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Apresentação

DOSSIÊ

ESTUDOS DA PERFORMANCE

Apresentação

João Gabriel Lima Cruz Teixeira

Coordenador do Laboratório Transdisciplinar de Estudos sobre a Performance (Transe), do Departamento de Sociologia Universidade de Brasília. <limacruz46@hotmail.com>

Desde 1995 tenho me dedicado ao desenvolvimento do campo de estudos da performance, realizando um continuado trabalho no Laboratório Transdisciplinar da Estudos sobre a Performance (Transe) do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília, onde lecionei durante 30 anos. Está chegando o momento de comemorar-se os dois lustros desse esforço, o que reveste a publicação deste dossiê neste ano de 2014 como uma antecipada concretização da referida efeméride.

Nascido do interesse em integrar as metodologias das ciências sociais com as metodologias das artes cênicas, o laboratório não se furtou a encarar os estudos da performance que se implantavam como uma disciplina de inclusões, praticante da transdisciplinaridade. Assim, extrapolando os limites da produção de conhecimento por vias mais cartesianas e positivistas, incorporaram-se levas de conhecimento oriundas de outras fontes de sua produção, incluindo a linguística, a música, a psicanálise, o transe, as corporalidades e os riscos físicos dos performers em suas presenças nas grandes realizações humanas, artísticas, religiosas, políticas e esportivas.

Devido ao limite do número de artigos, as escolhas foram dirigidas para mostrar como as teorias desenvolvidas dos seus próceres acadêmicos internacionais se utilizam desse "inclusionismo" e do entrelaçamento de seus múltiplos saberes constitutivos. A abertura do dossiê traz o tom desafiante e ativista de Schechner, indignado com as vicissitudes e os embates que impedem a construção de uma sociedade humanística que se contraponha à civilização do espetáculo. Schechner nomeia os estudos da performance e seus praticantes como última possibilidade de se criar uma oposição eficaz aos desarrumes do mundo social. Seu comentário, escrito especialmente para este dossiê, insere-se no espectro das imbricações e significados da performance e da política, das estruturas de poder e de sua eficácia simbólica e mediática. Trata-se de um grito de alerta de um militante e performático, cujo conhecimento e contribuição extrapolaram, de há muito, os muros da academia.

Os gestos, imagens, falas "encorporados" (embodied, em inglês), expressadas pelos ativistas do Occupy Wall Street, sugerem em sua análise que esses aspectos, desde que ambientados às especificidades brasileiras, permitem elaborar uma percepção performatizada do movimento político de massas conhecido como "Vem pra rua" que sacudiu a sociedade brasileira em 2013. O impacto era visual, mas não apenas visual, muito mais espantoso, incidindo nos corpos, nos corações e nas mentes.

O presente dossiê vem a público como mais uma manifestação do que se costuma chamar de virada performativa, para parafrasear a virada cultural dos anos 1970. Iniciado de forma mais clara a partir da década de 1980, o campo dos estudos da performance estabeleceu-se de tal forma, assimilando áreas do conhecimento que extrapolam as ciências sociais (antropologia e sociologia, principalmente) e as performáticas, incidindo também sobre os fenômenos comunicacionais experienciáveis e midiatizados, numa escala incontrolável.

Tudo depende de como o evento e sua midiatização eletrônica incidem sobre as referidas corporalidades e mentes. Ao acionarem o coração, criam a possibilidade do "encorporamento" e, ao atingirem a mente, suscitam a reflexão, por conseguinte, desenvolvem a consciência do estarem no mundo, suas mazelas e mal-estares. Convencionou-se denominar essa ação de "encorporação" para substituir à vernácula incorporação que se refere mais aos processos intrapsíquicos dos diversos tipos de transe, sejam suave ou doce, como queria Bastide, ou mesmo do transe mediúnico. Ou seja, a "encorporação" se refere à hospitalidade ou à memória tratada por outros tipos de conhecimento, mais próximos aos ensinamentos sociológicos de Erving Goffman e de Marcel Mauss.

Finalmente, Schechner deixa claro que as fontes dessa "encorporação" residem no fato de que performar é engajar-se em profundos e longevos estudos que o seu vanguardismo exige, renovando energias e interagindo mais com pessoas e fatos em bases performativas e não meramente ideológicas.

O dossiê prossegue com a contribuição de Richard Bauman, da Universidade de Indiana, no campo da sociolinguística. Ao ser convidado a colaborar, este grande especialista optou por realizar a adaptação de seu texto "Fundamentos da performance" para o público brasileiro.

Assim, atualizou seu texto com referências aos seus colegas sociolinguistas brasileiros, facilitando muito as pesquisas dos mesmos. Os ensinamentos de Bauman foram introduzidos no Brasil por meio de sua continuada colaboração com Esther Jean Langdon, do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina, responsável por sua divulgação e aplicação às narrativas tradicionais e práticas xamânicas.

Bauman parte da sociolinguística variacionista (baseada em variáveis fonológicas, morfológicas e sintáticas) para entender a performance como exibição virtuosística, focando-a como teatralidade, conforme vem se desenvolvendo em seu campo específico. No momento, a ele interessa, sobretudo, as performances mediatizadas contemporâneas e a produtividade do conceito de remediatização para reduzir as distâncias entre as performances realizadas "ao vivo" e aquelas apresentadas em formatos midiatizados pelas tecnologias digitais contemporâneas. Na tradução, optou-se por esse termo, em virtude de ele informar muito mais sobre os processos transformacionais envolvidos do que o conceito de "remediação" que em português possui um significado específico de reparação ou de emenda. No mesmo caminho de Zumthor, para Bauman performance virtuosística significa, sobretudo, a performance da voz e da fala. É nesse campo de pesquisa que seus ensinamentos mostram-se ainda mais profícuos, notabilizando-se pelos instrumentos de fornece aos seus seguidores.

Nas abordagens dos pesquisadores brasileiros, flagra-se a arguta compreensão de Alice Fátima Martins a respeito da realização de um filme etnográfico sobre a vida e as narrativas de uma aldeia indígena do Alto Xingu. Sua percepção da "diegese" incrustada na narrativa fílmica atribui o caráter performativo às ações acontecidas no plano ficcional emoldurado por uma narrativa documental sobre um ritual de gênero, filmada com a participação de cineastas nativos. Em suma, o trabalho da socióloga e pesquisadora na área da cultura visual mostra, a seu modo, um processo específico de "remediatização" que, por certo, afetará os corações e as mentes dos sujeitos no plano de suas crenças e práticas, a serem registradas e disseminadas. O que significa, no decorrer do tempo, a entrada no mundo das tecnologias digitais e dos aparatos eletrônicos? Sem perder o seu caráter etnográfico, a experiência cinematográfica rea­lizada, segundo a autora, inaugura

a possibilidade das próprias comunidades contarem não só as histórias sobre si. Mas também reinventar suas próprias histórias e as maneiras de contá-las, bem como performá-las, a partir de seus próprios referenciais temporais, corporais, relacionais e de ambientação.

Para a antropóloga Luciana Hartman interessa, sobretudo, as performances narrativas de contadores de história da fronteira do Rio Grande do Sul com a Argentina, no que elas contribuem para a organização da experiência cotidiana do processo de tornar-se pessoa nessa zona de fronteira. O entrelaçamento das narrativas pessoais dos contadores com as narrativas tradicionais proporciona à oralidade da fronteira uma profusão de significados, lembrando Turner quando este afirma que as histórias são contadas tanto para entreter como para instruir e interpretar. Estabelecer o protagonismo da experiência pessoal dos sujeitos facilita a compreensão dos processos sociais, em geral, legitimada por uma audiência assídua e contínua que realiza o reconhecimento da competência comunicativa de cada performance narrativa específica. É a valorização da experiência que permite ao idoso o desempenho de papéis sociais relevantes na recriação das performances narrativas dessas comunidades.

Finalmente, a partir de referências teóricas dos estudos de performances culturais, o artigo de Sebastião Rios interpreta a letra de alguns cantos de Bule-Bule repentista, cantador, violeiro, tocador de prato e faca, e poeta sambador do Recôncavo baiano. O autor – sociólogo e violeiro –, foca algumas das relações possíveis entre as práticas da cultura popular tradicional e sua representação por intelectuais, notadamente folcloristas, sociólogos e antropólogos. A ênfase do autor recai sobre a vertente das performances culturais refletirem a multiplicidade de manifestações que interessa a esses estudiosos. O olhar performático atua no seu estudo como forma específica de apreensão e compreensão dessa diversidade de expressões culturais tradicionais.

Em suma, trata-se de saberes "encorporados" que se tornam presentes, seja no espaço público, seja nas performances da voz, na criação cinematográfica, nas performances narrativas de contadores de histórias ou na criação poética de um cantador do século XXI, na Bahia. São saberes que se renovam e se ressignificam, sendo "remediatizados", politizados, reproduzidos, recriados e disseminados, alcançando reconhecimento, visibilidade e distinção. Os estudos da performance representam a possibilidade de ampliação epistemológica da compreensão da cultura contemporânea no que incidem sobre a sua grande diversidade e variedade de interesses, visões e versões de mundo. Sua lógica é a da descoberta, da denúncia, do desvelamento e da revelação. Sua meta é propiciar aos grupos que estuda a possibilidade de se autorreconhecer, construir a sua identidade cultural e a reivindicar a direção do seu futuro.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Jan 2015
  • Data do Fascículo
    Dez 2014
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