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Caracteres de mudança e (des) construtividade da democracia no locus público e seus agentes no transnacionalismo

Characters of change and (des) constructiveness of democracy in public locus and its agents in transnationalism

Resumo:

A sociedade democrática. O que se pode entender por essa frase, termo ou conceito? O que faz uma sociedade (de fato) democrática? Qual o local efetivo da democracia? Como, na sociedade contemporânea, exercer a democracia? Frente a esses questionamentos que suscitam a investigação do presente ensaio, pode-se observar os fenômenos e nuances da atual democracia - nacional e internacionalmente - sendo desconstruída e reconstruída, de forma oposta ao seu real significado e propósito, mantendo-se apenas focada no kratos de sua origem etimológica. A democracia vigente não estaria sendo traçada em um despotismo velado, inserindo um Estado totalitário, através de agentes (internos e externos) ou o avanço das pluralidades e complexidades sociais a modificou de tal forma, que a abstração do conceito do que seria a democracia foi vencido? O método de abordagem utilizado na problemática enfrentada, foi o método compreensivo, sendo primordial o seu encaixe na pesquisa, eis que a ciência social não pode ser abarcada e qualificada, se forem utilizados somente procedimentos lógicos. A técnica de pesquisa utilizada foi a da pesquisa bibliográfica.

Palavras-chave:
Cidades; Democracia; Homogeneidade; Transnacionalismo.

Abstract:

The democratic society. What can be understood by this phrase, term, concept? What makes a (verily) democratic society? What is the effective location of democracy? How, in contemporary society, to exercise democracy? Faced with these questions that raise the investigation of the present essay, one can observe the phenomena and nuances of the current democracy - nationally and internationally - being deconstructed and reconstructed, in a way opposite to its real meaning and purpose, remaining only focused on kratos of its etymological origin. Existing democracy would not be traced in a veiled despotism, inserting a totalitarian state, through agents (internal and external) or the advancement of social pluralities and complexities modified it in such a way, that the abstraction of the concept of what would be democracy was expired? The method of approach used in the problem faced was the comprehensive method, with its fit in research being essential, as social science cannot be encompassed and qualified if only logical procedures are used. The research technique used was bibliographic research.

Keywords:
Cities; Democracy; Homogeneity; Transnationalism.

Introdução

Na potencialização dos espaços participativos atuais, o que o Estado pode oferecer eficazmente a população? O homogeneizar da democracia moderna, não mais contribui para a coletividade. A sociedade heterogênea necessita de uma reconstrução democrática ou de outro regime político que possibilite a real participação da miscelânea de etnias, culturas, costumes, pensamentos e necessidades que o multiculturalismo aporta em nosso país e principalmente em nossas cidades, todos os dias.

A democracia em curso, “fechada” e “isolada”, não efetiva os interesses gerais da população (não há que se falar mais e, somente em povo), visto que o atual contexto nacional dos detentores da vontade, realiza uma democracia institucionalizada, não representando o anseio popular, mas simplesmente um simulacro de imposições políticas levadas a cabo para uma ínfima parcela da sociedade, impedindo a dialética com toda a diversidade formadora da coletividade. Logo, não ocorrendo a socialização do poder.

No contexto contemporâneo, imperceptível o debate aberto com a sociedade e o atendimento de suas reivindicações (à exceção, parcamente, dos dois impeachments 1992 - 2016, ambos com suas controvérsias e algumas demandas isoladas). Afasta-se o local do poder, isola-o, mantém-se a população a distância sobre a justificativa de estar sendo representada, pela mera escolha dos atores que irão proceder as decisões em seu nome.

A Eclésia - assembleia política de cidadãos da Grécia antiga - não mais se reúne para as decisões primordiais, por estar muito ocupada com os dilemas (ou serão futilidades?) de suas vidas privadas, ao tempo, que os mandatários do poder estão, paradoxalmente, também preocupados somete com seus interesses, mas em detrimento do público e utilizando-se do ente estatal.

Destarte, as indagações lançadas no prelúdio, conduzem para a ampliação das dúvidas quanto a democracia e sua atuação nos diversos escaninhos estatais. Logo, não mais possível edificar uma democracia com vistas somente para situação nacional, o que impele o escopo global, porém, com objetivos locais.

Destarte, pelas verificações preliminares da investigação em curso, busca-se descortinar como os caracteres de mudança e a desconstrutividade da democracia estão sendo perpetuados na arena pública e pelos agentes do transnacionalismo vigente. Logo, na busca de efetivar o escopo da pesquisa, utilizou-se da tradução doutrinária, na revisão bibliográfica nacional e internacional, utilizando-se do método dedutivo para alcançar uma cadeia de raciocínio mínimo em direção ao conhecimento.

Desconstrutividade

Verifica-se a desconstrutividade (negativa) democrática, no esvaziamento da função citadina (orquestrada pelo próprio Estado), no que tange a fuga em impulsionar a participação da população nos embates políticos e na resolução de suas mazelas, buscando a ampliação intelectual de seus partícipes, aparelhando os mesmos com as ferramentas necessárias para o entendimento de como as questões realizadas em seu ambiente “doméstico”, reflete e expande em suas vidas, no País e no mundo.

Na síntese de Höfe “para que as instituições democráticas se modifiquem e tenham continuidade, faz-se necessário um grande número de virtudes cívicas”. (2005, p. 39)HÖFE, Otfried. A democracia no mundo de hoje. Trad. de Tito Lívio Cruz Romão -São Paulo: Martins Fontes , 2005.. Logo, esses atributos necessitam ser trabalhados localmente, no sistema nuclear dos domínios sociais, para que todos tenham o devido contato (eficaz), com pessoas, instrução e políticas, não somente através de campanhas, propagandas e discursos teóricos, proferidos a milhares de quilômetros de distância de seu domicílio, em um pensar macro, que por vezes não condiz em nada com a vivência do dia-a-dia local, não aproximando os grupos sociais das instituições, do outro e do fundamental sentido da democracia.

Constata-se que a desconstrutividade (negativa) democrática ocorre por opção consciente do próprio Estado, em realizar uma homogeneização dos componentes da sociedade heterógena, ávida por um atrelamento maior e mudança no sistema participativo de suas localidades e do País, visto que os atores provenientes de outras regiões do mundo, igualmente sofrem o processo de reificação1 1 [...] o que seria a Reificação em termos inteligíveis? O conceito dessa palavra, que tem origem no latim rēs, rēi (coisa) + terminação ficação (tornar), ou seja, tornar ou transformar-se em (uma) coisa (objeto), surge em decorrência da não visualização no outro, de um ser humano, uma pessoa, mas sim, um objeto (por vezes abjeto), necessário para um propósito: produzir bens de consumo, transportá-los, negociá-los e mantê-los. VICENTE, Jacson Bacin. A desumanização de direitos através da reificação: o não reconhecimento do outro. In: Clóvis Gorczevski. (Org.). Direitos Humanos e Participação Política. 1 ed. Porto Alegre: Imprensa Livre, 2015, v. VI, p. 506. democrática, lançados na espiral negativa do plainar de indivíduos e grupos sociais, que gravitam e dependem do Estado, assim como os nacionais, admoestados em doutrinas vivenciais que tolhem suas diferenças e culturas, resultando em um conglomerado acessível de manipulação e contenção.

Simultaneamente, além da impossibilidade do exercício pleno da democracia, que ultrapassa o simples direito de votar e ser votado, mas almeja toda uma experiência de debate, fiscalização, cobrança e decisão conjunta nos meandros das políticas exercidas pelo poder estatal (na vida e nas instituições), avulta-se um terceiro elemento na investigação em voga, que opera de forma velada nas resoluções estatais e com impacto direto na existência da população e sua atuação democrática: os agentes do transnacionalismo.

A origem histórica desse fenômeno pode ser estabelecida no pós-Segunda Guerra Mundial, tendo sua nomenclatura ou etimologia conexa com as próprias migrações humanas e sua transferência de locais, devido a guerras, privações, intempéries climáticas ou pandemias, sendo a locução, posteriormente associada as questões econômicas e ao estadismo. (Bedin, 2001, p. 309)BEDIN, Gilmar Antonio. A sociedade internacional e o século XXI: em busca da construção de uma ordem judicial justa e solidária. Ijuí: Ed. UNIJUÍ, 2001..

O termo contemporâneo, porém, conecta-se as empresas transnacionais e seus desdobramentos associados. Atores não estatais (lobistas, empresários, advogados, facilitadores, operadores do mercado financeiro e ONGs) - ou até mesmo, como alcunhado por Bobbio “a presença do poder invisível” (Bobbio, 2017, p. 52)BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Trad. de Marco Aurélio Nogueira. 14ª ed. Rio de Janeiro / São Paulo: Paz e Terra, 2017. - assumiram um papel privilegiado em política externa, não tomando conhecimento quanto a legislação interna ou externa dos países, bem como ignorando fronteiras, não mais disponibilizando o Estado, do controle de seus fluxos (ideal internacionalista liberal), sendo os objetivos desses agentes externos focados no mercado econômico e na geração de influencias para a sua garantia e perpetuação. (Vicente, 2017, p. 985)VICENTE, Jacson Bacin. Transnacionalismo e interdependência: das desigualdades sociais a perda de legitimação democrática. Artigo publicado no I Congresso Internacional de Jurisdição Constitucional, Democracia e Relações Sociais e I Mostra de Trabalhos Jurídicos Científicos. PPGD, da Faculdade de Direito da Universidade de Passo Fundo (UPF). 2017. Disponível em: http://www.editora.upf.br/index.php/e-books-topo/37-direito-area-do-conhecimento/175-anais-i-congresso-internacional-de-jurisdicao.
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Os agentes transnacionais buscam persuadir diretamente as ramificações democráticas, se utilizando de subterfúgios através da Lex Mercatória, para realização de trânsito de pessoas, mercadorias e valores, sondando nas migrações e nos ditos países em desenvolvimento (eixo periférico e semiperiférico)2 2 VICENTE, Jacson Bacin. O fenômeno da globalização e a manutenção da dinâmica da dependência na América Latina dos países centrais do capitalismo: uma análise a partir da teoria do sistema-mundo de Immanuel Wallerstein. 197 f. Tese (Programa de Pós-Graduação em Direto - Doutorado) - Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, Santo Ângelo, 2020. p. 19. , a mão-de-obra barata, carga tributária mínima e recursos naturais em volume. Tais fatores corroboram para a desconstrutividade (negativa) da democracia, posto que pelo alto poder econômico que possuem, intervém de forma transversal e indireta no próprio poder estatal, persuadindo e ludibriando a própria legislação interna.

O transnacionalismo negativo compactua e desfruta da atual postura do Estado, alicerçado em uma unanimidade de decisões estatais que somente podem ocorrer em um ambiente fortemente homogêneo (Bobbio, 2017, p. 37)BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Trad. de Marco Aurélio Nogueira. 14ª ed. Rio de Janeiro / São Paulo: Paz e Terra, 2017., vez que realiza um “bem social” às avessas, alegando auxílio as minorias, quando em verdade, está explorando os imigrantes (e nacionais) que vivenciam na cidade suas privações e anseios, mas buscam em empresas transnacionais o mínimo sustento para a subsistência, mesmo em detrimento de sua própria saúde e dignidade.

Assim, os agentes transnacionais conectam-se diretamente com o Estado, mas buscam no locus a “matéria-prima” de seu provento, qual seja, o mínimo custo e máximo lucro, procedendo a reificação das minorias, tanto nacionais, quanto internacionais que buscam uma chance de vida mais dignas em outros Estados, mas que não conseguem se esquivar do poderio econômico e sua avidez.

Democracia

A democracia hodierna compactua com as novas tendências de descentralização do poder, na busca das necessidades reais e o diálogo entre a sociedade multicultural e o Estado, que alcance as esferas decisórias para uma proximidade palpável e praticável, precisamente para evitar a atuação de atores internos e externos que prejudiquem um sistema já combalido. Por esse viés, almeja-se “escrutando os sinais do novo, perguntado o que advém com a formação e o desenvolvimento da democracia moderna [...] e a transferência das ambiguidades da democracia de uma época para outra” (Lefort, 1991, p. 13)LEFORT, Claude. Pensando o político: ensaios sobre a democracia, revolução e liberdade. Trad. Eliana M. de Souza - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991., alcançando-a como fenômeno de sociedade e não mais como regime político.

Ao descortinar a coletividade nacional (passado e presente), em conjunto com todos os sistemas obtidos nas sete constituições que singraram o País, afere-se que não houve o fomento, desenvolvimento e aplicação de um sistema democrático eficaz e fidedigno ao conceito e prática da democracia3 3 Conforme Aristóteles, existe dentro do próprio conceito de democracia, várias espécies de democracias, necessárias para o atendimento dos mais diversos jaezes da sociedade, não podendo uma única modalidade de democracia, funcionar para todos os albergados no mesmo Estado. ARISTÓTELES. A política. Trad. de Nestor Silveira Chaves - Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017. p. 248. , possível de habilitar à todos com as ferramentas necessárias para o enfrentamento do próprio Estado, o exercício real da cidadania e o desencadear de novas formas de interpretação do ente, que proporcionasse canais para o erigir de modernas e mais efetivas formas de análise das transformações sociais e o acolhimento da diversidade.

A experiencia da própria política, aplicada aos sistemas que salvaguardam o Estado, são baseados na vida social e seus distintos grupos. Porém, “camadas sociais desempenhando funções diferentes tendem a se isolar, a se outorgar órgãos aptos a defender seus interesses particulares e a se transformar finalmente em classes distintas.” (Michels, 1982, p. 234)MICHELS, Robert. Sociologia dos partidos políticos. Trad. de Arthur Chaudon -Brasília: Editora Universidade de Brasília , 1982., prejudicando cada vez mais a democracia e particularizando o público.

O agir inerente do Estado e seu distanciamento da população (na configuração corrente), permeia e incute modalidades de operar nos indivíduos e grupos, que amplifica a reificação social, minando as perspectivas de melhoramento e entrelaçamento que a diversidade empreende, quando direcionada para as atribuições do desenvolvimento na própria democracia, “por isso, ao contrário do que é hoje frequente nas teorias democráticas, a esfera política não deve ser entendida ao modo de uma corte suprema em que última instância decide autonomamente sobre as condições a serem reguladas [...]” (Honneth, 2015, p. 487)HONNETH, Axel. O direito da liberdade. Trad. de Saulo Krieger. São Paulo: Martins Fontes , 2015., seja sobre o mercado econômico, ou o relacionamento da sociedade para com esse e o nortear político.

A homogeneização que o Estado busca, justifica-se somente na facilitação que o mesmo terá em não gerar os debates que a diversidade provoca; seja ela de pensamento, afiliação política, religiosa, filosófica, sexual ou financeira. Busca o ente estatal “forjar sistemas particulares de relações, combinando-os em um sistema global, como se a observação ou a construção não derivasse de uma experiencia da vida social” (Lefort, 1991, p. 25)LEFORT, Claude. Pensando o político: ensaios sobre a democracia, revolução e liberdade. Trad. Eliana M. de Souza - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. e assim, tolhendo indivíduos e instituições, da experiencia crucial para sua própria evolução, demonstrando que “os Estados, que ainda guardam em relação às suas principais características uma configuração moderna, parecem dar sinais iniciais de debilidade institucional para o cumprimento de tal tarefa.” (Santos, 2016, p. 1827)SANTOS, André Copetti; SANTOS, Evelyne Freistedt Copetti; EDLER, Gabriel Otacílio Bohn. Democracia em cidades multiculturais: re-significando os sistemas de tomadas de decisão públicas à luz dos direitos humanos das minorias. Revista de Direito da Cidade, vol. 07, n° 4. Número Especial, 2015. ISSN 2317-7721. Disponível em: www.e-publicacoes.uerj.br/rdc/article/view/20923.
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O exercício da democracia estaria no limite de uma performance sem a intercessão do Estado? Ou na própria desconstrução do ente e o emergir de um novo modelo de governo (autogoverno), em variação da autocracia do indivíduo4 4 Diferenciando da autocracia do governante, como aduz Kelsen. KELSEN, Hans. A democracia. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 144. , que busca pela própria razão e observação da realidade social, dirimir as problemáticas e alcançar o bem comum? Seja qual for a conclusão alcançada, a evidência aponta na dificuldade estatal em manejar e gerir uma sociedade com elevados níveis de complexidade e o acesso desses membros intricados à informação quase instantânea, diluindo o cerceamento racional imposto e buscando romper o poder limitador que mingua nas suas imposições baseadas na ignorância e domínio vertical. Já em contraponto, o regime autocrático referido por Bobbio (2017, p. 40)BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Trad. de Marco Aurélio Nogueira. 14ª ed. Rio de Janeiro / São Paulo: Paz e Terra, 2017., aponta para uma democracia cada vez mais transmutada no poder do governante e suas convicções, contrastando com os próprios ideais democráticos e em demérito dos governados.

A sociedade de fato democrática, almejada por filósofos, juristas, antropólogos e alguns políticos, encontra na atualidade, empecilho no próprio misoneismo estatal, com uma aversão ao novo, moderno, burlando o impulso para as mudanças primordiais (e complexas), encontrando-se tal movimento nefando, nos atores internos e externos, ávidos pela ignorância que perpetua as agendas econômicas e conserva tantas sociedades, em nível global, na mais completa penúria, destituídas da própria dignidade humana, posto que “o antagonismo econômico abafa a superestrutura ideológica” (Michels, 1982, p. 233)MICHELS, Robert. Sociologia dos partidos políticos. Trad. de Arthur Chaudon -Brasília: Editora Universidade de Brasília , 1982., ao tempo que restringe, limita e distorce o conhecimento.

Todos os caracteres apresentados e instilados na desconstrutividade (negativa) e mudança do eixo democrático, ocorre também e, em certa medida, pelo próprio bradar (e por vezes constatar) da insuficiência do sistema em atender a tantas demandas, o que deixa o Estado desprovido de recursos (financeiro, humano e técnico), para responder de forma eficiente aos variados grupos sociais, aos seus próprios agentes e as relações com outros Estados, em exíguo lapso temporal.

Em contrapartida, a desconstrutividade (positiva) democrática estaria atrelada a mecanismos que possibilitem uma nova configuração de agir e entendimento dos sistemas originais, ao tempo em que se adapta o conceito a realidade social, com toda sua diversidade, cultura, costumes e novas exigências de assimilação de gêneros e etnias, cada vez mais em contato (e conflito), possibilitando uma aplicação célere e objetiva na resolução e ampliação da participação, fiscalização e efetivação democrática de seu membros e frente ao Estado.

Nesses “ambientes caracterizados por altos índices de diversidade, cada vez mais surgem situações que têm gerado condições favoráveis para crises permanentes dos sistemas democráticos de tomada de decisão pública [...]” (Santos, 2016, p. 1827)SANTOS, André Copetti; SANTOS, Evelyne Freistedt Copetti; EDLER, Gabriel Otacílio Bohn. Democracia em cidades multiculturais: re-significando os sistemas de tomadas de decisão públicas à luz dos direitos humanos das minorias. Revista de Direito da Cidade, vol. 07, n° 4. Número Especial, 2015. ISSN 2317-7721. Disponível em: www.e-publicacoes.uerj.br/rdc/article/view/20923.
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. Tais colapsos demonstram uma inabilidade técnica e política (lato sensu) do Estado, em avançar no mesmo compasso da sociedade complexa, devido a quantidade e rapidez das demandas e sua inabilidade para atendê-las (Bobbio, 2017, p. 63)BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Trad. de Marco Aurélio Nogueira. 14ª ed. Rio de Janeiro / São Paulo: Paz e Terra, 2017., bem como a fragmentação em subsistemas que desvirtuam os objetivos calcados no bem comum e na compreensão do que seria o público, restando o ente estatal, sucateado e anêmico, servido apenas de suporte paliativo e não de alavanca para o progresso, desígnio máximo para o qual foi concebido.

Desse exame inicial, flui a pesquisa para as possibilidades do exercício efetivo da democracia, de como e onde, poderia ser implantada de forma plena, eficaz e eficiente, para o intuito ao qual, conforme Kelsen, ela não seria um fim, mas um caminho na progressão da liberdade (2000, p. 143)KELSEN, Hans. A democracia. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes , 2000., exercício pleno dos deveres e direitos entabulados no Estado Democrático de Direito.

O locus público

Ao diagnosticar o Estado, constata-se que esse cada vez mais assumiu encargos perante a sociedade, suas instituições e o cenário internacional, levando-o a reter e expandir o seu poder, posto que “todos os Estados que se tornaram mais democráticos tornaram-se ao mesmo tempo mais burocráticos” (Bobbio, 2017, p. 61)BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Trad. de Marco Aurélio Nogueira. 14ª ed. Rio de Janeiro / São Paulo: Paz e Terra, 2017., gerando, dessa maneira, efeitos colaterais e paradoxos, que o destituíram de sua autoridade por formas de organização sociais paralelas (Höffe, 2005, p. 174)HÖFE, Otfried. A democracia no mundo de hoje. Trad. de Tito Lívio Cruz Romão -São Paulo: Martins Fontes , 2005.. Eventos que levam a seguinte consideração: “deve-se, sobretudo, perguntar até que ponto e em que medida a democracia é desejável, possível e realizável num determinado momento.” (Michels, 1982, p. 239)MICHELS, Robert. Sociologia dos partidos políticos. Trad. de Arthur Chaudon -Brasília: Editora Universidade de Brasília , 1982..

Inverossímil que o Estado atual implementa e perpetua a democracia, posto que somente proporciona um simulacro daquele sistema e “na percepção dos cidadãos, o poder do Estado não se mostra como grandeza absoluta, mas como variável sob três parâmetros: as tarefas assumidas, a expectativa de realização das tarefas e a prestação propriamente dita” (Höffe, 2005, p. 175)HÖFE, Otfried. A democracia no mundo de hoje. Trad. de Tito Lívio Cruz Romão -São Paulo: Martins Fontes , 2005., não se constatando, hoje, a totalidade daqueles preceitos cumpridos em consonância e eficazmente, tanto nas suas funções primordiais, quanto no alcance e atendimento a sociedade. Logo, a busca por alternativas que caucionem o exercer do real sistema democrático, volta seu facho para a cidade - berço por excelência da democracia e local em que se pode experimentá-la, exercê-la e participar de seus procedimentos, de forma pessoal e ativa.

Nesse intuito, Rousseau explana que descobrir um método “de associação que possa defender e proteger, com toda a força da comunidade, o indivíduo e a propriedade de todos, e através do qual, cada um, coligando-se, possa não obstante, obedecer a si mesmo e permanecer livre como antes” (1996, p. 17-18)ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes , 1996., seria o ideal da democracia e do sistema democrático. Portanto, tal sentença justifica a prática e a conscientização da democracia, em âmbito local, com a participação e conhecimento de seu funcionamento, bem como as possibilidades de inserção, gerando o posterior costume de “vivência democrática” e não mais o asco e distanciamento do poder político, resultando que “o poder social vale como medida para a força de imposição de interesses organizados [...] aplicado as competências constitucionais e implementando as políticas nascidas das forças sociais, tornando-as em decisões obrigatórias” (Habermas, 1997, p. 59)HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. vol. II. Trad. Flávio Beno Siebeneichler - Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. 1997..

Distingue-se na locução de Habermas, que estratégico implantar a ressignificação do exercício da democracia na esfera local, gerando a sinergia necessária para instaurar e focalizar na produção dos meios de realização de políticas públicas, avaliação de situação e manifestação popular fidedigna no debate salutar de questões chave para o bom andamento de uma sociedade, empregado na localidade, na maior proximidade possível do poder, para sua fiscalização e orientação, “tendo a chance de exercer a influência direta na formação da política e no emprego do poder administrativo” (Habermas, 1997, p. 59)HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. vol. II. Trad. Flávio Beno Siebeneichler - Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. 1997..

Têm-se na circunscrição das cidades, uma fecunda oportunidade para que seus membros possam estabelecer um diálogo com as autoridades instituídas e reivindicar a melhoria ou direcionamento das forças públicas, ao tempo em que executam a própria fiscalização, conscientizando-se de que “a ideia de formação democrática da vontade política origina-se da noção de que o indivíduo só atinge liberdade no reino público constituído pela argumentação discursiva” (Honneth, 2001, p. 68)HONNETH, Axel. Democracia como cooperação reflexiva. John Dewey e a teoria democrática hoje. In: Democracia hoje: novos desafios para a teoria democrática contemporânea. SOUZA, Jessé (Org.). Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001., remetendo esse proceder a Ágora, das antigas cidades gregas, local em que o povo se reunia (geralmente nas praças) e entabulava as assembleias para o debate das questões de interesse geral.

Tal prática necessita retornar ou se intensificar, posto que o exercício político e o desempenho popular, “deve ocorrer nas comunidades menores, a partir dos indivíduos para, somente numa perspectiva subsidiária, ser necessária a atuação do poder público” (Hermany, 2015, p. 249)HERMANY, Ricardo. Aproximações teóricas no espaço local: o princípio democrático e a atribuição de sentido à dimensão horizontal da subsidiariedade. In: Direitos sociais e políticas públicas: desafios contemporâneos. COSTA, Marli Marlene Moraes da.; LEAL, Mônia Clarissa Hennig. (Organizadoras). Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2015. de forma ampla, no que corresponde a uma gerência das demandas, por si só e na influência das mesmas. Quanto mais distante a população estiver dos núcleos de poder público, maior as chances de suas reivindicações não alcançarem o destino, ou ainda, serem deturpadas na trajetória, para um cômodo desobrigar das autoridades competentes, sob a alegação de desconhecimento dos pleitos.

A descentralização do poder, em que pese ser procedida em termos legais, não ocorre na prática, possibilitando o acesso aos reais detentores do mesmo, sua legitimação e peso nas suas decisões, uma vez que o questionamento a ser feito, seria não o número dos que têm o direito de participar das decisões que lhes são cabíveis, mas sim os espaços em que podem exercer seus direitos, demonstrando o eficaz desenvolvimento da democracia no país (Bobbio, 2017, p. 50)BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Trad. de Marco Aurélio Nogueira. 14ª ed. Rio de Janeiro / São Paulo: Paz e Terra, 2017..

Ademais, com a atual migração e maior diversidade inserida diretamente nas cidades do País, constata-se novas demandas e carências que devem ser atendidas celeremente, resultando em que “as dimensões da cidade são mais adequadas para solução da equação combinatória entre democracia, equidade, diversidade e minorias” (Santos, 2018, p. 1829)SANTOS, André Copetti; SANTOS, Evelyne Freistedt Copetti; EDLER, Gabriel Otacílio Bohn. Democracia em cidades multiculturais: re-significando os sistemas de tomadas de decisão públicas à luz dos direitos humanos das minorias. Revista de Direito da Cidade, vol. 07, n° 4. Número Especial, 2015. ISSN 2317-7721. Disponível em: www.e-publicacoes.uerj.br/rdc/article/view/20923.
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o que resulta em “encurtar” o caminho do pleito e dos procedimentos que demorariam até mesmo anos para serem apreciados, deliberados e quem sabe acolhidos.

Tudo isso considerado em uma escala nacional e perpassando por inúmeras mesas até a prestação alcançar o(s) solicitante(s), recordando-se que “as instituições democráticas foram constantemente utilizadas para limitar a uma minoria os meios de acesso ao poder, ao conhecimento e ao gozo de direitos.” (Lefort, 1991, p. 34)LEFORT, Claude. Pensando o político: ensaios sobre a democracia, revolução e liberdade. Trad. Eliana M. de Souza - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991..

O Estado tenta proceder uma homogeneização, retirando as particularidades e diferenças de uma população multicultural, para que a solução e contenção de problemas possa ser realizada de forma mais eficiente e rápida, aparentando uma democracia competente, mas que na fórmula representativa, não logra em obter os resultados anunciados com tanto afinco, se demonstrando ineficaz, não impulsionando ou permitindo uma argumentação pelo viés populacional, somente creditando jaezes de outras instâncias e que compartilhem seus objetivos, geralmente voltados para os fins econômicos e de perpetuação do poder já estabelecido.

Nesse viés, observar-se que também de outras paragens emanam influencias, que de modo transversal, intervém no Estado para que ocorra a desconstrutividade (negativa) democrática e um minar do poder decisório, em que atores transnacionais agem livremente para o aumento da complexidade social, razão pela qual “a noção de superdiversidade emprega-se para sintetizar uma série de traços que afetam o modo de viver das pessoas. Não só o país de origem ou a etnicidade entram aqui em jogo [...]” (Santos, 2018, p. 1829)SANTOS, André Copetti; SANTOS, Evelyne Freistedt Copetti; EDLER, Gabriel Otacílio Bohn. Democracia em cidades multiculturais: re-significando os sistemas de tomadas de decisão públicas à luz dos direitos humanos das minorias. Revista de Direito da Cidade, vol. 07, n° 4. Número Especial, 2015. ISSN 2317-7721. Disponível em: www.e-publicacoes.uerj.br/rdc/article/view/20923.
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, mas todo o conceito abrangente de questões comportamentais, o transnacionalismo, as empresas transnacionais, o estabelecimento dos migrantes e o atendimento dos mesmos. Pautas, que por vezes são utilizadas como manobra para o próprio usufruir da desconstrutividade democrática, terceirizando as problemáticas de não atendimento à população para causas exteriores, “implicando, muitas vezes, a sua incapacitação em reagir ou controlar as decisões tomadas alhures, ou mesmo, ter de se adaptar aos interesses e vontades do capital transnacionalizado.” (Morais, 2011, p. 106)MORAIS, José Luis Bolzan de. As crises do estado e da constituição e a transformação espaço-temporal dos direitos humanos. 2. ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011..

Por conseguinte, a democracia esboroa de igual forma, tanto para os nacionais (natos ou naturalizados), quanto para os imigrantes que aportam de forma provisória ou no intento de conviver no País, demonstrando uma crise de cunho internacional, pois intrinca a própria ajuda humanitária. E será nesse contexto que

[...] a cidade ressurge como espaço estratégico para atender tendências críticas na reconfiguração da ordem social. Tanto a cidade como a região metropolitana constituem lugares estratégicos para a materialização de certas tendências macrossociais importantes [...]. Entre as tendências mencionadas encontra-se a globalização, o auge de novas tecnologias informáticas, a intensificação das dinâmicas transnacionais e translocais, a maior presença e voz de instâncias específicas da diversidade sociocultural. (Santos, 2018, p. 1831-1832)SANTOS, André Copetti; SANTOS, Evelyne Freistedt Copetti; EDLER, Gabriel Otacílio Bohn. Democracia em cidades multiculturais: re-significando os sistemas de tomadas de decisão públicas à luz dos direitos humanos das minorias. Revista de Direito da Cidade, vol. 07, n° 4. Número Especial, 2015. ISSN 2317-7721. Disponível em: www.e-publicacoes.uerj.br/rdc/article/view/20923.
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O exercício e o amparo democrático, na realidade contemporânea, permeada de todas a nuances nacionais e internacionais, demonstra sua eficácia e efetividade no locus público citadino, como a instância mais próxima, acessível e competente para a democracia agir e multiplicar suas finalidades, quais sejam: a de liberdade (expressão, ir e vir, permanecer, filosófica, religiosa, opinião, partidária, sexual, etc.), de participação (comunitária, partidária, publica, etc.), de fiscalização (social, política, financeira, seguridade, etc.), de igualdade (salarial, condições de trabalho, vivência, oportunidades, etc.), de justiça e de que as garantias (constitucionais, políticas, jurídicas, humanísticas e fundamentais) serão salvaguardadas, possibilitando a exigência e o cumprimento das leis estabelecidas, que permitam a convivência, o desenvolvimento e o aprendizado com a diversidade e a heterogeneidade de uma gama de pessoas e suas experiências, advindas de todas as partes do globo.

Desse modo, multiplicando o conhecimento e colaborando para que o espaço público seja acessível e definitivamente pertencente a população geral e não apenas para uma ínfima parcela da sociedade, que por certas características e auto reconhecimento, se proclama a única digna de atenção e detentora dos direitos cabíveis para o exercício da cidadania, demonstrando que “é o próprio sentido do poder político democrático que se dilui, exigindo a reconstrução dos lugares, métodos e práticas políticas” (Morais, 2011, p. 109)MORAIS, José Luis Bolzan de. As crises do estado e da constituição e a transformação espaço-temporal dos direitos humanos. 2. ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011..

Em ponderação a democracia plenamente exercida e “analisando-se do ponto de vista do direito internacional, mesmo que a soberania resida no Estado, sob a ótica da legitimação, ela toca ao povo” (Höffe, 2005, p. 120)HÖFE, Otfried. A democracia no mundo de hoje. Trad. de Tito Lívio Cruz Romão -São Paulo: Martins Fontes , 2005., entendido, hoje, como população (nacionais e estrangeiros), não podendo a democracia, de igual forma, ser percebida e difundida unicamente, como a prática do voto pela massa cidadã, falácia que mina os fundamentos democráticos e desestimula a participação em nichos que deveria ter ampla atuação e poder decisório.

A democracia vigente, então, não estaria sendo traçada em um despotismo velado, inserindo um Estado totalitário (oligárquico), obstando o avanço das pluralidades e complexidades sociais ao ponto de a abstração de que o conceito de democracia se encontra vencido? Percebe-se, assim, que “há uma tendência quase que incontornável de olharmos do Estado para diante, ou seja, do Estado para o planeta, do nacional para o global, ficando a cidade, o máximo possível, num campo de sombras” (Santos, 2018, p. 1831-1832)SANTOS, André Copetti; SANTOS, Evelyne Freistedt Copetti; EDLER, Gabriel Otacílio Bohn. Democracia em cidades multiculturais: re-significando os sistemas de tomadas de decisão públicas à luz dos direitos humanos das minorias. Revista de Direito da Cidade, vol. 07, n° 4. Número Especial, 2015. ISSN 2317-7721. Disponível em: www.e-publicacoes.uerj.br/rdc/article/view/20923.
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, gerando um facilitar para que a realidade local e a práxis que deveria ser adotada, se esfacele e a própria democracia considerada somente no plano nacional e não na vida ao lado e cotidiana.

Ao tempo em que se busca a contemplação dos institutos vinculados a democracia (a ela própria e em amplo aspecto), partindo sempre de uma ação centrifuga crescente, os reais vetores que a originaram são relegados e esquecidos, como se pela gradual questão global, o local deixasse de existir e todos os membros (indivíduos e instituições) somente coexistissem no nível nacional, em uma realidade paralela de obras ficcionais.

O próprio sentimento de desvinculamento e não pertencimento a um local, uma cultura ou grupo(s), desestabiliza o ser humano em todas as suas funções: cognitiva, produtiva, psicológica, social e física, pois não há o reconhecimento no outro e muito menos resposta para sua própria afirmação. (Vicente, 2015, p. 508)VICENTE, Jacson Bacin. A desumanização de direitos através da reificação: o não reconhecimento do outro. In: Clóvis Gorczevski. (Org.). Direitos Humanos e Participação Política. 1 ed. v. VI. Porto Alegre: Imprensa Livre, 2015.. Tais manobras são utilizadas para a homogeneização e isolamento dos indivíduos frente ao Estado, visto que dessa maneira, a formatação da sociedade e prevenção de levantes contra o establishment, se torna mais amena e de fácil contenção, caso ocorra, por não haver agrupamentos sólidos e coesos, munido de lideranças ou ideologias, o que deveria ser o oposto “porque uma “vontade comum” sempre é articulada, de forma mais ou menos consciente, em razão da mera cooperação social, devendo o aparato estatal ser encarado como a instituição política de execução dessa vontade” (Honneth, 2001, p. 72)HONNETH, Axel. Democracia como cooperação reflexiva. John Dewey e a teoria democrática hoje. In: Democracia hoje: novos desafios para a teoria democrática contemporânea. SOUZA, Jessé (Org.). Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001..

Desse modo, o local, a comunidade e por sua vez a cidade, constituem-se em verdadeiro berçário da democracia, pois início e cultivo dos valores de uma sociedade e ambiente em que a vida realmente ocorre e se desenvolve. Ademais, “conforme o mesmo critério utilizado para o direito, os poderes públicos dependem de consentimento, com base em uma vantagem distributivo-coletiva” (Höffe, 2005, p. 127)HÖFE, Otfried. A democracia no mundo de hoje. Trad. de Tito Lívio Cruz Romão -São Paulo: Martins Fontes , 2005., impelindo o Estado a diluir a opinião pública a tal ponto, que se torne um conjunto insipiente de posições e, portanto, de fácil manuseio, condicionando as cidades a quase um não-lugar, tolhendo a sociedade da legitima participação cívica e seu exercício em amplo aspecto.

Analisadas todas as posições vertidas, observa-se que o Estado está em extrema dificuldade para ordenar as relações sociais e a si próprio, em um nível, e em outro extremo, busca dissipar as diferenças existentes na sociedade, causadas pelas diversidades culturais, ideológicas, filosóficas e econômicas, ao tempo em que causador e vítima do seu próprio peso estrutural, absorve, utiliza e expande, agentes transnacionais para a consecução de seus desígnios, nem sempre alinhados aos interesses sociais, causando a própria desconstrutividade (negativa) democrática, quando deveria erigi-la e mantê-la por todos os meios lícitos disponíveis e em resultado, colaborando para o desenvolvimento pessoal do indivíduo e na marcha social, posto que “a atividade política dos cidadãos tem de consistir principalmente do controle regular sobre o aparato estatal, cuja tarefa essencial, por sua vez, é a proteção das liberdades individuais.” (Honneth, 2001, p. 69)HONNETH, Axel. Democracia como cooperação reflexiva. John Dewey e a teoria democrática hoje. In: Democracia hoje: novos desafios para a teoria democrática contemporânea. SOUZA, Jessé (Org.). Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001..

Em derradeiro raciocínio (aberto), consta-se nas palavras de Rousseau, uma incomoda veracidade: “A prendre le terme dans la rigueur de l’accepition, il n’a jamais existé de véritable démocratie, et il n’en existira jamais. Il est contre l’ordre naturel que le plus grand nombre gouverne et que le petit soit gouverné. (Para tomar o termo no rigor da aceitabilidade, nunca existiu uma verdadeira democracia e nunca existirá. É contra a ordem natural que o maior número governa e que o pequeno é governado.). (Rousseau, 1996, p. 25)ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes , 1996..

Conclusão

Os fenômenos e reflexos analisados no presente estudo, demonstram que a soberania popular insculpida no artigo 14, caput, combinado com o artigo 1°, inciso I, da Constituição Federal de 1988, não efetivam o expresso em seus dispositivos (nem mesmo o Preâmbulo), posto que o Estado Democrático não alcançou a totalidade de seus desígnios (Brasil, 1988, p. 10)BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ constituiçao.htm . Acesso em: 28/09/2023.
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No ano comemorativo as três décadas da Constituição Federal (05/10/1988), nota-se no paladar jurídico-político, um estranho sabor ocre, que não permite degustar a vitória alardeada pela então democracia do Estado novo, deparando-se com um ente que explora e domina seus membros, descaracteriza-os e busca através de sua homogeneização, diminuir as competências sociais assumidas, na realização e solução das tarefas e na prestação propriamente dita.

Conforme as observações consultadas, o governo para o povo não seria o mesmo que o governo do povo e não se constata, nos dias correntes, um governo erigido para que a população possa exercer o poder que conquistou (ou lhe foi concedido?), sendo relegada a mero número de contagem em épocas eletivas e desprezada no intervalo. As cidades que deveriam expandir o convívio entre todo(a)s, gerando a igualdade libertadora, oprime e discrimina, relegando para a margem da sociedade (e da circunscrição material) seus próprios cidadãos, conjuntamente com os imigrantes que aportam no seu território.

O sistema democrático, concebido e aplicado para uma elevação dos direitos fundamentais e humanos, permanece (há trinta anos), ancorado nas laudas do ordenamento jurídico, permitido que atores (internos e externos), moldem seus apontamentos ao bel prazer e ao som do tilintar do vil metal, colhido da exploração de massas humanas, refugiadas no consolo da sobrevivência e destituídas da dignidade almejada.

Todavia em um olhar mais apurado dos cenários apresentados (ainda que negativos), pode-se extrair algumas concepções para o futuro, em que se crê, auxiliará na melhoria do sistema democrático, aplicando alguns conceitos e práticas que modifiquem a perspectiva da população; do Estado para com essa e dos indivíduos na relação inter semelhantes.

O primeiro seria a (re)educação de civismo, política e bem público, desde o ensino infantil ao superior, ao tempo de um constante reciclar da sociedade nos conceitos de democracia, dignidade humana e diversidade, assegurada pelo poder público e fomentada pelas instituições (públicas e privadas), calcadas no diálogo, debate e participação, visando a prevenção e identificação das “aberrações” surgidas nas últimas décadas, sejam em indivíduos, empresas, ideologias ou filosofias, que possam ludibriar a população e incutir objetivos contrários ao bem comum.

Em segundo, a mudança do conceito de democracia participativa para semidireta, utilizando-se das novas plataformas tecnológicas para um acesso e votação simultânea das questões mais sensíveis e tangentes a população (tanto nacional como internacional), via aplicativos, softwares, internet, etc.; terceiro: planejar, organizar e executar uma democracia sustentável e mutável, conforme as necessidades dos grupos sociais, e que, pudessem ser votadas com maior celeridade (aplicação do primeiro e segundo conceitos); quarto: a questão da autonomia da cidade, como fator de mudanças em âmbito nacional e com maior independência (econômica e administrativa), para o atendimento direto da população, de migrantes e demandas sociais mais sensíveis, sem a dependência de trânsito das questões até o Congresso Nacional ou a capital dos estados-membros, gerando a sinergia necessária para a cooperação e resolução das problemáticas e real assistência a população; quinto: simplificar os métodos para a participação popular nas cidades e abrir espaços (físicos e virtuais), para que haja a manifestação democrática de suas ideias, sugestões, reclamações e alinhamentos objetivos para a construção de uma sociedade igualitária e justa.

E por último, desenvolver políticas (comissões, mesas, etc.) que identifiquem os motivos e agendas das empresas transnacionais, pretendentes a se instalar em território nacional, para que seja apurado a forma de auxílio no progresso da localidade, região e do próprio País, seu impacto humano e ambiental e como será investido o capital de retorno (humano e financeiro), extraído com a produção de suas mercadorias, bem como, a influência exercida nos poderes do Estado, para o efetivar de seus propósitos.

Observa-se do próprio Estado uma logística para que haja o desconsiderar e afastar dos indivíduos sociais do locus citadino, pois os apartando dos canais políticos das cidades, resta de fácil manejo as demais esferas (estadual-federal) colocando em um patamar inalcançável ou de difícil acesso e longe da realidade nacional o seu entendimento e interferência, ficando em um local intangível e demonstrando-se somente acessível para aqueles que possuem determinadas características, intelectualidade ou poder econômico.

Logo, precisamos desenvolver e instruir uma real capacitação para a democracia - como referido por Honneth - que não existe nos dias atuais, partindo da forma como nos instruímos, como percebemos o outro, de como trabalhamos a diversidade, a tecnologia e o meio ambiente, conectados por esse ente superior que se demonstra (como na obra de HobbesHOBBES, Thomas. Leviatã, ou, matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.) um leviatã aterrador e que no vis-à-vis, deve ser domesticado, adestrado e eficazmente colocado a serviço daqueles que lhe permitem a existência (e não o oposto), para que então, ciente da percepção de si mesmo, o ser humano possa alcançar o próximo estágio evolutivo de uma pax et bonum.

Referências

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  • VICENTE, Jacson Bacin. A desumanização de direitos através da reificação: o não reconhecimento do outro. In: Clóvis Gorczevski. (Org.). Direitos Humanos e Participação Política. 1 ed. v. VI. Porto Alegre: Imprensa Livre, 2015.
  • VICENTE, Jacson Bacin. Transnacionalismo e interdependência: das desigualdades sociais a perda de legitimação democrática. Artigo publicado no I Congresso Internacional de Jurisdição Constitucional, Democracia e Relações Sociais e I Mostra de Trabalhos Jurídicos Científicos. PPGD, da Faculdade de Direito da Universidade de Passo Fundo (UPF). 2017. Disponível em: http://www.editora.upf.br/index.php/e-books-topo/37-direito-area-do-conhecimento/175-anais-i-congresso-internacional-de-jurisdicao
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  • VICENTE, Jacson Bacin. O fenômeno da globalização e a manutenção da dinâmica da dependência na América Latina dos países centrais do capitalismo: uma análise a partir da teoria do sistema-mundo de Immanuel Wallerstein. 197 f. Tese (Programa de Pós-Graduação em Direto - Doutorado) - Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, Santo Ângelo, 2020.

Notas

  • 1
    [...] o que seria a Reificação em termos inteligíveis? O conceito dessa palavra, que tem origem no latim rēs, rēi (coisa) + terminação ficação (tornar), ou seja, tornar ou transformar-se em (uma) coisa (objeto), surge em decorrência da não visualização no outro, de um ser humano, uma pessoa, mas sim, um objeto (por vezes abjeto), necessário para um propósito: produzir bens de consumo, transportá-los, negociá-los e mantê-los. VICENTE, Jacson Bacin. A desumanização de direitos através da reificação: o não reconhecimento do outro. In: Clóvis Gorczevski. (Org.). Direitos Humanos e Participação Política. 1 ed. Porto Alegre: Imprensa Livre, 2015, v. VI, p. 506.
  • 2
    VICENTE, Jacson BacinVICENTE, Jacson Bacin. O fenômeno da globalização e a manutenção da dinâmica da dependência na América Latina dos países centrais do capitalismo: uma análise a partir da teoria do sistema-mundo de Immanuel Wallerstein. 197 f. Tese (Programa de Pós-Graduação em Direto - Doutorado) - Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, Santo Ângelo, 2020.. O fenômeno da globalização e a manutenção da dinâmica da dependência na América Latina dos países centrais do capitalismo: uma análise a partir da teoria do sistema-mundo de Immanuel Wallerstein. 197 f. Tese (Programa de Pós-Graduação em Direto - Doutorado) - Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, Santo Ângelo, 2020. p. 19.
  • 3
    Conforme AristótelesARISTÓTELES. A política. Trad. de Nestor Silveira Chaves - Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017. , existe dentro do próprio conceito de democracia, várias espécies de democracias, necessárias para o atendimento dos mais diversos jaezes da sociedade, não podendo uma única modalidade de democracia, funcionar para todos os albergados no mesmo Estado. ARISTÓTELES. A política. Trad. de Nestor Silveira Chaves - Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017. p. 248.
  • 4
    Diferenciando da autocracia do governante, como aduz Kelsen. KELSEN, Hans. A democracia. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 144.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    26 Jul 2023
  • Aceito
    06 Mar 2024
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