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A representação da mulher no cinema: um estudo a partir da pesquisa em estado do conhecimento

The representation of women in cinema: a study from state of knowledge research

Resumo

A pesquisa tem por objeto a representação da mulher no cinema, com o objetivo de analisar os argumentos levantados sobre essa temática pela pesquisa qualificada no Brasil, em língua portuguesa. Justifica-se a importância do estudo, principalmente, pela influência do cinema na criação dos processos identificatórios generificados, também no mundo jurídico (legislativamente e judicialmente). Parte-se do seguinte problema: qual a representação de gênero no cinema, apontada pela bibliografia qualificada brasileira? A hipótese sustenta que existe uma correlação entre os resultados da pesquisa brasileira e aqueles apontados por Lauretis, Mulvey e hooks, isso é, de haver uma objetificação da mulher, sendo ela representada como um objeto ao olhar masculino; ademais, com uma sub-representação de raça e consequente exclusão da mulher negra e latina. Dialoga-se com o problema e a hipótese a partir da epistemologia de tentativa e erro, especialmente para buscar refutar a hipótese levantada. A tentativa de refutação foi realizada por meio de uma pesquisa em estado do conhecimento. Como resultado, não foi possível refutar a hipótese levantada.

Palavras-chave:
Gênero; Cinema; Estado do conhecimento; Ensino; Direito

Abstract

The research’s theme is the representation of women in cinema, intending to analyze the arguments raised on this theme by qualified research in Brazil, in Portuguese. The importance of the study is justified, mainly, by the influence of cinema in the creation of gender identification processes, also in the legal world (legislatively and judicially). It starts with the following problem: what is the representation of gender in cinema, pointed out by the qualified Brazilian bibliography? The hypothesis sustains that there is a correlation between the results of the Brazilian research and those pointed out by Lauretis, Mulvey and hooks, that is, of having an objectification of the woman, being her represented as an object to the male gaze; in addition, with an underrepresentation of race and consequent exclusion of black and Latino women. It dialogues with the problem and the hypothesis from the epistemology of trial and error, especially to seek to refute the hypothesis raised. The refutation attempt was carried out through a state of knowledge research. As a result, it was not possible to refute the hypothesis raised.

Keywords:
Gender; Cinema; State of knowledge; Knowledge; Law

1 INTRODUÇÃO

Existe bastante discrepância com relação à década de início dos estudos feministas em cinema. Enquanto Alison Butler (2002BUTLER, Alison. Women´s cinema: the contested screen. London: Wallflower, 2002.) e Anneke Smelik (1999SMELIK, Anneke. Feminist film theory. In COOK, P.; BERNICK, M. The cinema book. London: London British Film Institute, 1999, p. 353-365.) mencionam a década de 1960, Gisele Gubernikoff (2009GUBERNIKOFF, Giselle. A imagem: representação da mulher no cinema. Conexão - Comunicação e Cultura, v. 8, n. 15, p. 65-77, 2009.) aponta a década de 1970 e Ana Veiga (2017VEIGA, Ana Maria. Gênero e cinema, uma história de teorias e desafios. Estudos Feministas , Florianópolis, v. 25, n. 3, p. 1355-1357, 2017.) sugere as décadas de 1980 e 1990. Independentemente dessas divergências, em conjunto, as pesquisadoras mencionadas apontam a importância de Teresa de Lauretis, Laura Mulvey e bell hooks para o início das pesquisas feministas em cinema, principalmente, para as pesquisas a respeito da representação da mulher no cinema como objeto, com Lauretis e Mulvey, e da interseccionalidade e da ausência da mulher negra, com hooks.

Na década de 1960, as primeiras críticas feministas ao cinema se direcionaram às imagens sexistas da representação das mulheres em filmes hollywoodianos. Sobre a mencionada década, Smelik afirma que:

Mulheres eram representadas como o sexo passivo, objetificadas ou fixadas em estereótipos que oscilavam entre a imagem de mãe (“Maria”) e a puta (“Eva”). Essas imagens repetidas das mulheres foram consideradas como distorções objetificadoras da realidade, com impacto negativo sobre as espectadoras mulheres. As feministas clamaram por imagens positivas das mulheres. (1999, p. 353).

A teoria feminista do cinema, na década de 1970, explica Giselle Gubernikoff (2009GUBERNIKOFF, Giselle. A imagem: representação da mulher no cinema. Conexão - Comunicação e Cultura, v. 8, n. 15, p. 65-77, 2009., p. 66), parte de teóricas britânicas e norte-americanas preocupadas com as representações da mulher no cinema. Em geral, a teoria feminista do cinema busca mostrar que os “estereótipos impostos à mulher, através da mídia, funcionam como uma forma de opressão, pois, ao mesmo tempo que a transformam em objeto (principalmente quando endereçadas às audiências masculinas), a anulam como sujeito e recalcam seu papel social” (2009, p. 68). Tanto na década de 1960 quanto de 1970, “a noção de gênero como diferença sexual era central para as críticas e os protestos, a releitura de representações culturais e narrativas, o questionamento das teorias da subjetividade e da sexualidade, da textualidade, para escrever, ler e para o espectador” (Lauretis, 1994LAURETIS, Teresa de. A tecnologia de gênero. In HOLANDA, Heloísa Buarque de. Tendências e impasses: o feminismo como crítica cultural. Rio de Janeiro, Rocco. 1994, p. 206-242., p. 206).

Laura Mulvey, em seu artigo Visual pleasure and narrative cinema (1999MULVEY, Laura. Visual Pleasure and Narrative Cinema. In BRAUDY, Leo; MARSHALL, Cohen, Film Theory and Criticis: Introductory Readings. New York: Oxford UP, 1999. p. 833-844., p. 824-838), publicado originalmente nos anos 1970, rompe com a noção de gênero fundada no sexo dentro da teoria feminista do cinema. A autora foi bastante contundente na crítica ao cinema hollywoodiano, argumentando que ele se restringe a uma mise-en-scène formal que reflete ideologias dominantes da sociedade estadunidense. Para a autora, vinculado a ordem patriarcal, o cinema surgiu para satisfazer o prazer visual, principalmente the man´s gaze - o olhar masculino. Nesse sentido, o cinema atua entre o homem-ativo e a mulher-passiva, tornando-a “o outro” sujeita ao olhar (contemplação) masculino. No cinema, critica Mulvey, as mulheres são representadas como objetos sexuais que concedem significado ao desejo masculino: “como um objeto erótico para os personagens da história e como um objeto erótico para o espectador”, em uma relação de scopophilia (1999MULVEY, Laura. Visual Pleasure and Narrative Cinema. In BRAUDY, Leo; MARSHALL, Cohen, Film Theory and Criticis: Introductory Readings. New York: Oxford UP, 1999. p. 833-844., p. 838).

Por outro lado, Ana Veiga (2017VEIGA, Ana Maria. Gênero e cinema, uma história de teorias e desafios. Estudos Feministas , Florianópolis, v. 25, n. 3, p. 1355-1357, 2017., p. 1355) sugere que foi apenas entre os anos 1980 e 1990 que surge “na crítica teórica do cinema o conceito e gênero, tendo como uma de suas inspiradoras a italiana Teresa de Lauretis (1989LAURETIS, Teresa de. Alicia Ya No. Feminismo, semiótica, cine. Madrid, Cátedra, 1991.). A autora denunciava o aparato cinematográfico como aquilo que passou a denominar “tecnologia de gênero”.” Concomitantemente, em bell hooks, o olhar se volta para a opressão nas representações das “mulheres negras e pobres nos filmes, historicamente relegadas à subalternidade e ao silencio, também aleijadas do debate crítico feminista.” (Veiga, 2017VEIGA, Ana Maria. Gênero e cinema, uma história de teorias e desafios. Estudos Feministas , Florianópolis, v. 25, n. 3, p. 1355-1357, 2017., p. 1355)

Teresa de Lauretis, em seu escrito A tecnologia de gênero (1994LAURETIS, Teresa de. A tecnologia de gênero. In HOLANDA, Heloísa Buarque de. Tendências e impasses: o feminismo como crítica cultural. Rio de Janeiro, Rocco. 1994, p. 206-242., p. 207), pensou em gênero a partir dos delineamentos teóricos de Michel Foucault em A história da sexualidade. Para ela, tratava-se de pensar o gênero não como uma propriedade dos corpos, mas enquanto efeito produzido nos corpos, como representação ou auto representação, oriundo de variadas tecnologias sociais, como o próprio cinema. Para Lauretis (1994LAURETIS, Teresa de. A tecnologia de gênero. In HOLANDA, Heloísa Buarque de. Tendências e impasses: o feminismo como crítica cultural. Rio de Janeiro, Rocco. 1994, p. 206-242.), por consequência, ao contrário do sexo “natural”, o gênero é uma representação de cada pessoa. O sistema de gênero, portanto, seria um sistema simbólico e cultural, interconectado com fatores políticos e econômicos. Em resumo, “o sistema sexo-gênero [...] é uma construção sociocultural e o aparato semiótico, um sistema de representação que atribui significado (identidade, valor, prestígio, localização na hierarquia social etc.) aos indivíduos da sociedade” (Lauretis, 1994LAURETIS, Teresa de. A tecnologia de gênero. In HOLANDA, Heloísa Buarque de. Tendências e impasses: o feminismo como crítica cultural. Rio de Janeiro, Rocco. 1994, p. 206-242., p. 210).

Nesse sentido, no livro Alicia ya no, Lauretis (1992LAURETIS, Teresa de. Alicia Ya No. Feminismo, semiótica, cine. Madrid, Cátedra, 1991., p. 18-19 e 64) denuncia a representação da mulher e do seu corpo como objeto do olhar masculino. Para ela, o cinema constitui um ponto de partida necessário para qualquer compreensão de gênero e, também, dos efeitos ideológicos na construção de sujeitos sociais. Lauretis (1994LAURETIS, Teresa de. A tecnologia de gênero. In HOLANDA, Heloísa Buarque de. Tendências e impasses: o feminismo como crítica cultural. Rio de Janeiro, Rocco. 1994, p. 206-242., p. 219) busca pensar sobre o cinema como uma tecnologia de gênero no seguinte sentido: a forma como o gênero é representado por essa tecnologia, mas também como essa representação é assimilada pelo espectador a que essa tecnologia se dirige, no âmbito dos processos de identificação e de construção dos sujeitos. Logo, a autora argumenta a necessidade de um cinema que ofereça novas formas de subjetividades e novas miradas para identificação das espectadoras (Lauretis, 1992LAURETIS, Teresa de. Alicia Ya No. Feminismo, semiótica, cine. Madrid, Cátedra, 1991., p. 216-217).

Por sua vez, no livro Ain´t I a Woman, bell hooks (1981HOOKS, bell. Ain´t I a woman: black woman and feminism. Cambridge, MA: South End, 1981.) apresentou uma contundente crítica aos filmes estadunidenses e ao modo como a mulher negra foi, concomitantemente, excluída e construída pela representação fílmica. Principalmente, o mito de que “todas as mulheres negras eram sexualmente perdidas” (1981HOOKS, bell. Ain´t I a woman: black woman and feminism. Cambridge, MA: South End, 1981., p. 47), ou as imagens, em tese positivas, que retratam as mulheres negras como “sofredoras, religiosas, figuras maternais” (1981HOOKS, bell. Ain´t I a woman: black woman and feminism. Cambridge, MA: South End, 1981., p. 48-49). bell hooks também denunciou que, quando mulheres e homens negros eram representados no cinema ou na televisão, tinha-se apenas um personagem negro (o negro único), que reflete uma lógica de exclusão e impacta na autoestima dos espectadores e espectadoras negros e negras. No livro Race and Representation, hooks (1992HOOKS, bell. Race and representation. Boston: South end Press, 1992., p. 5) retoma a crítica apontada, afirmando que a mídia de massas apresenta uma imagem das pessoas negras que reforça a supremacia branca. Para ela, o aparato ideológico da mídia de massas é político e as imagens representadas atuam de forma a definir e controlar, política e socialmente, o poder que as pessoas em geral e os grupos marginalizados podem acessar.

Em conjunto, as mencionadas teóricas feministas do cinema argumentam a representação de visões estereotipadas e divisões binárias e hierarquizadas de gênero na mídia; inclusive, segundo Murphy, com a identificação de personagem mulheres a mães ou amantes, em papeis de dependência, altamente emocionais e com trabalhos menos prestigiosos em comparação aos personagens homens. Ainda, são altamente sexualizadas e objetificadas, principalmente mulheres negras e latinas (Murphy, 2015MURPHY, Jocelyn Nichole. The role of women in film: supporting the men - an analysis of how culture influences the changing discourse on gender representations in films. Undergraduate Thesis (Journalism). United States: University of Arkansas, 2015., p. 11-12).

Diante dessas argumentações críticas, o artigo tem por objeto a representação da mulher no cinema e objetiva analisar os argumentos levantados sobre a representação da mulher no cinema pela pesquisa qualificada no Brasil, em língua portuguesa. Justifica-se a importância desse estudo, principalmente, em razão da influência do cinema na criação dos processos identificatórios generificados, conforme argumentado pela teoria feminista do cinema, conforme será melhor explanado no decorrer deste artigo. Ainda, deve-se considerar que a influencia desses processos identificatórios de gênero nas subjetividades extrapola o âmbito individual e reedifica-se nos âmbitos político, econômico, cultural e social, conforme Lauretis (1994LAURETIS, Teresa de. A tecnologia de gênero. In HOLANDA, Heloísa Buarque de. Tendências e impasses: o feminismo como crítica cultural. Rio de Janeiro, Rocco. 1994, p. 206-242.), com grande influencia no Direito. Esse âmbito, no sentido posto, é altamente relacionado aos demais mencionados, tanto legislativamente (a influencia sociocultural nas leis) quanto judicialmente (na forma como o sistema de justiça aplica as leis em casos concretos).

Não se pode desconsiderar que o Direito, em vinculação aos âmbitos social, econômico, político e cultural, apresenta-se como (a) sexista, tendo colocado as mulheres em desvantagem, seja por conceder-lhes menos recursos materiais, seja por as julgar de maneira estereotipada; (b) masculino, priorizando o sujeito homem e insistindo em valores da racionalidade universal masculina, como a igualdade, a neutralidade e a objetividade; e, (c) gendrado, sendo fundado na divisão binária das categorias homem e mulher, inclusive em suas bases teóricas, como a noção de “homem médio”. (SMART, 2020SMART, Carol. A mulher do discurso jurídico. Rev. Direito Práx., Rio de Janeiro, v. 11, n. 2, p. 1418-1439, 2020., p. 1422-1427) Portanto, a pesquisa sobre a representação das mulheres no cinema, com fundamento nos processos identificatórios generificados, apresenta grande relevância para o campo jurídico.

O artigo busca, desse modo, dialogar com o seguinte problema de pesquisa: qual a representação de gênero no cinema, apontada pela bibliografia qualificada brasileira? A hipótese provisória é no sentido de que existe uma correção entre os resultados da pesquisa brasileira e aqueles apontados por Lauretis, Mulvey e hooks, isso é, existe uma objetificação da mulher do cinema, sendo ela representada como um objeto ao olhar do sujeito masculino; ademais, com uma sub-representação de raça, com predominância da representação e beleza da mulher branca no cinema, e consequente exclusão da mulher negra e latina. Dialoga-se com o problema e a hipótese a partir da epistemologia de tentativa e erro, também denominada método hipotético-dedutivo, especialmente para buscar refutar a hipótese de pesquisa levantada.

A experiência realizada, que buscou refutar a hipótese, foi efetuada mediante pesquisa sobre o estado do conhecimento, especialmente a metodologia desenvolvida por Marília Morosini (2015MOROSINI, Marilia Costa; NASCIMENTO, Lorena Machado do. Uma perspectiva metodológica da produção sobre Internacionalização da Educação Superior em programas de pós-graduação do Brasil. VIII Seminário Internacional de Educação Superior - RIES - REDE GEU: A Educação Superior e Contextos Emergentes. Porto Alegre, 2015.). Nesse sentido, o artigo estrutura-se em duas seções, além da introdução e da conclusão. Na segunda seção, aborda-se a metodologia de estado do conhecimento, com os parâmetros sistemáticos da pesquisa, além das bibliografias anotada, sistematizada, categorizada e propositiva, com a construção do texto analítico; por fim, enfrenta-se, segundo a epistemologia da tentativa e erro, o problema e a hipótese de pesquisa. Como resultado de pesquisa, não foi possível refutar a hipótese, restando corroborada provisoriamente.

2 ESTADO DO CONHECIMENTO

A pesquisa em estado do conhecimento, segundo Marília Costa Morosini, é a “[...] identificação, registro, categorização que levem à reflexão e síntese sobre a produção científica de uma determinada área, em um determinado espaço de tempo, congregando periódicos, teses, dissertações e livros sobre uma temática específica” (2015MOROSINI, Marilia Costa. Estado de conhecimento e questões do campo científico. Revista Educação, v. 40, n. 1, p. 101-116, 2015., p. 102). Apesar de ser pouco utilizada no Brasil, trata-se de importante metodologia para localizar um tema de pesquisa e nortear a investigação sobre ele, especialmente por situar o conhecimento intelectual já produzido em torno desse tema (Morosini; Fernandes, 2014MOROSINI, Marilia Costa; FERNANDES, Cleoni Maria Barboza. Estado do conhecimento: conceitos, finalidades e interlocuções. Revista Educação por escrito, v. 5, n. 2, p. 154-164, 2014., p. 158; Morosini; Nascimento, 2015MOROSINI, Marilia Costa; NASCIMENTO, Lorena Machado do. Uma perspectiva metodológica da produção sobre Internacionalização da Educação Superior em programas de pós-graduação do Brasil. VIII Seminário Internacional de Educação Superior - RIES - REDE GEU: A Educação Superior e Contextos Emergentes. Porto Alegre, 2015., p. 2).

Para essa pesquisa em estado do conhecimento, serão respeitadas as etapas propostas por Marilia Costa Morosini e Lorena Machado do Nascimento (2015MOROSINI, Marilia Costa; NASCIMENTO, Lorena Machado do. Uma perspectiva metodológica da produção sobre Internacionalização da Educação Superior em programas de pós-graduação do Brasil. VIII Seminário Internacional de Educação Superior - RIES - REDE GEU: A Educação Superior e Contextos Emergentes. Porto Alegre, 2015.), também explicadas por Zoraia Bittencourt (2020BITTENCOURT, Zoraia Aguiar. Pesquisa Estado do Conhecimento. In V Seminário Interdisciplinar em Ciências Humanas, Erechim, 2020.). Dessa forma, em primeiro lugar, a pesquisa de caráter quantitativo foi efetuada nas bases de dados Scielo1 1 Disponível em: https://scielo.org. Acesso em 21 ago. 2020. (Scientific Eletronic Library Online) e IBCT2 2 Disponível em: https://www.ibict.br/informacao-para-a-pesquisa. Acesso em 21 ago. 2020. (Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia), na data de 21 de agosto de 2020. Em ambas as bases de dados, foram pesquisados os seguintes termos de pesquisa ((representação) AND (mulher) AND (cinema)), filtrando-se a busca apenas para artigos científicos. Para essa pesquisa, não foram delimitados os anos de publicação. Na base de dados Scielo, foram encontrados 5 (cinco) títulos; na base de dados do IBCT, foram encontrados 46 títulos que corresponderam os termos de pesquisa e a delimitação para busca em artigos.

Gráfico 1
Incidência dos termos de pesquisa por campo

Por ocasião da primeira filtragem, encontrou-se 51 (cinquenta e um) artigos que corresponderam, no campo pesquisado, os termos ((representação) AND (mulher) AND (cinema)). Sequencialmente, analisou-se o título, resumo e palavras-chave de todos os artigos, para filtrar a aderência ao tema de pesquisa. Nessa etapa, selecionou-se 13 (treze) artigos no total, sendo 4 (quatro) oriundo da base de dados Scielo e 11 (onze) oriundos da base de dados do IBCT. Ainda, 3 (três) dos artigos selecionados apareceram em ambas as bases de dados, sendo duplicados.

Diante disso, seguindo a metodologia estado de conhecimento, realizou-se a bibliografia anotada dos 13 (treze) trabalhos selecionados, com organização das referências bibliográficas e resumos completos. Ainda e, sequencialmente, foi realizada a bibliografia sistematizada das obras, com organização específica dos itens.

Conforme explica Bittencourt (2020BITTENCOURT, Zoraia Aguiar. Pesquisa Estado do Conhecimento. In V Seminário Interdisciplinar em Ciências Humanas, Erechim, 2020.), enquanto a bibliografia anotada engloba a organização bibliográfica da amostragem da pesquisa em estado do conhecimento, principalmente com a organização dos resumos; a bibliografia sistematizada engloba a sistematização dos dados presentes da bibliografia anotada, com subdivisão da apresentação em título, ano de publicação e autoria.

Com a realização das bibliografias anotada e sistematizada, foi possível extrair algumas informações quantitativas importantes para a compreensão da pesquisa qualitativa. Em primeiro lugar, apesar de a pesquisa sobre a representação da mulher no cinema ter início na década de 1960, por parte das Teóricas Feministas do Cinema, principalmente estadunidenses e britânicas, a pesquisa em estado do conhecimento mostra que, no Brasil, as publicações encontradas sobre o tema são bastante recentes. Especialmente com relação à amostragem utilizada nesta pesquisa, as publicações iniciam apenas em 2009, conforme a tabela abaixo.

Gráfico 2
Anos de produção das pesquisas

Além dos dados quantitativos sobre os anos de publicação, que parecem demonstrar a brevidade do estudo em português sobre a representação da mulher no cinema, outra informação quantitativa extraída foi a região do Brasil em que as publicações ocorreram. A partir do estudo realizado, percebeu-se uma concentração das publicações principalmente nas regiões Sul e Sudeste, com ênfase na primeira região apontada. Apenas duas das pesquisas, efetuadas em língua portuguesa, não se aplicaram para esta análise quantitativa, uma vez que foram publicadas em Revista portuguesa.

Gráfico 3
Regiões de publicação

Com base no gráfico 3, é possível perceber a concentração das publicações nas regiões brasileiras Sul, prioritariamente, e Sudeste. Além dessa informação, outro dado quantitativo extraído foi o nível de escolaridade dos autores e autoras. Com base no nível completo de escolaridade de cada autor, percebeu-se que quase a totalidade dos autores(as) possuía título de doutorado, conforme tabela a seguir.

Gráfico 4
Nível de escolaridade do(a)s autores(as)

O gráfico 4 demonstra que, no âmbito da amostragem selecionada por esta pesquisa em estado do conhecimento, dos 15 (quinze) autores(as) dos artigos - alguns artigos foram escritos em coautoria -, apenas 3 (três) possuíam título de Mestre; todos os demais possuíam título de Doutor(a), em diferentes áreas do conhecimento. Inclusive, sobre diferentes áreas do conhecimento, a última extração de dados quantitativos feita com base nesta pesquisa concluiu pela interdisciplinaridade na formação dos autores(as) que publicaram artigos científicos sobre a representação da mulher no cinema. Foram encontradas 8 (oito) diferentes áreas de formação, conforme o gráfico a seguir.

Gráfico 5
Área de conhecimento das publicações

Conforme o gráfico 5, a interdisciplinaridade da pesquisa em representação da mulher no cinema demonstra-se a partir da área de formação dos autores(as). Foram encontradas 8 (oito) diferentes formações em Mestrado e Doutorado - é considerado para esta pesquisa apenas a última formação de cada autor(a) -, sendo: Letras, História, Multimeios, Mídia, Arte e Cultura Visual, Ciência Política, Comunicação e Educação.

Por fim, extraiu-se o gênero dos autores. Conforme se apresenta no gráfico 6, a maior parte dos artigos teve autoria feminina, sendo 13 (treze) autoras mulheres, 3 (três) autores homens e nenhum autor trans ou intersexual. Esse dado parece apontar que o tema da representação da mulher no cinema ainda é um tema trabalho ou de interesse prioritário de pesquisadoras mulheres.

Gráfico 6
Gênero dos(as) autores(as)

Após essa extração de dados quantitativos da amostragem, procedeu-se à realização da bibliografia categorizada, conforme a metodologia estado do conhecimento, que é a organização dos documentos a partir do estabelecimento de categorias de análise. A realização da escolha por categorias, conforme Bittencourt (2020BITTENCOURT, Zoraia Aguiar. Pesquisa Estado do Conhecimento. In V Seminário Interdisciplinar em Ciências Humanas, Erechim, 2020.), deve ser feito da seguinte maneira: (a) categorizar por recorrências; (b) apresentar critérios para inclusão e exclusão; (c) categorizar por: exaustividade, homogeneidade e pertinência.

Com base na mencionada metodologia, optou-se por categorizar a amostragem selecionada de acordo com as temáticas principais abordadas nos artigos e a recorrência delas, principalmente, levando-se em consideração o problema e a hipótese desta pesquisa. Nesse sentido, a amostragem foi dividida em três categorias, sendo elas:

  1. a)

    rompimento de gênero/sexualidade: nessa categoria, inseriu-se todas as pesquisas sobre a representação da mulher no cinema que apontaram a existência de um rompimento de padrões pré-estabelecidos de gênero e sexualidade, com possibilidade de se pensar em subjetividades fraturadas;

  2. b)

    binarismo de gênero e falocentrismo: nessa categoria, inseriu-se todas as pesquisas sobre a representação da mulher no cinema que apontaram a existência de binarismos de gênero fixos, com atribuição estereotipada das representações das mulheres, de acordo com normatividades e/ou normalidades falocêntricas; e,

  3. c)

    racismo e mulher negra: nessa categoria, inseriu-se todas as pesquisas sobre a representação da mulher no cinema que apontaram a diferença da representação das mulheres brancas e negras, com sub-representação das mulheres negras e estereótipos racistas.

Assim, a divisão da amostragem por categorias foi realizada por exaustividade, homogeneidade e pertinência, além de exclusão mútua (Bittencourt, 2020BITTENCOURT, Zoraia Aguiar. Pesquisa Estado do Conhecimento. In V Seminário Interdisciplinar em Ciências Humanas, Erechim, 2020.). A divisão da amostragem por categorias também dialogou com a hipótese desta pesquisa, que sugere existir uma correção entre os resultados da pesquisa brasileira e os resultados apontados por Lauretis, Mulvey e hooks, isso é, existe uma objetificação da mulher do cinema, sendo ela representada como um objeto ao olhar do sujeito masculino; ademais, uma sub-representação de raça, com predominância da representação e beleza da mulher branca no cinema, e consequente exclusão da mulher negra e latina. Busca-se, nesse sentido, analisar a bibliografia categorizada, de modo a possibilitar a refutação da hipótese, conforme o método hipotético-dedutivo.

Finalmente, a partir da bibliografia categorizada, foi realizada a bibliografia propositiva do estudo. A partir dessas bibliografias, apresenta-se a análise. Especialmente com relação à categoria “rompimento de gênero/sexualidade”, os 4 (quatro) estudos achados e selecionados propuseram repensar subjetividades de gênero fraturadas, para além das convenções sociais e atribuições heteronormativas e falocêntricas de gênero. Em sua pesquisa, que pretende discutir as relações ambivalentes entre cinema, política e performatividade de gênero a partir do romance El beso de la mujer araña (1976), Alós (2013ALÓS, Anselmo Peres. Sexualidades marginais nas bordas do texto: cinema, política e performatividade de gênero em El beso de la mujer arãna. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 21, n. 3, p. 1121-1147, 2013.) afirma a possibilidade de se repensar convenções tradicionais de gênero e dos seus atributos sociais, principalmente no âmbito da sexualidade homossexual. O romance permite questionar a transposição de normalidades e normatividades generificadas nas relações homossexuais, assim como o questionamento das próprias identidades generificadas fixas - masculina e feminina -, fundadas na heteronormatividade e heterossexualidade compulsória (regime ou sistema heteronormativo).

Da denúncia da transposição de atributos generificados heteronormativos para o núcleo da sexualidade homossexual masculina à transposição dos mencionados atributos para o núcleo das relações lésbicas, Sá e Brandolt (2019SÁ, Jussara Bittencourt; BRANDOLT, Marlene Rodrigues. Aimée & Jaguar - tecendo fios entre identidades no descompasso do tempo e de gênero. Contexto, v. 36, p. 7-23, 2019.) articulam uma crítica importante sobre o filme Aimée & Jaguar. Para as citadas autoras, o filme apresenta a história de um relacionamento lésbico na Alemanha, durante a Segunda Guerra Mundial, na década de 1940. A história contada possibilita uma reflexão sobre as relações humanas generificadas, representando as personagens mulheres a partir de rompimento com padrões sociais de gênero. Nesse sentido, as autoras entendem que as representações de gênero no filme contradizem as tradicionais representações, rompendo com estereótipos de gênero e de sexualidade. Inclusive, o filme desconstrói o dualismo convencional de gênero homem-mulher como uma determinação biológica e essencialista.

Também apresentando como conclusão o questionamento da matriz binária de gênero, Thornham (2015THORNHAM, Sue. ‘Um ódio tão intenso...’. Temos de falar sobre o Kevin. Pós-feminismo e cinema feminino. Revista Lusófona de Estudos Culturais, v. 3, n. 1, p. 21-42, 2015.) estudou o filme Temos que falar sobre o Kevin (2011) à luz dos debates feministas sobre a representação materna. A autora afirmou que o filme possibilita questionar a escolha de toda a mulher entre maternidade e empoderamento - debate pós-feminista -, escapando da representação estereotipada midiática da mulher enquanto categoria identificatória ora sexualizada, ora materna; em ambos os casos, sujeita ao sistema heternormativo. Nesse sentido, a representação da mulher no mencionado filme permite pensar uma subjetividade feminina que poderá aceitar o desarranjo da corporalidade materna, assim como questionar as identidades femininas em subjetividades fraturadas (Thornham, 2015THORNHAM, Sue. ‘Um ódio tão intenso...’. Temos de falar sobre o Kevin. Pós-feminismo e cinema feminino. Revista Lusófona de Estudos Culturais, v. 3, n. 1, p. 21-42, 2015.).

Duarte e Gusmão (2019DUARTE, Rosália; GUSMÃO, Milene. Representações de Mulher na Pedagogia Visual de Germaine Dulac. Educação & Realidade, v. 44, n. 2, p. 2-22, 2019.), em artigo sobre as representações da mulher na Pedagogia Visual de Germaine Dulac, também apresentam uma crítica cinematográfica e teórica aos tradicionais estereótipos femininos, e questionam a dominação falocêntrica. Para as autoras, os filmes de Dulac possibilitam uma crítica às fantasias românticas que, inevitavelmente, conduzem as mulheres à infelicidade e à solidão. Nesse sentido, a representação das mulheres nas obras de Dulac apostam em personagens fêmeas inteligentes e complexas.

Dessa maneira, os artigos categorizados como “rompimento de gênero/sexualidade” possibilitam refutar parcialmente a hipótese levantada, ao menos no sentido de não haver uma objetificação da mulher no cinema, sujeita ao olhar masculino. Por outro lado, especialmente com relação à questão racial, não se menciona o protagonismo ou representação de mulheres negras, possibilitando inferir que houve, nos filmes analisados, uma sub-representação ou ausência das mulheres negras e personagens negras, com predominância da representação da mulher e beleza branca no cinema.

Por outro lado, especialmente com relação à categoria “binarismo de gênero e falocentrismo” parece haver uma reiteração da hipótese apresentada, ou seja, de sua corroboração. Em conjunto, os 6 (seis) artigos categorizados criticaram a representação binária de gênero nos filmes analisados, os quais estavam estruturados em identidades fixas. Também apresentaram uma crítica à representação estereotipada das mulheres em filmes.

Monteiro e Júnior (2020MONTEIRO, Lorenna Nascimento; JÚNIOR, Walcler de Lima Mendes. Corpo-imagem no feminino: investigação sobre modos de dizer audiovisual em Dicção feminina. Humanas e Sociais, v. 8, n. 3, p. 9-21, 2020.), ao problematizar o predomínio de caracteres falocêntricos do cinema, apresentam uma crítica próxima àquela afirmada por Mulvey, sugerindo que o cinema representa a mulher e o seu corpo de modo a atender o desejo masculino. A representação da mulher, nesse sentido, orienta-se por estereótipos construídos por uma ordem de dominação masculina - a mulher frágil, matriarca ou a fêmea fatal. Para os autores, seria interessante um filme que atendesse o desejo feminino, principalmente que atendesse ao olhar feminino sobre o feminino ou masculino, com inversão dos polos de dominação.

Em sentido parecido, ao analisar a imagem como experiência em Untitled Film Stills, Ribeiro (2017RIBEIRO, Marcelo R. S. A imagem como experiência em Untitled Film Stills. Passagens, v. 8, n. 2, p. 27-50, 2017.), critica os papéis femininos estereotipados, especialmente as convenções narrativas cinematográficas que representam as mulheres como únicas ou em uma identidade essencial, simbólica, unitária e homogênea. Para Ribeiro (2017RIBEIRO, Marcelo R. S. A imagem como experiência em Untitled Film Stills. Passagens, v. 8, n. 2, p. 27-50, 2017.), na esteira do cinema hollywoodiano das décadas de 1950 e 1960, as representações femininas são clichês, subdivididas em: a garota do escritório, o mulherão, a garota em fuga, a dona de casa, a perversa, constituindo clichês incorporados no imaginário social. São mulheres com identidades fixas e sem complexidade, sujeitas ao olhar e imaginário masculino.

A representação da mulher sujeita ao olhar masculino, especialmente construída em clichês incorporados no imaginário cultural, também foi pensada e criticada por Larocca (2018LAROCCA, Gabriela Muller. A representação do mal feminino no filme a Bruxa (2016). Gênero, v. 19, n. 1, p. 88-109, 2018.). Tendo analisado as representações do feminino e do mal no filme A Bruxa (2016), a autora sustentou que a associação entre o feminino e o mal - inclusive à bruxaria - é uma herança ocidental medieval que continuou a existir na contemporaneidade: o estereótipo da mulher-bruxa. Inclusive, Larocca (2018LAROCCA, Gabriela Muller. A representação do mal feminino no filme a Bruxa (2016). Gênero, v. 19, n. 1, p. 88-109, 2018.) argumenta que a mídia e o cinema contribuem para a manutenção da imagem e representação da mulher-bruxa no imaginário ocidental contemporâneo. A bruxa é tradicionalmente representada no cinema de duas maneiras. Ela é a mulher jovem, feminina e altamente sexualizada, que busca subverter a tradicional hierarquia de gêneros. Ela também é a velha, com nariz retorcido e verrugas. Em ambos os casos, ela é uma ameaça para a sociedade.

Especialmente com relação ao cinema brasileiro e representação da mulher brasileira, Costa (2009COSTA, Maria Helena Braga e Vaz. Mulheres partidas: poética e política das imagens fílmicas da mulher. Bagoas, v. 3, p. 97-114, 2009.) reitera a crítica de Mulvey, entendendo que a mulher é passiva ao olhar e contemplação masculina, sendo construída como objeto sexual. Nos filmes analisados, apesar da tentativa de representar uma mulher brasileira como agente ativo, reiterou-se a dicotomia excludente entre a realização profissional e o casamento e a maternidade. Essa conclusão também aparece nos estudos de Maziero (2011MAZIERO, Ellen Karin Dainese. As representações das mulheres no filme garotas e samba (1957). Patrimônio e Memória, v. 7, n. 2, p. 292-311, 2011.), para quem a representação da mulher, nos filmes analisados, ocorreu de maneira estereotipada. Ele argumenta que as transgressões femininas, que apareceram principalmente na expressão da sensualidade, por meio do desnudamento, são sufocadas pelo conservadorismo ingênuo das personagens. O autor, por outro lado, não entende que a sensualidade por meio do desnudamento posiciona a mulher passiva à contemplação masculina.

Ainda, Cánepa (2009CÁNEPA, Laura Loguercio. Pornochanchada do avesso: o caso das mulheres monstruosas em filmes de horror da Boca do Lixo. E-compós, v. 12, n. 1, p. 1-14, 2009.), na esteira de Maziero (2011MAZIERO, Ellen Karin Dainese. As representações das mulheres no filme garotas e samba (1957). Patrimônio e Memória, v. 7, n. 2, p. 292-311, 2011.), aponta que a exploração do corpo feminino nos filmes possibilitou a revolução sexual na década de 1960 no Brasil, principalmente, argumenta ela, a liberação feminista do prazer e o relaxamento dos costumes. Por outro lado, a autora sustenta que os filmes analisados se centram no olhar masculino.

Nesse sentido, em conjunto, parece que os textos analisados não permitem refutar a hipótese de pesquisa, pois corroboram que existe uma representação da mulher como objeto do olhar masculino, dentro e fora das telas. Ainda, corrobora a existência da sub-representação racial, visto que, ou em nenhum dos filmes analisados houve a representação de mulheres negras, ou essa representação não foi apontada pelos autores.

Por fim, com relação à categoria “racismo e mulher negra”, os 3 (três) estudos achados e selecionados permitem corroborar a hipótese apresentada. Em conjunto, os textos criticam a representação da mulher negra, seja pela sub-representação, seja pela representação de maneira subalterna ou com hipersexualização.

Ceiça (Ferreira 2018FERREIRA, Ceiça. Reflexões sobre “a mulher”, o olhar e a questão racial na teoria feminista do cinema. Famecos - Cultura, Mídia e Tecnologia, v. 25, n. 1, p. 1-24, 2018.), em pesquisa sobre a intersecção de gênero e raça como determinantes na representação cinematográfica, apresenta uma crítica à passividade da mulher como objeto do olhar masculino, tal como a crítica apresentada por Mulvey; mas, principalmente, questiona e critica o privilégio da mulher branca no cinema. Para a autora, a representação da mulher branca prioriza a beleza e feminilidade. Por outro lado, aproximando-se da crítica de hooks, afirma que a mulher negra é representada como o outro sexual, no âmbito de uma imagética racista, colonial e patriarcal. A autora, na esteira de hooks, apresenta a metáfora do continente África selvagem para a representação das mulheres negras no cinema, a partir do estereótipo do exótico/erótico.

Com uma crítica muito parecida, Piçarra (2015PIÇARRA, Maria do Carmo. Pele negra ou pele branca: máscara(s) da mulher imaginada pelo cinema colonial. Observatório, v. 9, n. 2, p. 173-187, 2015.) problematiza a representação da mulher no cinema colonial brasileiro. A partir do questionamento da diferença no estereótipo da representação da mulher negra e da mulher branca no cinema colonial, a autora conclui haver uma representação sexualizada da mulher negra e recatamento da mulher branca.

As conclusões e criticas oferecidas por Ferreira (2018FERREIRA, Ceiça. Reflexões sobre “a mulher”, o olhar e a questão racial na teoria feminista do cinema. Famecos - Cultura, Mídia e Tecnologia, v. 25, n. 1, p. 1-24, 2018.) e Piçarra (2015PIÇARRA, Maria do Carmo. Pele negra ou pele branca: máscara(s) da mulher imaginada pelo cinema colonial. Observatório, v. 9, n. 2, p. 173-187, 2015.) também aparecem nos estudos de Cândido e Júnior (2019CANDIDO, Marcia Rangel; JÚNIOR, João Feres. Representação e estereótipos de mulheres negras no cinema brasileiro. Estudos Feministas , Florianópolis, v. 27, n. 2, p. 2-14, 2019.), que tem por objetivo a análise das representações da mulher negra especialmente no cinema brasileiro. Em artigo publicado na Revista Estudos Feministas, os autores confirmam que o cinema brasileiro sub-representa a mulher negra; e quando a representa, o faz por meio de estereótipos. Dentre eles, o estereótipo da “mulata” hipersexualizada e produtora de conflitos sociais, principalmente morais e conjugais. Ainda, os estereótipos (ou arquétipos) de “favelada”, “crente”, “batalhadora”, “mãe preta” e “empregada”, com referência escravocrata. Na maior parte das representações, as mulheres pardas e negras estiveram em papel de subalternidade e falta de reconhecimento social.

Nesse sentido, em conjunto, os textos analisados não permitem refutar a hipótese apresentada. Ao contrário, corroboram que existe uma sub-representação de raça, com predominância da representação e beleza da mulher branca no cinema, e consequente exclusão da mulher negra.

Em geral, se a análise dos artigos categorizados como “rompimento de gênero/sexualidade” possibilitam refutar parcialmente a hipótese levantada, ao menos no sentido de não haver uma objetificação da mulher no cinema, sujeita ao olhar masculino; a análise das demais categorias levantadas corrobora a hipótese. Parece que os argumentos sustentados já nas décadas de 1970 e 1980, por Lauretis, Mulvey e hooks, de que existe uma objetificação da mulher do cinema, sendo ela representada como um objeto ao olhar do sujeito masculino, prevalece como conclusão argumentativa dos artigos analisados por meio desta pesquisa em estado do conhecimento.

Ainda, a tese levantada por hooks, no sentido de haver uma sub-representação de raça, com predominância da representação e beleza da mulher branca no cinema, e consequente exclusão da mulher negra, também se sustentou nesta pesquisa em estado do conhecimento. Por outro lado, a sub-representação das mulheres latinas não foi argumentada em nenhuma das pesquisas analisadas. Pelo contrário, em nenhuma das pesquisas foi encontrado qualquer referência à representação de mulheres latinas no cinema, seja para tratar da ausência ou presença.

Finalmente, menciona-se a importância da representação na mulher no cinema para a construção de processos identificatórios de gênero e subjetividades contemporâneas, individuais e socioculturais. Isso é, a representação da mulher no cinema rompe com a lógica individual e manifesta-se no imaginário social. Nesse sentido, deve-se pensar oportunamente a pesquisas que analisem a vinculação entre a representação de gênero no cinema e a sua influencia no Direito - considerando a legislação brasileira e aplicação do Direito.

A vinculação da representação da mulher no cinema e meios de comunicação de massa, além de atuar politicamente na sociedade, também é reflexo da própria representação da mulher na sociedade. Quando se aborda a representação da mulher no campo jurídico brasileiro, por exemplo, embora exista maior composição igualitária entre homens e mulheres profissionais do direito desde a década de 1990, Bonelli (2016BONELLI, Maria Glória. Carreiras jurídicas e a vida privada: intersecções entre trabalho e família. Cadernos Pagu, Campinas, v. 46, n. 1, p. 247-277, 2016.) aponta que persiste o fenômeno da segregação vertical. Mais do que isso, permanecem as “ortodoxias da ideologia profissional e da masculinidade hegemônica: de um lado, o profissionalismo, a neutralidade da expertise, a dimensão pública, impessoal e objetiva; do outro, os marcadores da diferença, a vida privada, sua restrição ao âmbito da casa, ao pessoal e subjetivo.” (2016, p. 247), ainda atribuídos às mulheres. Essa segregação vertical também foi visualizada nas pesquisas de Maria Tereza Sadek (2006SADEK, Maria Tereza. Magistrados: uma imagem em movimento. Rio de Janeiro: FGV Editora/FGV Direito Rio, 2006.) e Eliane Botelho Junqueira (1998JUNQUEIRA, Eliane Botelho. A mulher juíza e a juíza mulher. In: BRUSCHINI, Cristina; HOLANDA, Heloisa Buarque de (ed.). Horizontes plurais: Novos estudos de gênero no Brasil. São Paulo: Fundação Carlos Chagas e Editora 34, 1998. p.67-104.).

De fato, conforme argumentam Kahwage e Severi (2019KAHWAGE, Tharuell Lima; SEVERI, Fabiana Cristina. Para além de números: uma análise dos estudos sobre a feminização da magistratura. RIL, Brasília, v. 56, n. 222, p. 51-73, 2019.), estereótipos de gênero (como aqueles construídos e representados pelo cinema) continuam delimitando áreas de atuação masculinas e femininas, inclusive no âmbito do judiciário, atribuindo às mulheres magistradas principalmente a atuação em áreas de especialização que apresentam carga de cuidado, como o “família”, “infância”, etc. Ainda, visualiza-se a sub-representação racial. Bonelli e Oliveira (2020BONELLI, Maria Glória; OLIVEIRA, Fabiana Luci. Mulheres magistradas e a construção de gênero na carreira judicial. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, v. 39, n. 1, p. 143-153, 2020., p. 148) afirmam que, no “entrecruzamento do gênero com a raça e a classe social resulta em obstáculos para a maioria dos profissionais do direito quando vêm dos segmentos subalternizados, sendo mais intransponíveis para as mulheres negras.” Logo, majoritariamente, as magistradas que “conseguem superar tais barreiras está mais posicionada nos grupos detentores de capital social, cultural e no tocante ao fenótipo” (2020, p. 150), de modo que o “mérito, construído como neutro e objetivo por meio de uma “mágica social”, efetivamente reflete as relações sociais dominantes, que atribui à excelência profissional os padrões masculinos e ao mérito as práticas informais racializadas.” (2020, p. 151)

Nesse sentido, parece importante mencionar a lacuna no conhecimento interdisciplinar entre direito e cinema, especialmente no que se refere às representações de gênero, com recortes interseccionais. São possibilidades de se pensar a intersecção entre direito e cinema: a influência política do cinema (e representações generificadas) no direito e operadores do direito; a influência das representações sociais de gênero no cinema (de modo que o cinema mimetiza a vida), a representação de mulheres operadoras do direito no cinema, dentre outras possibilidades.

3 CONCLUSÃO

A pesquisa partiu a hipótese, segundo a qual, existe uma correção entre os resultados da pesquisa brasileira e os resultados apontados por Lauretis, Mulvey e hooks, isso é, existe uma objetificação da mulher do cinema, sendo ela representada como um objeto ao olhar do sujeito masculino; existe, ademais, uma sub-representação de raça, com predominância da representação e beleza da mulher branca no cinema, e consequente exclusão da mulher negra e latina. Buscou-se refutar a hipótese apresentada, por meio do método hipotético-dedutivo.

Nesse sentido, realizou-se uma pesquisa em estado do conhecimento, na qual foi sistematizada uma amostragem final de 13 (treze) artigos que abordaram o tema da representação da mulher no cinema. A pesquisa da amostragem foi realizada nas bases de dados Scielo e IBCT, por meio da busca pelas seguintes palavras-chave: “representação + mulher + cinema”. Seguindo o protocolo metodológico, categorizou-se a amostragem em “rompimento de gênero/sexualidade”; “binarismo de gênero e falocentrismo”; e “racismo e mulher negra”. A partir das categorias, foi realizada uma análise dos textos. O resultado obtido pela análise não possibilitou a refutação da hipótese de pesquisa. Portanto, a hipótese foi corroborada.

Como lacuna no conhecimento, pensando-se o campo do direito, deve-se realizar novas pesquisas interdisciplinares entre direito e cinema, para analisar de que modo o cinema pode exercer influência no direito; inclusive naquele direito que, conforme Smart (2020SMART, Carol. A mulher do discurso jurídico. Rev. Direito Práx., Rio de Janeiro, v. 11, n. 2, p. 1418-1439, 2020., p. 1422), é gendrado, sexista e masculino.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    13 Out 2020
  • Aceito
    05 Nov 2022
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