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Uma perspectiva realista do direito: contra o monismo jurídico, a abstração e o insulamento teórico

TAMANAHA, Brian. A realistic theory of law. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2017

Em 2019, o livro A realistic theory of law, de Brian Tamanaha1 1 Brian Tamanaha é professor da Faculdade de Direito da Universidade de Washigton, St. Louis, Missouri. , recebeu o prêmio de melhor publicação do biênio 2016-2018 pela Associação Internacional de Filosofia do Direito e Filosofia Social (Internationale Vereinigung für Rechts- und Sozialphilosophie - IVR). Nesta obra, Tamanaha estrutura argumentos publicados em outros trabalhos (Tamanaha, 1997; 2001; 2004; 2006; 2008) para propor o que denomina de uma “teoria realista do direito”, partindo do diagnóstico de que as teorias vinculadas ao positivismo jurídico analítico influenciaram uma compreensão de direito que acaba cedendo demais às pretensões de abstração, universalização e especialização teórica, motivando-se pelo argumento central de que o direito está enraizado na história da sociedade e é continuamente remodelado de acordo com os fatores sociais de seu tempo.

O autor sustenta que as produções que tratam o direito em seus contextos histórico-sociais2 2 Tamanaha (2017, p. 29) as denomina “social legal theories”. foram, de certa forma, marginalizadas das teorias do direito mais difundidas no ocidente, dando lugar a uma hegemonia das concepções relacionadas ao jusnaturalismo ou ao positivismo jurídico entre os séculos XVIII e XIX - compartilhando a tarefa de abstração do direito em relação aos contextos histórico-sociais para aprofundar a proposta de elaborar teorias do direito como constituindo “verdades científicas”; ou seja, teorias que pretendem ser atemporais e universais (Tamanaha, 2017: 57-81).

Essa postura excludente resultou em um insulamento teórico do direito de outras áreas das ciências humanas e, consequentemente, dos conhecimentos empíricos e históricos. Tamanaha propõe a adoção e continuidade de um ramo do pensamento sócio-jurídico que se acomode ao fenômeno jurídico da forma como ele se apresenta nos dias de hoje, expondo o que significa para uma teoria do direito contemporâneo levar em conta elementos e conceitos que permitam a observação de como o direito se apresenta em diferentes contextos histórico-sociais, tendo como objetivo realizar uma reparação do consequente “descolamento” com a realidade social e atender à necessidade de “atualização” do conhecimento jurídico em relação aos contextos sociais específicos e contemporâneos.

A sua proposta, portanto, é de um ponto de vista teórico que localiza o direito na história e na sociedade, sendo os respectivos aparatos institucionais estatais apenas uma das possibilidades de compreensão dentre outras. Para levá-la a efeito, Tamanaha organiza um conjunto de reflexões que o ocuparam nos últimos anos, formulando as bases histórico-sociológicas que o permitem abordar o direito mais como uma forma de empreendimento social do que como uma produção técnica e institucional centrada no aparato estatal, ou em um centro monolítico de produção normativa.

A sua imagem de direito o considera como empreendimento social utilizado por diferentes grupos para desenvolverem suas comunidades entre as chaves do “poder” e do que seria “ideal” em suas realidades concretas; chaves estas que estão em constante conflito. Assim, para Tamanaha (2017: 194-198), o direito consiste em um instrumento social disponível em diferentes arranjos, formatado socialmente e sempre passível de modificações, representando a necessidade de atingir determinados objetivos sociais definidos dentro da realidade histórico-social de comunidades específicas.

Dentre as diferentes vertentes teóricas que se ocuparam em definir “o que é o direito” - do jusnaturalismo ao positivismo jurídico analítico, passando pelas escolas do realismo jurídico, law and economics, critical legal studies, critical feminism, critical race theory e do pragmatismo jurídico -, Tamanaha considera que essas vertentes teóricas, mesmo expondo preocupações e pontos de vista particulares e às vezes compartilhados, por mais que tenham proposto importantes contribuições críticas, falharam na tarefa de tratar o direito em sua totalidade histórico-social.

O autor se posiciona, então, em contraponto às teorias clássicas da centralidade estatal e monistas e, também, às teorias críticas que acabam por difundir uma imagem do direito limitada às características dos Estados nacionais, apresentando elementos que permitam ampliar o escopo da teoria do direito para produzir conhecimento efetivamente conectado com a realidade e as mudanças sociais de contextos sociais determinados.

Importante registrar que o sentido da “teoria realista do direito” proposta pelo autor não é aquela da visão cética do papel dos julgadores da corrente clássica do Realismo Jurídico norte-americano, que tem como expoentes nomes como Oliver Wendell Holmes, Karl Llewellyn e Jerome Frank (Tamanaha, 2017: 2). Tamanaha elabora sua análise de forma mais ampla, incluindo o ato de julgar, mas não se limitando a ele, tendo como base geral determinados estudos vinculados à sociologia e à história do direito que influenciaram a corrente do realismo jurídico. Ao se valer, especificamente, da noção de que o direito é sujeito a influências históricas e sociais, devendo ser compreendido em termos de suas funções, objetivos e consequências, tendo, portanto, noções do pragmatismo clássico como base (Tamanaha, 2017: 2-3), a sua concepção de realismo jurídico é a de que o direito - incluindo as concepções ao redor do pluralismo jurídico3 3 No livro recém-publicado Legal pluralism explained: history, theory, consequences, Tamanaha (2021) indica três principais ondas ou correntes teóricas, do pluralismo jurídico que foram desenvolvidas durante o século XX, reunindo as contribuições mais influentes sobre o tema. O autor desenvolve duas concepções de pluralismo jurídico, uma “abstrata” e outra “folk”, indicando os problemas da primeira e sua preferência particular por um pluralismo jurídico “folk”, próximo da proposta de John Griffiths (Tamanaha, 2021: 169-208). - deve ser compreendido adotando uma posição “não essencialista” (Tamanaha, 2008: 391), buscando acessar “o que as pessoas dizem sobre o direito, o que pensam sobre o direito e o que fazem com o direito” (Tamanaha, 2017: 2).

Para estruturar a sua proposta de “teoria realista do direito”, Tamanaha encontra nas obras de Montesquieu, Henry Maine, Rudolf von Ihering, Eugen Ehrlich e Max Weber considerações teóricas - “social legal theories” - que privilegiam a produção de teorias do direito centradas na sociedade, como ele mesmo quer oferecer. Entretanto, esses autores - e outros contemporâneos, que trabalharam em linhas semelhantes - foram em diferentes graus ignorados ou abandonados pelas teorias do direito mais difundidas, que se apresentavam cada vez mais abstratas e especializadas, tendo seus focos voltados às legislações dos Estados nacionais, retirando o direito do campo social para colocá-lo sob dependência e controle deste aparato institucional. Sua proposta maior é trazer à luz aspectos que foram negligenciados pela postura teórica excludente (Tamanaha, 2017: 36-37). Na medida em que expõe a sua teoria realista do direito, Tamanaha também apresenta características que evidenciam o “não realismo” daquelas que se contrapõem, tendo como seus alvos principais, por exemplo, o positivismo jurídico analítico.

De forma semelhante às contribuições que trabalham ao redor da ideia de pluralismo jurídico, Tamanaha (2017: 194) orienta-se por um conceito de direito “folk” - uma postura teórica que considera que o “direito (e suas traduções) é o que qualquer grupo social convencionalmente assim o considere”4 4 Em outra passagem: “My conventionalist approach explicitly includes phenomena conventionally labeled ‘law’ in other languages - droit, recht, and so on. If multiple terms in a local vernacular are translated as ‘law’, and multiple phenomena are conventionally labelled with these terms, then yes, they all count as law” (Tamanaha, 2017: 75). . Sua abordagem metodológica para considerar uma ordem normativa como sendo ou não direito é o que denomina de “conventionalist identification of law” (Tamanaha, 2017: 73-77). O critério convencionalista de Tamanaha é que a definição de uma ordem normativa como sendo ou não direito depende, primeiramente, da existência de uma convenção social que assim a reconheça. Neste sentido, o direito pode apresentar-se em qualquer forma e servir a qualquer função que os práticos do direito e as pessoas em um determinado espaço social “convencionalmente reconheçam” (Tamanaha, 2017: 150).

A ideia de “reconhecimento social do direito”, ou seja, de reconhecer uma ordem normativa como tendo eficácia na regulação social - e, assim, podendo ser chamada de direito -, dá-se, segundo o autor, em três níveis distintos: em primeiro lugar, a comunidade reconhece como existentes e válidas certas normas sociais; segundo, a comunidade reconhece a existência de determinadas pessoas “oficiais” do direito, que devem realizar tarefas para a manutenção e a evolução dessas normas sociais; por último, os “oficiais” consideram o que conta como sendo as normas sociais válidas ou não. Nas teorias monistas tradicionais do direito, esses três níveis coincidem para a mesma ordem normativa - a “jurídica”, “estatal” ou “oficial -, mas Tamanaha quer indicar que esse não é o único arranjo possível (2017: 196)5 5 Tamanaha ilustra os três níveis de reconhecimento social do direito, indicando os seguintes exemplos: “Attention must be paid to three levels of social recognition of law. The first level is when a community recognizes the existence of legal rules like property rights, marriage, etc. Conventionally recognized beliefs and actions oriented to these rules make them real. This is how customary law operates through community recognition, notwithstanding the absence of an organized legal system. A second level is conventional recognition of legal officials - recognition that certain people or positions possess legal authority to create, enforce, and apply legal norms. A third level, emergent out of the second, is legal officials’ recognition of what counts as valid legal rules and actions. The coordinated conduct of legal officials produces institutional legal actions and facts” (Tamanaha, 2017: 196). . Na realidade, em uma perspectiva teórica que reconheça a sociedade e o direito como constituídos por múltiplas ordens normativas, é perfeitamente plausível e até esperado que esses níveis não coincidam. As normas jurídicas operam no espaço social ao lado e de forma dependente de normas, instituições e modos de regulação de natureza diversa. Como afirma Tamanaha (2017: 196), o “grosso caldo normativo social” tem muitos ingredientes - costumes, regras morais ou de etiqueta, hábitos, práticas comuns, linguagens, conceitos, que estão convencionalmente em atividade e que sejam reconhecidos como válidos na concepção “folk” -, ingredientes estes que podem exercer até mais influência social concreta do que o direito estatal, e que se influenciam mutuamente.

A abordagem proposta por Tamanaha na obra A realistic theory of law considera, portanto, que o direito está enraizado na história da sociedade, sendo continuamente remodelado de acordo com os fatores sociais de seu tempo e as condições ao seu redor, bem como com os interesses, as relações e os conflitos individuais e coletivos. O direito é compreendido nesta obra como produto de desenvolvimentos históricos produzidos por relações intersubjetivas e práticas sociais. Ainda hoje, podem ser encontrados nos desenhos regulatórios jurídicos ou sociais resíduos e legados das formas mais ancestrais de direito e de regulação social, que interagiram e se transformaram em meio a outras formas de normatividades presentes no mesmo espaço social, em um processo constante de interação e disputa. Dessa forma, o direito se apresenta em formas múltiplas coexistentes e mutuamente influenciáveis. Não há, portanto, qualquer razão para pensar que estamos em um estágio avançado ou em um ponto final de mudança do direito, ou ainda que toda a sociedade está em uma trajetória uniforme e inevitável de desenvolvimento do direito. O direito é sujeito a influências sociais e históricas, é altamente variável, e está continuamente em processo de mudança e desenvolvimento (Tamanaha, 2017: 117). Dessa forma, a resposta à pergunta “o que é o direito?” irá sempre variar e ser dependente das realidades concretas, sendo mesmo desejável que assim o seja.

Observar o direito evitando o seu caráter excludente, valorizando o direito produzido pela sociedade é tarefa que leva a diferentes desafios. Uma teoria que assim se posicione deverá propor elementos para arranjos institucionais que sejam capazes de evitar a exclusão e violências entre ordens normativas, orientando-se para uma visão do direito que seja inclusiva e democrática. É possível afirmar que a obra de Tamanaha contribui para uma agenda de pesquisa acerca desses objetivos. Ao propor uma “teoria realista do direito” que parta do pressuposto da multiplicidade das ordens normativas em funcionamento e de sua necessária vinculação e localização com o contexto sócio-histórico, afastando-se, portanto, das características da abstração e da universalização que “descolam” o direito da realidade social e, também, buscando reduzir o insulamento teórico do direito com outras áreas das ciências humanas e sociais, em uma perspectiva interdisciplinar. A proposta de Tamanaha, portanto, pode ser considerada como ponto de partida com potenciais para uma agenda de pesquisa que mobilize temas relevante ao redor dos elementos de sua “teoria realista do direito”.

Referências

  • TAMANAHA, Brian Z. Legal pluralism explained. History, theory, consequences. New York: Oxford University Press, 2021.
  • ______. Understanding legal pluralism: past to present, local to global. Sydney Law Review, v. 30, p. 375-411, 2008.
  • ______. Law as a means to an end: threat to the Rule of Law. New York: Cambridge University Press, 2006.
  • ______. On the Rule of Law: history, politics, theory. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2004.
  • ______. A general jurisprudence of law and society. Oxford, UK: Oxford University Press, 2001.
  • ______. Realistic socio-legal theory: pragmatism and a social theory of law. Oxford, UK: Clarendon Press, 1997.
  • 1
    Brian Tamanaha é professor da Faculdade de Direito da Universidade de Washigton, St. Louis, Missouri.
  • 2
    Tamanaha (2017, p. 29) as denomina “social legal theories”.
  • 3
    No livro recém-publicado Legal pluralism explained: history, theory, consequences, Tamanaha (2021)TAMANAHA, Brian Z. Legal pluralism explained. History, theory, consequences. New York: Oxford University Press, 2021. indica três principais ondas ou correntes teóricas, do pluralismo jurídico que foram desenvolvidas durante o século XX, reunindo as contribuições mais influentes sobre o tema. O autor desenvolve duas concepções de pluralismo jurídico, uma “abstrata” e outra “folk”, indicando os problemas da primeira e sua preferência particular por um pluralismo jurídico “folk”, próximo da proposta de John Griffiths (Tamanaha, 2021TAMANAHA, Brian Z. Legal pluralism explained. History, theory, consequences. New York: Oxford University Press, 2021.: 169-208).
  • 4
    Em outra passagem: “My conventionalist approach explicitly includes phenomena conventionally labeled ‘law’ in other languages - droit, recht, and so on. If multiple terms in a local vernacular are translated as ‘law’, and multiple phenomena are conventionally labelled with these terms, then yes, they all count as law” (Tamanaha, 2017: 75).
  • 5
    Tamanaha ilustra os três níveis de reconhecimento social do direito, indicando os seguintes exemplos: “Attention must be paid to three levels of social recognition of law. The first level is when a community recognizes the existence of legal rules like property rights, marriage, etc. Conventionally recognized beliefs and actions oriented to these rules make them real. This is how customary law operates through community recognition, notwithstanding the absence of an organized legal system. A second level is conventional recognition of legal officials - recognition that certain people or positions possess legal authority to create, enforce, and apply legal norms. A third level, emergent out of the second, is legal officials’ recognition of what counts as valid legal rules and actions. The coordinated conduct of legal officials produces institutional legal actions and facts” (Tamanaha, 2017: 196).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    29 Maio 2022
  • Aceito
    02 Jun 2022
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