Open-access Como os profissionais de saúde atendem mulheres em situação de violência? Uma análise triangulada de dados

How health professional assist women experiencing violence? A triangulated data analysis

Resumos

Analisa o conhecimento de profissionais sobre violência contra a mulher, e condutas e encaminhamentos realizados por eles, a partir da análise triangulada dos dados de 221 questionários e 23 entrevistas, aplicados a médicos e enfermeiros. Condutas adequadas são realizadas, mas são insuficientes devido à complexidade do problema da violência, assim como ocorre com os encaminhamentos. A violência de gênero deve ser abordada na formação de profissionais de saúde, processo que deve continuar nos serviços, objetivando sensibilizar e preparar esses profissionais para lidar com o tema. Desenvolver atividades preventivas e identificar a rede de proteção contra a violência é urgente para o enfrentamento do problema.

Violência contra a mulher; Pessoal de saúde; Educação em saúde; Atenção Primária à Saúde; Humanização da assistência


This article analyzes the knowledge of professionals on violence against women and the attitudes and referrals made by these professionals, using a triangulated data analysis of 221 questionnaires and 23 interviews, that was applied in doctors and nurses. Adequate procedures are performed, but are insufficient due to the complexity of the problem of violence, as occur with referrals. Gender-based violence must be addressed in the training of health professionals, a process that should continue in services with the aim of raising awareness and prepare them to deal with. To identify the network protection against violence and its articulation is urgent in addressing the problem.

Violence against women; Health personnel; Health education; Primary Health Care; Humanization of assistance


Introdução

A violência contra a mulher é um tema que durante muito tempo foi tratado como pertencente apenas às esferas do direito e da segurança pública. Até recentemente o campo da saúde olhava para tal fenômeno como mero espectador, um contador de eventos, um reparador dos danos provocados. Ao final da década de 1990, a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Ministério da Saúde (MS) assumiram, em diversos documentos e portarias, a questão da violência contra a mulher como um grave problema de saúde pública devido à sua grande prevalência e às consequências para as pessoas (VIEIRA; PERDONÁ; SANTOS, 2011).

Nos últimos anos, várias medidas foram tomadas com o intuito de prevenir e combater o problema. A Convenção de Belém do Pará estabelece que toda mulher tem o direito de viver em segurança e livre de violência. Em 2003, foi criada a notificação compulsória (Lei nº 10.778) dos casos de violência contra as mulheres atendidas em serviços de saúde (BRASIL, 2003).

O Brasil é signatário da Convenção para a Eliminação de Todas as formas de Discriminação contra a Mulher e, para dar cumprimento a esta, foi publicada, em 2006, a Lei nº 11.340 (Lei Maria da Penha). Ela define os tipos de violência doméstica contra a mulher, oferece penas mais duras aos agressores e cria mecanismos de maior proteção judicial e policial às mulheres em situação de violência. Diversas ações transversais são previstas pela Lei e, em consonância a ela, a Secretaria de Políticas para Mulheres publicou, em 2011, a Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres (BRASIL, 2011).

Dois aspectos são importantes para a violência ser entendida como pertencente ao campo da saúde: a ampliação do conceito de saúde, que considera qualquer agravo e ameaça à vida, às condições de trabalho, às relações interpessoais e à qualidade de vida como parte de sua atuação; e o fato de a violência afetar profundamente a vida e a saúde das pessoas, além de ter alto potencial de morte (WHO, 2012).

Devido às consequências da violência sobre a saúde, mulheres nessa situação são frequentadoras assíduas dos serviços de saúde, muitas vezes, o único lugar em que procuram ajuda. Pelo menos 35% das queixas levadas por mulheres a esses serviços estão ligadas à violência sofrida e os perpetradores são seus parceiros íntimos em 88% dos casos (LUDEMIR ET AL., 2008).

Em estudo populacional, encontrou-se prevalência de 27,2% de violência física, alguma vez na vida, em mulheres na cidade de São Paulo; e em 33,7% em mulheres na Zona da Mata de Pernambuco (SCHRAIBER ET AL., 2007a).

A prevalência da violência encontrada especificamente entre usuárias de serviços de saúde é ainda mais alta. Pesquisa realizada em Unidades Básicas Distritais de Saúde da cidade de Ribeirão Preto (SP) demonstra que 34,5% das mulheres já enfrentaram violência perpetrada por parceiro íntimo, pelo menos uma vez na vida (VIEIRA; PERDONÁ; SANTOS, 2011). Os dados colhidos nos serviços de saúde do município de São Paulo (SP) (40,3%) (SCHRAIBER ET AL., 2007b) e Porto Alegre (RS) (38%) (KRONBAUER; MENEGHEL, 2005) são ainda maiores.

Apesar dos avanços nos últimos anos, decorrentes dos marcos legais e inovações políticas, milhões de mulheres brasileiras continuam sofrendo violência física, sexual, psicológica e econômica. As políticas nessa área enfatizam a extrema importância do atendimento adequado, em especial, nos serviços de saúde (BRASIL, 2006; BRASIL, 2011).

Sabemos que o papel do profissional de saúde é bastante relevante nesse tipo de atendimento e, por isso, desenvolvemos este estudo, que teve por objetivo analisar os conhecimentos de profissionais médicos e enfermeiros sobre algumas características da violência contra as mulheres, e as condutas e encaminhamentos que realizam na rede pública do município de Ribeirão Preto (SP).

Percurso metodológico

Aplicou-se face a face um questionário a todos os médicos e enfermeiras dos setores de clínica médica, ginecologia e obstetrícia, e pronto atendimento de cinco Unidades Básicas Distritais de Saúde (UBDS) do Sistema Único de Saúde de Ribeirão Preto (SP). Alguns dados do mesmo estudo já foram publicados (VIEIRA ET AL., 2009).

O questionário é uma versão adaptada do instrumento usado em estudo realizado com estudantes de medicina e médicos residentes (VICENTE; VIEIRA, 2009). Baseado em ampla revisão da literatura, ele abordou o conhecimento, o manejo de casos e atitudes em relação à violência de gênero. Após pré-teste com 13 profissionais de outros serviços, houve alterações nas alternativas de resposta e algumas reformulações.

A aplicação dos questionários realizou-se entre agosto e outubro de 2007, por nove entrevistadoras selecionadas e treinadas. Os profissionais foram abordados em seus locais de trabalho e, se não pudessem atendê-las no momento, era agendado um encontro para outra ocasião. Caso o profissional não fosse encontrado e não estivesse de férias ou em licença, era procurado por mais duas vezes.

Além disso, foram feitas entrevistas, com roteiro semiestruturado, com 23 desses mesmos profissionais, escolhidos através da técnica de 'bola de neve'. O roteiro, elaborado a partir da literatura, contemplava informações demográficas, formação e atividades desenvolvidas, assim como percepções sobre relações de gênero, sobre a violência contra a mulher, atuação profissional diante desses casos e o conhecimento para a realização de encaminhamentos (VIEIRA ET AL., 2013).

As entrevistas foram realizadas de junho a agosto de 2007, após pré-testes, nas unidades de atuação dos profissionais, que eram abordados, apresentados ao projeto e, se houvesse consentimento, entrevistados no momento e local mais oportuno para cada um. As entrevistas foram audiogravadas e, posteriormente, transcritas na íntegra e literalmente.

Apresentamos aqui alguns dados qualitativos e quantitativos sobre os conhecimentos e práticas dos profissionais de saúde em relação à violência de gênero, sob a forma de análise triangulada. Foram incluídas nessa análise as características dos profissionais, o conhecimento sobre epidemiologia da violência, a identificação desses casos e as várias formas de atuação no atendimento de mulheres em situação de violência. Estas foram registradas em perguntas abertas e pós-codificadas para tal análise.

No quesito atendimento foram consideradas adequadas as seguintes ações: atendimentos de rotina; avaliação da necessidade de exames complementares e uso de medicações; escuta qualificada da situação; notificação para a vigilância epidemiológica e registro em prontuário; profilaxia em caso de violência sexual; orientações visando à segurança da mulher e ao rompimento da situação de violência; e solicitação de que o companheiro se retirasse da sala durante a consulta. A realização de apenas uma dessas condutas, mesmo sendo adequada, foi considerada insuficiente devido à complexidade da questão dos casos de violência contra a mulher. Foram consideradas condutas inadequadas: chamar a polícia; corresponsabilizar a mulher pela situação; buscar confirmação da situação de violência; orientar para que a mulher conversasse com o companheiro (agressor) sobre a situação vivida; e elaborar laudo pericial. Para essa classificação, utilizamos legislação sobre o assunto (BRASIL, 2013) e documentos oficiais do Ministério da Saúde e da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (BRASIL, 2011; BRASIL, 2006).

Os locais de encaminhamento foram retirados de uma cartilha elaborada para profissionais do Sistema Único de Saúde (SUS) e de um folder publicado no município de Ribeirão Preto (SP) (PREFEITURA MUNICIPAL DE RIBEIRÃO PRETO, 2003). Foram considerados adequados encaminhamentos para serviços de segurança pública (Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) e Delegacia de Polícia (DP), assistência social (profissionais da rede de serviços do município e/ou serviços do setor), hospitais credenciados para atendimento a vítimas de violência sexual (Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto - USP), serviços e/ou profissionais de saúde mental (psicólogos, psiquiatras, ambulatórios de saúde mental), serviços especializados (Serviço de Atendimento à Violência Doméstica e Sexual (SEAVIDAS), serviços jurídicos (Defensoria Pública e Ministério Público), Conselho Tutelar, profissionais médicos e enfermeiros, Casa Abrigo e organizações não governamentais (ONG) que trabalhassem com a temática da violência. Foram considerados inadequados encaminhamentos para serviços inexistentes ou encaminhamentos genéricos, sem especificações ou orientações claras.

Resultados

Formação dos profissionais

Dos 221 profissionais respondentes, 77% eram médicos e 23% enfermeiras; 53,8% eram homens e 46,2% mulheres, com idade média de 38,6 anos e mediana de 36,5. A maioria (90,5%) declarou-se branca, católica (64,3%) e casada/em união estável (52%). Esses profissionais tinham de 1 a 36 anos de formados, com tempo médio de 12,5 anos e mediano de 10 anos, sendo a maior parte (68,8%) oriunda de universidades públicas (tabela 1).

Tabela 1
Frequência absoluta e percentual das variáveis sociodemográficas dos profissionais entrevistados. Ribeirão Preto (SP)

Em relação à formação sobre como lidar com a violência, 116 (52,7%) profissionais afirmaram que tiveram algum conteúdo referente a esse assunto, sendo que destes, 88 (78,5%) o tiveram nos seus cursos curriculares. Mais de 90% (201) dos respondentes acreditam ser este um tema muito importante para um profissional de saúde.

Sobre a formação em serviço para qualificar o atendimento nos casos de violência, apenas 27% (61) dos entrevistados referiram ter tido acesso a algum tipo de capacitação, e encontrou-se diferença importante entre a formação de médicos e enfermeiros, sendo que estes últimos têm mais chance de terem sido treinados em serviço (p<0,018). A maioria dos profissionais (87% - 193) pensa ser importante abordar essa questão em serviço. Uma médica afirma a importância de tal formação em sua entrevista:

Precisa de formação, sim. Eu acho que a gente é muito mal educado nesse sentido. A gente sabe tirar do risco de vida, mas não sabe como ajudar, ou fazer a conexão pra essa pessoa ter uma vida normal (Médica 4, 36 anos).

Apesar disso, alguns profissionais entrevistados acreditam não ser necessário esse tipo de formação para a qualificação do atendimento nos casos de violência:

Treinar profissionais da saúde para isso é ridículo. Capacitar a nós por isso, não. Você tem que capacitar a polícia, você tem que capacitar os órgãos de repressão, mas nós, não (Médico 1, 55 anos).

Conhecimento epidemiológico sobre violência

Apesar da maioria dos respondentes referir que realizou atendimentos a mulheres em situação de violência, apenas 10 profissionais (3%) afirmaram que a porcentagem das mulheres que sofrem violência estaria entre 30% e 40%, prevalência encontrada nas pesquisas. Tal dado revela que a maioria desconhece a alta prevalência da violência contra a mulher perpetrada por parceiro íntimo.

Essa percepção pode ser exemplificada pelo depoimento colhido nas entrevistas qualitativas: "Muito pouco [mulheres que sofrem violência]. O que a gente atende muito é na pediatria, as crianças, que são muitas molestadas"(Enfermeira 4, 32 anos).

Também se observou que muitos profissionais desconhecem características epidemiológicas da violência. Frente a quatro afirmações sobre as quais foram perguntados se eram falsas ou verdadeiras, apenas duas receberam índices razoáveis de acertos (98,4% e 76,9%), enquanto que nas outras duas, a proporção de acertos foi inferior a 30% (tabela 2).

Tabela 2
Frequência absoluta e percentual do número de acertos de profissionais médicos e enfermeiros de Ribeirão Preto (SP) a questões sobre o conhecimento epidemiológico da violência contra a mulher (VCM)

Para cada acerto em tais afirmações, atribuiu-se um ponto, de forma que o profissional poderia obter um total de quatro pontos. Quase metade dos respondentes (47% - 104) não recebeu nenhum ponto; 101 (45,7%) receberam um ponto; 15 (6,8%), dois pontos; e apenas um participante obteve três pontos (tabela 3).

Tabela 3
Frequência absoluta e percentual da pontuação obtida pelos profissionais médicos e enfermeiros de Ribeirão Preto (SP) respondentes das questões sobre o conhecimento epidemiológico da violência contra a mulher (VCM)

Esse desconhecimento é expresso nas entrevistas quando alguns profissionais revelam, por exemplo, que, em sua opinião, só casos de violência em que há lesões físicas chegam aos serviços de saúde, pois as mulheres estariam em busca de cura para tais feridas: "Chega sempre a pessoa: 'Oh, o cara me atingiu, o cara me bateu, o cara me deu um murro, o cara me jogou no chão'. Chega o corte, chega o politraumatismo" (Médico 1, 55 anos); "Quando tem dano de algum membro, quando ela sente muita dor, ela vem. Agressão moral, verbal não chega aqui" (Enfermeira 2, 30 anos).

Embora a literatura refira que esta não é a ocorrência da maioria dos casos, o destaque que os entrevistados dão a essa questão relaciona-se à visibilidade da violência. Para eles, o corpo ferido, a existência de hematomas e fraturas é o que possibilita a identificação da violência.

A dificuldade dos profissionais em reconhecer a violência como possível causa para diversos sintomas que atendem diariamente parece estar associado a esse desconhecimento epidemiológico acerca da violência, que gera uma dificuldade de reflexão sobre o problema. Além disso, emoções causadas pelas situações de violência, muitas vezes vividas pelos próprios profissionais em suas vidas pessoais, são outros fatores que podem dificultar a reflexão: "Nós tentamos racionalizar até a dor pra poder atender" (Enfermeira 10, 45 anos).

O atendimento

Dos 221 profissionais entrevistados, 202 (90%) referiram ter atendido mulheres em situação de violência e todos relataram algum tipo de conduta ou encaminhamento (tabela 4). Destes 202 profissionais, 99 (49%) referiram ter realizado uma consulta clínica e algum encaminhamento para outro serviço e/ou profissional, 80 (39,6%) referiram apenas a realização da consulta clínica e 23 (11,4%) afirmaram apenas ter encaminhado as mulheres, sem a realização de nenhum tipo de consulta clínica, médica ou de enfermagem.

Tabela 4
Frequência absoluta e percentual dos atendimentos e encaminhamentos realizados por profissionais médicos e enfermeiros em Ribeirão Preto (SP) a mulheres em situação de violência

Dos 179 profissionais que referiram ter realizado consultas clínicas, 144 (80,4%) citaram condutas tidas como adequadas nos casos de violência, 20 (11,2%) referiram condutas adequadas e inadequadas, e 15 (8,4%) citaram condutas tidas como inadequadas. Destes, quatro profissionais disseram não ter feito nada, pois a mulher pediu sigilo, conduta também considerada inadequada.

Entre os profissionais que referiram ter realizado consulta clínica, 70 (39%) citaram a realização de apenas um tipo de conduta, o que, nos casos de violência contra a mulher, é considerado insuficiente.

Há o entendimento por parte dos profissionais entrevistados sobre sua responsabilidade diante dos casos de violência identificados, além de haver a percepção sobre a necessidade de uma abordagem humanizada que transcenda o modelo biomédico. Porém, parece haver uma inabilidade para agir de outra forma:

Tem muita coisa que a gente não sabe... O que abordar primeiro, o que perguntar primeiro, o que"enxergar primeiro, sabe? Assim, em parada, você sabe o que você tem que fazer primeiro. Agora, assim na agressividade, é difícil (Médico 9, 30 anos)

Eu acho que o enfermeiro não é muito preparado pra abordar. O médico, menos ainda, a não ser pra atender a lesão. É complicado (Enfermeira 6, 33 anos).

Outros profissionais revelam práticas limitadas por uma lógica biomédica, que medicaliza a violência: "Se ela quer continuar nessa vida, o problema é dela. Não é meu. O meu problema é suturar o braço dela, certo?" (Médico 12, 57 anos); "Você tenta responder ao que aconteceu com a pessoa, dar conta da agressão, usar algum medicamento, uma coisa talvez mais somática mesmo" (Enfermeiro 1, 55 anos); (...) fica subnotificado na receita de Diazepan, Fluoxetina. Faz a terapia medicalizante e, de fato, você não sabe o que está acontecendo(Enfermeira 10, 45 anos).

Alguns profissionais acreditam que um protocolo os orientaria melhor quanto ao que fazer nos casos de violência:

Pelo menos uma espinha dorsal onde você trabalharia naquilo. E você identificaria as coisas sequenciais pra poder saber onde a pessoa deve ir, a quem deve recorrer, como deve ser atuado (Médico 14, 46 anos).

Já outros profissionais acreditam que o protocolo não é benéfico, uma vez que cada 'caso é um caso': "Teria que ser um atendimento mais humanizado, mas não... sistemático, protocolado. Vai fazer um protocolo para isso? Não, isso é bobeira" (Médico 7, 62 anos).

Os encaminhamentos

Dos 122 profissionais que referiram ter feito encaminhamentos nos casos de violência atendidos, 109 (89,3%) fizeram encaminhamentos considerados adequados, 9 (7,3%) entrevistados fizeram encaminhamentos inadequados e 4 (3,2%) fizeram encaminhamentos adequados e inadequados. Dos 109 profissionais que realizaram encaminhamentos adequados, 23,8% (26) o fizeram para mais de um serviço e/ou profissional. Já 76,2% (83) fizeram encaminhamentos para apenas um serviço ou profissional, prioritariamente a DDM, o que é considerado insuficiente nos casos de violência contra a mulher, uma vez que ela pode não querer fazer uma queixa policial, embora ainda necessite de orientação sobre os recursos sociais existentes para o enfrentamento da violência.

O grande número de médicos e enfermeiros que realizam encaminhamentos exclusivamente para a DDM pode sugerir que há um entendimento da violência como problema exclusivo de segurança pública. O fato de a DDM ser o serviço de atendimento à violência mais antigo que há no Brasil, também pode explicar a sua grande visibilidade para os profissionais.

Mesmo sendo o lugar para o qual os profissionais pesquisados mais encaminham as mulheres, alguns trouxeram queixas sobre o atendimento prestado pela DDM:

Não é um lugar assim específico pra lidar com isso, elas não têm capacitação, não adianta. Os policiais não têm sensibilidade pra lidar com esse problema, então eu acho que esse é o pior, a pior coisa que acontece (Médica 5, 29 anos);

"Tem a delegacia da mulher, que ela disse que fez vários BOs, só que a polícia também não faz nada. E ela continua apanhando" (Médico 3, 52 anos).

Alguns profissionais acreditam que apenas setores específicos e especializados da saúde podem tratar a questão da violência: "Não lidamos com isso. Se ela procurar, nenhum problema, manda pro psicólogo (Médico 12, 57 anos).

"Muitas vezes, ela acha que a gente é da área médica e que pode... Mas, isso aí é a área do pessoal da saúde mental que vai fazer uma terapia de casal ou coisa assim" (Enfermeira 4, 32 anos).

Porém, há também comentários sobre a dificuldade de acesso a esses serviços no município: "Quando eu encaminho pra saúde mental, demora oito meses para ela conseguir agendar... Ela não vai agendar" (Médica 4, 36 anos).

Mesmo havendo o reconhecimento dos problemas com os serviços, os profissionais continuam encaminhando as mulheres algumas vezes, inclusive, sem realizar nenhuma outra conduta. A seguinte fala de um profissional exemplifica a impotência que muitos sentem diante dos casos de violência: "Procuro encaminhar pra alguém que entenda do assunto, porque você pode estragar mais" (Médico 7, 55 anos).

A questão de uma 'rede de atendimento' foi citada apenas por três profissionais, todos da enfermagem. Ainda assim, as falas se referiam apenas a redes da área da saúde, o que nos dá a entender que há um desconhecimento da ideia de 'rede intersetorial' prevista pela Lei Maria da Penha.

Discussão

Embora os entrevistados fossem profissionais com anos de formação e de experiência bem díspares, não houve diferença no acesso à informação sobre a violência em decorrência desse aspecto. O que indicou alguma diferença no acesso a tais informações foi a categoria do profissional (médico ou enfermeiro). Em 2003, para a implantação da ficha de notificação compulsória nas unidades de saúde do município de Ribeirão Preto (SP), a Secretaria Municipal da Saúde realizou uma capacitação para os profissionais de saúde no qual foram abordados aspectos referentes à violência contra a mulher e a ficha de notificação foi apresentada. Apesar de todos os profissionais médicos e enfermeiros da rede terem sido convidados, apenas enfermeiros compareceram, o que poderia explicar tal diferença.

Diversas conquistas políticas e marcos legais relacionados ao tema da violência contra as mulheres foram publicados recentemente. Documentos específicos foram lançados, como os manuais para implementação e avaliação de ações de prevenção da violência (OPAS, 2010; WHO, 2012) e para a formação de redes de apoio (BRASIL, 2006). Também houve avanços em relação à Atenção Primária à Saúde com estratégias como a Política Nacional de Humanização (BRASIL, 2004) e a criação dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) (BRASIL, 2008), ambos visando à consolidação de uma atenção integral à saúde tão necessária para o atendimento dos casos de violência.

A integralidade, preconizada pelo SUS e garantida pela Lei Maria da Penha, pressupõe o desenvolvimento de uma capacidade de resposta às necessidades de saúde em uma perspectiva ampliada e tem o sentido de não segmentação das ações, sendo possível através do acesso qualificado aos serviços, de ações intersetoriais e práticas colaborativas entre profissionais (AYRES, 2009).

A realidade dos serviços de saúde no que se refere a esse tema ainda é bastante insatisfatória e um dos problemas apontados pela literatura seria o despreparo dos profissionais para atender adequadamente às mulheres (PEDROSA; SPINK, 2011; KISS; SCHRAIBER, 2011; VICENTE; VIEIRA, 2009; D'OLIVEIRA ET AL., 2009). O desconhecimento da epidemiologia da violência contra a mulher perpetrada por parceiro íntimo aumenta sua invisibilidade (SCHRAIBER ET AL., 2007b).

Os currículos acadêmicos da área de saúde e mesmo os processos de formação no âmbito do trabalho parecem não ter se adequado ao que é proposto pelos documentos citados. Sabe-se que ainda há hegemonia do modelo biologicista na formação do saber em saúde. Para alguns autores, sem uma abordagem de temas transversais vinculados ao fenômeno da violência, como gênero, raça e classe social, há um reforço de um conceito limitado de saúde e de práticas reféns de modelos biomédicos (PEDROSA; SPINK; 2011). Como consequência, a assistência fica limitada e circunscrita, sem possibilidade de articulação com outros setores que poderiam ter respostas possíveis à violência.

Apesar dos profissionais terem, em sua maioria, condutas e encaminhamentos adequados e (re)conhecerem alguns serviços de apoio existentes, não há relatos de contato com tais serviços, reuniões para discussão de casos, acompanhamento dos encaminhamentos realizados e/ou procedimentos padrão de referência e contrarreferência. Assim, as usuárias acabam atendidas por várias categorias profissionais e setores que não reconhecem os limites e potencialidades uns dos outros.

Para que esta realidade seja transformada, é fundamental que o processo de trabalho permita e os profissionais estejam aptos a uma relação dialógica com as mulheres, que passariam de objetos de intervenção a sujeitos de uma relação, seja em ações de promoção à saúde, de prevenção da violência ou de cuidado aos agravos causados.

Há experiências relatadas que possuem caráter inclusivo e emancipatório por darem ênfase na integralidade do cuidado e à autonomia dos sujeitos envolvidos (mulheres e profissionais). Tais experiências valorizam a capacidade das pessoas de regerem suas próprias vidas e geram intervenções que vão além do mero tratamento dos sintomas associados à violência (D'OLIVEIRA ET AL., 2009).

O processo de corresponsabilização pelas tomadas de decisão e os encaminhamentos responsáveis evitam a chamada Rota Crítica, processo descrito pela Organização Panamericana de Saúde. Esse fenômeno se refere exatamente à situação na qual o paciente faz uma trajetória de idas e vindas a serviços, repetindo os mesmos caminhos diversas vezes, sem resultar em nenhuma mudança, processo que gera um desgaste emocional e uma nova vitimização das mulheres, que acabam desistindo de procurar ajuda (D'OLIVEIRA ET AL., 2009).

A construção de redes de serviços para o enfrentamento da violência contra as mulheres se constitui em uma das estratégias mais relevantes e desafiadoras para lidar com um problema multifacetado como esse, já que fortalece as mulheres e também os profissionais, pois se sentem amparados e encorajados a agir.

Conclusões

O atendimento à violência dentro dos preceitos do SUS de integralidade e intersetorialidade ainda requer mais investimentos no desenvolvimento de um conhecimento que permita a sua efetivação. Possivelmente, isso poderá ocorrer com o compromisso de implantação das políticas vigentes.

  • Suporte financeiro: CNPq processo nº 403103/05-3; projeto "Rede de proteção a mulheres em situação de violência em Ribeirão Preto, SP", financiado pela FAPESP processo nº 2012/51309-9.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Set 2014

Histórico

  • Recebido
    Out 2013
  • Aceito
    Jul 2014
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