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O Pensamento de Hugo Grócio e o Resgate do Ideal de Justiça Internacional

The Thinking of Hugo Grotius and the Ideal of International Justice Rescued

Resumo

O presente trabalho retoma as contribuições teóricas de um dos pais fundadores do Direito Internacional Público, Hugo Grócio. O objetivo do trabalho é demonstrar que as reflexões do jurista holandês ajudaram na compreensão da justiça como fundamento legitimador do direito, como senso ético comum da humanidade e como obrigação de responsabilidade e solidariedade além-fronteiras. Através do método de pesquisa hipotético-dedutivo e da técnica de pesquisa bibliográfica, conclui-se que a retomada da obra do internacionalista reforça o ideal de justiça internacional, em especial na medida em que os direitos humanos vão se tornando, lentamente, um novoethoscomum da humanidade.

Palavras-chave:
Direito Internacional Público; Hugo Grócio; Jus Gentium

Abstract

The present work resumes the theoretical contributions of one of the founding fathers of Public International Law, Hugo Grócio. The objective of the work is demonstrate that the reflections of the Dutch jurist helped in the understanding of justice as a legitimizing foundation of the law, as a common ethical sense of humanity and as an obligation of responsibility and solidarity across borders. Through the hypothetical-deductive research method and the bibliographic research technique, is concluded that the resumption of the internationalist’s work reinforces the ideal of international justice, especially as human rights are slowly becoming a new ethos common humanity.

Keywords:
Hugo Grócio; Jus Gentium; Public International Law

1 Introdução

O crescente processo de internacionalização dos direitos humanos dos últimos 70 anos - desde a Carta das Nações Unidas de 1945 e da Declaração Universal de Direitos do Homem de 1948 - impulsionou o que pode ser chamado de “(re)nascimento” do indivíduo como ator de acentuada importância em âmbito internacional, cuja próprio reconhecimento como sujeito de direito internacional já começa a ser defendida e ventilada1 1 Aqui, se refere, por exemplo, ao estudo realizado pelo Professor Antônio Augusto Cançado Trindade a respeito do fenômeno que se têm chamado “humanização do direito internacional”, que aponta para uma progressiva subjetivação do indivíduo ante ao direito internacional, processo que se observa, por exemplo, pela gradual abertura de acesso direto à própria pessoa humana às Cortes de Direitos Humanos. . Nesse cenário, a questão a respeito da necessidade de afirmação de um direito universalmente regulador e destinado ao homem e às instituições humanas revestiu-se de um novo viés. Antigos princípios, outrora olvidados pela prática positivista e pelas preocupações em fortificar o Direito Internacional - próprias de um período em que as soluções atomizadas dos Estados-Nação mostraram-se insuficientes - retornam ao debate internacionalista, dentre eles, a busca pela efetivação de um ideal de justiça internacional, hoje relacionado a um mínimo ético e dignitário da humanidade sob a égide dos direitos humanos.

Em que pese que essa seja uma discussão bastante contemporânea, muito antes, pensadores que hoje são chamados de “clássicos do direito internacional” depararam-se com questões de impressionante atualidade, entre elas a existência de um direito comum a toda a humanidade e a possibilidade de sua afirmação, na época identificado como um direito das gentes - direito destinado aos indivíduos, aos povos e aos Estados como um todo e originado dessa inter-relação.

Nesses tempos em que a aproximação entre direito e justiça ainda era concebida na reflexividade intelectual, a obra do jurista e filósofo holandês Hugo Grócio2 2 Hugo Grócio, Grotius ou de Groot (na versão holandesa de seu nome) nasceu em Delft na Holanda, no dia 10 de abril de 1582. Viveu em um período histórico marcado por intensas instabilidades políticas e religiosas, como a revolução dos Países Baixos contra o domínio da Espanha, a Guerra dos Trinta anos no Sacro Império Germânico e o início das rivalidades mercantis europeias. A sociedade da época passava por grandes transformações: o mundo medieval fundado no teocentrismo cedia espaço para um mundo moderno e laicizado, fundado nas razões de estado e nos ideais da soberania estatal (MACEDO, 2006). Ver, também, recentemente: Wijffels (2016). , em especial seu tratado da guerra e da paz3 3 Título original: De jure belli ac pacis. Tradução e publicação utilizada: Editora Unijuí, 2005, volumes I (2ª edição) e II. , ainda hoje se reveste de destaque e grande relevância4 4 Impossível não mencionar, como se tem habitualmente feito, a pertinente afirmação do professor Arno Dal Ri Júnior (2004), segundo o qual os problemas apresentados ao Direito da atualidade, embora pareçam ineditamente recentes, são de origem antiga, mas que constantemente se renovam ante a comunidade internacional. O que deve ser visto como um desafio à intelectualidade contemporânea para reler, reatualizar e reinventar as elaborações de autores que precedentemente se debruçaram sobre temáticas similares, a fim de que a compreensão hodierna do Direito não se torne refém de interesses exclusivamente econômicos e políticos, esvaziando completamente seu conteúdo ético. . Fundamentando seu jus gentium na reta razão humana e condicionando à atuação estatal aos imperativos da racionalidade e de uma espécie de solidarismo para com a humanidade, Grócio vem a ensinar o que a Modernidade apenas recentemente e após terríveis eventos reconheceu: que “[...] cada indivíduo não é somente vingador de seu próprio Direito, mas [...] é também daquele de outrem” (GRÓCIO, 2005b, p. 981GRÓCIO, Hugo. O Direito da guerra e da paz. 2. ed. Ijuí: Unijuí , 2005b. v. 2.).

Assim, a partir dessas premissas, e utilizando-se do método hipotético-dedutivo e a técnica da pesquisa bibliográfica5 5 Os autores não desconhecem que a produção bibliográfica existente sobre o autor e suas obras, em várias partes do mundo, é extraordinária e que o artigo pretende apenas, com um primeiro texto, se aproximar do tema. Nesse contexto, uma fonte de pesquisa importante sobre a outra do autor poder ser encontrada na obra De iure belli ac pacis libri tres, de Alain Wijffels (2016). Além disso, é importante esclarecem que o artigo não tem a pretensão de ser um texto de História do Direito Internacional Público (área que já possui um acervo extraordinário). Os autores querem apenas demonstrar, a partir do método hipotético-dedutivo, que a obra de Hugo Grócio, em especial do seu tratado De iure belli ac pacis. possui aspectos atuais e que continua a ser uma referência importante na atualidade. , o presente texto se propõe a apresentar a mencionada contribuição de Hugo Grócio para o tema que pode ser denominado de “resgate do ideal de justiça internacional”, sinalizando para a relevância do diálogo que pressupõe a proposta de do direito das gentes do autor e, atualmente, o desenvolvimento do internacional dos direitos humanos.

2 Laicidade e Humanização do Direito

O aspecto marcante do pensamento de Hugo Grócio é, sem dúvidas, a inauguração de sua hipótese impiíssima (MACEDO, 2006MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Hugo Grotius e o Direito: o jurista da guerra e da paz. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006.). Essa hipótese que deu origem a toda a sua teoria do direito, desenvolvida em sua principal obra o tratado intitulado “De iure belli ac pacis” (O Direito da Guerra e da Paz), afirma que o “Direito natural é tão imutável que não pode ser mudado nem mesmo por Deus” (GRÓCIO, 2005a, p. 81GRÓCIO, Hugo. O Direito da guerra e da paz. Ijuí: Unijuí, 2005a. v. 1.).

O Direito, portanto, não é fenômeno transcendental, mas se evidencia na natureza humana, social e racional do homem6 6 Esta explicação, por assim dizer laicizada do Direito Natural, não resulta, no entanto, que na teoria grociana a figura divina deixa de ter influência. Observa-se que, no parágrafo 12 dos Prolegômenos do Direito da Guerra e da paz, Grócio (2005a) sustenta que, além da natureza humana, o Direito natural tem como fonte a “livre vontade de Deus”, no sentido de que o papel de Deus teria sido o de dispor livremente para que a sociabilidade e a razão existissem na humanidade. . É imutável do ponto de vista de seu conteúdo, validade e incidência, uma vez que inerente à condição do homem como tal; e é universal, porquanto sua existência pode ser verificada a priori e a posteriori nas condutas humanas. Nas palavras do autor:

A natureza do homem que nos impele a buscar o comércio recíproco com nossos semelhantes, mesmo quando não nos faltasse absolutamente nada, é ela própria a mãe do Direito natural [...]. O autor da natureza quis, de fato, que tomados um por um, nós sejamos fracos e que careçamos de muitas coisas necessárias para viver comodamente, a fim de que sejamos impelidos mais ainda a cultivar a vida social. (GRÓCIO, 2005, p. 43)

Na obra mencionada, Grócio apresenta de forma completa sua definição de direito, identificando-o como qualidade moral, como lei e como justiça. Primeiramente o direito é identificado como “[...] uma qualidade moral ligada ao indivíduo para possuir ou fazer de modo justo alguma coisa” (GRÓCIO, 2005a, p. 73GRÓCIO, Hugo. O Direito da guerra e da paz. Ijuí: Unijuí, 2005a. v. 1.). Ensina o autor que a qualidade moral quando se expressa em um ato jurídico ou em um direito estritamente dito toma forma de faculdade, e quando corresponde a um ato de poder manifestado por um juízo de conveniência caracteriza-se como aptidão. Nessa distinção, a faculdade está associada à justiça expletiva, enquanto a aptidão se relaciona com a justiça atributiva e designa o mérito de uma pessoa (GRÓCIO, 2005aGRÓCIO, Hugo. O Direito da guerra e da paz. Ijuí: Unijuí, 2005a. v. 1.).

O direito como sinônimo de regra, lex, é para Grócio (2005a, p. 78GRÓCIO, Hugo. O Direito da guerra e da paz. Ijuí: Unijuí, 2005a. v. 1.) um conceito em sentido mais amplo, que indica uma “[...] regra das ações morais que obrigam a quem é honesto”. De acordo com Grócio (2005aGRÓCIO, Hugo. O Direito da guerra e da paz. Ijuí: Unijuí, 2005a. v. 1.), esse direito pode ser dividido em direito voluntário ou em direito natural. O direito voluntário, segundo o autor, seria fruto da vontade, distinguindo-se em direito voluntário divino e direito voluntário humano, de acordo com a fonte da qual emanasse do divino, quando sua origem fosse à vontade de Deus e humano, quando sua origem residisse na vontade dos homens. No âmbito da vontade humana este direito voluntário constitui-se em direito civil, mais amplo que civil ou mais restrito que civil, onde o direito civil é aquele emanado do poder civil, enquanto o direito mais restrito que o civil emana do poder de indivíduos a quem se devesse submissão, como pais ou mestres. Já o direito mais amplo que o civil é denominado por jus gentium, isto é, aquele que recebe sua força obrigatória da vontade de todas as nações ou de grande número delas.

Agora, no ponto que interessa a este trabalho, Grócio identifica o direito como sinônimo de justiça.

A palavra direito nada significa mais aqui do que aquilo que é justo. Isto, num sentido mais negativo que afirmativo, de modo que o direito transparece como aquilo que não é injusto. Ora, é injusto o que repugna à natureza da sociedade dos seres dotados de razão. (GRÓCIO, 2005a, p. 72-73GRÓCIO, Hugo. O Direito da guerra e da paz. Ijuí: Unijuí, 2005a. v. 1.)

De acordo com o autor, essa justiça poderia tanto nascer em uma sociedade entre iguais quanto nas relações de superioridade entre membros de uma sociedade desigual (GRÓCIO, 2005aGRÓCIO, Hugo. O Direito da guerra e da paz. Ijuí: Unijuí, 2005a. v. 1.).

Embora seus escritos datem do século XVII, é possível afirmar que a argumentação de Hugo Grócio se insere mais acertadamente no âmbito do jusnaturalismo moderno. Isso porque o autor aborda o direito natural como um direito subjetivo, fundamentado na existência racional do homem em sociedade, diferentemente da visão medieval, onde o direito natural representava um ordenamento de deveres fundamentado na figura divina (MACEDO, 2006MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Hugo Grotius e o Direito: o jurista da guerra e da paz. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006.).

De acordo com Luiz Felipe Netto de Andrade e Silva Sahd (2009, p. 186-187ANDRADE E SILVA SAHD, Luiz Felipe Netto de. Hugo Grotius: direito natural e dignidade. Uberlândia: Universidade Federal de Uberlândia, 2009.),

Grotius foi influenciado por Vitoria. Defendeu que o direito natural está na origem de todas as convenções e que a vida em comunidade exige o estabelecimento de contratos e, naturalmente, o respeito pelos mesmos. Definiu o direito natural como um ditame da verdadeira razão, que afirma que o procedimento, conforme está ou não de acordo com a natureza racional tem em si a qualidade da condenação ou da necessidade moral. Defendeu, por isso, que o direito se funda na moral e que esta é acessível à razão. Do direito natural assim concebido como prescrição da razão Grotius deduz, nos Prolegômenos ao De jure belli ac pacis, quatro princípios, a saber: que é preciso abster-se do bem de outrem, restituir o que se tomou ou o proveito que se retirou dele; que somos obrigados a manter a palavra empenhada; que devemos reparar o dano causado por nossa falta; que a violação destas regras merece punição, mesmo da parte dos homens. A primeira vista, porém, estes princípios parecem criar uma estreita dependência entre o direito natural e uma estrutura social preliminar que a natureza levaria os homens a constituir. É uma falsa impressão, pois quando voltamos à definição do direito natural, cujos princípios são deduzidos, é possível perceber que sua inteligibilidade depende da segunda das três definições da palavra “direito”, estabelecida no livro primeiro, a definição do direito subjetivo.

Observe-se que essa “secularidade” da teoria grociana irradiou para toda sua análise dos fenômenos jurídicos e sociais, como é possível verificar em sua argumentação acerca da soberania estatal. De acordo com o autor, ainda que o soberano represente um poder absoluto, esse poder é, em última análise, vontade do povo. Nesse sentido, caso o soberano aja de forma injusta (contrário a razão e ao direito), o povo, detentor do poder, poderia resguardar o direito. O Estado, dessa forma, se constitui para Grócio através dos desígnios da razão humana, na lógica de que a própria sociedade é fruto da “reta razão” (GRÓCIO, 2005aGRÓCIO, Hugo. O Direito da guerra e da paz. Ijuí: Unijuí, 2005a. v. 1.)7 7 Claro que isto é influenciado pelo contexto político. Grócio escrevendo nos Países Baixos do Norte, em 1625, ainda em revolução contra o rei Espanhol. O estado da República só será reconhecido oficialmente com os tratados de 1648. .

Para Grócio (2005aGRÓCIO, Hugo. O Direito da guerra e da paz. Ijuí: Unijuí, 2005a. v. 1.) , portanto, o Estado não é um fim em si mesmo, mas um meio para assegurar o ordenamento social consoante a “inteligência humana”, de modo a aperfeiçoar a sociedade comum que abarca toda a humanidade. Sob essa lógica, os sujeitos têm direitos vis-à-vis o Estado soberano, que não pode exigir obediência de seus cidadãos de forma absoluta. A norma jurídica (de direito natural e de direito das gentes) é criadora de direitos e obrigações para as pessoas - e aqui também o Estado - a que se dirige, daí sua admissão da possibilidade de proteção internacional de direitos contra o próprio Estado8 8 Em seu tratado sobre o direito da guerra e da paz, Hugo Grócio chegou a conclusão de que seriam quatro as causas de uma guerra justa: (a) a guerra é justa quando se objetiva a defesa da vida, tanto quando esta está sendo ameaçada, bem como na iminência de uma ameaça, ou seja, de modo preventivo ‒ leia-se legítima defesa (b) para recuperar um bem que foi injustamente expropriado; (c) para ver-se cumpridos determinadas convenções ou acordos; e (d) como um modo de se aplicar uma punição (GRÓCIO, 2005b). Outrossim, especialmente no que diz respeito a guerra empregada como legítima defesa, Grócio se deparou com uma importante questão: é lícito a um Estado empreender a guerra na defesa do povo de outro Estado? O autor responde esta pergunta fazendo duas ponderações muito perspicazes. Reconhece que os Estados investidos em poder soberano têm autonomia sobre seus atos. Porém, justamente por estarem investidos em tal poder têm para com os seus cidadãos um dever de moralidade e justiça. E mais, este dever não fica constrito no território estatal, mas deve ser estendido a toda a humanidade. Assim, sempre que um governo violasse o Direito natural, Grócio entendia que a intervenção externa para contê-lo seria justa, ou seja, legitima. Esta é a “lei de solidariedade” que, nas palavras de Mario Bettati (1996) vemos no Direito de guerra de Grócio, que é considerado o primeiro autor da modernidade a trabalhar com a hipótese de intervenção para defesa de Direitos. (CANÇADO TRINDADE, 2002bCANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. A personalidade e a capacidade jurídicas do indivíduo como sujeito do Direito Internacional. In: ANNONI, Danielle (coord.). Os novos conceitos do novo direito internacional. Rio de Janeiro: América Jurídica , 2002b. p. 1-31.).

Dessa concepção deriva-se que é responsabilidade do Estado observar o direito, tanto na relação com os seus cidadãos quanto nas relações com nações diversas. Esse direito que se aplica não também na sociedade dos povos é identificado por Grócio como jus gentium. Segundo o autor, do mesmo modo que as leis de cada Estado dizem respeito à sua utilidade própria, assim também certas leis surgiram entre os Estados em virtude de seu consenso, “[...] tendendo à utilidade não de cada associação de homens em particular, mas do vasto conjunto de todas essas associações” (GRÓCIO, 2005a, p. 44GRÓCIO, Hugo. O Direito da guerra e da paz. Ijuí: Unijuí, 2005a. v. 1.).

Dessa forma,

Há, pois, que ter sempre presente o verdadeiro legado da tradição grociana do direito internacional. A comunidade internacional não pode pretender basear-se na voluntas de cada Estado individualmente. Ante a necessidade histórica de regular as relações dos Estados emergentes, sustentava Grotius que as relações internacionais estão sujeitas às normas jurídicas, e não à “razão de Estado”, a qual é incompatível com a própria existência da comunidade internacional: esta última não pode prescindir do Direito. O ser humano e o seu bem-estar ocupam posição central no sistema das relações internacionais. (CANÇADO TRINDADE, 2002b, p. 3CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. A personalidade e a capacidade jurídicas do indivíduo como sujeito do Direito Internacional. In: ANNONI, Danielle (coord.). Os novos conceitos do novo direito internacional. Rio de Janeiro: América Jurídica , 2002b. p. 1-31.)

Como bem pondera Macedo (2006MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Hugo Grotius e o Direito: o jurista da guerra e da paz. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006.), o termo gentes empregado por Grócio não significava simplesmente um direito das gentes ou de Estados, mas estava mais próximo da noção de povos, reunidos sob uma forma de organização política qualquer, ou seja, não uma coletividade abstrata, mas os próprios homens como comunidade internacional. Isso implica que o direito das gentes em Grócio constitui um meio-termo entre o direito natural e o direito positivo, e se aproxima do direito internacional, como este é visto hodiernamente, no sentido em que passa a designar mais do que uma realidade extranacional, ou seja, constitui-se, não apenas em um direito que ultrapassa as fronteiras do Estado, mas que rege as relações entre os povos.

Observando-se o contexto histórico em que Grócio escreveu, é possível perceber que o argumento da imutabilidade pretendia encontrar um fundamento seguro e conferir um caráter cogente a nível supraestatal para o Direito. A inauguração de um Direito para a guerra e para a paz, superior às diferenças religiosas e acessível a todos por meio da razão, era condição essencial para findar os conflitos político-religiosos que devastavam a Europa na época. Não se pode olvidar, certamente, o pressuposto conquistador que movia a intelectualidade pré-moderna. O contato com povos não cristãos, estranhos à experiência histórica europeia, começava a criar problemas jurídicos relativos à legitimidade dos meios empregados na guerra e na conquista violenta de novos territórios. O antigo fundamento da preeminência natural das instituições cristãs já não bastava para legitimar a destruição das instituições nativas. Era necessário que as novas situações pudessem ser enquadradas em regras de convivência que prescindissem à religião, a fim de que pudessem ser oponíveis a quaisquer povos e culturas (HESPANHA, 2014HESPANHA, António Manuel. Hugo Grotius. In: DAL RI JÚNIOR, Arno et al. (org.). A formação da ciência do Direito Internacional. Ijuí: Unijuí , 2014. p. 151-162.).

3 Justiça como Exercício de Direitos e a Formulação de um Direito Comum a Todas as “Gentes”

Durante muitos séculos, o ponto de origem da justiça nas condutas humanas em sociedade encontrou fundamento na existência divina. Na modernidade ocidental, a chamada Escola clássica do direito natural associada à tradição judaico-cristã deu progresso a um jusnaturalismo que tinha por cerne a concepção do homem como ser racional e a lei da natureza como fundamento da responsabilidade moral humana, aferida por meio da razão, mas ainda ligada ao princípio divino.

Esse jusnaturalismo, de certa forma humanizado, logrou repercussão na explicação da justiça tanto em âmbito do direito interno dos Estados quanto dos primeiros esboços de um direito internacional, o jus gentium. De fato, foi no desenvolvimento do direito das gentes que o “problema” da justiça se renovou com mais força, especialmente nas questões emergentes da época, quais sejam, a regulação da guerra, o comércio marítimo e a conquista de territórios.

A partir das obras dos fundadores do direito internacional, nos séculos XVI e XVII, passou-se a identificar uma noção de recta ratio e de justiça, com inspiração na concepção aristotélica-estoica-tomista que concebia o ser humano como um ser social, racional e dotado de uma dignidade intrínseca, afigurando-se estas noções como indispensáveis à sobrevivência do direito internacional nascente (CANÇADO TRINDADE, 2002aCANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. O Direito Internacional em um mundo em transformação. Rio de Janeiro: Renovar, 2002a.).

Observe-se que Cícero em sua clássica obra De República (51 a.C., livro III, cap. XXII, § 33CÍCERO, Marco Túlio. Da República. Documento Digital. [51 a.C.]. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/darepublica.html. Acesso em: 2 jan. 2011.
http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/dare...
), afirma que “[...] o verdadeiro direito é a recta ratio em conformidade com a natureza; é de aplicação universal, inalterável e perene [...], um Direito eterno e imutável [...] válido para todas as nações em todos os tempos”. Na concepção tomista, especialmente esboçada na Suma teológica, essa recta ratio aparece em uma lógica de afirmação do bem comum em contraposição ao bem individual. A partir disso, o jus gentium - já transcendido de sua origem romana - formulado especialmente a partir das obras de Francisco de Vitória, Francisco Suárez, Alberico Gentili e Hugo Grócio, entre outros, passou a ser associado com a própria humanidade.

Para Vitória9 9 “Francisco de Vitoria é o primeiro a renovar a escolástica, inspirando-se nas idéias de Aristóteles e Tomás de Aquino sobre o direito natural. Defendeu a existência de um “jus gentium” fundamentado no direito natural. Segundo tal direito, os homens tinham o direito de usar as coisas do mundo necessárias à sua subsistência. Formula, assim, uma concepção de direito que sustenta a idéia de que ninguém deveria ser excluído do mundo e, por isso, todos tinham naturalmente direito às coisas indispensáveis à sua vida. Definiu o “direito das gentes” como “aquele conjunto de normas jurídicas, estabelecidas pela razão natural em todos os povos, que determinam o exercício e o modo mais conveniente de tornar efetivo o direito natural””. (ANDRADE E SILVA SAHD, 2009, p. 183) e Suárez, o direito das gentes não tinha como único sujeito o Estado, mas contava também com os povos e os indivíduos, no que Vitória chamou de jus communicationi, um direito de todos os seres humanos. Hugo Grócio, mais evidentemente, acudiu a reta razão humana para fundamentar a necessidade de uma ordem jurídica internacional voltada para a defesa dos direitos “fundamentais” de natureza e para a regulação do direito de guerra e direito dos mares - em especial no tratado De jure belli ac pacis (CANÇADO TRINDADE, 2002aCANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. O Direito Internacional em um mundo em transformação. Rio de Janeiro: Renovar, 2002a.).

O direito das gentes como se observa na obra grociana, buscava regulamentar as relações humanas sob uma base ética, formando uma sociedade internacional de “seres dotados de razão” (GRÓCIO, 2005aGRÓCIO, Hugo. O Direito da guerra e da paz. Ijuí: Unijuí, 2005a. v. 1.). Segundo Macedo (2006MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Hugo Grotius e o Direito: o jurista da guerra e da paz. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006.), estas particularidades do direito das gentes grociano, que têm origem na sua visão laicizada do direito, são vistas por muitos internacionalistas como o passo inicial para as primeiras percepções de existência de uma sociedade internacional, em que os Estados se relacionam de acordo com seus interesses, mas estes interesses são limitados pelo direito internacional. Percebe-se, portanto, que Grócio pretendia estabelecer os princípios de um direito das gentes que pudesse ser aplicado para todos os tipos de Estados, um sistema universal capaz de incluir tanto ainda os países absolutistas como os países que já possuíam alguma tendência liberal, um meio termo para a paz - O que, guardadas as devidas proporções, não se distancia muito do ideal contemporâneo expresso nos direitos humanos. Nos prolegômenos de seu célebre tratado o autor afirma:

Estou convencido [...] que existe um direito comum a todos os povos e que serve para a guerra e na guerra. Por isso tive numerosas e graves razões para me determinar a escrever sobre o assunto. Via no universo cristão uma leviandade com relação à guerra que teria deixado envergonhada as próprias nações bárbaras. Por causas fúteis ou mesmo sem motivo se recorria às armas e, quando já com elas às mãos, não se observava mais respeito algum para com o Direito divino nem para com o Direito humano, como se, pela força de um edito, o furor tivesse sido desencadeado dobre todos os crimes. (GRÓCIO, 2005a, p. 51GRÓCIO, Hugo. O Direito da guerra e da paz. Ijuí: Unijuí, 2005a. v. 1.)

Por meio do fundamento da reta razão, o direito natural era identificável como sendo um direito superior, de aplicação universal, diferente do direito positivo na medida em que este era promulgado por autoridades específicas para comunidades específicas, tornando a razão subserviente à vontade; a reta razão efetivamente dotou, assim, o jus gentium de fundamentos éticos, ora que emanado, em última análise da consciência jurídica universal, sua fonte material por excelência (CANÇADO TRINDADE, 2002aCANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. O Direito Internacional em um mundo em transformação. Rio de Janeiro: Renovar, 2002a.).

Os princípios da justiça aplicavam-se, assim, em conformidade com a reta razão, tanto aos Estados, quanto aos indivíduos e povos. De fato, já naquela época a questão da diversidade das comunidades humanas (especialmente do ponto de vista religioso) era um desafio para a concretização de um direito universal que, para sê-lo, não poderia basear-se na vontade atomizada de cada nação ou povo. Daí a importância da formulação de um postulado de legitimidade para este direito que fosse suficientemente comum a todos os povos. Assim, a reta razão, de certa forma, cumpria este requisito, ao transportar o direito das gentes de uma vinculação exclusiva com a vontade dos Estados e fortificá-lo na ractio humana - pressuposto de maior vocação comum.

Indo além, em sua definição de Direito, encontrada na obra O Direito da Guerra e da Paz, Grócio (2005a, p. 293GRÓCIO, Hugo. O Direito da guerra e da paz. Ijuí: Unijuí, 2005a. v. 1.) afirma que o Direito não tem como objeto somente as questões pertinentes às normas e à justiça, mas envolve também virtudes morais, tais com “[...] a temperança a coragem, a prudência, porquanto o exercício dessas virtudes, em certas circunstancias não é somente honesto, mas obrigatório”. O jurista demonstra, assim, a existência de um conteúdo ético ao direito.

Conforme anteriormente mencionado, a justiça grociana é identificada com o direito e definida como aquilo que “[...] não repugna à natureza da sociedade dos seres dotados de razão” (GRÓCIO, 2005a, p. 73GRÓCIO, Hugo. O Direito da guerra e da paz. Ijuí: Unijuí, 2005a. v. 1.). Essa noção, associada às demais acepções do direito, implica em um tratamento da justiça como uma questão de observância e exercício de direitos (ANDRADE E SILVA SAHD, 2009, p. 188ANDRADE E SILVA SAHD, Luiz Felipe Netto de. Hugo Grotius: direito natural e dignidade. Uberlândia: Universidade Federal de Uberlândia, 2009.).

Nesse ponto, é interessante observar que Grócio afasta-se também do utilitarismo clássico na fundamentação da justiça. A crítica que o autor traz nos Prolegômenos de sua obra contestando as teses do filósofo Carnéades, evidenciam isso:

Esse filósofo [Carnéades], empenhado em combater a justiça, especialmente esta de que nos ocupamos agora, não encontrou argumento melhor para tanto que este: os homens se impuseram, em vista de seu interesse, leis que variam de acordo com os costumes e que, entre os mesmos povos, muitas vezes mudam de acordo com as circunstâncias. Quanto ao direito natural, este não existe; todos os seres, homens e outros animais, se deixam arrastar pela natureza em função de suas próprias utilidades. Deduz-se, pois, que não há justiça ou, se houvesse uma, não passaria de suprema loucura, porquanto prejudica o interesse do indivíduo, preocupando-se em proporcionar vantagem à outrem. (GRÓCIO, 2005a, p. 36GRÓCIO, Hugo. O Direito da guerra e da paz. Ijuí: Unijuí, 2005a. v. 1.)

O autor aponta dois argumentos para sustentar a existência de justiciabilidade no agir humano. Inicialmente, afirma que os humanos não simplesmente se deixam arrastar pela natureza em função de suas próprias utilidades. Pelo contrário, a atuação humana aponta para uma espécie de sociabilidade racional, um appetitus societatis por uma vivência comunitária pacífica e organizada de acordo com os dados de sua inteligência e que os estoicos chamavam de “estado doméstico”, sociabilidade esta que, por sua vez, é o fundamento de existência do próprio Direito.

Nas palavras do autor:

De fato, mesmo que ele [Carnéades] o afirme, não é louco o cidadão que em seu país se conforma às leis civis, mesmo que para respeitar essas leis tivesse que deixar de lado certas coisas que lhes seriam vantajosas. De igual modo, não é louco o povo que não preza tanto seu interesse particular a ponto de negligenciar os direitos comuns a todas as nações. A razão é, de fato, a mesma nos dois casos. Assim como o cidadão que infringe o direito civil em vista de sua utilidade presente, destrói o germe que contém seu interesse futuro e o de toda a sua posteridade, assim também o povo violador do direito da natureza e das gentes derruba para sempre os anteparos que protegiam sua própria tranquilidade. (GRÓCIO, 2005a, p. 44GRÓCIO, Hugo. O Direito da guerra e da paz. Ijuí: Unijuí, 2005a. v. 1.)

Dessa forma, ao afirmar a justiça como manifestação do direito, Grócio alude à capacidade humana de agir segundo princípios gerais, de formular juízos que permitam apreciar as coisas, presentes e futuras, determinando seu caráter de agir correto associado à norma tomada como fruto do consenso da sociedade racional. Segundo ele, exemplo disso é a necessidade de cumprir as próprias promessas e reparar os danos causados a outrem, expressa nas regras da boa-fé e respeito à propriedade privada, que compõem o conjunto de características peculiares ao gênero humano denominado de cuidado pela vida social, sem o qual a atuação humana não pode ser considerada natural, ou seja, conforme o direito.

Se observarmos o posicionamento grociano a partir da classificação da justiça realizada por John Rawls em sua obra Uma teoria da justiça, é possível perceber que Grócio não apenas se afasta do utilitarismo clássico, mas que sua justiça se aproxima de uma visão contratualista. Veja-se, a respeito da concepção utilitarista da justiça, Rawls (2002, p. 25; 27-28RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2002.) ensina que

A ideia principal é a de que a sociedade está ordenada de forma correta e, portanto, justa, quando suas instituições mais importantes estão planejadas de modo a conseguir o maior saldo líquido de satisfação obtido a partir da soma das participações individuais de todos os seus membros. […] uma pessoa age de um modo muito apropriado, pelo menos quando outros não são afetados, com o intuito de conseguir a maximização de seu bem-estar, ao promover seus objetivos racionais o máximo possível. […] A característica surpreendente da visão utilitarista da justiça reside no fato de que não importa, exceto indiretamente, o modo como essa soma de satisfações se distribui entre os indivíduos assim como não importa, exceto indiretamente, o modo como um homem distribui suas satisfações ao longo do tempo. A distribuição correta nos dois casos é aquela que permite a máxima realização.

Diferentemente, conforme afirma Rawls (2002, p. 12-13RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2002.), na perspectiva contratualista da justiça, os princípios desta são objetos de um consenso original. Nesse sentido, segundo o autor,

[…] não podemos pensar o no contrato original como um contrato que introduz uma sociedade particular ou que estabelece uma forma particular de governo. Pelo contrário, a ideia norteadora é que os princípios da justiça para a estrutura básica da sociedade são o objeto do consenso original. São esses princípios que pessoas livres e racionais, preocupadas em promover seus próprios interesses, aceitariam numa posição inicial de igualdade como definidores dos termos fundamentais de sua associação. [essa igualdade] entendida como uma situação puramente hipotética caracterizada pelo de modo a conduzir a uma certa concepção de justiça.

Dessa forma, percebe-se que, para Grócio, a justiça é fenômeno humano, em que os juízos de valor que constituem o justo (como virtude e lei) são forjados no berço da convivência humana, nos consensos criados pelos “seres dotados de razão”. Essa justiça é entendida por Grócio não apenas como a capacidade de distinguir entre o bom e o mal, mas principalmente como a prerrogativa de exercer direitos e o dever de observar as leis, o que não se limitava ao direito de determinado povo, mas estendia-se também ao direito das gentes (jus gentium).

4 O Jus Gentium Contemporâneo: resgate da noção de justiça internacional e os direitos humanos como nova ethos da humanidade

Analisando o caminhar do direito internacional na sociedade internacional contemporânea, marcada pela lógica de proteção e efetivação de direitos humanos, Cançado Trindade (2013, p. 12CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Os tribunais internacionais contemporâneos. Brasília, DF: FUNAG, 2013.) bem observa que

[...] no âmbito do novo jus gentium de nossos dias, a pessoa humana tem logrado emancipar-se de seu próprio Estado, e acudir à justiça internacional, sempre que este se afasta de seus fins humanos e se transforma em mecanismo de opressão.

Segundo o autor,

Desde a obra clássica de H. Grotius do século XVII, desenvolveu-se um influente corrente do pensamento jusinternacionalista que concebe o Direito Internacional como um ordenamento jurídico dotado de valor próprio ou intrínseco (e por tanto superior a um direito simplesmente “voluntário”), - porquanto deriva sua autoridade de certos princípios da razão sã (est dictatum rectae rationis). Assim, não é função do jurista simplesmente tomar nota da prática dos Estados, mas sim dizer qual é o Direito. E ao jurista está reservado um papel de crucial importância na construção do novo jus gentium do século XXI, o direito universal da humanidade. (CANÇADO TRINDADE, 2002a, p. 1.109CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. O Direito Internacional em um mundo em transformação. Rio de Janeiro: Renovar, 2002a., grifos do autor)

Realmente, se as últimas décadas foram marcadas por atrocidades que vitimaram milhões de pessoas, um marco importante foi também o que se pode chamar de um acordar da “sociedade dos seres dotados de razão” que hoje podemos chamar de consciência jurídica universal para a necessidade de reconceituação das bases do ordenamento jurídico internacional. É preciso demonstrar e comprovar que o direito internacional não se reduz a um instrumento de poder, mas que “[...] su destinatario final es el ser humano, debiendo atender a sus necessidades e aspiraciones básicas, entre las quales se destaca la de la realización de la justicia” (CANÇADO TRINDADE, 2013, p. 24CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Os tribunais internacionais contemporâneos. Brasília, DF: FUNAG, 2013.).

O direito internacional “tradicional”, vigente até a segunda metade do século passado, foi marcado pelo voluntarismo estatal, aceite da lógica do recurso à guerra como medida lícita, celebração de acordos desiguais, sempre sob o manto do paradigma de uma soberania absoluta e, consequentemente, excludente e individualista; ainda que antes da Carta de 1945, alguns princípios de direito internacional instituídos por tratados, como o Pacto de Briand-Kellog de 1928, iniciaram a constituição de uma normativa costumeira de condenação do recurso à força como forma de resolução de controvérsias. Conforme destaca Cançado Trindade (2013), até esse período, o ordenamento jurídico internacional havia se distanciado muito da visão do jus gentium dos autores clássicos10 10 Essas são apenas algumas referências gerais e que ajudam na ampla contextualização do referido cenário. Uma análise mais precisa e profunda do tema é encontrada na obra The Gentle Civilizer of Nations: The Rise and Fall of International Law 1870-1960 (KOSKENNIEMI, 2001). .

O modelo westphaliano induzia a uma certa atomização ou fragmentação da comunidade internacional (BEDIN, 2011BEDIN, Gilmar Antonio. A sociedade Internacional Clássica. Ijuí: UNIJUÍ, 2011.). No entanto, começa-se a perceber, a partir das lições da experiência da convivência internacional a necessidade de reconstrução do direito internacional e o reconhecimento de princípios inerentes a ele, ou seja, sem restringir-se a uma consagração tão somente do direito positivo. Nesse sentido,

Apesar de que el ordenamiento jurídico internacional de este inicio del siglo XXI encuentráse, pues, demasiado distante de los ideales de los fundadores del derecho de gentes [...] no hay que capitular ante esta realidad, sino más bien enfrentarla. Se podría argumentar que el mundo contemporáneo es enteramente distinto del de la época de F. Vitoria, F. Suárez y H. Grotius, quienes propugnaram por una civitas maxima regida por el derecho de gentes, el nuevo jus gentium por ellos reconstruído. Pero aunque se trate de dos escenarios mundiales diferentes (nadie lo negaría), la aspiración humana es la misma, o sea, la de la construcción de un ordenamiento internacional aplicable tanto a los Estados (y organizaciones internacionales) cuanto a los seres humanos (el derecho de gentes), de conformidad com ciertos patrones universales de justicia, sin cuya observancia no puede haber paz social. Hay, pues, que empeñarse en un verdadero retorno a los origenes del derecho de gentes, mediante el cual se impulsará el actual proceso histórico de humanización del Derecho Internacional. (CANÇADO TRINDADE, 2013, p. 29CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Os tribunais internacionais contemporâneos. Brasília, DF: FUNAG, 2013.)

Conforme afirmam Arruda Junior e Gonçalves (2002, p. 125ARRUDA JUNIOR, Edmundo Lima de; GONÇALVEZ, Marcus Fabiano. Globalização, Direitos Humanos e desenvolvimento. In: ANNONI, Danielle (coord.). Os novos conceitos do novo direito internacional. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002. p. 125-144.), hoje “[...] a busca de uma ordem na desordem é absolutamente uma questão de vida ou morte para a humanidade”. Encontramo-nos em meio a um esforço para “[...] relacionar diagnósticos da promessa moderna, receituário das modernizações experimentadas nos séculos XIX e XX, e prognósticos para este século” (ARRUDA JUNIOR; GONÇALVES, 2002, p. 125ARRUDA JUNIOR, Edmundo Lima de; GONÇALVEZ, Marcus Fabiano. Globalização, Direitos Humanos e desenvolvimento. In: ANNONI, Danielle (coord.). Os novos conceitos do novo direito internacional. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002. p. 125-144.). Veja-se que em uma perspectiva positivista, a justiça representaria um péssimo critério a seguir devido à sua incerteza e relatividade.

No entanto, quando a questão entre direito e justiça é dialogada não mais apenas do ângulo jurídico interno, mas através de um mínimo ético internacional, há uma modificação interessante. Isso, porque esse mínimo ético não representa uma concepção específica de justiça, mas uma espécie de fundamento ou estrutura que permite a eficácia normativa do direito.

[…] do ponto de vista de uma teoria da eficácia, o mínimo ético não é mais refém do relativismo das várias justiças que refletem, com fidelidade, o esgarçamento axiológico surgido em meio ao politeísmo de valores do mundo pós-convencional. Da perspectiva de uma teoria da eficácia, o tema da justiça assume um viés minimalista, orientado para a (re)construção e manutenção das bases morais e materiais que possibilitem o ingresso no pacto social. Somente a partir de uma eficácia fundamental e mínima dessas bases morais e materiais de um pacto social ergue-se um edifício jurídico em cujo interior circulam normas de validade determinável por critérios internamente já jurídicos. Por isso mesmo, a justiça apresentada como um tema da teoria da eficácia assume as cores de um mínimo ético, e não mais do simples respeito à pluralidade de valores. Respeitar valores variados é algo diferente do compromisso eficacial com o mínimo ético ora proposto. (ARRUDA JUNIOR; GONÇALVEZ, 2002, p. 127ARRUDA JUNIOR, Edmundo Lima de; GONÇALVEZ, Marcus Fabiano. Globalização, Direitos Humanos e desenvolvimento. In: ANNONI, Danielle (coord.). Os novos conceitos do novo direito internacional. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002. p. 125-144.)

Nesse sentido, em meio às perspectivas atuais, os direitos humanos representam o que de mais próximos temos semelhante a um “[...] consenso axiológico vigorante em meio ao politeísmo de valores das sociedades mundiais, mesmo com todas as armadilhas que possam daí surgir” (ARRUDA JUNIOR; GONÇALVEZ, 2002, p. 128ARRUDA JUNIOR, Edmundo Lima de; GONÇALVEZ, Marcus Fabiano. Globalização, Direitos Humanos e desenvolvimento. In: ANNONI, Danielle (coord.). Os novos conceitos do novo direito internacional. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002. p. 125-144.). Esse consenso tem se formado não somente através de acordos internacionais, mas especialmente pela atuação das Cortes internacionais de direitos humanos. Nas palavras de Cançado Trindade (2010, p. 44CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Os tribunais internacionais contemporâneos e a busca da realização do ideal da justiça internacional. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, n. 57, p. 37-68, jul.-dez. 2010.),

Os tribunais internacionais contemporâneos têm contribuído decisivamente para a expansão da jurisdição internacional, assim como para a afirmação e consolidação da personalidade e capacidade jurídicas internacionais do ser humano, como sujeito tanto ativo (ante os tribunais internacionais de direitos humanos) como passivo (ante os tribunais penais internacionais) do Direito Internacional. Do mesmo modo, os tribunais internacionais contemporâneos têm operado no sentido de ampliação e sofisticação do capítulo da responsabilidade internacional. Assim, a par da responsabilidade internacional dos Estados e organizações internacionais, afirma-se hoje também a dos indivíduos.

A busca da justiça se materializa, portanto, na própria expansão da função judicial internacional. Em que pese a eficácia normativa dessa justiça de que tratamos continue a ser um problema dos Estados, no plano mundial este fenômeno de jurisdicionabilidade dos direitos humanos demonstra que os mecanismos processuais positivos da contemporaneidade não são estáticos, mas mutáveis. Mesmo quando direitos humanos não estão positivados, permanecem vinculados a uma expectativa de eficácia por parte da sociedade, sendo potencialmente capazes de constituir-se em “direito forte” pela atuação de um organismo judicial.

Sob o prisma dos direitos humanos, a concepção da justiça parece perpassar a noção de Rawls (2002, p. 694RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2002.) de justiça como equidade, segundo a qual “[...] a sociedade não está subdividida no que diz respeito ao reconhecimento mútuo de seus princípios primeiros”. Isso contribui para a ação unificadora da concepção de justiça. Antes de ser instrumento de legitimação genérica de queixas, como aduz Rawls, a justiça serve de instrumento de reconciliação no coque de visões e de reivindicações diversas, reconciliando por meio da razão, ou seja, partindo daquilo que todas as partes envolvidas têm em comum.

Daí a importância da noção de que a justiça deve partir de algum consenso, como é possível de ser resgatada da teoria grociana. Essa ideia hoje se encontra na noção de consciência jurídica universal aludida por Cançado Trindade como resultado da evolução do direito internacional dos direitos humanos e da ascensão da pessoa humana como sujeito do direito internacional, que cria uma espécie de novo ethos a ser seguida e traduz a justiça internacional tanto como uma busca por um ideal ético comum de dignidade humana universal quanto a efetivação desse ideal através de mecanismos jurisdicionais adequados e eficientes.

5 Conclusão

O propósito geral do presente trabalho foi demonstrar a atualidade do pensamento do jurista holandês Hugo Grócio para o Direito Internacional de nossos dias. Nesse sentido, demonstrou-se que o autor fez uma renovação importante das concepções do jusnaturalismo, por meio do afastamento da figura divina dos fundamentos de existência e validade do Direito (hipótese impiíssima), e da construção de uma noção humanizada do direito natural e do jus gentium.

Essa transformação foi fundamental para a afirmação científica do Direito Internacional e para a descoberta dos profundos vínculos existentes entre direito e justiça. De fato, essa vinculação revelada por Grócio em sua obra O direito da guerra e da paz é fundamental e envolve não apenas a questão (vínculo entre direito e justiça) do ponto de vista interno das nações, mas também da sociedade internacional (da sociedade “dos povos”). Tal afirmação demonstra que, tanto em sociedades igualitárias (nacionais) quanto em sociedades desiguais (pluralidade de nações), há um fundamento ético do direito. A partir desse fato, o autor defende a existência de uma racionalidade humana universal, capaz de pautar o agir humano para objetivos comuns, independentemente das diferenças particulares de cada nação ou povo.

Além disso, afirma o autor que é o elemento justiça que permite aos indivíduos obedecerem ao direito, mesmo em detrimento de seus anseios particulares, em prol do bem maior da coletividade. Afirmação que vai de encontro com o peculiar humanismo que implica ao direito das gentes. O que é afirmado a partir do fato de que “cada homem é responsável não apenas por seu próprio direito, mas também pelo direito de outrem”. Isso demonstra que o pensamento grociano não é apenas secularista, o que já era inovador para a época, mas também revestido de um humanismo notável e que se mantém muito atual.

O que se percebe da leitura grociana, é que, ao transportar a questão da justiça, antes adstrita ao âmbito interno dos Estados para as relações internacionais (pelo pressuposto da reta razão e do consenso humano), Hugo Grócio apresenta um conceito de justiça que implica um tratamento da temática como uma questão de observância e exercício de direitos em um âmbito de consenso humano. Noção que hoje vai de encontro à emergência de uma consciência jurídica universal, resultado da evolução do direito internacional dos direitos humanos e da ascensão da pessoa humana como sujeito de direitos no direito internacional público.

Referências

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  • CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Os tribunais internacionais contemporâneos e a busca da realização do ideal da justiça internacional. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, n. 57, p. 37-68, jul.-dez. 2010.
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  • CÍCERO, Marco Túlio. Da República. Documento Digital. [51 a.C.]. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/darepublica.html Acesso em: 2 jan. 2011.
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  • DAL RI JÚNIOR, Arno. Hugo Grotius entre o Jusnaturalismo e a Guerra Justa: pelo resgate do conteúdo ético do Direito Internacional. In: MENEZES, Wagner (org.). O Direito Internacional e o Direito Brasileiro. Ijuí: Unijuí, 2004. p. 76-95.
  • GRÓCIO, Hugo. O Direito da guerra e da paz. Ijuí: Unijuí, 2005a. v. 1.
  • GRÓCIO, Hugo. O Direito da guerra e da paz. 2. ed. Ijuí: Unijuí , 2005b. v. 2.
  • HESPANHA, António Manuel. Hugo Grotius. In: DAL RI JÚNIOR, Arno et al (org.). A formação da ciência do Direito Internacional. Ijuí: Unijuí , 2014. p. 151-162.
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  • MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Hugo Grotius e o Direito: o jurista da guerra e da paz. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006.
  • RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
  • WIJFFELS Alain. De iure belli pacis libri tres. In: DAUCHY Serge et al A Formação e Transmissão da Cultura Jurídica Ocidental: 150 livros que fizeram a lei na era da impressão, Cham, Springer, 2016. p. 258-261.
  • 1
    Aqui, se refere, por exemplo, ao estudo realizado pelo Professor Antônio Augusto Cançado Trindade a respeito do fenômeno que se têm chamado “humanização do direito internacional”, que aponta para uma progressiva subjetivação do indivíduo ante ao direito internacional, processo que se observa, por exemplo, pela gradual abertura de acesso direto à própria pessoa humana às Cortes de Direitos Humanos.
  • 2
    Hugo Grócio, Grotius ou de Groot (na versão holandesa de seu nome) nasceu em Delft na Holanda, no dia 10 de abril de 1582. Viveu em um período histórico marcado por intensas instabilidades políticas e religiosas, como a revolução dos Países Baixos contra o domínio da Espanha, a Guerra dos Trinta anos no Sacro Império Germânico e o início das rivalidades mercantis europeias. A sociedade da época passava por grandes transformações: o mundo medieval fundado no teocentrismo cedia espaço para um mundo moderno e laicizado, fundado nas razões de estado e nos ideais da soberania estatal (MACEDO, 2006MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de. Hugo Grotius e o Direito: o jurista da guerra e da paz. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006.). Ver, também, recentemente: Wijffels (2016WIJFFELS Alain. De iure belli pacis libri tres. In: DAUCHY Serge et al. A Formação e Transmissão da Cultura Jurídica Ocidental: 150 livros que fizeram a lei na era da impressão, Cham, Springer, 2016. p. 258-261.).
  • 3
    Título original: De jure belli ac pacis. Tradução e publicação utilizada: Editora Unijuí, 2005, volumes I (2ª edição) e II.
  • 4
    Impossível não mencionar, como se tem habitualmente feito, a pertinente afirmação do professor Arno Dal Ri Júnior (2004DAL RI JÚNIOR, Arno. Hugo Grotius entre o Jusnaturalismo e a Guerra Justa: pelo resgate do conteúdo ético do Direito Internacional. In: MENEZES, Wagner (org.). O Direito Internacional e o Direito Brasileiro. Ijuí: Unijuí, 2004. p. 76-95.), segundo o qual os problemas apresentados ao Direito da atualidade, embora pareçam ineditamente recentes, são de origem antiga, mas que constantemente se renovam ante a comunidade internacional. O que deve ser visto como um desafio à intelectualidade contemporânea para reler, reatualizar e reinventar as elaborações de autores que precedentemente se debruçaram sobre temáticas similares, a fim de que a compreensão hodierna do Direito não se torne refém de interesses exclusivamente econômicos e políticos, esvaziando completamente seu conteúdo ético.
  • 5
    Os autores não desconhecem que a produção bibliográfica existente sobre o autor e suas obras, em várias partes do mundo, é extraordinária e que o artigo pretende apenas, com um primeiro texto, se aproximar do tema. Nesse contexto, uma fonte de pesquisa importante sobre a outra do autor poder ser encontrada na obra De iure belli ac pacis libri tres, de Alain Wijffels (2016WIJFFELS Alain. De iure belli pacis libri tres. In: DAUCHY Serge et al. A Formação e Transmissão da Cultura Jurídica Ocidental: 150 livros que fizeram a lei na era da impressão, Cham, Springer, 2016. p. 258-261.). Além disso, é importante esclarecem que o artigo não tem a pretensão de ser um texto de História do Direito Internacional Público (área que já possui um acervo extraordinário). Os autores querem apenas demonstrar, a partir do método hipotético-dedutivo, que a obra de Hugo Grócio, em especial do seu tratado De iure belli ac pacis. possui aspectos atuais e que continua a ser uma referência importante na atualidade.
  • 6
    Esta explicação, por assim dizer laicizada do Direito Natural, não resulta, no entanto, que na teoria grociana a figura divina deixa de ter influência. Observa-se que, no parágrafo 12 dos Prolegômenos do Direito da Guerra e da paz, Grócio (2005aGRÓCIO, Hugo. O Direito da guerra e da paz. Ijuí: Unijuí, 2005a. v. 1.) sustenta que, além da natureza humana, o Direito natural tem como fonte a “livre vontade de Deus”, no sentido de que o papel de Deus teria sido o de dispor livremente para que a sociabilidade e a razão existissem na humanidade.
  • 7
    Claro que isto é influenciado pelo contexto político. Grócio escrevendo nos Países Baixos do Norte, em 1625, ainda em revolução contra o rei Espanhol. O estado da República só será reconhecido oficialmente com os tratados de 1648.
  • 8
    Em seu tratado sobre o direito da guerra e da paz, Hugo Grócio chegou a conclusão de que seriam quatro as causas de uma guerra justa: (a) a guerra é justa quando se objetiva a defesa da vida, tanto quando esta está sendo ameaçada, bem como na iminência de uma ameaça, ou seja, de modo preventivo ‒ leia-se legítima defesa (b) para recuperar um bem que foi injustamente expropriado; (c) para ver-se cumpridos determinadas convenções ou acordos; e (d) como um modo de se aplicar uma punição (GRÓCIO, 2005bGRÓCIO, Hugo. O Direito da guerra e da paz. 2. ed. Ijuí: Unijuí , 2005b. v. 2.). Outrossim, especialmente no que diz respeito a guerra empregada como legítima defesa, Grócio se deparou com uma importante questão: é lícito a um Estado empreender a guerra na defesa do povo de outro Estado? O autor responde esta pergunta fazendo duas ponderações muito perspicazes. Reconhece que os Estados investidos em poder soberano têm autonomia sobre seus atos. Porém, justamente por estarem investidos em tal poder têm para com os seus cidadãos um dever de moralidade e justiça. E mais, este dever não fica constrito no território estatal, mas deve ser estendido a toda a humanidade. Assim, sempre que um governo violasse o Direito natural, Grócio entendia que a intervenção externa para contê-lo seria justa, ou seja, legitima. Esta é a “lei de solidariedade” que, nas palavras de Mario Bettati (1996BETTATI, Mario. O Direito de ingerência: mutação da ordem internacional. Lisboa: Instituto Piaget, 1996.) vemos no Direito de guerra de Grócio, que é considerado o primeiro autor da modernidade a trabalhar com a hipótese de intervenção para defesa de Direitos.
  • 9
    “Francisco de Vitoria é o primeiro a renovar a escolástica, inspirando-se nas idéias de Aristóteles e Tomás de Aquino sobre o direito natural. Defendeu a existência de um “jus gentium” fundamentado no direito natural. Segundo tal direito, os homens tinham o direito de usar as coisas do mundo necessárias à sua subsistência. Formula, assim, uma concepção de direito que sustenta a idéia de que ninguém deveria ser excluído do mundo e, por isso, todos tinham naturalmente direito às coisas indispensáveis à sua vida. Definiu o “direito das gentes” como “aquele conjunto de normas jurídicas, estabelecidas pela razão natural em todos os povos, que determinam o exercício e o modo mais conveniente de tornar efetivo o direito natural””. (ANDRADE E SILVA SAHD, 2009, p. 183ANDRADE E SILVA SAHD, Luiz Felipe Netto de. Hugo Grotius: direito natural e dignidade. Uberlândia: Universidade Federal de Uberlândia, 2009.)
  • 10
    Essas são apenas algumas referências gerais e que ajudam na ampla contextualização do referido cenário. Uma análise mais precisa e profunda do tema é encontrada na obra The Gentle Civilizer of Nations: The Rise and Fall of International Law 1870-1960 (KOSKENNIEMI, 2001KOSKENNIEMI, Martti. The Gentle Civilizer of Nations: The Rise and Fall of International Law 1870-1960. Cambridge: Cambridge University Press, 2001.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Out 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    24 Jul 2019
  • Revisado
    24 Abr 2020
  • Aceito
    20 Jul 2020
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