Open-access Crise social das instituições de ensino superior e a formação em saúde para o mercado

RESUMO

Este artigo discute o produtivismo acadêmico em detrimento da atuação socialmente engajada de docentes universitários e seus reflexos na formação dos sujeitos. Tema oportuno em momento de grave crise política e institucional que ameaça a seguridade social e o direito à saúde no Brasil. Situação que convoca os atores sociais da educação e da saúde à reflexão sobre o papel da universidade para a cidadania e sobre o sentido social do que ela produz.

PALAVRAS-CHAVE Capitalismo; Universidades; Formação profissional em saúde

ABSTRACT

This article discusses academic productivism to the detriment of the socially engaged performance of university professors and their reflexes in the training of subjects. Timely theme at a time of serious political and institutional crisis that threatens social security and the right to health in Brazil. This situation invites the social actors of education to reflect on the role of the University for Citizenship and the social sense of what it produces.

KEYWORDS Capitalism; Universities; Health human resource training

Preâmbulo sobre uma paisagem instigante

Uma crise institucional sem dimensões na história recente da democracia no Brasil, a partir do golpe parlamentar de 2016, tende a comprometer o direito à saúde e a qualidade de vida da população. Nesse cenário, a justiça social padece perante a tradição jurídica brasileira, no que concerne ao interesse popular secundarizado (ASSIS ET AL., 2016). Os atores que operam a lógica do Estado mínimo organizam-se em todos os estratos da sociedade e encontram refúgio para suas opções ideológicas (neoliberais) também na universidade. Um sinal agudo a evidenciar que as classes menos favorecidas, que acessam a universidade, carecem de uma formação emancipadora, em detrimento do modelo tradicional que caracteriza o ensino, a pesquisa e a extensão sob a lógica de mercado. A expansão da educação superior no Brasil, entre 2003 e 2013, torna esse debate inadiável.

Segundo o Ministério da Educação e Cultura (MEC), a oferta de cursos de graduação evoluiu de 16.505 opções para 32.049 nesse período, o que representa um crescimento de 94%, tanto no setor público quanto no privado, notadamente, na região Nordeste (BRASIL, 2015).

O modelo de ensino e de produção científica, sob a égide do mercado, ajuda a manter, no que concerne à saúde como conquista social, um esqueleto sem carne, uma estrutura divergente do modelo emancipador proposto. Nunca a educação e a saúde careceram tanto de entrelaçamentos para que o direito à cidadania venha a dar certo no Brasil (RIBEIRO, 2007; SANTOS; SILVA, 2013).

Nesse ponto, o MEC propõe a reflexão sobre o papel humanizador das Instituições Federais de Ensino Superior (Ifes), em detrimento do que o mercado empreende.

O novo desenho institucional adotado pelas Ifes deve ser suficientemente sustentável, ancorado em fundamentos humanísticos, que não se curvem aos interesses apenas comerciais, para enfrentar o tensionamento desse período. (BRASIL, 2015, P. 49).

Como deve 'agir' a universidade frente às perdas de direitos fundamentais da sociedade (sociais, trabalhistas e previdenciários)? Obter respostas implica entender a morfologia contemporânea do trabalho, cuja matriz situa-se no modelo econômico, marcado por ritmo e sentido, dentro e fora do universo acadêmico.

Morfologia do trabalho: de Lafargue à academia produtivista do terceiro milênio

No texto de Paul Lafargue, escrito na prisão, em 1883, observam-se as marcas do produtivíssimo intelectual vigente a coadunar com as nuances do pensamento dogmático sobre o trabalho. Hoje, a produção pela produção, alienante quanto à sustentabilidade e à geopolítica globais, guardaria algum traço do que se observou no século XIX, na França?

Na nossa sociedade [francesa], quais são as classes que amam o trabalho pelo trabalho? Os camponeses proprietários, os pequeno-burgueses [...] mexem-se como a toupeira na sua galeria subterrânea e jamais se endireitam para olhar com prazer para a natureza. (LAFARGUE, 2003, P. 22-23).

Os atores não percebem a 'natureza' em suas entrelinhas, tampouco os fenômenos sociais que podem circunscrevê-la. É essa uma postura produtivista; tecnicista, funcional, desprovida de uma razão social. Ocorre sempre de o trabalhador intelectual 'amar o trabalho pelo trabalho', não obstante o teor ideológico desumanizador embutido na produção do conhecimento sob tal perspectiva.

Paul Lafargue, em sua época, numa postura crítica, conduzia pelas galerias da França uma tartaruga pela coleira. Deixava-se levar pela cadência do animal, tendo a visão do entorno. Segundo esse autor, era de bom-tom levar tais bichos para passear como forma de protesto contra a organização e o processo de trabalho vigentes (LAFARGUE, 2003). O que mudou no modo de produzir? Ao controle do tempo-movimento (taylorismo) somou-se a polivalência (toyotismo) e ampliou-se o desemprego estrutural.

Atualmente, a nova morfologia do trabalho no setor público, manual ou intelectual, caracteriza-se pela flexibilidade de direitos, disponibilidade e capacidade de adaptação constantes, situação reforçada pela raridade de concursos públicos. O pragmatismo produtivista acadêmico converte os processos ensino/aprendizagem e pesquisa/publicação numa matriz formal de autorreprodução, sem a devida contextualização sociopolítica e desprovida de significado (ZIZEK, 2015). Tem-se a tragédia na formação em saúde, como adverte Jaime Breilh (2015, P. 537):

São universidades que perguntam: qual a produção, como apoiar a produção, como resolver as questões do poder institucional. É uma ciência por contrato, à la carte. É uma ciência por demanda institucional do poder. No campo da saúde pública isso é uma tragédia.

Embora denunciem a 'injustiça', grande parte dos professores da área da saúde não foi talhada para uma ação política transformadora. Fixa-se na condição de operários da educação, a 'modelar' os novos operários da saúde, minimamente prontos para atender aos reclames do mercado. Reproduzem o politicamente dado, numa postura 'áulica', na concepção do professor Darcy Ribeiro (2007).

A academia tem um papel no desenvolvimento da sociedade. Não pode abster-se ante os conflitos sociais, sem prejuízo de sua própria sobrevivência. Como salienta Zizek (2012, P. 16), "A mudança radical nunca é desencadeada pelo pobre, de modo a criar uma desordem explosiva". Então, quem fala por esse 'pobre' se a universidade pública, mantida também por esse 'pobre', não fizer a sua parte? Os políticos clientelistas ou o judiciário partidarizado (ASSIS ET AL., 2016), que submetem os anseios sociais aos interesses privados, cumprirão esse papel?

Não à toa, discute-se o traço estrutural dessa realidade objetiva:

A tendência geral do capitalismo global é na direção de uma expansão maior do domínio do mercado em combinação com o progressivo fechamento do espaço público, redução dos serviços públicos (saúde, educação e cultura) e o incremento do autoritarismo. (ZIZEK, 2015, P. 128).

A academia necessita rever o conceito de 'trabalho urgente', urgentemente. A tartaruga de Lafargue convida a uma visão de mundo onde a 'lerdeza' ganha outro sentido: o tempo necessário para a maturação das ideias. Um bicho que superou catástrofes ambientais por 340 milhões de anos seria apenas uma espécie preguiçosa ou inábil simplesmente porque caminha lentamente? Um professor/pesquisador anti-hegemônico, então, o seria? É imperioso saber como produzir com qualidade, sem ócio, na condição do humano, numa sociedade onde moer gente é o predomínio. Tal percepção é uma premissa para o alcance da autonomia mínima defendida por Freire (2008) e que qualifica a formação em qualquer área do conhecimento. No cenário atual, o professor/pesquisador quase não se percebe como peça de mercado, e, condicionado, nega a sua própria humanidade:

Gosto de ser gente porque, inacabado, sei que sou um ser condicionado, mas, consciente do inacabamento, sei que posso ir mais além dele [...] Gosto de ser gente porque, como tal, percebo afinal que a construção da minha presença no mundo, que não se faz no isolamento, isenta da influência das forças sociais, que não se compreende fora da tensão entre o que herdo geneticamente e o que herdo social, cultural e historicamente, tem muito a ver comigo mesmo. (FREIRE, 2008, P. 53).

A lógica do capital evoca sujeitos 'aptos', com currículos bem pontuados, contudo, sem qualquer noção histórica integradora, sem compromisso com a coisa pública ou com as lutas de classe, não obstante alguns vivam a vida que pediram a Deus por causa dessas lutas que menosprezam e até combatem. O que está em jogo é o modo como a academia (des)trata as desigualdades e a democracia no País. Então, no âmbito da formação dos atores da saúde, qual cidadania se pretende estruturar? Aquela que ignora os determinantes sociais do processo saúde-doença?

Que liberdade tem o docente que não cita a miséria social que adoece e mata?

Ora, não é livre o homem doente que não tem os meios para se tratar, o homem posto na rua porque não consegue pagar seu empréstimo bancário. Chega-se, então, ao paradoxo de que a liberdade individual, em cujo nome é rejeitada qualquer intervenção do Estado, fica impedida pela irrestrita liberdade concedida ao mercado e às empresas. (TODOROV, 2012, P. 106).

Contraditoriamente, a energia universitária pulsante desgasta-se em conflitos burocráticos e curriculares. Pouco se discute sobre o papel do Estado ou do mercado na definição do modelo de ensino na universidade, gerador de concorrência e causador de sofrimento mental. Sabe-se que os transtornos mentais estão presentes no contexto das universidades do mundo e do Brasil (BERNARDO, 2014; DUTRA, 2012; LIMA, 2013).

Reproduzem-se valores, métodos, técnicas e condutas, numa abordagem professoral dotada de um saber 'autossuficiente', no âmbito do ego, mas impotente quanto à utilidade social, percebida numa dimensão emancipadora dos outros (SANTOS; SILVA, 2013).

Conforma-se um espaço acadêmico de formação acrítica da força de trabalho para o mercado, convertido em território devastador de corpos mudos, mentes surdas e almas cegas, produzidas no transcurso do ensino-aprendizado brasileiro. Não há, portanto, sentido algum em falar de 'escola sem partido', como um modelo de ensino a ser construído, mas somente legitimado, porque já se materializou como mecanismo de dominação.

A didática resposta/ação contra-hegemônica dos estudantes

Sabe-se que professores-pesquisadores encontram-se queixosos com relação ao produtivismo acadêmico (LEMOS, 2007). Além deles, ante a ofensiva capitalista contra as universidades públicas, os estudantes surgem, também, como atores sociais contra-hegemônicos. São também os estudantes que protagonizam nas ruas do mundo a luta pela emancipação das sociedades subjugadas pelas regras do mercado. Eles protagonizaram no Occupy Wall Street e na 'Primavera Árabe' (ZIZEK, 2012).

No Brasil, observa-se quadro semelhante de resistência do movimento estudantil ao Estado mínimo e às suas repercussões na qualidade do ensino moldado pela lógica de mercado. Em 2013, as manifestações no Brasil demonstraram o desejo de ruptura dos estudantes com a estrutura político-econômica vigente e a busca da garantia dos direitos sociais relegados. Essa posição de resistência não é nova. Almeida (2009) sinaliza que, historicamente, o movimento estudantil centraliza as suas reivindicações nas melhorias dos serviços públicos, entre os quais, transporte, educação, saúde e segurança, principais setores atingidos pela flexibilização e pela precarização introduzidas pelas políticas neoliberais.

Na Bahia, observaram-se manifestações estudantis com objetivos semelhantes e que ganharam visibilidade através das redes sociais. O movimento dos 'camisas pretas', em Vitória da Conquista, em setembro de 2016, foi emblemático (figura 1). Universitários do Instituto Multidisciplinar de Saúde da Universidade Federal da Bahia (UFBA) vestiram-se de preto e assumiram o 'luto' pelo desconforto mental causado pelo modelo acadêmico de formação.

Figura 1
Fotografia. Estudantes dos cursos de Saúde protestam contra o modelo de ensino em Universidade Federal do interior da Bahia

Nota: Imagem pública cedida por estudantes do movimento.


Tratou-se do questionamento coletivo sobre tipo de 'sucesso' obtido na vida acadêmica, modelado conforme a exigência de mercado. O mesmo mercado que, paradoxalmente, não abre espaço para os jovens, ao defender o 'enxugamento' e a polivalência na produção de mercadorias e serviços (ANTUNES, 2007; ZIZEK, 2012).

Tal cenário reflete uma postura hegemônica na educação (modelo empresarial baseado em resultados), quando a universidade deveria eleger no processo educativo a formação de sujeitos capazes de atuar de forma proativa na superação das necessidades sociais de saúde, o que vai além de um profissional focado no modelo tecnicista e biomédico. Esse modelo não corresponde à eterna urgência de uma Reforma Sanitária Brasileira, que tem como premissas a participação política e a qualidade de vida da população (PAIM, 2008).

Os estudantes mais conscientes de seu papel emancipador reagem. Querem ser proativos; sabem que o desemprego que os espera não é um detalhe. É uma estratégia essencial na propagação da desigualdade no mundo do trabalho. Não poderia ser diferente:

Toda uma geração de estudantes quase não tem chance de encontrar emprego em sua área, o que leva a um protesto em massa; e a pior maneira de resolver essa lacuna é subordinar a educação diretamente às demandas do mercado - se não por outra razão, isso ocorre porque a dinâmica do mercado torna 'obsoleta' a educação dada nas universidades. Esses estudantes inempregáveis estão predestinados a desempenhar um papel organizador fundamental nos futuros movimentos emancipatórios. (ZIZEK, 2012, P. 15-16).

O desemprego é uma estratégia do capital para manter o seu contingente de reserva e, mais que isso, para impor aos empregados o temor do não trabalho, a flexibilização de direitos trabalhistas e a polivalência adoecedora (ANTUNES, 2007; BREILH, 2003). É para um mercado assim que a universidade forma os seus alunos. É essa ética que influencia pesquisadores, cuja produção 'em escala' muitas vezes não reflete as diversidades e as necessidades do Brasil.

Na formação em saúde, ler para memorizar tem sido um meio eficiente de alcançar notas, e nem sempre de aprender. Assim, acreditar que se está 'indo bem' com a pedagogia da submissão ao convencional é um autoengano. Atitude que compromete a formação de atores da saúde críticos e, consequentemente, as conquistas nos campos da saúde e da educação, com risco iminente de infelicidade coletiva.

Ditosamente, o autoengano tem fronteiras. "Obviamente, há limites para o que somos capazes de nos fazer acreditar. Como diz o poeta, 'é difícil ter visões comendo merda'" (GIANNETI, 2008, P. 113). Se, para a saúde, tem-se a economía de la muerte, caracterizada pelas várias iniquidades (BREILH, 2015); e se, para a sociedade contemporânea, tem-se a economia da desigualdade social (PIKETTY, 2015), a apatia acadêmica, ante à crise democrática e à perda de direitos à saúde e à vida, corresponderia à reprodução de uma educação para a injustiça, uma educação para a morte, nem sempre pelo autoengano, e, muitas vezes, por uma opção ideológica.

A universidade deve ser o espaço da inquietação manifesta de discentes, professores e técnicos e de quem mais compuser a vida universitária. Assim, não se pode prescindir de um ensino engajado e de uma pesquisa socialmente comprometida com a emancipação dos sujeitos. Paulo Freire (2008) alerta que não há problema na inquietação, no alvoroço, na reivindicação ou na vitalidade. Para ele, a ciência deve compreender bem isso, e o professor/pesquisador deve ter o bom senso para admitir que nem sempre estará certo diante das suas certezas. Diz ele:

Tenho pena e, às vezes, medo, do cientista demasiado seguro da segurança, senhor da verdade e que não suspeita sequer da historicidade do próprio saber. (FREIRE, 2008, P. 63).

Para Freire (2008), todo saber é historicamente e socialmente determinado. Compreende-se, então, que não há somente boa intensão da parte de quem ensina. Há uma ideologia a pleno vapor no processo de ensinar, que liberta ou oprime. Que promove mudanças ou perpetua as desigualdades. A universidade, por essa razão, é um espaço de disputas sociais.

Cabe indagar: o que se está fazendo nas universidades, pela via da educação, para garantir nas ruas e nos espaços deliberativos ou estratégicos a saúde como direito universal no Brasil? É suficiente 'ensinar' e 'produzir saber' em espaços fechados para que a universidade cumpra o seu papel como instituição que fomenta o desenvolvimento de uma sociedade?

Indagações como essas não podem ignorar as necessidades sociais de respostas, simplesmente porque a ação política esteja fora do plano de aula ou do projeto individual de pesquisa. Além disso, é impossível negar a natureza educativa do fazer político, bem como o caráter político que permeia o ato de educar. Assertiva pertinente, quando as forças anti-SUS tentam impor um padrão de escola despolitizada e uma universidade acéfala, produtivista, vulnerável à ofensiva do setor privado e, por consequência, morbígena (LIMA, 2013).

Despolitização, prazer e a morte no modelo produtivista

Observar o que ocorre no mundo ajuda a entender o Brasil, onde as perdas sociais e trabalhistas são evidentes após o impeachment de 2016. Todorov (2012) analisa a ofensiva global do capitalismo, agora sobre as democracias recentes, o que não deve ser menosprezado pelo mundo acadêmico:

Esses são apenas alguns dos exemplos que evidenciam a assustadora corrosão da democracia no mundo contemporâneo. A cidadania encontra-se cada vez mais ameaçada pela perigosa combinação entre o cinismo dos políticos tradicionais e, os tratados financeiros internacionais, indiferentes aos verdadeiros anseios da sociedade, e a ascensão de movimentos populistas à direita e a esquerda. (TODOROV, 2012, P. 18).

Todorov (2012) e Zizek (2012) salientam a natureza simbólica do capital, que transmuta-se num credo religioso perante o qual a aceitação (pelo senso comum) dá-se sem qualquer questionamento, enquanto as democracias são desmerecidas:

O capitalismo global solapa a democracia. Essa questão é fundamental para entender o funcionamento cínico da ideologia: ao contrário do período em que o sentimentalismo ideológico-religioso encobria a violenta realidade econômica, hoje o violento cinismo ideológico é que encobre o núcleo religioso das crenças capitalistas. (ZIZEK, 2012, P. 138).

Não refletir sobre o conteúdo ideológico do que se realiza na condição de educadores/pesquisadores é uma posição, no mínimo, conivente com a injustiça social que o desmantelamento do Sistema Único de Saúde (SUS) evidencia. Uma ofensiva capitalista contra o SUS, sem uma contraofensiva da academia, prenuncia a falência do pensamento emancipador e uma catástrofe social sem precedentes.

O menosprezo aos determinantes sociais de saúde, nas pesquisas ou nas aulas, conforma um misto de indiferença ou de aversão ao conjunto de saberes que buscam explicar, fora dos modelos teóricos preferidos, desigualdades que precisam ser superadas, se quisermos falar de uma academia comprometida com os melhores perfis de morbimortalidade.

O resgate da luta coletiva pela reforma sanitária passa, impreterivelmente, pela reformulação do modelo teórico-prático do ensino e do caráter transformador da pesquisa científica, bem como pela gestão do trabalho que possibilite a autonomia dos que constroem e reconstroem a saúde cotidianamente. Uma luta utópica implica em ruptura com a proposta de universidades formadoras de mão de obra 'qualificada' para atender à lógica da produtividade fabril, quando a sociedade precisa de trabalhadores da saúde críticos e autônomos, envolvidos com a realidade e mais atuantes do ponto de vista das proposições e da integração dos múltiplos campos do conhecimento, sem a qual não se faz promoção da saúde. (SANTOS; SILVA, 2013, P. 217).

Como parte da crise política mencionada, o desmonte do SUS aguarda do mundo universitário um compromisso além do produtivismo fabril-acadêmico. Urge uma reavaliação da postura política/pedagógica predominante para a formação em saúde. O antropólogo e professor, Darcy Ribeiro (2007, P. 89), reafirma a natureza ideológica do ensino: "A futilidade da pesquisa universitária é quase total do ponto de vista da escolha de opções políticas". Sobre o estado de alienação que pode afetar o professor-pesquisador, o autor diz que

o intelectual vivendo longe disso tudo, isolado na redoma acadêmica, não compreende nada, fica em sua fatuidade auto-suficiente, crendo que é fonte de todo saber. (RIBEIRO, 2007, P. 89).

Nesse contexto, as análises de Lemos (2007) apontam para uma crise de identidade dos trabalhadores que resulta numa posição acrítica perante as novas formas de organização do trabalho. É quando "o homem se torna objeto do seu próprio trabalho [...] torna-se inferior e escravo do objeto" (LEMOS, 2007, P. 31). Nessa teia, tanto a função política quanto a científica da universidade encontram-se à deriva. A autora explica:

A Universidade hoje não consegue nem cumprir totalmente a sua finalidade política, de exercer o pensamento crítico criativo, nem consegue ser plenamente uma instituição direcionada para formar habilidades práticas requeridas pelo mercado. Situa-se aparentemente numa 'terra de ninguém', mas altamente cobiçada pelo poder econômico dominante, uma vez que representa cada vez mais um negócio de alta lucratividade [...]. (LEMOS, 2007, P. 75).

Nessa direção, Chauí (2001, P. 56) afirma que

a Universidade está estruturada segundo o modelo organizacional da grande empresa, isto é, tem o rendimento como fim, a burocracia como meio e as leis do mercado como condição.

Ela explica que a fragmentação da universidade ocorre em vários níveis, tendo o taylorismo como uma regra.

Desenha-se, com o aval do Estado, uma universidade neoliberal que se expressa no 'capitalismo acadêmico', discutido desde a década de 1990 por Slaughter e Leslie (1997). Atualmente, o conceito de capitalismo acadêmico, com ênfase nas produções bibliográficas, é retomado por Bernardo (2014) em seu estudo sobre as repercussões do produtivismo na saúde psíquica de docentes das universidades públicas no Brasil.

O produtivismo e a polivalência na academia, que altera o sentido do trabalho, podem ser fatores para o adoecimento psíquico e suicídios de professores universitários, não somente de estudantes. Sabe-se que a cobrança de produtividade resulta do modelo organizacional de trabalho sobre o qual o docente não tem domínio. Esse, por sua vez, quando não adoece e mata, escraviza e aliena. Sobre esse aspecto, alerta-se que:

[...] a universidade em ritmo de barbárie produtivista seja o melhor lugar para transformar ideias de autodestruição em ato efetivo, porque nela reinam competição, individualismo, inveja, fogueira das vaidades, violência simbólica etc. [...] entre professores-pesquisadores narcisicamente constituídos enquanto grupo de 'capitalistas científicos' (sic), cuja posição de dominantes visa reproduzir alunos em série, dominados e crentes no sistema teórico. Ou seja, neste ambiente não sobra muito espaço para o aluno ou professor independente. (LIMA, 2013, P. 82).

Três professores de uma universidade estadual na Bahia cometeram suicídio em um interstício menor que sete meses, entre 2014 e 2015 (MELO, 2015). Em intervalo quase idêntico, outro pesquisador da mesma universidade foi premiado porque conseguiu produzir 40 artigos em um ano. Contradições no cerne do universo acadêmico que exigem dos atores em cena a identificação de fatores que geram prazer e, ao mesmo tempo, sofrimento e morte na academia (LIMA, 2013). Lemos (2007) observa um outro aspecto desse paradoxo quando se refere a uma 'corrida' para a publicação de artigos científicos. Tem-se o aumento da produtividade docente e, em contraposição, a estagnação do conhecimento.

Os trabalhos são publicados repetidas vezes, com pequenas modificações ou são trabalhos desenvolvidos às pressas sem uma maior maturação o que determina uma produção em série, massificada, com perda de qualidade. (LEMOS, 2007, P. 77).

É possível vislumbrar, nas relações sociais de produção na universidade, uma teia de conflitos caracterizada pela interface entre o modelo taylorista, marcado pela fragmentação e pela alienação no trabalho (CHAUÍ, 2001), e a organização toyotista, tipificada pela flexibilização de direitos, pela polivalência e por adaptações constantes, conforme a égide produtivista (ANTUNES, 2007).

Nessa direção, o processo alucinante de produção capitalista escapa ao domínio do docente e vai rebater naquele que deve ser o objeto de sua atenção, o educando:

O produtivismo da universidade [publishorperish/'publica ou perece' epidêmico entre professores-pesquisadores] e o individualismo narcisista universitário vêm contagiando os alunos, gerando neles alta ansiedade, estresse, desencadeando transtornos psíquicos, pânico de não dar conta dos trabalhos e provas, pavor de ser julgado como intelectualmente incapaz pelos colegas e professores, bullying etc. ('Não deixe que essa universidade, ou algumas pessoas que nela estão te contaminem assim como fizeram comigo' disse Luiz Carlos de Oliveira, 20 anos, estudante de Filosofia da Universidade Federal de São Paulo - Unifesp, antes de se enforcar). (LIMA, 2013, P. 81).

Eis um bom contexto para perguntas científicas (e reflexões íntimas) socialmente engajadas. Muito diferente de se perguntar (agora) qual o efeito da adrenalina na corrente circulatória de um hamster, quando o coração do sistema de saúde mais universal do mundo (SUS) está parando, em plena calçada das faculdades de medicina, enfermagem, farmácia, biologia, biotecnologia, psicologia, nutrição e tantas outras. Situação comprometedora do direito à vida de milhões de pessoas, e permanecem os atores preocupados com o 'prêmio', tão condicionados quanto o funcionário do mês de uma fábrica de calçados, que consegue, ao custo de suor e sangue, bater a meta para ter a sua foto sorridente pendurada no galpão de produção por trinta dias. Que valores são esses? Aonde nos levarão?

Continuamente, fala-se da necessidade de produzir artigos para a progressão na trajetória acadêmica. Ou faz ou fenece! Nada contra a produção acadêmica; contudo, o modelo subjacente dessa produção não é neutro (FREIRE, 2008; RIBEIRO, 2007). Para o produtivista, são desconhecidas a raiz, a motivação e a necessidade do ócio curricular, e o quanto esse ócio serve à maturação do pensamento ou como incubadora fascinante de perguntas norteadoras, social e politicamente potentes.

Enquanto o SUS agoniza, a universidade, em seu ventre, até o momento, vai parindo para o capitalismo os filhos do mercado, uma força de trabalho destituída do social, em vez de cidadãos conscientes de sua identidade de classe. Um modelo ainda funcionalista, visível no poema dedicado ao epidemiologista Jaime Breilh:

E agora, Breilh? [...]

  1. O dia não passa - funciona.

  2. O trabalhador não pensa - funciona.

  3. O homem não vive - funciona.

  4. O ponto digital - controla, vigia e pune.

  5. Funcione! [...]. (SANTOS, 2015, N. P.)

Considerações finais

Nesse contexto funcionalista (do instantâneo), o acadêmico deve resistir à tentação de tornar-se um produtor de 'miojos'. É preciso maturar as ideias, experimentá-las, testá-las e discuti-las com certa profundidade, à luz de um contexto sociopolítico e econômico, geralmente, opressor. É preciso tempo (o ócio) e interesse para reconhecer outras áreas do saber, que contribuem para a compreensão do mundo que nos cerca e dos fenômenos sociais que nos afetam.

A vida em sociedade sempre cobrará a fatura das escolhas. O SUS já está cobrando. Se áulicos ou iracundos; se coniventes, omissos ou engajados; se produtivistas ou socialmente compromissados com os destinos da população, tudo isso retornará em forma de perdas ou conquistas sociais. E se o tempo é suficiente para produzirmos centenas de coisas, como máquinas, é sempre insuficiente para se reverter, politicamente, o ritmo da destruição de direitos sociais em curso no Brasil e no mundo. A crise da universidade é a crise do pensamento. Pensamento ameaçado (em crise) contribui para formar sujeitos estranhos ao cenário onde interagem.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Set 2017

Histórico

  • Recebido
    Abr 2017
  • Aceito
    Ago 2017
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