RESUMO
O presente artigo tem como foco o desenvolvimento da intervenção construída no âmbito da pesquisa do Movimento pela Saúde dos Povos ‘Engajamento da Sociedade Civil para Saúde para Todos’, em uma escola estadual em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Por meio da experiência apresentada, objetiva-se discutir sobre as possibilidades e as dificuldades da inserção de um movimento social no espaço escolar, juntamente com outros atores do campo da saúde, para estimular a participação social. Trata-se de uma intervenção direcionada à população jovem, no ambiente escolar, unindo vários segmentos: escola, Unidade de Saúde da Família, conselho de saúde, movimento social e universidades. Tendo a proposta da sistematização de experiências como método, a experiência é descrita por meio da sequência de atividades realizadas, baseadas na concepção de Bem Viver, que cultiva o pertencimento e o respeito à natureza. A revitalização da floresta abandonada da escola foi o eixo condutor das ações. A experiência demonstrou, por um lado, a dificuldade de estimular a participação social vinculada ao controle social e de praticar ações com forte interface entre escola e serviço de saúde. Por outro lado, possibilitou experimentar formas não institucionalizadas de participação, baseadas no exercício constante da cidadania e nas ações solidárias.
PALAVRAS-CHAVE Participação social; Promoção da saúde; Saúde ambiental; Estratégia Saúde da Família
ABSTRACT
This article focuses on the development of the intervention built within the research of the People’s Health Movement ‘Civil Society Engagement for Health for All’, in a public school in Porto Alegre, southern Brazil. Through this experience, it was aimed at discussing the possibilities and difficulties of the insertion of a social movement in the school environment, together with other actors in the health field, to stimulate social participation. This is an intervention directed at the youth, in the school environment, uniting several segments: school, Family Health Unit, health council, social movement and universities. Referenced on the proposal of the systematization of experiences as a method, the experience is described through the sequence of activities performed, based on the conception Buen Vivir, which cultivates belonging and respect for nature. The revitalization of the school’s abandoned forest was the guiding axis of the set of actions. This experience has shown, on the one hand, the difficulty of stimulating social participation linked to social control and of practicing actions with strong connection between school and health service. On the other hand, it made it possible to attempt non-institutionalized forms of participation, based on the constant exercise of citizenship and solidarity actions.
KEYWORDS Social participation; Health promotion; Environmental health; Family Health Strategy
Introdução
A concepção de participação social, forjada durante a efervescência política característica das décadas de 1970 a 1990 no País, constitui-se em um dos elementos estruturantes do Sistema Único de Saúde (SUS) e emerge alinhada a um conjunto de dispositivos que buscam fazer valer, na prática, a efetiva participação da sociedade nas políticas públicas. Nesse sentido, refere-se ao direito de cidadania e ao exercício de democracia, que, nas palavras de Escorel e Moreira, consiste no,
[...] exercício da democracia no cotidiano, o que exige permanente reflexão sobre suas regras, limites e possibilidades. É, portanto, um processo de aprendizagem que se exerce no respeito às diferenças e na ampliação dos espaços de convivência e debate público11007.
Nesse contexto, a participação social se vincula à perspectiva democrática que, desde o início, inspirou a construção da política pública de saúde brasileira. Saúde e democracia são, portanto, dimensões intrínsecas ao próprio SUS. Esse foi, inclusive, o tema da 8ª Conferência Nacional de Saúde (CNS)2, em 1986, considerada um marco na história da construção das conferências de saúde e do SUS.
A associação entre democracia e saúde mobilizou a sociedade brasileira na defesa da ampliação do conceito de saúde, elevando-a à condição de direito e servindo como ideia norteadora para a construção das bases do capítulo de seguridade social na Constituição Cidadã de 1988, dando materialidade legal para a ‘saúde como direito de todos e dever do Estado’. Trinta e três anos depois, em 2019, a realização da 16ª Conferência Nacional de Saúde, que foi chamada de ‘8ª + 8’, trouxe como tema central ‘Democracia e Saúde: Saúde como Direito e Consolidação e Financiamento do SUS’, procurando resgatar, atualizar e reafirmar as proposições da 8ª CNS.
As mais de três décadas que separam a 8ª da 16ª CNS apontam para a necessidade de encarar antigos desafios que permanecem atuais: os efeitos decorrentes da institucionalização, que acabam por restringir a participação social em saúde aos espaços dos conselhos e das conferências; a pouca autonomia com relação ao poder executivo; as inúmeras questões relacionadas ao tema da representatividade, entre outros. Outro desafio a ser enfrentado diz respeito à dificuldade de renovação dos participantes nas instâncias de controle social em saúde, uma vez que são sempre os mesmos que participam e, em sua grande maioria, já o fazem há muito tempo. Desde a década de 1990, quando as conferências e os conselhos ganharam sua institucionalidade legal, a adesão da sociedade tem sido feita quase que exclusivamente pelos mesmos sujeitos, herdeiros históricos de uma militância que se inicia ainda na década de 1960, com os movimentos sociais e eclesiais de base. Também contribui para isso a desmotivação dos jovens em participar desses espaços e a pouca expressividade de ações direcionadas especificamente a esse segmento populacional.
Ao mesmo tempo que fica tão clara a necessidade de renovação das representações, indaga-se sobre os elementos que têm contribuído para esse cenário. A falta de ‘espírito comunitário’, cada vez mais marcante nos dias de hoje, contribui para a fragilização dos vínculos sociais, assim como para o aumento da violência e a consequente retração na ocupação dos espaços públicos, sejam eles a rua, a praça, a escola ou a cidade de modo geral, acabando por impossibilitar os sujeitos de estabelecerem vínculos uns com os outros, de se reunirem em torno de uma causa ou de um projeto comum. Cabe aqui citar um trecho de Eymard Vasconcelos: “O aumento do consumo de bens, a agitação e a alienação, resultantes do sistema, dispersa as vontades, fragmenta os sonhos e acomoda”399, que resume bem o contexto de necessidade de (re)criação e agregação de vontades, e que tão bem se aplica nos dias atuais.
Conforme Gohn:
Os movimentos sociais são fontes e agências de produção de saber. O contexto escolar é um importante espaço para participação na educação. A participação na escola gera aprendizado político para a participação na sociedade em geral4347.
A autora destaca, ainda, que as aprendizagens no interior de um movimento social são múltiplas, durante e depois de uma ação específica, tanto para o grupo como para os sujeitos singulares4. Nessa perspectiva, surge a ideia de conciliar a autonomia e a criatividade do movimento social com o compromisso e a solidez da política pública, para trabalhar a motivação dos jovens para o exercício da participação social no cotidiano.
Assim, o objetivo deste artigo é compartilhar as experiências de um projeto de pesquisa/extensão cuja intenção foi sensibilizar e envolver a juventude nos espaços de participação social em saúde e estimular a formação de novos sujeitos políticos a partir da integração com as ações do Programa Saúde na Escola (PSE). Partindo de uma pergunta mais ampla - ‘Como o engajamento da sociedade civil pode ser mais efetivo na conquista da saúde para todos e todas?’ -, pretende-se, por meio da experiência descrita, discutir sobre as possibilidades e as dificuldades da inserção de um movimento social no espaço escolar, juntamente com outros atores do campo da saúde, para estimular a participação social.
Contextualização
A intervenção que será apresentada neste artigo foi concebida no contexto de uma pesquisa-ação do Movimento pela Saúde dos Povos - MSP (People’s Health Movement - PHM), uma rede de organizações e pessoas comprometidas com a realização do direito à saúde no mundo. Sua fundação, no ano 2000, deu-se mediante a conjunção de movimentos populares do mundo todo, preocupados com o distanciamento da meta ‘Saúde para Todos no ano 2000’, firmada na Conferência Mundial sobre Cuidados Primários de Saúde, em Alma-Ata, em 19785. O MSP, entre outras ações, está comprometido com a produção e a disseminação de conhecimentos que contribuam para um ativismo cada vez mais efetivo na busca da saúde para todos e todas. No marco desse compromisso, foi desenvolvido o programa de pesquisas ‘Civil Society Engagement for Health for All’ - ‘Engajamento da Sociedade Civil para a Saúde para Todos e Todas’.
Esse programa, com o objetivo de compreender como a sociedade civil pode ser mais efetiva na sua atuação em busca da saúde para todos e todas, em termos de mecanismos, processos e práticas, envolveu seis países de quatro continentes: Brasil, Colômbia, Itália, República Democrática do Congo, África do Sul e Índia. Cada país, organizado em torno do seu círculo do MSP, desenvolveu a pesquisa localmente, de acordo com as características e necessidades do contexto em que está inserido. A pesquisa se desenrolou em duas fases: a primeira, de exploração e compreensão do contexto de ativismo local (dimensão exploratória); e a segunda, de ação, trazendo propostas de intervenção para fortalecer o ativismo pela saúde (dimensão participativa).
No Brasil, três núcleos regionais do MSP participaram (Maranhão, Sudeste e Porto Alegre), cada um pondo em prática a pesquisa de acordo com a sua realidade. Em Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, a pesquisa teve como objeto a participação social na saúde como expressão de ativismo. Na primeira fase, investigando o contexto do controle social, a exploração prévia com atores-chave evidenciou a necessidade de sensibilizar e envolver a população jovem nos espaços de participação social. Dessa forma, definiu-se o foco da segunda fase, que se constituiu na construção de uma intervenção no espaço escolar, que será apresentada neste artigo. O local da intervenção foi escolhido em função da disponibilidade e do interesse das pessoas que estariam envolvidas, levando em conta as relações construídas com os sujeitos da pesquisa na primeira fase. O projeto foi apresentado inicialmente para a equipe de uma das Unidades de Saúde da Família (USF), que havia manifestado especial interesse em participar. Em conjunto com a equipe da USF, tendo o PSE como ação de base, escolheu-se uma escola estadual do território, a partir da avaliação de que havia afinidade com a proposta dos autores de promover saúde e cidadania com atividades de caráter colaborativo e que privilegiariam a participação ativa da comunidade escolar.
Para desenvolver a intervenção, partiu-se de marcos conceituais alinhados com os ideais do MSP como um todo, especialmente com a rede latino-americana do Movimento. O primeiro deles é o Bem Viver, do espanhol Buen Vivir, ou Sumak Kawsay6, expressão que vem dos povos ancestrais da América Latina, segundo a qual o ‘sentir-se bem’ se traduz como um sentimento de pertencimento e de respeito à natureza, à Mãe Terra, e a toda forma de vida em um ecossistema onde o ser humano é a vida no interior da vida. É uma vivência cidadã para com a natureza e, também, um projeto civilizatório ou uma utopia em permanente recriação. Nessa concepção, as relações entre os seres humanos e a natureza podem ser de respeito e de cuidado, contradizendo a prática hegemônica de hoje em dia, marcada pelo utilitarismo, pela competição e pela ganância.
O conceito de permacultura, um dos eixos principais das ações desenvolvidas, vem alinhado ao do Bem Viver. Criado pelos australianos Bill Mollison e David Holmgren, nos anos 1970, é um conjunto de conhecimentos de sociedades tradicionais que traz técnicas inovadoras, com o objetivo de criar uma ‘cultura permanente’, sustentável, baseada na cooperação entre os homens e a natureza. Um dos princípios fundamentais da permacultura é o respeito pela sabedoria da natureza, que guia o desenvolvimento de um sistema próprio e adequado para cada lugar7,8. Da estratégia de observar e copiar a natureza, podem surgir inúmeras técnicas para planejar a sustentabilidade de espaços verdes, como a pequena floresta da escola onde o trabalho aconteceu.
Métodos
Para subsidiar o desenrolar da construção e da implementação da intervenção na escola, optou-se pela proposta da sistematização de experiências, elaborada por Jara9, cujas características principais estão apresentadas no quadro 1. Todas essas características puderam ser, de alguma forma, experimentadas em diferentes momentos, considerando as possibilidades e as dificuldades impostas pelo processo, o que está sintetizado no quadro 1.
Características da sistematização de experiências segundo referencial teórico de Jara (2013)
Este trabalho foi desenvolvido com a intenção de integrar as ações do PSE, política intersetorial instituída em 2007 pelos Ministérios da Saúde e da Educação10. O PSE tem como objetivo contribuir para a formação integral dos estudantes por meio de ações de promoção, de prevenção e de atenção à saúde, a fim de enfrentar as vulnerabilidades que comprometem o pleno desenvolvimento de crianças e de jovens da rede pública de ensino11. As ações do PSE nas escolas são realizadas pelas equipes de saúde da família do território correspondente. Assim, desde o planejamento da intervenção, estabeleceu-se a interface com a USF Santo Alfredo, localizada no distrito sanitário Partenon. A seguir, foram criados projetos de extensão universitária, envolvendo professores e estudantes de duas universidades públicas: Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (Uergs) e Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Ambos os projetos foram aprovados pelas suas respectivas Câmaras de Extensão (códigos: 899, na Uergs; e 36283, na UFRGS).
A seguir, são apresentadas as atividades realizadas em um processo que se desenrolou durante dois anos e meio, de setembro de 2016 a dezembro de 2018.
Uma intervenção na escola com a escola
A escola em questão, localizada em uma região de alta vulnerabilidade social, abrange o ensino fundamental, do primeiro ao nono ano. Está em funcionamento desde 1985, possui 260 alunos e 24 funcionários. Segundo dados do Censo de 2017, possui oito salas de aula, quadra de esportes aberta, pracinha de brinquedos (interditada), banheiros, cozinha, refeitório, sala de professores e direção. Suas dependências incluem uma grande área externa, pouco explorada, com uma pequena floresta, que a comunidade escolar chama de mato.
O trabalho foi sendo construído na medida em que se mostrava oportuno interligar os conhecimentos e práticas sobre cidadania, direitos humanos, Bem Viver, permacultura, alimentação saudável e promoção da cultura de paz. A partir daí, as conexões estabelecidas poderiam gerar reflexão sobre outras formas possíveis de se viver na atual sociedade, que incentiva o consumismo e o individualismo12.
As rodas de conversas com as professoras e a direção da escola começaram em março de 2017. Durante três meses, debateu-se sobre as possibilidades de ação conjunta, considerando a diversidade de vivências que a presença de um movimento social poderia agregar no espaço escolar. O ‘Dia da Solidariedade’, realizado na escola em maio daquele ano, foi o primeiro encontro do grupo de pesquisa/intervenção com a comunidade escolar e com o Conselho Local de Saúde (CLS). As atividades nesse dia incluíram um mutirão para limpeza do pátio e o registro em vídeo de manifestações de pais, alunos, funcionários e professores sobre as suas expectativas e desejos com relação à maior participação coletiva no cuidado com a escola. A partir disso, delineou-se o caminho para uma primeira ação: a revitalização da floresta da escola como espaço de ensino/aprendizagem.
As ações que compuseram a intervenção tiveram como foco a compreensão de que a saúde humana e a saúde do planeta são uma só. Alem disso, reforçamos a abordagem interdisciplinar de saberes, bem como a sensibilização para a utilização de plantas medicinais, permacultura e compostagem. A solidariedade, a cooperação no trabalho em equipe e a valorização do consumo de alimentos saudáveis foram elementos presentes em todas as atividades. No quadro 2, em ordem cronológica, estão apresentadas as atividades realizadas, seus objetivos e os atores envolvidos. Em outra publicação, uma descrição mais detalhada de cada atividade pode ser encontrada13.
Atividades desenvolvidas na escola, detalhando período de realização, participantes, objetivos e ações
Para pôr em prática as ações de revitalização da floresta, foi agregado à equipe um colaborador geógrafo e especialista em permacultura, que trouxe consigo dez anos de experiência nas escolas públicas da cidade. O ato de resgatar a área verde abandonada e transformar a floresta da escola em sala de aula oportunizou, na prática, o cultivo e o uso de plantas medicinais, bem como a utilização coletiva de um espaço contemplativo e de interação. Assim, o contato com a floresta se ampliou, por meio de vivências diversas, como oficinas de introdução à permacultura e à agrofloresta, princípios de sustentabilidade, cultivo de Plantas Alimentícias Não Convencionais (Pancs) e construção de composteiras (figuras 1 e 2). As oficinas de teatro, baseadas no livro ‘Dom Lixote e o Dragão que cospe lixo’14, que aborda a sustentabilidade e o respeito à natureza, reforçaram, os aspectos trabalhados na floresta.
Plantio de temperos, ervas e verduras na escola. À direita, visualiza-se uma das composteiras construídas pelos estudantes e pelo permacultor
Reflexões e aprendizados
A experiência do desenvolvimento dessa intervenção na escola oportunizou muitas indagações, em especial: o que convoca as pessoas a estarem juntas nos dias de hoje? Que outros modos de estarmos juntos temos experimentado? Quais são os fios que nos ligam para continuarmos vivendo em comunidade?
Pelo exposto, pode-se considerar que o processo participativo que se busca construir operou como um dispositivo de criação de vontades e de promoção de saúde. A ideia de criação de vontades a que se refere aqui está relacionada com as condições que tornaram possível, a partir do esforço de um conjunto de instituições (escola, movimento social, universidades e serviços de saúde), a abertura de espaços para novas produções e aprendizados dentro de uma escola estadual que, assim como a grande maioria no Brasil, sofre os efeitos do sucateamento de sua estrutura física, da carência e desvalorização de professores, e do desinvestimento na qualificação do corpo docente.
Na esteira do desmanche das políticas públicas, objetiva e subjetivamente, estudantes, pais, professores, trabalhadores da saúde e comunidade escolar como um todo também são afetados. Na interface saúde-educação, é possível perceber que boa parte da demanda de cuidado que chega até o serviço de saúde provém dos espaços escolares. Questões como violência, uso abusivo de drogas, epidemia de obesidade infantil, entre outras, apontam para a importância da atuação conjunta da saúde e da educação no enfrentamento desses problemas. Tendo ciência dessa dinâmica, a intervenção procurou impulsionar processos de invenção, criação e ousadia na relação com o espaço comum da escola, acionando um processo participativo de construção, informação, aprendizagem e crescimento. A partir da experiência envolvendo saúde e educação no espaço de uma escola pública, o pertencimento compartilhado em torno de um ‘com(um)’ foi tramando outros sentidos para o que foi vivenciado em conjunto.
Foi uma grande surpresa perceber, na primeira visita, que na escola escolhida havia uma área verde com natureza abundante e viva dentro dos seus muros, mas que, por estar abandonada, causava desprezo e até medo. Era perigoso, quiçá proibido, entrar na floresta. Porém, o que se viu, no decorrer do trabalho, foi um santuário com enorme potencial de abrigar, em toda a sua diversidade, muitos ensinamentos, diversão e resgate da cultura ancestral. E assim se abriu a possibilidade de uma agrofloresta, uma sala de aula verde, enfim, um espaço mágico de aprendizagem e vivências. A partir daí, indagou-se: quem sabe um trabalho cooperativo em torno da natureza poderia ser dispositivo de aprendizagem para a participação social?
Ao refletir sobre o eixo orientador que embasaria as atividades, concluiu-se que o conceito de Buen Vivir permitiria exatamente isto: um novo paradigma civilizatório, onde a natureza não seja considerada como algo externo ou como uma ameaça, senão como parte da própria dinâmica da vida e condição de existência futura15. Um contraponto ao modelo atual de desenvolvimento, onde nada - a água, as florestas, os alimentos, a vida - escapa dos circuitos do capital.
O ponto de partida foi despertar a sensibilidade e o interesse das crianças pela natureza que as cerca. Investiu-se na experiência de levar toda a escola para conhecer uma das mais tradicionais e reconhecidas hortas comunitárias de Porto Alegre, resgatando a sabedoria ancestral presente na concepção de Bem Viver. Essa atividade possibilitou uma abordagem interdisciplinar de saberes, oportunizando um olhar diferenciado sobre a natureza, os seres vivos e a saúde, e que, na sequência, permitiu aos professores seguirem trabalhando em sala de aula os conceitos trazidos pela vivência, como agroecologia, alimentação saudável, ervas medicinais e outros temas relacionados ao Bem Viver.
A etapa seguinte foi planejar coletivamente a apropriação e o pertencimento da comunidade escolar à proposta que surgia. Assim, a atividade de criação de um nome e de um mascote para o projeto contou com 43 desenhos inscritos e produziu uma dinâmica criativa e participativa, onde todos os estudantes da escola exercitaram o seu voto e se envolveram ativamente. O nome escolhido pelos estudantes para o projeto foi ‘Nosso mundo mais verde’, e o desenho do mascote foi um baldinho com instrumentos de jardinagem (figura 2).
O contato com a floresta se ampliou por meio de oficinas de introdução à permacultura e à agrofloresta, de argila (figura 3), de cultivo de Pancs, de compostagem e construção de composteiras, de Qigong, entre outras. A redescoberta de um microambiente tão rico no espaço escolar trouxe entusiasmo aos escolares, professores e pesquisadores. Muitos alunos, pela primeira vez, puderam mexer na terra. A alegria de plantar, podar e limpar a área era demonstrada pela disposição em participar das atividades desenvolvidas dentro da floresta. Bastava um convite para surgirem muitos voluntários para colaborar em alguma atividade, entre as tantas que foram realizadas.
As oficinas abriram espaço para o exercício da participação e da cidadania, que, de forma geral, ainda são pouco experimentadas no ambiente escolar. É, no entanto, nesse espaço, construído em conjunto, que o senso de pertencimento coletivo dos jovens pôde despertar, abrindo caminho para a alegria, a criatividade e o protagonismo na participação social. Foram oportunizadas experiências inéditas, despertando nos sujeitos envolvidos novos sentidos e nutrindo a vontade de estarem juntos.
A participação à qual se faz referência ao analisar esse processo vai muito além de simplesmente fazer parte de uma atividade coletiva. Os jovens, ao vivenciarem um processo colaborativo, participam constantemente de situações em que todos são estimulados a sugerir, opinar, contribuir. Ao terem parte ativa e liberdade nas atividades realizadas na escola, percebem que sua participação é de fundamental importância, mas não menos importante que a participação do outro. Aprendem que quanto maior for o empenho coletivo, tanto melhor e mais gratificante será o processo como um todo16. A realização da atividade do teatro, por exemplo, além de promover a ampliação cultural e o aperfeiçoamento pessoal, estimulou a troca de experiências, a busca de soluções para situações-problema, a celebração da diversidade e o espírito colaborativo entre os jovens, fundamentais em uma comunidade escolar saudável.
Em sentido mais amplo, o conceito de juventude pode ser compreendido como um momento singular do ciclo de vida, simultaneamente às condições sociais e culturais específicas nas quais o sujeito se encontra17. Muito se tem comentado a respeito do baixo engajamento dos jovens nas questões sociais e políticas que os afetam. Entre os fatores que podem estar contribuindo para tal situação, podemos considerar a inadequação das práticas e dos espaços tradicionais e a sua incapacidade de dialogar com as necessidades reais desse grupo específico, o que convoca a considerar outras e novas formas de comunicação, organização e mobilização12. Enquanto sujeitos de direito,
Adolescentes e jovens têm o desejo de ser escutados e a necessidade de serem reconhecidos em suas capacidades. [...] eles precisam ser vistos de modo concreto como cidadãos, capazes de posicionamento nos diversos níveis do cotidiano em que estão imersos. Um grande número de pessoas jovens tem ideal de transformar a sociedade em algo mais humano e justo, mas não tem ideia de como concretizá-la, nem recebe nenhum incentivo neste sentido1852.
Nesse sentido, Boghossian e Minayo17 retomam o conceito forjado pelo educador e ativista na área da infância e adolescência, Antonio Carlos G. da Costa. Dizem as autoras:
Em sua concepção, o protagonismo pressupõe a criação de espaços e mecanismos de escuta e participação dos jovens em situações reais na escola, na comunidade e na vida social, tendo em vista tanto a transformação social como sua formação integral17416.
A perspectiva do protagonismo ou da participação dos jovens consiste, portanto, em promover junto a eles o desenvolvimento de autonomia, autoestima, assertividade e projetos de vida. Além disso, a participação juvenil se configura como uma estratégia potente de promoção da saúde e prevenção da violência, do abuso de drogas e das infecções sexualmente transmissíveis/Aids.
Ainda, com base nas características da sistematização de experiências (quadro 1)9, pode-se afirmar que o trabalho realizado oportunizou uma melhor compreensão da prática, para a partir dela gerar abertura para novas experiências Também oportunizou uma reconstrução histórica de todas as atividades realizadas, junto com um exercício reflexivo constante sobre a forma como os processos se deram, razões e sentidos existentes, consequências e causas, contradições, coerências e incoerências, continuidades e rupturas, vínculos e ausências. Ao ordenar e recuperar o acontecido em nossa experiência particular, somos capazes de interpretá-lo e compreendê-lo em um contexto histórico e social que nos abarca, mergulhando na conjuntura política atual e na situação da participação social. Situação essa que se caracteriza como ameaçadora para a democracia e a participação das pessoas nas esferas de decisão. Pode-se citar como exemplo a publicação pelo Governo Federal, em abril de 2019, do Decreto nº 9.759, que extingue e limita a atuação de conselhos que preveem participação da sociedade civil19.
As reflexões críticas oportunizadas ao longo de todo o processo geraram aprendizados, a partir da identificação de problemas, questionamentos, tensões e contradições. As filmagens e os registros das conversas em forma de diário, as oficinas, a construção de uma encenação teatral, a elaboração (ainda inacabada) de um vídeo, são materiais ricos que podem ser utilizados em outras experiências. Nesse sentido, existe tanto a perspectiva de seguir atuando na mesma escola, como de desenvolver um novo trabalho em outra escola pública.
Os participantes, incluindo estudantes, professoras, diretora da escola, integrantes do MSP, profissionais da USF, conselheiros de saúde, universitários e a comunidade em geral, cresceram e se fortaleceram com o processo, onde as contribuições de cada um se articularam e se somaram para produzir algo relevante para o conjunto das pessoas. Isso caracteriza a ação coletiva e participativa. Como exemplo, a construção das composteiras e o uso dos baldinhos envolveram, além dos estudantes, suas famílias, funcionários da escola, entre outras pessoas, gerando conhecimento e prática para além do que havia sido inicialmente planejado. Acreditamos em exemplos como esse, onde a participação comunitária opera como agente de transformação, onde a busca de um modo de vida mais solidário e cooperativo pode ser o disparador da mudança. Buscando mobilizar o protagonismo juvenil na construção e no fomento à participação social na saúde é que se constrói a intervenção, inspiradora para o enfoque educativo dos movimentos sociais. Além de estar presente nas atividades propostas, o envolvimento dos integrantes do MSP trouxe entusiasmo para praticar novas formas de aprendizagem, constituindo-se em efeito pedagógico multiplicador. Nesse sentido, vem à tona a experiência da extensão universitária, outro potente elemento dessa experiência:
A extensão universitária é o espaço mais livre para a gestação de novas práticas pedagógicas contra hegemônicas. É o lugar para o movimento social dentro da universidade. O novo não é gerado apenas a partir da reflexão de grandes intelectuais. Pelo contrário, é fruto principalmente de movimentos sociais3102.
Assim, fica evidente a riqueza de agregar diferentes formas de produzir conhecimento a partir das vivências de diferentes sujeitos, que, na sua diversidade, convergiram neste projeto, em construção de saberes no e para o coletivo. A escola e sua comunidade, a universidade, a unidade de saúde, o conselho de saúde, o movimento social, todos esses grupos e espaços podem aproveitar o que foi por eles produzido. A riqueza do trabalho em rede também torna possível o redimensionamento do agir local no pensamento e na articulação globais. Essa ponte entre local e global encontra, na parceria com os movimentos sociais e com as universidades, uma potência enorme.
Conforme Gohn4, as aprendizagens com os movimentos sociais podem ser de várias ordens: prática (como se organizar, como participar, como se unir, que eixos escolher), política (conhecer quais são seus direitos), cultural (saber quais elementos constroem a identidade do grupo), reflexiva (sobre suas práticas, geradora de saberes) e ética (a partir da vivência ou observação do outro, centrada em valores como bem comum, solidariedade e compartilhamento), entre outras. Ao vivenciar a experiência aqui relatada, pôde-se operar diretamente com essas aprendizagens.
No entanto, foram muitas as dificuldades enfrentadas. No desenvolvimento das atividades, na prática, o MSP e as universidades acabaram assumindo um papel muito central, uma vez que os demais grupos não foram tão proativos, ficando a execução das ações na dependência da disponibilidade dos primeiros. O desejo era de que a USF e a escola se tornassem mais autônomas para dar andamento ao trabalho, mas isso não aconteceu. Foi notável a sobrecarga dos profissionais da USF, que não conseguiam sair da unidade para participar das atividades na escola, devido às demandas assistenciais dentro do serviço. Isso reflete uma realidade difícil das equipes das USFs, que compromete o seu envolvimento em atividades coletivas e comunitárias, incluindo o PSE. Nesta experiência específica, houve receptividade e entusiasmo da equipe de saúde, mas esta não teve condições concretas de dar sequência ao trabalho planejado.
Destaca-se, também, que nem todas as pessoas envolvidas participaram da sua sistematização, o que representa um desafio imenso no cenário em que se insere esta intervenção. Mas, justamente, também é um sintoma da falta de vontades e da desagregação encontradas ao chegar à escola, e que também precisa de tempo para se transformar no almejado protagonismo coletivo. Na escola em questão, no início do trabalho, os exemplos de participação se reduziam a ações isoladas de pais/mães de estudantes, usualmente com o objetivo de superar carências de infraestrutura e deficiências econômicas da escola. No entanto, a concepção proposta na relação escola-comunidade foi ampliando o espectro dos sujeitos em ação, pois pressupunha o envolvimento de pais, professores, gestores, funcionários, representantes de associações de bairro e movimentos sociais. Porém, esse envolvimento ainda se mostrou incipiente e muito dependente da presença do MSP e das universidades. Também o contexto da escola, caracterizado por longos períodos inativos - férias, greves - e mudança de direção, além do já referido sucateamento, não favoreceu a implicação dos sujeitos de forma mais perene.
Com relação à participação social, nesta experiência, a conexão entre a escola e os espaços institucionalizados de participação social não aconteceu, o que levou à reflexão sobre outras formas de participação advindas do protagonismo dos sujeitos envolvidos nas ações coletivas do cotidiano, e da experimentação de formas não institucionalizadas de participação baseadas no exercício constante da cidadania e nas ações solidárias. Nesse sentido, a inserção do movimento social na escola abriu espaço para a criatividade, apresentou novos ares e possibilidades, ampliando a compreensão dos conceitos de saúde e participação.
Considerações finais
O conjunto de ações realizado no âmbito da pesquisa do MSP ‘Engajamento da Sociedade Civil para a Saúde para Todos’ em uma escola estadual em Porto Alegre demonstrou que a escola pode ser um lugar significativo para o exercício e o estímulo à participação social, por meio de atividades coletivas que proporcionaram vivências solidárias e de exercício da cidadania. Ainda, com base nesta vivência, observou-se que a participação social é um modo de agir que se aprende/experimenta em diversos âmbitos da vida e que requer tempo para ser cultivado. O desafio de fomentar processos de cidadania, participação e democracia capazes de formar cidadãos atuantes não se faz da noite para o dia e envolve, tal como no trabalho com a natureza, um tempo de plantar e de colher, que exige dedicação, esforço e cuidado coletivo.
Por fim, levanta-se a ideia de que a participação social se insere no conceito de saúde conectado com as concepções do Bem Viver. Assim, é possível entender a participação a partir de ações coletivas no cotidiano, dando maior ênfase ao exercício cidadão permanente, desvinculando-a unicamente das instâncias de controle social, espaço ainda muito marcado pelas formas institucionalizadas de atuar. Acredita-se que, por meio de ações no microespaço da escola, é possível fazer germinar a atuação política dos jovens independentemente dos espaços que venham a ocupar na sociedade.
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Suporte financeiro: não houve
Referências
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
17 Ago 2020 -
Data do Fascículo
Jan 2020
Histórico
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Recebido
03 Ago 2019 -
Aceito
29 Nov 2019