ansiedades, incertezas e instabilidades geradas pelo desenrolar da pandemia – incerteza quanto a sua duração e impacto e quanto ao tempo de manutenção de medidas protetivas; dúvidas, ainda, quanto à possibilidade de reincidência da própria virose; a possibilidade de emergência de novos patógenos com poder destrutivo análogo e, finalmente, incerteza quanto ao tempo de restabelecimento da própria economia e quanto à demanda futura por bens e serviços – influenciarão a economia global de forma duradoura4,5. Se, por um lado, as medidas sanitárias para o enfrentamento da pandemia estão postas – distanciamento social, monitoramento da disseminação do vírus e vacinação em massa –, por outro, as diversas dimensões relacionadas com as questões da sociabilidade ainda estão por ser devidamente matizadas, sendo, em seu conjunto, uma questão em aberto6,7.

A pandemia da Covid-19 por um vírus respiratório de alta transmissibilidade surge em um momento em que o trânsito internacional de pessoas é intenso e no qual grandes contingentes populacionais vivem em aglomerados urbanos de elevada densidade demográfica. Houve outros episódios recentes em que vírus com características semelhantes irromperam: a Síndrome Respiratória Aguda Grave de 2003 (coronavírus pertencente à mesma família do Sars-Cov-2 atual e igualmente surgido na China); e a pandemia de gripe A de 2009 (H1N1). Outros vírus perigosos foram detectados nas últimas décadas, incluindo outros tipos de influenza. Nenhum destes, porém, teve impacto semelhante ao do Sars-Cov-2. O evento mais recente comparável ocorreu há mais de cem anos: a pandemia de influenzavírus que varreu o mundo entre 1918 e 1920, também provocada pelo H1N1, que ficou conhecida como epidemia da ‘gripe espanhola’. Estima-se que tenha infectado cerca de 500 milhões de pessoas, aproximadamente um quarto da população mundial à época, e ocasionado cerca de 17 milhões de mortes.

Sendo um vírus novo, possivelmente, mutação recente de algum subtipo de coronavírus endêmico em espécies asiáticas de morcegos que adquiriu capacidade de transmissão inter-humanos, o contingente de suscetíveis à infecção pelo patógeno consistia, virtualmente, na totalidade da população humana do planeta. Como consequência, o número potencial de pacientes excederia a capacidade instalada de leitos, equipamentos e profissionais mesmo nos países com sistemas de saúde mais organizados e potentes. Diante desse cenário, atualizaram-se medos que rondam o imaginário humano. O medo de uma doença com capacidade para dizimar a espécie. O medo da peste8,9 e das diversas doenças que assolaram as populações humanas ao longo dos séculos10,11, em especial, a chamada peste negra (1346/1352) que teve grande número de casos na Europa – mas não exclusivamente –, e que matou, segundo estimativas, entre 75 e 200 milhões de pessoas (30% a 60% da população mundial)12. Correlacionado a isso, questões relativas ao nosso despreparo para enfrentar as emergências sanitárias13, e a impotência ontológica14, por sua vez, atualizaram um dos medos mais profundos, que é o da falência civilizacional15,16,17,18. Segundo Giddens19, algo estruturalmente diferente está em curso, pois o mundo estaria vivendo uma digidemia, em que se combinam digitalização, robotização e o presente surto pandêmico, com potencial para remodelar o mundo contemporâneo política, econômica e culturalmente.

O presente ensaio foi escrito por dois pesquisadores que têm em comum diversas coisas, entre as quais, uma inquietação intelectual pelo contemporâneo, mas, além dessa característica, o fato de sermos pais de três crianças por cujo futuro tememos. Com toda certeza, o medo que sentimos pelo seu porvir e, por extensão, pelo de outras crianças, que, em diversas fases de seu desenvolvimento, vivenciam essa longa tormenta sanitária, política e econômica, muito nos influenciou na elaboração e sistematização dessa reflexão que, em parte, aqui registramos. Nesse artigo, pretendemos, portanto, fazer uma reflexão sobre medo, risco e vulnerabilidade tendo como referência o contexto contemporâneo de acirramento das tensões, rumo ao recrudescimento de tendências que nos permitem olhar o horizonte com preocupações relativas ao crescimento do biopoder e da chamada necropolítica, perfilando-nos ao grande esforço reflexivo em curso, por causa da pandemia da Covid-19, com inúmeras possibilidades e sugestões de mudanças futuras. Ressalte-se que esta reflexão sobre medo, risco e vulnerabilidade no tempo pandêmico atual é necessariamente incompleta.

Medo e risco: risco do medo; medo do risco

Eu vi o pai eu vi a mãe eu vi a filha Vi a novilha que é filha da novilhá Eu vi a réplica da réplica da bíblia Na invenção dum cantador de ciençá Vi o cordeiro de Deus num ovo vazio Fiquei com frio te pedi pra me esquentá ‘Cego com Cego’, Tom Zé e José Miguel Wisnik

A pauta de reflexões sobre o medo e a ansiedade é antiga20,21,22,23, geral e global24,25,26. Sentimo-nos, em consequência, crescentemente vulneráveis e sob constante risco13,27,28. Crise sanitária, desigualdades sociais extremas e crise política que se desnudaram29,30 e emergiram31,32,33, sem qualquer dúvida, colocam-nos diante de uma agenda de desafios bastante complexa e, em alguns casos, inéditas34,35. Quem sabe o que virá36,37,38,39? Como será o tão comentado ‘novo normal’40,41? Como a sociabilidade será afetada42? O ‘novo normal’ será uma distopia com aumento da coerção social, viabilizada pelo crescimento da biopolítica digital aliada a uma psicopolítica, ambas apoiadas no streaming do big data43? Ante a experiência da Ásia no controle da pandemia da Covid-19, com o uso e compartilhamento de dados das pessoas, estaríamos com caminhos abertos para um regime policial digital42 e a implementação de um sistema de crédito social? E o tema da soberania, também em questão devido à pandemia43: estaríamos diante de mais uma grande mudança na definição de soberania, pois, diante do compartilhamento de dados e da hiperconectividade, é soberano aquele que dispõe dos dados ou é soberano o Estado que decide quem vai viver ou morrer44; e, nessa perspectiva, podemos trazer o tema da vigilância digital, que atualiza as formulações foucaultianas: o poder soberano moderno é biopolítico, um poder articulado na produção, gestão e administração da vida.

Outro conjunto de questões, conectado às precedentes, são as reflexões a respeito do medo na sociedade contemporânea, em especial, no século XXI. A maneira como um grupo social responde a uma ameaça, tal como uma pandemia, é mediada pela percepção da ameaça, seu senso de segurança existencial e a capacidade de dar sentido às experiências imprevisíveis. Essas reações são fortemente influenciadas pelas diversas formas de interação social45 que formam uma espécie de script cultural46 abrangente, a respeito de risco e incerteza. São essas interações sociais que fornecem às pessoas meios de aferir sobre quão perigosas são as ameaças e sobre o risco de algo, como, por exemplo, uma pandemia e como traduzir tudo isso em relação ao seu quotidiano. Os scripts culturais influenciam a percepção das pessoas sobre sua própria vulnerabilidade e sua capacidade de resiliência. Eles comunicam regras sobre como as pessoas devem se sentir diante do perigo. Obviamente, os indivíduos interpretam essas regras de acordo com seus repertórios biográficos, suas próprias circunstâncias e temperamentos. Aqui temos um bom encadeamento sobre risco, vulnerabilidade e resiliência. Frank Furedi39,46,47 comenta que, entre os principais recursos do ‘script cultural’ que estariam influenciando as reações sem precedentes à Covid-19, seriam: 1) a mudança da resiliência para a vulnerabilidade; 2) a psicologização da vida cotidiana; e 3) um maior senso de insegurança existencial.

Vivemos em um mundo no qual a incerteza predomina. Sem saber quais questões devemos priorizar no futuro próximo, vivemos cada vez mais tomados pelo medo e pela ansiedade48,49, pautados pelas mídias sociais, pelas fake news; perplexos diante de uma agenda que nos escapa completamente50; massacrados por um volume cada vez maior de informações, porém, cada vez mais incapazes de decidir51. A quantidade de informações nos paralisa. Somos entulhados de notificações, mas com uma constante sensação de vazio, que tentamos preencher52. Vivemos em uma Babel de versões, em uma batalha de narrativas, potencializadas por uma hiperconectividade. A vida digitalizada se instala como uma camada transparente, porém ativamente mediadora e indutora da percepção e do comportamento dos indivíduos. É uma camada que se sobrepõe ao real como o mundo da fricção43,51, da resistência. E de repente, temos um vírus não digital, provocando uma comoção: o real retoma o seu lugar e volta a se fazer notar no formato de um vírus inimigo, causando uma comoção pela realidade. É a vingança do real nas palavras de Gimenez53.

A palavra risco tem vasto e controverso campo semântico54, possuindo quatro acepções gerais: perigo, oportunidade, acaso e incerteza. Em epidemiologia, risco é uma medida de associação, que expressa a relação entre exposição e desfecho, por exemplo, morbidade e mortalidade, sendo, portanto, uma aferição da probabilidade de ocorrência. Por sua vez, risco epidemiológico é a probabilidade de ocorrência de um evento relacionado com a saúde, estimado a partir do que ocorreu no passado recente.

A partir dos anos 1950, consolida-se um campo interdisciplinar, denominado de análise de risco, que engloba quatro áreas de especialidade: o cálculo dos riscos, a percepção dos riscos, a gestão dos riscos e a comunicação dos riscos55. A partir de alguns anos mais recentes, constata-se o crescimento de uma das acepções de risco citadas anteriormente, a saber, a de perigo, evidente na conexão entre risco e aventura que se explicita em inúmeros jogos de vertigem, aventuras off-the-road, prática de canoagem em rios perigosos, escalada em gelo, rapel em cachoeiras, trilhas de montanha etc.56,57. Essa problemática nos remete à pergunta: seria possível o controle da incerteza – uma das acepções de risco –, e, portanto, do futuro, por exemplo, por meio de instrumentos de gestão de riscos? Essa questão ganhou uma resposta interessante em alguns trabalhos de Giddens, ao que ele chama de colonização do futuro58,59.

O medo é um instinto primal21 com papel fundamental na adaptabilidade, na evolução e na sobrevivência humana e na conformação da sociedade. No entanto, a natureza do medo muda26, assim como mudam as relações sociais. Medo pode ser entendido tanto como determinado estruturalmente quanto socialmente transformador. Podemos especular que o núcleo do medo moderno é formado pela insegurança ontológica e pela ansiedade existencial21,27. Ainda que se levem em consideração esses medos essenciais, não há dúvida que sua distribuição não é equânime, pois os riscos de adoecer e morrer – questão diretamente ligada à segurança ontológica – são fortemente determinados pelos fatores sociais60, e isso é especialmente verdadeiro nos níveis socialmente mais básicos em que os cuidados com a saúde e o acesso a esses serviços encontram, em geral, grande dificuldade. No nosso mundo neoliberal, aqueles que estão mais integrados nesse projeto têm mais segurança ontológica, ou seja, a segurança ontológica, para grande parcela da população, é um luxo. Outro ponto de vista – o da antropologia das emoções – discute o medo como uma emoção construída no interior das relações sociais. Ademais, o medo é compreendido como uma emoção significativa para o entendimento e análise das formações societárias. A questão relevante, assim, é a de que o medo é uma emoção socialmente disposta e uma construção social de sentidos. Uma emoção, portanto, fundamental para pensar os processos de sociabilidades e de formação dos instrumentos da ordem e da desordem em um social qualquer32.

O medo faz parte da experiência humana, enquanto categoria social que lida com o processo de criação, com os modos de conhecimento de si próprio e do outro relacional. Processos e modos que permitem a construção social, não apenas enquanto projeção, mas como uma construção objetiva de realidades possíveis.

No sentido de uma compreensão mais detalhada da perspectiva que aqui adotamos, a saber, refletir sobre a articulação entre medo e risco, discutiremos algumas formulações de Simmel45 e Elias61. Começaremos sobre os conceitos de cultura subjetiva e cultura objetiva: a partir dos mundos subjetivos, interiores e infinitos de cada indivíduo, são inúmeras as possibilidades de interação que se estabelecem a partir da dinâmica de um encontro, desenhando um campo comum de comunicação. Esse campo comum é um ‘nós’. Essa intersecção, esse nós, funda-se nas trocas e interações de culturas subjetivas e dá sentido a “uma sociabilidade culturalmente contextualizada”32(70) a que Simmel denominará de cultura objetiva. Essa cultura objetiva “gera sentidos e formas novas dispostas em uma rede de sentidos já existentes”32(70). Nesse sentido, a cultura objetiva é uma relação; e, consequentemente, repleta de riscos, ambiguidades e tensões, pois, por ser um encontro entre seres humanos, é uma troca, mas é, ao mesmo tempo, veículo de expectativas entre aqueles que se encontram, e, quase nunca, preenche o vazio das expectativas. Esse ‘espaço’ do ‘nós’, criado do encontro de indivíduos a partir de suas subjetividades, é justamente o tecido social no qual celebramos acordos, divergências, concessões, frustrações, dor e prazer. Toda essa ação de submissão às regras do ‘nós’, sendo uma realidade objetiva, não apaga os elementos subjetivos das individualidades, ou das culturas subjetivas, em intensa relação.

O surgimento de um espaço do ‘nós’ não apaga, bem entendido, o sujeito relacional com sua cultura subjetiva. Esse sujeito relacional, portador da cultura subjetiva, age/reage a cada novo evento da relação, mantendo/administrando esse espaço do ‘nós’, construído no contexto da troca32,45. O ‘espaço’ do ‘nós’ é repleto de tensões em razão das partes em relação, que, por sua vez, aportam suas respectivas culturas subjetivas. Esse espaço é constantemente redesenhado, mediado pela negociação, ajustes e de novidades, devido ao moto-contínuo dos indivíduos em relação. Sua principal marca é o conflito, a tensão, em que está embutido o risco. Esse ‘nós’, formado por partes em relação, constitui uma ‘cultura emotiva’ na designação de Koury32.

A relação dos indivíduos – um tênue encontro de mundos subjetivos – está sempre em relação tensa, e se ancora naquilo que Elias61 designou de a balança eu-nós – sendo a relação marcada por esse equilíbrio, esse outro, sempre um outro relacional, em que o indivíduo se vê projetado em suas expectativas as quais procura preencher. Não o faremos aqui, mas para um aprofundamento dessas questões, pode-se consultar Goffman62.

Uma relação seria, desse ponto de vista, o encontro, o intercurso, de duas, ou mais, culturas subjetivas. Pelo fato de sermos animais sociais, temos um impulso para o outro, que é sempre mediado pelo medo de não ser entendido. A busca desse outro relacional acaba sendo uma busca de algo que possa espelhar a nós mesmos em um processo de comunicação pleno de riscos e mediado pelo medo, conforme já se anotou. Isso enseja, de um lado, a criação social e o estabelecimento de uma cultura emotiva, em que, de outro lado, nos ajustamentos das partes envolvidas, são produzidos códigos morais que se objetificam e tendem a se cristalizar em um plano estável e consolidado de práticas comuns, com direitos, deveres e sanções. Nas sociedades ocidentais contemporâneas, nas quais o indivíduo almeja mais e mais a sua individualidade, essa ambiguidade e essa ambivalência do encontro se transformam em uma forma tensa e ansiosa do encontrar-se e ser encontrado e, ao mesmo tempo, do receio e dos riscos produzidos no e pelo ato relacional. Julgamos essa questão interessante para refletir, por exemplo, sobre as diferentes respostas dadas pelos países asiáticos, comparadas, por exemplo, às da Europa, à eclosão da pandemia da Covid-19, tema, aliás, abordado sob diversos pontos de vista em inúmeros artigos33-35,37,39,40 – assim como as consequências, decorridos mais de um ano da pandemia4,5,63,64,65,66.

O cenário que se configurou com a pandemia nos leva a especular um mundo distópico67 em que, ainda que as ações dos indivíduos sejam levadas a efeito na esperança de que tudo se ajeite no futuro, apostando abstratamente no ‘tudo vai dar certo’, uma vez que se siga a trilha pré-traçada, com o desarranjo político, sanitário e econômico, a ansiedade da derrocada, do fracasso vieram para a ordem do dia, em um mundo novo no qual diversas certezas foram colocadas em xeque, inclusive, e em certos contextos, principalmente, a da própria cura. Toda ação que projeta o futuro, qualquer finalidade e sentido atribuído às ações presentes para controlar o futuro estaria, desse ponto de vista, em questão. Um cenário em que a quantidade de ajustes de rumo, negociações, renegociações e discussões se agigantam, obrigando a um reajuste que só tem a oferecer riscos e conflitos, atualizando em ciclo prolongado a ansiedade e o medo do fracasso uma vez que estaria impregnado nesse cenário o eterno reinício do jogo social, por sua natureza tenso, conflituoso e crescentemente incerto e indeterminado. O mote desse cenário poderiam ser versos inquietantes de uma canção infantil: ‘Quero (re)começar, mas não sei por onde, onde será que o (re)começo se esconde?’ (‘Quero começar’, Tiquêque).

Risco e vulnerabilidade

Há momentos decisivos na história das coletividades como nas vidas dos indivíduos. São fases em que as coisas saem dos eixos, quando um estado de coisas é repentinamente alterado por alguns eventos-chave59.

Em seu importante livro, Beck66 apresenta os argumentos de que os desenvolvimentos científico e industrial têm por desdobramentos uma série de riscos que não sofrem contenção em uma escala espacial ou temporal67. Como consequência, não seria possível imputar a nenhum grupo social a responsabilidade “pelos danos causados por esses riscos, e aqueles afetados não podem ser compensados, devido à dificuldade de cálculo desses danos”68(23). Os fatores que tornam geral a exposição aos riscos seriam: 1) o conjunto de riscos ecológicos; 2) a precarização crescente e massiva das condições de existência; e 3) a individualização da desigualdade social e da incerteza quanto às condições de emprego.

Em consequência dessa impossibilidade de contenção espaçotemporal do risco, chamou a sua distribuição de transescalar, ou seja, a distribuição desses males, os riscos, é transversal às classes sociais. A sua produção é local, porém a sua atribuição é global, em particular, um tipo de risco classificados por Beck como riscos ambientais, financeiros e aqueles ligados ao terrorismo. Essa postura em relação à distribuição transescalar dos riscos recebeu aguda crítica, uma vez que as desigualdades de acesso aos recursos econômicos têm grande peso e são determinantes para minimizar a exposição aos riscos68,69; portanto, aos menos favorecidos, impõe-se a confrontação aos riscos, de natureza global, criados pela sociedade70.

Destacamos, a partir dos trabalhos citados, dois argumentos importantes e atualíssimos de Beck, quais sejam: 1) a relação cada vez mais forte entre acionamento de estados de exceção como reação aos riscos, como ‘técnicas’ de gestão de risco; e 2) questões ligadas à gestão dos riscos contemporâneos. A primeira questão tem sido desenvolvida por Agamben, por exemplo, suas reações às medidas de exceção decretadas pelo Estado Italiano no início da pandemia da Covid-199,42; e a segunda tem informado os desenvolvimentos da gestão de riscos ambientais71,72.

As contribuições de Giddens58 e Beck66 são de especial interesse para a área da saúde coletiva, pois trazem importante reflexão sobre o risco como ‘fato social’ nas sociedades contemporâneas e propõem novos conceitos para descrevê-la e explicitar seus principais dilemas. No core do argumento, a perda da centralidade do conflito distributivo no capitalismo avançado, deslocado pelo conflito sobre a distribuição social dos riscos – sanitários, ambientais, laborais e outros – inerentes às sociedades hipercomplexas. Giddens, ao apresentar as noções de ‘modernização reflexiva’, ‘incertezas artificiais’ e ‘sistemas peritos’ (e ‘confiança em sistemas peritos’), estabelece um novo léxico que permite descrever vários fenômenos de grande relevância para a pesquisa em saúde, relacionados não só com os modos como indivíduos e grupos sociais lidam com riscos e incertezas presentes na vida atual, mas também com a ampla circulação de informação sobre estes riscos e incertezas, assim como vários outros aspectos da vida nas sociedades contemporâneas. Daí a importância atribuída por Giddens e Beck à ‘reflexividade’ como característica distintiva do que, em sua concepção, seria uma segunda fase da modernidade ou, ainda, uma segunda modernização reflexiva73.

Apesar de as formulações originais de Giddens e Beck antecederem à ampliação da digitalização e à robotização da vida quotidiana em larga escala, elas podem ser consideradas derivadas de segunda ordem da revolução reflexiva, assim como outras questões relevantes da atualidade. A imensa quantidade de informação oriunda de fontes anônimas circulando amplamente pelas redes digitais coloca em xeque a autoridade dos ‘sistemas peritos’ e amplia significativamente as incertezas, atingindo centenas de milhões de pessoas ao redor do mundo, afetando, inclusive, os processos de disputa política em todas as configurações sociais. Recentemente, Giddens nomeou essa dinâmica de digidemia19, que repercute em medida própria o conceito de infodemia, cunhado em 2003, a propósito da epidemia de Sars74, levando a Organização Mundial da Saúde a realizar uma primeira conferência sobre infodemiologia75-77.

A teoria da modernização reflexiva de Giddens/Beck, portanto, prenuncia o quadro atual, mas alguns aspectos particularmente problemáticos da ‘segunda modernidade’ que emergiram na última década estão em processo de serem perspectivados: o aquecimento global articulado ao negacionismo climático coloca o problema em outro patamar de complexidade e torna-se um risco em si mesmo. Quando a incerteza se dissemina e novas crises se alinham, as ideologias conservadoras/populistas encontram correligionários mais convictos assim como novos militantes78. Na medida em que os indivíduos se tornam socialmente desconectados, podem se tornar mais ligados a um passado imaginado, a uma tradição imaginada79 e menos tolerantes com aquilo que leem como desvios de uma suposta tradição, desses valores criados e valorizados por discursos conservadores80. O clima de dissolução dos laços sociais poderia ensejar reações, que se manifestam no fundamentalismo religioso, bem como no ressurgimento de organizações neofascistas de direita, que, por sua vez, asseguram um retorno a supostos valores tradicionais, prometem continuidade social e segurança ao ressignificar e sugerir um novo propósito e autoestima aos indivíduos78,79. Em função disso, estaríamos muito mais limitados para imaginar novos futuros sociais?

Segundo Furedi46, a mudança mais importante na maneira como os indivíduos são vistos no século XXI é a mudança de uma presunção de resiliência para a definição de indivíduos por sua vulnerabilidade. Atualmente, ainda segundo o autor, a vulnerabilidade é uma das características definidora da personalidade. Concomitantemente, há um campo semântico que se consolida, para circunscrever e, talvez, evocar os medos e os riscos. Independentemente da efetividade dos riscos, o medo vem sendo cultivado. Tem-se uma cultura de sentir medo e de sentir-se em risco. O medo é uma forma de governar, mais do que isso, é uma forma de condução de populações. Esse campo semântico inclui palavras como: extinção, pandemia, epidemia, mudança climática, eventos extremos, clima extremo etc. Um senso de ansiedade sobre o futuro é refletido por meio da popularização desse novo idioma do medo. Uma expressão-chave na evocação dessa mesmerização coletiva é ‘ponto de inflexão’, uma vez que evoca o temido cenário do ponto de não retorno. Dessa forma, outra passagem é operada, qual seja, a do medo para o medo extremo ou pavor.

O surgimento da vulnerabilidade como característica definidora da condição humana alimentou uma nova tendência para psicologizar os problemas da vida cotidiana e da existência. Nesse sentido, problemas de saúde estão proliferando nos dias de hoje, e um número crescente de condições anteriormente consideradas normais recebe agora um diagnóstico. Assim, timidez, estresse, baixa autoestima, medo, angústia e tristeza foram renomeados como patologias médicas. Como resultado, o chamado ‘script cultural’ contemporâneo tende a relativizar a capacidade das pessoas de lidar com experiências adversas. A atual exaltação da vulnerabilidade pode inflar a sensação de desamparo que muitos de nós sentimos quando confrontados com emergências.

Conforme já assinalamos, risco e vulnerabilidade são conceitos que só podem ser discutidos se associados a diferentes contextos histórico-sociais e a diferentes disputas de paradigmas das áreas científicas que os desenvolveram. Portanto, dependendo do ponto de vista, ‘sob risco’, pode-se encontrar grande parte das populações e comunidades que vivem em situação de vulnerabilidade, principalmente em grandes centros urbanos dos países da África, da Ásia, da América Latina e do Caribe. Nunca é demais destacar a forte dependência do contexto socioantropológico no delineamento dos grupos expostos a riscos e/ou vulneráveis – para um desenvolvimento desse argumento, consultar Douglas81. Vivemos presentemente uma situação em que isto fica muito claro: diante da ameaça de um vírus como o Sars-CoV-2, todos estamos sob risco, porém, a sua vulnerabilidade é dependente, em parte, de qualificações relativas às condições socioespaciais, culturais, econômicas e da concomitância das chamadas comorbidades; e, em parte, também dos mecanismos de resiliência.

Conclusão: a atualização de nossas precariedades, medos e incertezas

Não há nenhum padrão de coisas por vir.

H. G. Wells82

Trazemos aqui a pergunta feita para todos nós por Agamben9: como chegamos até aqui? O que é uma sociedade que não tem outro valor que não seja a sobrevivência? No caso do Brasil e de toda a América Latina, acostumamo-nos a viver décadas seguidas em condições de crise e de emergência constantes que, conforme assinala Agamben9, reduz a vida a uma condição puramente biológica, perdendo, em consequência, suas dimensões social, política, humana e afetiva. Uma sociedade que vive em constante estado de premência não pode ser uma sociedade livre, está fadada ‘a viver em um perene estado de medo e de insegurança’. Seriam as atuais crises sanitária, política e econômica um quase experimento para uma nova arquitetura política e social do futuro próximo da humanidade?

Em pouco mais de um ano de pandemia, a incerteza aumenta. Todos esperamos ansiosamente um depois, mas, em certo sentido, podemos presumir que o depois não haverá, podemos especular sobre um prolongamento do presente que dura e muda, produzindo, nessa mudança, outra realidade. É como no filme Matrix Reloaded: Neo está em coma, e acorda na estação de trem cujo nome é Mobil Ave. Mobil é um anagrama para Limbo, e é isso que a estação realmente é, um lugar nenhum. Fica preso em um lugar entre esse mundo e o mundo das máquinas83. Ainda não emergimos desse evento global. Estamos presos em um, simultaneamente, mesmo e, também, diferente lugar, em uma espécie de limbo.

Uma diversidade de medos e motivações contraditórias encontra-se na desordem das reações à pandemia. Lembramos aqui da ideia de pânico moral84 que assinalaria a virada do século XXI. Insegurança, incerteza e medo estão solidamente alinhados. Há uma relação circular entre os três termos que torna possível compreender o renascimento, neste século, não apenas da política do medo, mas também de previsões de catástrofes globais85 e relatos escatológicos de toda ordem, na medida em que as incertezas sociais e políticas, bem como as ecológicas, aumentam, dando origem a novos medos86. A pandemia da Covid-19 pode ter ampliado ainda mais esse ambiente inseguro e a imaginação dele resultante, tornando-a, nas palavras de Furedi39, um desastre sem precedentes.

  • Suporte financeiro: Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) – projeto número E-26/210.196/2020. conselho Nacional para o Desenvolvimento científico e Tecnológico, CNPQ, MCTI/CNPq/FNDCT/MS/SCTIE/Decit (N. 402547/2020-0)
  • *
    Orcid (Open Researcher and Contributor ID).

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Dez 2021

Histórico

  • Recebido
    18 Jun 2021
  • Aceito
    06 Dez 2021
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