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Trente ans après La distinction: um guia sobre a posteridade da obra de Bourdieu

COULANGEON, Philippe; DUVAL, Julien. Trente ans après La distinction de Pierre Bourdieu. Paris: La Découverte, Collection Recherches. 2013

Pouco mais de três décadas depois, o que os sociólogos ainda aprendem com A distinção: crítica social do julgamento? Para responder a essa pergunta, Philippe Coulangeon e Julien Duval organizam o livro Trente ans après La distinction de Pierre Bourdieu que apresenta a contribuição de outros 35 autores para pensar sobre a posteridade da obra bourdieusiana, distribuída em seis seções: (1) gênese e recepção internacional; (2) debates na sociologia da cultura; (3) aplicações fora da França; (4) teoria das classes sociais; (5) sociologia política; (6) novos territórios de pesquisa. O livro, publicado em 2013, é resultante do colóquio de mesmo nome, organizado em Paris no início de novembro de 2010, o qual contou com um amplo apoio institucional (Ministério da Cultura da França e Centre National de la Recherche Scientifique - CNRS).

Os organizadores afirmam que o caráter internacional do colóquio de 2010 é evidente: dos 130 trabalhos apresentados, a metade foi de pesquisadores não franceses. Contudo, o mesmo não pode ser dito - ao menos não na mesma medida - sobre o processo de seleção dos trabalhos integrantes da obra Trente ans après La distinction: dos 37 pesquisadores que assinam os capítulos, 26 possuem vínculo principal com centros de pesquisa e universidades da França (principalmente com o CNRS); dentre os demais, seis trabalham em outros países da Europa e apenas cinco atuam fora do continente europeu (Western Sidney University, Harvard University, Universidade do Porto, Universidade Federal de São Paulo e Universidad de Santiago). A descrição dessa configuração é importante, já que uma das principais críticas à obra A distinção de Bourdieu é o seu alcance supostamente restrito ao contexto francês.

Na introdução de Trente ans après La distinction, Coulangeon e Duval afirmam que A distinção costuma ser referenciada como obra clássica da sociologia, embora seja tratada como controversa pelos mesmos pesquisadores que a citam. Ao buscar reduzir as margens para interpretações malfeitas, Coulangeon e Duval destacam elementos importantes para entender a obra: (1) gostos são indissociáveis dos desgostos pelas preferências dos outros, o que faz com que o julgamento de gosto seja uma perspectiva de classe implícita; (2) os gostos dos indivíduos, em domínios tão distantes, denotam um "ar familiar", integrando-se em estilos de vida; (3) as práticas esteticizantes tendem a ser reservadas à classe dominante (i.e., superioridade de seus estilos de vida), evidenciando um monopólio dos mais favorecidos sobre o consumo legítimo dos produtos mais valorizados; (4) os gostos são muito menos pessoais do que gostaríamos, embora isso não queira dizer que os gostos de um dado indivíduo possam ser deduzidos diretamente de sua classe social, mas sim que a sociologia pode oferecer uma boa explicação desses sistemas de preferências.

Na sequência aos comentários iniciais dos organizadores Coulangeon e Duval, Trente ans après La distinction apresenta, como primeira seção, textos sobre a gênese e a recepção internacional da obra de Bourdieu. No primeiro deles, Monique de Saint-Martin mostra como A distinção não é um livro verdadeiramente inédito, nem tampouco original: trata-se antes de um trabalho de orquestração, uma soma de publicações anteriores. Dentre estas, a autora destaca o dossiê Anatomie du goût, de 1976, no qual a própria Saint-Martin trabalhou com Bourdieu. Ela lembra ainda que A distinção deve ser adequadamente inserida no contexto dos anos 1970 da França, quando diversos pesquisadores buscavam inovações em termos de estratificação social.

Gisèle Sapiro escreve o segundo capítulo desta primeira seção da obra. A autora recorre a um material empírico composto pela cronologia das traduções de A distinção, seus modos de recepção e as citações em revistas acadêmicas americanas para compreender as condições materiais e sociais subjacentes à circulação de ideias sobre a obra. Aqui fica o destaque para uma das conclusões de Sapiro: cada região do mundo apresenta suas especificidades na forma de receber A distinção, mas, a partir de 1990, a recepção internacional começa a se unificar, muito pela iniciativa do próprio Bourdieu. Complementar a esse trabalho de Sapiro é o caso da utilização da obra no cenário estadunidense apresentado no terceiro capítulo, assinado por Michèle Lamont: a autora revela, a partir de uma "sociologia da sociologia", como a leitura de A distinção nos Estados Unidos foi feita de forma seletiva e em constante convergência com os temas de interesse da escola sociológica americana, tais como o papel das associações profissionais e a abordagem quantitativa.

Essa perspectiva de "sociologia da sociologia" está também presente no quarto capítulo assinado por Jean-Louis Fabiani sobre a capacidade generalizante e a longevidade de A distinção. Fabiani advoga a favor da centralidade de uma teoria da legitimidade cultural presente na obra que é perfeitamente capaz de ser transposta a outros contextos fora da França. A questão sobre como a obra é assimilada é também o foco de interesse do último capítulo dessa seção: Louis Pinto discorre sobre o bom uso da obra de Bourdieu e afirma que muitas críticas foram feitas ao livro, porém a maior parte resulta de leituras rasas da obra, geralmente restritas apenas ao seu título ou a conceitos específicos. A distinção foi raramente lida e entendida como teoria dos julgamentos de gostos, teoria da ação e teoria dos espaços sociais. Para Louis Pinto, o livro visa operar, a partir dos gostos, os conceitos de habitus, campo e capital, mas também o modo de pensar relacional, numa concepção de espaço social antissubstancialista, anti-individualista e antissubjetivista.

A segunda seção do livro aborda a grande influência de A distinção sobre a área da sociologia da cultura. O capítulo inicial, assinado por Stéphane Dorin, mostra, a partir da análise dos gostos musicais e do caso da orquestra francesa de câmara Ensemble Intercontemporain, a atualidade das teses bourdieusianas diante de teorias mais recentes que advogam a favor do chamado ecletismo cultural. Dorin explica como esse ecletismo representa apenas uma pequena parte do público frequentador da orquestra, predominantemente formado por "unívoros clássicos". No capítulo seguinte, Agathe Voisin questiona as teorias dominantes da legitimidade cultural, sob a luz de sua pesquisa de campo comparativa com jovens da periferia londrina e parisiense. Seus achados divergem do diagnóstico de que os estratos dominantes são caracterizados pelo ecletismo e pelo universalismo (i.e., onivorismo cultural) ao passo que os estratos desfavorecidos seriam marcados pelo particularismo (i.e., univorismo cultural) e por gostos ilegítimos. Esses achados também convergem com os de Annie Collovard e Érik Neveu no terceiro capítulo: leitores de romances policiais tampouco são onívoros.

O quarto capítulo desta segunda seção, de Sylvie Tissot, resgata um dos temas menos debatidos pela sociologia da cultura, as práticas alimentares, motivada, provocativamente, pelo termo "onivorismo" de Richard Petersen. Tissot discute seu material etnográfico, obtido em um bairro outrora popular de Boston e atualmente aburguesado, revelando como o aparente gosto alimentar democrático, cosmopolita e eclético dos habitantes do bairro esbarra em fortes desgostos, observáveis principalmente na aversão às práticas alimentares associadas ao soul food (i.e., alimentação associada aos negros do sul dos Estados Unidos). Olivier Roueff também ataca a teoria do ecletismo cultural no quinto capítulo desta seção, porém de uma forma teórica, mostrando que a tese bourdieusiana de homologia estrutural ainda é válida, mas a análise da afinidade entre os campos da oferta e da demanda cultural necessita contemplar os intermediários culturais. Por fim, no último capítulo da seção sobre a sociologia da cultura, Bernard Lahire explica suas teses presentes em A cultura dos indivíduos e como elas se relacionam com as de Bourdieu, questionando a suposta coerência dos gostos e das disposições individuais que o autor de A distinção percebia.

A terceira seção de Trente ans après La distinction traz a perspectiva internacional de pesquisas baseadas em A distinção e discute a possibilidade de transferir as análises feitas no contexto francês para outras partes do mundo. O primeiro capítulo da seção é um trabalho coletivo de diversos pesquisadores liderados por Tony Bennett, realizado entre 2003 e 2007, cujo objetivo foi mapear a estrutura do capital cultural no Reino Unido. De forma geral, os achados na Grã-Bretanha confirmaram duas importantes teses bourdieusianas: (1) a classe social é o elemento central de estruturação e diferenciação; (2) há homologias estruturais entre os domínios culturais.

O segundo capítulo da seção, de Virgílio Borges Pereira, fala de outro espaço social não francês, o da cidade do Porto. Pereira apresenta uma interessante análise inspirada em A distinção, a partir de uma discussão sobre o caráter relacional que existe na cidade lusitana entre o espaço dos estilos de vida e o espaço urbano, considerando especialmente o papel do Estado na sua constituição. Já o terceiro capítulo desta seção de perspectivas internacionais é assinado pela única brasileira de Trente ans après La distinction, Carolina Pulici, que apresenta um estudo sobre os gostos da elite paulistana em termos de arquitetura, cinema e artes plásticas. Pulici detectou um forte apreço pelo tradicional, confirmando a tese de que o gosto burguês é fundamentalmente um gosto tradicionalista. O último texto desta seção é um trabalho de Annick Prieur e Mike Savage que alertam, a partir de seus estudos na Dinamarca e na Grã-Bretanha, para a necessidade de revisão do conceito de capital cultural diante das mudanças radicais observáveis nesse início de século XXI, especialmente no sentido de incluir formas novas ou emergentes, a exemplo do capital cultural cosmopolita.

A quarta seção do livro reúne trabalhos que contribuem no sentido de uma teoria das classes sociais. Gérard Mauger abre a seção com o seu capítulo sobre como A distinção trata apenas sumariamente dos estratos mais baixos da hierarquia social, quando se compara com a ênfase nas classes dominantes. Mauger propõe como alternativa para pensar os estratos populares de forma mais profunda a inserção de variáveis mais sensíveis à experiência contemporânea, tais como a díade nacional-imigrante, permitindo assim a construção de um espaço dos estilos de vida das classes populares. Já Marie-Hélène Lechien prefere investigar, no segundo capítulo da seção, os estratos intermediários, especialmente uma das categorias inovadoras de A distinção: a nova pequena burguesia. O exercício central de Lechien é reflexivo no sentido de falar, a partir de seus próprios estudos, da posição ambígua da socióloga que estuda um estrato do qual ela mesma faz parte.

A nova pequena burguesia é também o foco de análise de Lise Bernard no capítulo seguinte, porém de forma bem diferente daquela desenvolvida por Lechien. A autora verifica a possibilidade de utilização em estudos da França contemporânea da categoria inovadora e apresentada em A distinção, petite bourgeoisie nouvelle. Também é sobre os estratos intermediários o último capítulo da seção sobre classes sociais, no qual Agnès Van Zanten apresenta uma pesquisa sobre os processos de diferenciação social a partir das práticas escolares: seus resultados revelam diferenças significativas nas disposições de duas frações superiores de classe média, os intelectuais e os tecnocratas.

Na sequência do debate sobre as classes sociais, a quinta seção de Trente ans après La distinction é dedicada ao tema da sociologia política, inspirando-se principalmente no capítulo "Cultura e política" de A distinção. O primeiro é assinado por Daniel Gaxie, que mostra como apenas uma pequena fração limitada de cidadãos (i.e., os ativos) são detentores do direito e da capacidade de expressar uma ação política. As análises de Gaxie sobre o contexto europeu estão alinhadas com a de Daniel Laurison, no capítulo seguinte, sobre a produção das opiniões nos Estados Unidos: para ele, a abordagem teórica e metodológica de A distinção ainda é perfeitamente eficaz e aplicável ao contexto estadunidense. O terceiro e último capítulo da seção sobre sociologia política, assinado por Bruno Cautrès, Flora Chanvril e Nonna Mayer, sugere que a forma de estratificar utilizada em A distinção necessita de revisões a partir das mudanças ocorridas no plano socioprofissional e político.

A última seção do livro se propõe a apresentar exemplos de novos territórios de pesquisa que se inspiram em A distinção. No primeiro capítulo da seção, Comby e Grossetête mostram que os ditos comportamentos imprudentes no trânsito e em matéria de ecologia dependem da posição social, já que observando os problemas públicos a partir de A distinção, é possível perceber como certas normas são consagradas ou desqualificadas, isto é, como princípios morais de certos grupos tornam-se princípios normais gerais. O capítulo seguinte, de Frédéric Roux, problematiza as práticas de pesca, descortinando disputas simbólicas entre diferentes gerações dotadas de montantes assimétricos de capital cultural. Inovadora também é a proposta de estudo de Fabrice Ripoll, que inicia, no último capítulo da seção de novos territórios, uma discussão sobre o lugar do espaço físico e da geografia em pesquisas inspiradas em A distinção: ele apresenta o paradoxo do uso frequente do conceito de "espaço" sem qualquer associação deste com o elemento territorial ou geográfico.

Os organizadores Philippe Coulangeon e Julien Duval concluem o livro afirmando que Trente ans après La distinction revela leituras e posições diversas em relação à obra A distinção que nos faz duvidar da sua obsolescência. Além disso, não há apenas um debate sobre a obra, mas vários, principalmente porque existem muitas teses presentes em A distinção. Eles reconhecem que se formos anexar a obra aos seus objetos, ela pertence à sociologia da cultura, uma vez que está centrada em temas como legitimidade cultural, relações simbólicas entre grupos sociais e homologias entre os espaços de gostos. Entretanto, igualmente pertinentes são, por exemplo, as abordagens a partir da sociologia política e a das relações de classe.

Para além das disputas sobre qual área ou tipo de sociologia tem maior legitimidade para se apropriar da obra, Coulangeon e Duval enaltecem sua riqueza de inovações metodológicas: (a) o modo de pensar relacional; (b) a crítica à razão substancialista; (c) integração etnográfica e a análise estatística; (d) escrita que enfatiza idas e vindas entre questões teóricas e material empírico, extratos de entrevistas e observações etnográficas.

É visível na maior parte dos trabalhos contidos no livro o esforço de pensar a posteridade da obra de Bourdieu. Há também, na maior parte dos autores, uma postura contracrítica em relação aos principais enunciados dos detratores da teoria de Bourdieu (e.g. teoria do ecletismo cultural) combinada a reflexões acerca de possíveis imprecisões contidas em A distinção (e.g. a negligência do aspecto geográfico do conceito de espaço social), bem como da necessidade de atualização (e.g. mudanças socioprofissionais) e revisão (e.g. reaproveitamento do capítulo "Cultura e política"). Por tudo isso, Trente ans après La distinction é uma coletânea de estudos de grande relevância para a sociologia, tanto para os que se colocam a favor de Bourdieu como para os seus oponentes.

  • Errata

    Na resenha 1 “Trente ans après La distinction: um guia sobre a posteridade da obra de Bourdieu”, com o número DOI: 10.1590/s0102-69922017.3201011, publicado no periódico Revista Sociedade e Estado 32(1), na página 247,
    onde se lia:
    Bruno Costa Barreiro
    Leia-se:
    Bruno Costa Barreiros.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2017

Histórico

  • Recebido
    03 Jul 2015
  • Aceito
    08 Dez 2015
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