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O medo de voltar para casa: revisitando o nexo entre (homo)sexualidades e deslocamentos a partir do conceito de sexílio

The fear of going home: revisiting the nexus between (homo) sexualities and relocations through the concept of sexile

El miedo a volver a casa: revisitando el nexo entre (homo) sexualidades y traslados por medio del concepto de sexílio

Resumo

Neste artigo, nos propomos a uma leitura crítica da noção de sexílio, que surge nos Estados Unidos, nos anos 1990, em referência à experiência de exílio vivida por homossexuais porto-riquenhos que deixaram seu país de origem por motivo de sua orientação sexual. Desde então, os sentidos atribuídos se multiplicaram em direção ao problema do pertencimento de sujeitos homossexuais em deslocamento. No decorrer do artigo, traçamos esta trajetória por meio de trabalhos que abordaram experiências de múltiplas negações de pertencimento, também descritas como o medo de voltar para casa. Em diálogo com Gloria Anzaldúa e Didier Eribon, entendemos que o sexílio pode ser um conceito que elucida a experiência se sentir-se estranho na própria origem. Na última parte do artigo, tratamos ainda da noção de “diáspora queer”, confrontando-a com a ideia de sexílio e apontando para suas contribuições e limites.

Palavras-chave:
homossexualidade; migração; sexílio; pertencimento; diáspora queer

Abstract

In this article, we propose a critical reading of the notion of sexile, which emerged in the United States, in the 1990s, in reference to the experience of exile as lived by Puerto Rican homosexuals who left their country of origin due to their sexual orientation. Since then, the connotations of sexile have multiplied and increasingly begun to address the problem of belonging that arises for homosexual subjects in processes of relocation. Throughout the article, we trace this trajectory back to the experience of multiple denials of belonging that is also described as the fear of going home. Weaving a dialogue with Gloria Anzaldúa and Didier Eribon, we argue that the sexile may be a concept that elucidates on the experience of feeling strange in one’s own origins. In the last part, we also deal with the notion of “queer diaspora”, confrontingit with that of sexile and pointing to its contributions and limits.

Keywords:
homosexuality; migration; sexile; belonging; queer diaspora

Resumen

En este artículo proponemos una lectura crítica de la noción de sexílio, surgida en los Estados Unidos, en la década de los 1990, en referencia a la experiencia de exilio vivida por homosexuales puertorriqueños que dejaron su país de origen por su orientación sexual. Desde su emergencia, los significados atribuidos al sexílio se han multiplicado hacia el problema de pertenencia de sujetos homosexuales en movimento. A lo largo del artículo, trazamos esta trayectoria a través de trabajos que abordan experiencias de múltiples negaciones de pertenencia, también descritas como el miedo a volver a casa. En diálogo con Gloria Anzaldúa y Didier Eribon, entendemos que el sexílio puede ser un concepto que ayuda a comprender la experiencia de sentirse extraño a la casa, a la origen. En la última parte, abordamos la noción de “diáspora queer” para confrontarla con la de sexílio, señalando sus aportes y límites.

Palabras-clave:
homosexualidad; migración; sexilio; pertenencia; diáspora queer

Introdução

Registra-se nas últimas décadas um crescente interesse nas Ciências Sociais sobre a articulação entre migrações e (homo)sexualidades1 1 Cabe uma pequena advertência sobre categorias e sujeitos: optamos, neste texto, por utilizar termos tão diversos como (homo)sexualidades, homossexualidades, dissidências e dissidentes sexuais, LGBTQI+, LGBTI, queer, diversidade sexual e de gênero, que indicam a dispersão mesmo das categorias para referir a identidades sexuais e de gênero no conjunto de estudos com os quais trabalhamos, inscritos em épocas e tradições teóricas diferentes. Ao invés de padronizar as categorias, mantivemos uma indefinição que indica inclusive certa natureza “cambiante” e “contestada” do campo de estudos um dia recoberto pela noção de “homossexualidade” (Simões; Carrara, 2014). Alertamos, assim, que essas categorias não descrevem empiricamente os sujeitos das reflexões que aqui abordamos. Juntas, contudo, elas desempenham o papel de circunscrever um conjunto de temas e preocupações que emergem da bibliografia com a qual escolhemos trabalhar neste artigo. , o qual acompanhou uma maior visibilidade do debate sobre direitos sexuais na agenda internacional de direitos (Lewis, Naples, 2014LEWIS Rachel A., NAPLES Nancy A. 2014. Introduction: Queer migration, asylum, and displacement. Sexualities, v. 17, n. 8, p. 911-918. ). Desde o final dos anos 1990, uma literatura internacional, em grande parte anglo-saxã e produzida nos Estados Unidos, vem desafiando disposições heteronormativas nos estudos sobre migrações, ao mesmo tempo em que aponta as relações de constituição mútua entre sexualidade, gênero, raça e nação (Luibhéid, 2005LUIBHÉID, Eithne. 2005. Introduction: Queering Migration and Citizenship. In LUIBHÉID, Eithne; CANTÚ, Lionel Jr. Queer Migrations: Sexuality, U.S. Citizenship, and Border Crossings. Minneapolis: University of Minnesota Press., 2008LUIBHÉID, Eithne. 2008. Queer/Migration: An Unruly Body of Scholarship. GLQ: A Journal of Lesbian and Gay Studies, v. 14, n. 2-3, p. 169-190.; Cantú, 2009CANTÚ, Lionel. 2009. The Sexuality of Migration: Border Crossings and Mexican Immigrant Men (editado por NA Naples and S Vidal-Ortiz). New York and London: New York University Press.; Manalansan, 2006MANALANSAN IV, Martin F. 2006. Queer Intersections: Sexuality and Gender in Migration Studies - The International Migration Review, v..40, n. 1, GenderandMigrationRevisited (Spring, 2006), p. 224-249.). São referências dessa produção, que frequentemente tem-se denominado de queer migration scholarship, os números especiais organizados por Eithne Luibhéid (2008LUIBHÉID, Eithne. 2008. Queer/Migration: An Unruly Body of Scholarship. GLQ: A Journal of Lesbian and Gay Studies, v. 14, n. 2-3, p. 169-190.) e Rachel Lewis e Nancy Naples (2014LEWIS Rachel A., NAPLES Nancy A. 2014. Introduction: Queer migration, asylum, and displacement. Sexualities, v. 17, n. 8, p. 911-918. ) nos periódicos GLQ e Sexualities, respectivamente. No Brasil, os debates sobre esse tema são ainda relativamente residuais, mas marcados por esforços recentes no sentido de promovê-los, tanto no campo dos estudos de migrações como nos estudos de gênero e sexualidade. Atestam tais esforços os números especiais organizados por José Carlos Pereira (2015PEREIRA, José Carlos. 2015. Apresentação: possibilidades de travessias. Travessia - Revista do Migrante, n. 77, p. 5-12. ) e Roberto Marinucci (2020MARINUCCI, Roberto. 2020. Pessoas migrantes e refugiadas LGBTI. REMHU: Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, v. 28, n. 59, p. 7-13.), nos periódicos Travessia e Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana (REMHU), respectivamente, bem como a edição especial de Periódicus, organizada por Cleber Braga, Sayak Valencia e Rafael Siqueira de Guimarães (2019BRAGA, Cléber, Valencia, Sayak, & Guimarães, Rafael S. (2019) Gaguejar, ruidosamente, outros trânsitos: Migrações territoriais, sexuais e de gênero. Revista Periódicus, v. 1, n. 12, p. 01-05. ).

Com o fim de oferecer uma contribuição teórica para a compreensão do nexo entre (homo)sexualidade e deslocamentos, pretendemos discutir e desenvolver o conceito de sexílio. O neologismo sexílio foi introduzido para denominar a experiência de exílio vivida por homossexuais que deixaram seu país de origem por motivo de sua orientação sexual (Guzmán, 1997GUZMÁN, Manuel. 1997. “Pa’ La Escuelita con MuchoCuida’o y por la O rillita”: A Journey through the Contested Terrains of the Nation and Sexual Orientation. In NEGRÓN-MUNTANER, Frances; GROSFOGUEL, Ramón (Orgs.): Puerto Rican Jam. Rethinking Colonialism and Nationalism. Minneapolis, University of Minnesota Press, p. 209-230. ). Ao mesmo tempo, reflete em grande parte uma perspectiva sobre migração e diáspora de homossexuais de origens latino-americanas nos Estados Unidos, trabalhadas, ao longo das últimas três décadas, em auto-relatos, produções antropológicas e artísticas.

No contexto brasileiro, um uso mais frequente da noção de sexílio tem surgido em pesquisas relacionadas ao refúgio de pessoas identificadas como LGBTQI+ que, ao trazer para o debate as questões relacionadas aos (não) pertencimentos e aos deslocamentos subjetivos, tensionam a fixidez das abordagens jurídicas de categorias e sujeitos. Vanessa Marinho Pereira (2021PEREIRA, Vanessa M. 2021. Corpos entre dobras e fronteiras: cartografia de encontros com migrantes LGBT+ em cidades mexicanas e brasileiras. Tese de Doutorado (em Psicologia Social). Rio de Janeiro, Instituto de Medicina Social - UERJ .), em seu estudo com migrantes LGBTI+ no México e no Brasil, e Vítor Lopes Andrade (2019ANDRADE, Vítor L. 2019. Refúgio por motivos de orientação sexual: um estudo antropológico na cidade de São Paulo. Santa Catarina: UFSC.), em seu trabalho com refugiados por orientação sexual em São Paulo (SP), destacam como a noção de sexílio permite ir além da estrita categoria do refúgio, funcionando de forma mais inclusiva diante da variedade de deslocamentos relacionados à identidade sexual e de gênero. Em seu trabalho com migrantes identificados como homossexuais em Boa Vista (RR), Caobe Sousa (2021SOUSA, Caobe. 2021. Dissidências em entrelace: narrativas de homossexualidade na migração venezuelana em Boa Vista, Roraima. Dissertação de mestrado (Sociedade e Fronteiras). Universidade Federal de Roraima.), por sua vez, evoca a noção de sexílio para a compreensão dos processos de subjetivação relacionados à (homo) sexualidade e às migrações. Por fim, são em números crescentes os estudos que pretendem tornar o conceito fecundo para a especificidade do refúgio LGBTQI+ (Rezende, 2017) e mais ainda para as migrações dentro do Brasil (Andrade, 2015ANDRADE, Vítor L. 2015. Migrações internas e internacionais motivadas por orientação sexual e identidade de gênero. Travessia - Revista do Migrante, São Paulo, n. 77, p. 29-48, jul.-dez. 2015. ), assim como para as articulações de sociabilidades homossexuais em pequenas cidades brasileiras (Teixeira, 2015TEIXEIRA, Marcelo Augusto de Almeida. “Metronormatividades” nativas: migrações homossexuais e espaços urbanos no Brasil. Áskesis, São Carlos, v. 4, n. 1, p. 23-38, jan./jun. 2015.).

De um ponto de vista epistemológico, o sexílio propõe um exercício fecundo para pensarmos sobre deslocamentos e (homo)sexualidades, particularmente pela ênfase em como o sexílio se distingue do exílio sem o “s”, ou seja, como as trajetórias e narrativas (homo)sexuais podem questionar o entendimento comum sobre migração, exílio e pertencimento. Irene Sosa (1999SOUSA, Caobe. 2021. Dissidências em entrelace: narrativas de homossexualidade na migração venezuelana em Boa Vista, Roraima. Dissertação de mestrado (Sociedade e Fronteiras). Universidade Federal de Roraima.) observou que, para o sujeito, o exílio sexual coloca um desafio adicional quando comparado ao exílio econômico: a angústia e o medo de voltar para casa. Visto que a partida, para muitos homossexuais, estaria associada a uma certa ruptura com a família e com o contexto social de origem, a volta para sempre exigiria uma anulação do que se deseja, do que se é.

Longe de buscar generalizar essa experiência, julgamos inspiradora a distinção do exílio sexual, em Sosa e outros pensadores do sexílio, para desafiar as convenções presentes nos modos de pensar a questão do pertencimento nas trajetórias de deslocamento a partir das (homo)sexualidades. Se o retorno para a casa se torna complicado ou mesmo impossível, quais as tensões e redefinições de sentidos de “lar” e “origem” que se dão para os sujeitos (homo)sexuais em deslocamento? Serão tais tensões e redefinições indicativas das possibilidades e limites de um pertencimento múltiplo ou de um habitar nas fronteiras? E, afinal, o sexílio implica necessariamente a experiência de deslocamento para outro país? Ou seria antes uma lente mais geral para explorar as tensões e rupturas vividas por sujeitos (homo)sexuais que se sentem estranhos às próprias origens?

Em busca de respostas preliminares a estas perguntas, nos debruçamos sobre a literatura que foi estrito senso produzida à respeito da noção de sexílio e buscamos adensá-la a partir da teorização de pertencimento em dois autores que escrevem a partir de posicional idades homossexuais/queer. Neste caminho, iniciamos o artigo situando o surgimento da noção de sexílio em determinados contextos de produção acadêmica e cultural (Sexual Exiles, 1999SEXUAL EXILES. 1999. Direção: Irene Sosa. Estados Unidos. Plataforma de streaming (31 min.), color. Disponível em Disponível em http://irenesosa.org/sexual-exiles-1999 acessos em 10 mar. 2021.
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; Guzmán, 1997GUZMÁN, Manuel. 1997. “Pa’ La Escuelita con MuchoCuida’o y por la O rillita”: A Journey through the Contested Terrains of the Nation and Sexual Orientation. In NEGRÓN-MUNTANER, Frances; GROSFOGUEL, Ramón (Orgs.): Puerto Rican Jam. Rethinking Colonialism and Nationalism. Minneapolis, University of Minnesota Press, p. 209-230. ; La Fountain-Stokes, 2004LA FOUNTAIN-STOKES, Lawrence. 2008. Queer Diasporas, Boricua Lives: A Meditation on Sexile. Literature and Arts of the Americas, v. 41, n. 2, p. 294-301. ; Mogrovejo,2015MOGROVEJO, Norma. 2015. Del Sexilioal Matrimonio. Ciudadanía Sexual enla era del Consumo Neoliberal. Universidad Autónoma de la Ciudad de México, México D.F.), nos quais se apresenta como uma chave de leitura para as ambiguidades constitutivas dos deslocamentos na sua articulação com (homo)sexualidades. Em seguida, buscamos aprofundar as discussões impulsionadas pela noção de sexílio ao incorporar as reflexões de Gloria Anzaldúa (2016ANZALDÚA, Gloria. 2016 [1987]. Borderlands/La Frontera. The New Mestiza. Traducción Carmen Valle. Madrid: Capitán Swing Libros S.L.) sobre fronteira desde uma perspectiva queer de instabilidade dos pertencimentos dos sujeitos; e a contribuição de Didier Eribon (2020ERIBON, Didier. 2020. Retorno a Reims. Belo Horizonte e Veneza: Editora Âyiné.) na sua leitura a um só tempo íntima e sociológica das fissuras produzidas pela tensão entre (homo)sexualidade e origem social.

As abordagens autobiográficas de Anzaldúa e Eribon fornecem, do nosso ponto de vista, um quadro adequado para examinar a construção subjetiva das homossexualidades em processos de mobilidade. Por um lado, mostram como o deslocamento sexual pode implicar um enfrentamento e questionamento das origens raciais, étnicas e de classe; por outro, permitem adensar a discussão sobre as (im)possibilidades de se construir um novo lar com base na experiência de diferentes recusas por pertencimento. Na última parte do artigo, incorporando os desenvolvimentos decorrentes da ideia de sexílio desenvolvidos nas três primeiras seções, escrutinamos a noção de “diáspora queer” (Gopinath, 1997GOPINATH, Gayatri. 1997. Nostalgia, Desire, Diaspora: South Asian Sexualities in Motion. Positions, Durham NC, v. 5, n. 2, p. 467-489. ; Fortier, 2001FORTIER, Anne-Marie. 2001. ’Coming home’ Queer migrations and multiple evocations of home. European Journal of Cultural Studies, London, v. 4, n. 4, p. 405-424.; Wesling, 2008WESLING, Meg. 2008. Why Queer Diaspora? Feminist Review, London, v. 90, p. 30-47. ), apontando para sua contribuição ao debate sobre diferença, lar e pertencimento, bem como para seus limites quando pressupõe comunidades transnacionais de dissidentes sexuais.

Por fim, não pretendemos oferecer um balanço crítico exaustivo das pesquisas que empiricamente têm abordado o tema das migrações e do refúgio relacionado a diversidade sexual e de gênero no Brasil ou no exterior - uma tarefa ainda por fazer na medida em que esse campo de preocupações tem se tornado mais presente nas ciências sociais brasileiras. Nossa leitura é parcial e localizada, seja pela nossa trajetória acadêmica e biográfica, seja pela nossa própria inscrição nesse campo. Move-nos não apenas a percepção de uma tendência no campo de estudos a incorporar mais fortemente a noção de sexílio, mas a forma pela qual essa literatura nos provoca intelectualmente diante dos nossos próprios objetos de pesquisa.2 2 A emergência da categoria de “refugiado LGBTI” e como ela interpela as experiências de deslocamento dos sujeitos que são reconhecidos a partir dessa categoria tem sido objeto dos trabalhos mais recentes de Isadora França (França 2017; 2020; França; Oliveira, 2016).A experiência de mobilidade nacional e internacional na constituição de subjetividades sexuais e de gênero, que têm sido foco das preocupações de Nicolas Wasser (Wasser, 2019; 2020).

Sexílio: os caminhos para um conceito

A noção de sexílio surge pela primeira vez em 1997, em artigo de Manuel Guzmán intitulado “Pa’ La Escuelita con Mucho Cuida’o y por la O rillita”: A Journey through the Contested Terrains of the Nation and Sexual Orientation. No artigo, o sociólogo de origem porto-riquenha explora a história de “La Escuelita”, um club gay latino que funcionou em Nova York por algum tempo e que é descrito como um espaço popular que resistia à cultura dominante e se caracterizava por uma grande heterogeneidade social. O acolhimento deste club de gays latinos e de um público popular e socialmente diverso, assim descreve Guzmán, estava ligado à trajetória do seu administrador chamado Raúl. Raúl deslocara-se para os Estados Unidos por vontade de sua família, que suspeitava de sua homossexualidade e o mandara para Flórida. Lá, longe de casa, ele “saiu do armário” e seguiu para Nova York. Guzmán não apenas compartilha com Raúl essa experiência de opressão homofóbica no contexto de origem e de migração para outro país, mas também a apresenta como sendo muito comum entre gays porto-riquenhos vivendo naquela cidade e a define, finalmente, como “sexílio”. Em suas palavras: “sexílio é um neologismo meu que se refere ao exílio daqueles que tiveram de deixar suas nações de origem em razão da sua orientação sexual” (Guzmán,1997: 227GUZMÁN, Manuel. 1997. “Pa’ La Escuelita con MuchoCuida’o y por la O rillita”: A Journey through the Contested Terrains of the Nation and Sexual Orientation. In NEGRÓN-MUNTANER, Frances; GROSFOGUEL, Ramón (Orgs.): Puerto Rican Jam. Rethinking Colonialism and Nationalism. Minneapolis, University of Minnesota Press, p. 209-230. ).

O que transpira nesse texto da década dos 90 é a preocupação de Guzmán com os deslocamentos de homossexuais de países latino-americanos para os Estados Unidos em busca de abrigo e com as dificuldades de integração social que encontram. Não se trata, à primeira vista, de preocupações com questões de cidadania ou com os processos difíceis comumente experimentados por pessoas LGBTQI+ em seus encontros com as políticas de migração restritivas dos Estados Unidos. Antes disso, o sexílio em Guzmán articula-se sobre o pano de fundo de uma problematização da cultura gay americana mainstream ou convencional, que impossibilitava a articulação dos gays latinos, principalmente daqueles vindos de classes mais populares. Da mesma forma, Lawrence La Fountain-Stokes, escritor e estudioso literário porto-riquenho, cujo nome está entre os mais citados no que se refere ao conceito de sexílio, constata que “quando se pensa na cultura lésbica e gay (ou queer) estadounidense, raramente se considera a importante contribuição dos latinos e das latinas” (La Fountain-Stokes, 2004: 138LA FOUNTAIN-STOKES, Lawrence. 2004. De sexilio(s) y diáspora(s) homosexual(es) latina(s): El caso de la cultura puertorriqueña y nuyoricanqueer. Debate feminista, v. 15, p. 138-157.).

É desta omissão que Fountain-Stokes deriva aquilo que descreveria os contornos da experiência do sexílio latino nos EUA. Se, apesar de suas diversas manifestações no exterior, “a cultura homossexual estadounidense”3 3 O autor deixa claro que não trabalha com uma compreensão fechada desta cultura, senão refere-se a suas expressões e articulações variadas e muitas vezes em uma relação de rivalidade (La Fountain-Stokes, 2004: 139). vive um status marginal no discurso oficial, as vivências homossexuais latinas se depararam com a marginalização em um duplo sentido. Por um lado, encontram-se marginalizados pela já mencionada omissão na cultura convencional ou mainstream homossexual nos Estados Unidos. De outro lado, também pelo discurso político oficial dos países de origem. La Fountain-Stokes lembra o desprezo que o discurso oficial de diferentes países expressa para com as culturas diaspóricas, porque as relacionam à perda ou alienação de uma suposta cultura autêntica nacional do país de origem. Isto ainda se intensificaria no caso dos homossexuais. A heternormatividade que atravessa esses Estado-nações faz com que os sujeitos homossexuais muitas vezes “não sejam sequer reconhecidos em seus países de origem, exceto como objetos de abuso ou discriminação” (La Fountain-Stokes, 2004: 139LA FOUNTAIN-STOKES, Lawrence. 2004. De sexilio(s) y diáspora(s) homosexual(es) latina(s): El caso de la cultura puertorriqueña y nuyoricanqueer. Debate feminista, v. 15, p. 138-157.).

Qual seria então essa relação do sexílio com o “país de origem”, quando pensarmos a partir dos “sexilados” e das “sexiladas”? É importante notar que essa tensão vivida com o país de origem não é necessariamente uma questão de relação com o Estado-nação, mas, antes disso, uma questão de família, casa e recusa de pertencimento. No documentário Sexual Exiles (1999SEXUAL EXILES. 1999. Direção: Irene Sosa. Estados Unidos. Plataforma de streaming (31 min.), color. Disponível em Disponível em http://irenesosa.org/sexual-exiles-1999 acessos em 10 mar. 2021.
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), a cineasta venezuelana Irene Sosa capturou diferentes trajetórias (inclusive a dela) de pessoas sexiladas nos EUA. Uma de suas interlocutoras, uma mulher lésbica do Quênia, relata que o deslocamento para o continente americano não a tornou, em primeiro lugar, uma ativista lésbica remunerada (o que ela é), mas sobretudo uma pessoa politizada pela questão do racismo. Antes da homofobia, foi o racismo e a xenofobia encontrados nos Estados Unidos que a afetaram. Ao mesmo tempo, comenta sobre a saudade que sentia da geografia do seu país, do calor e de hábitos simples como passar um fim de tarde na praia ou saber que naquela vizinhança morava um parente. Trata-se de saber onde ela está, afinal, do ponto de vista das geografias afetivas dos lugares. Contudo, sente que não podia voltar ao seu país a não ser que desconsiderasse uma parte importante de si mesma.

Da mesma maneira que as contribuições apresentadas em Guzmán e Fountain-Stokes, Sexual Exiles foi produzido há cerca de duas décadas. Evidentemente, isso levanta diversas questões sobre as mudanças sociais e políticas ocorridas desde então, como o crescente reconhecimento dos direitos e identidades LGBTQI+ nas Américas e o surgimento de uma discussão cada vez mais ampla sobre migrantes LGBTQI+. No entanto, defendemos que o conceito de sexílio ainda pode contribuir para uma análise histórica e contemporânea, particularmente quando tomado a partir da sua ênfase na tensão, nunca plenamente resolvida pelos sujeitos, entre as convenções culturais vigentes no país acolhedor e as do país de origem. É nesse sentido que, no documentário Sexual Exiles, Irene Sosa traz uma interessante distinção entre o sexílio e o exílio político ou econômico. Para os exilados políticos e econômicos se espera, comumente, que haja um momento de retorno ao país de origem e à família, e que lá sejam bem recebidos. Para Sosa, o sexílio seria diferente, pois, em suas palavras, “nesse caso, nos tornamos exilados só por gostarmos de quem somos. E isso encerra a possibilidade de voltarmos, quando gostamos de quem somos. Para voltar, temos que voltar a odiar quem somos” (Sexual Exiles, 1999SEXUAL EXILES. 1999. Direção: Irene Sosa. Estados Unidos. Plataforma de streaming (31 min.), color. Disponível em Disponível em http://irenesosa.org/sexual-exiles-1999 acessos em 10 mar. 2021.
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).

A narrativa de Irene Sosa sobre o sexílio ainda está presente na experiência contemporânea. No estudo empírico sobre outorgantes latinos dissidentes sexuais por “sexílio político” nos EUA, Norma Mogrovejo (2015MOGROVEJO, Norma. 2015. Del Sexilioal Matrimonio. Ciudadanía Sexual enla era del Consumo Neoliberal. Universidad Autónoma de la Ciudad de México, México D.F.) lembra que todos os seus interlocutores entrevistados constataram, firmemente, que “não podiam ‘ser’ em seus lugares de origem” (2015: 52MOGROVEJO, Norma. 2015. Del Sexilioal Matrimonio. Ciudadanía Sexual enla era del Consumo Neoliberal. Universidad Autónoma de la Ciudad de México, México D.F.) e que partiram em busca de um espaço mais permissivo para viverem suas sexualidades. Mogrovejo ainda deixa claro que esse lugar de origem, ou seja, essa condição primeira do sexílio refere-se à família e menos ao país ou Estado-nação. A fuga da violência homo-lesbo-transfóbica no âmbito familiar, escreve, “também significou salvaguardar a vida, a segurança e a estabilidade emocional” (Mogrovejo, 2015: 87MOGROVEJO, Norma. 2015. Del Sexilioal Matrimonio. Ciudadanía Sexual enla era del Consumo Neoliberal. Universidad Autónoma de la Ciudad de México, México D.F.). Como Guzmán, Fountain-Stokes e Sosa, Mogrovejo tece suas reflexões e pesquisas em relação íntima com sua própria trajetória. Peruana, indígena de origem, a professora e investigadora da Universidad Autónoma de la Ciudad de México (UACM) se auto-exiliou no México após a sua participação no Primeiro Encontro Lésbico Latinoamericano, em 1987. De maneira similar às narrativas de seus interlocutores, Mogrovejo entende que sua escolha do sexílio esteve ligada ao seu desconforto com a solidão, o encerramento e a “possível censura da minha família e da minha comunidade” (Mogrovejo, 2005MOGROVEJO, Norma. 2005. Autoexilio, Exilio Político o Migración por Opción Sexual. CEME - Centro de Estudios Miguel Enríquez - Archivo Chile. Disponível em Disponível em http://www.archivochile.com/Mov_sociales/mov_mujeres/doc_muj_otros/MSdocmujotros0021.pdf acesso em 17 out. 2021.
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).

O enfoque analítico na família de origem torna evidente que o conceito de sexílio não deve estar amarrado à migração ou deslocamento de um país para outro. Ele se desdobra justamente quando se relaciona, em um sentido mais geral, com o conteúdo emocional da conexão entre deslocamento e dissidência sexual. Concordamos com Mogrovejo quando acrescenta:

“Agregaría al concepto de Guzmán que el sexilio también puede operar como un éxodo de um pueblo a otro, de una región a otra o de un barrio a otro em las grandes ciudades. El exilio o ‘sexilio’ se presenta como una posibilidad de sobrevivencia para algunos, una opción política para otros, una estrategia que puede garantizar el cambio, el derecho a la elección, la auto determinación de las personas, la libertad individual, y el derecho a la diferencia y a la disidencia.” (Mogrovejo, 2015, p. 30MOGROVEJO, Norma. 2015. Del Sexilioal Matrimonio. Ciudadanía Sexual enla era del Consumo Neoliberal. Universidad Autónoma de la Ciudad de México, México D.F.)

Ao expandirmos o conceito de sexílio até o ponto em que deixa de circunscrever apenas um tipo de deslocamento geográfico e alcança os estados emocionais e a experiência vivida pelos chamados dissidentes sexuais em relação à família e à “origem”, temos uma ferramenta útil para questionarmos a estabilidade dos sentidos de pertencimento, para além das identidades sexuais. Nessa direção, a narrativa do retorno (im)possível revela também uma visão de formas alternativas de pertencimento, que, embora muitas vezes vividas como dolorosas, produzem perspectivas críticas relevantes às ideias mais normativas de casa, família ou mesmo de “nação”. Com o fim de elaborar esse aspecto do pertencimento para a nossa conceitualização de sexílio, recorremos agora a dois autores que, pela força de sua escrita, aprofundam a elaboração da sensação de ser estranho às próprias origens: Glória Anzaldúa, com o seu pensamento crítico das fronteiras e da diferença, seguido pelas problematizações de Didier Eribon sobre classe social em sua interseção com as homossexualidades.

Anzaldúa entre fronteiras e exílios

A obra de Glória Anzaldúa recoloca as possibilidades de habitar a fronteira desde experiências de exílio, desde uma escrita chicana e queer que passeia entre o espanhol e o inglês, em uma língua híbrida, e borra os gêneros narrativos, entre poesia, escrita biográfica e ensaio4 4 Sobre as práticas de linguagem em Anzaldúa, ver Lívia Baptista (2019).Não temos a pretensão de esgotar as possibilidades de leitura da obra de Anzaldúa, uma escritora sobre a qual não faltam análises críticas e investimentos biográficos. Trata-se, antes, de uma leitura interessada, voltada para os argumentos e categorias que guiam nossa investigação das relações entre mobilidades e sexualidades. Para contribuições sobre Anzaldúa publicadas no Brasil, ver Costa & Ávila (2005), Torres(2005), Costa (2004), Belausteguigoitia Rius (2009), Baptista(2019), Saraiva Palmeira(2020). Em língua inglesa, há uma coletânea voltada para a obra de Anzaldúa, organizada por Ana Louise Keating (Keating, 2005), que também organizou uma antologia com escritos diversos da autora (Keating, 2009). . Uma diferença importante entre sua contribuição e a de outros autores que se dedicaram ao tema do exílio e da fronteira é que seu exílio se dá desde dentro, no interior dos Estados Unidos. Sua contribuição articula-se desde um lugar de “exiladas internas”, de uma terra tida como “borderland”, das possibilidades de constituir-se no entre-lugar que é a própria fronteira.

Na sua obra, portanto, as fronteiras não surgem como linhas “neutras”, mas como espaços estriados de relações e de ambivalências, um estado de desassossego permanente. Assim, a contribuição da autora permite empurrar a própria noção de sexílio para o questionamento de um “princípio nacional de ordenação do mundo” (Gellner, 1983GELLNER, Ernest. 1983. Nations and nationalism. Ithaca: Cornell University Press.), no qual mesmo os estudos sobre mobilidades às vezes são capturados (Malkki, 1995MALKKI, Liisa. H. 1995. Refugees and Exile: From ‘Refugee Studies’ to the National Order of Things. Annual Review of Anthropology, v. 24, n. 1, p. 493-523.). Caminhando em direção à produção de um lugar subjetivo marcado pela fronteira como lugar repleto de sentidos, o sexílio poderia ser, neste caso, melhor compreendido como esse estado perene de deslocamento, um estado queer, que desafia a própria ideia de nação. Antes de desenvolvermos um pouco mais a perspectiva de Anzaldúa nessa articulação entre sexualidade e exílio interno, cabe explorar em alguma medida seu lugar no debate feminista que se fazia na década de 1980 nos Estados Unidos - e que de fato possibilitou a emergência de um feminismo da diferença.

Nascida em 1942, no Texas, a autora foi a sétima geração dos Anzaldúa no país, desde que o território indígena e mexicano foi incorporado pelos norte-americanos, instalando-se uma fronteira que passou a regular não apenas as relações de poder entre os dois países, mas o ingresso dos assim denominados “mexicanos” nos Estados Unidos - implicando também as relações de violência e exploração vividas por esses imigrantes e descritas por Anzaldúa. Após a conclusão de seu mestrado em Inglês e Educação pela Universidade do Texas, em 1972, a escritora passa a dar aulas de inglês para imigrantes. No doutorado, também na Universidade do Texas, envolve-se com a questão dos chamados “chicanos”, que, naquele momento, organizavam-se politicamente contra as desigualdades que afligiam os mexicanos ou seus descendentes, reivindicando uma identidade “chicana” pautada no reconhecimento da hibridez cultural. Anzaldúa participou do que ficou conhecido como Movimento Chicano, adotando uma postura questionadora do movimento desde uma perspectiva feminista, denominando-o como Movimento Macha5 5 O termo é alusão à categoria Marimacha, que poderia ser traduzido como “mulher-macho”, de modo a indicar mulheres assertivas e também as bolleras, sapatões, queers. Em entrevista a Karin Ikis (Anzaldúa, 2016), Anzaldúa comenta que passa a chamar assim o Movimento Chicano por Direitos Civis quando,nos anos 1980,os homens deixam de ocupar o seu centro, abrindo-se espaço para as vozes de mulheres ativistas, escritoras e artistas chicanas, como Moraga e a própria Anzaldúa. Assim, as ativistas mulheres chicanas se posicionaram no interior do Movimento Chicano para que as questões das mulheres fossem também consideradas e sua voz ouvida. .

Em 1977, Anzaldúa se transfere para São Francisco e começa a participar das associações e redes de escritoras feministas, onde conhece Cherríe Moraga, a quem convida para editar This bridge called my back Esta puente mi espalda (Moraga, Anzaldúa, 1983MORAGA, Cherríe; ANZALDÚA, Gloria (eds.). 1983. This Bridge Called My Back: Writings by Radical Women of Color. 1981. New York: KitchenTable, 1983.). Donna Haraway (2004HARAWAY, Donna. 2004. “Gênero” para um dicionário marxista: a política sexual de uma palavra. Cad. Pagu, Campinas, n. 22, p. 201-246. ), escrevendo sobre o processo de descentramento dos feminismos, localiza um momento em que os limites da categoria gênero ficaram evidentes na produção de um discurso “colonialista, racista e orientalista” no modo como as mulheres brancas buscavam falar pelas mulheres não-ocidentais, negras, chicanas. A reação veio na forma de trabalhos como o de Moraga e Anzaldúa, assim como em contribuições de feministas negras que vinham desde o fim do século XIX trabalhando no entrelaçamento entre gênero, raça, classe e nacionalidade. A produção de Moraga, Anzaldúa e outras autoras identificadas como chicanas inclui definitivamente as imigrantes nesse processo de desestabilização de um sujeito político do feminismo, chamando a atenção para os processos de racialização vividos por essas mulheres nos Estados Unidos.

Em Anzaldúa, a fronteira é a categoria para descrever como a diferença se produz nas articulações entre raça, gênero, sexualidade, nação e etnicidade, de maneira sempre inacabada, sem uma solução apaziguadora dos conflitos que se constituem na fricção entre essas diferenças. Na sua escrita, a fronteira deixa de ser uma linha geográfica neutra para ganhar significado como um “terceiro território”, passando das territorialidades físicas às territorialidades do corpo, da raça, gênero e sexualidade. Trata-se, ainda, da fronteira que é marcada pela violência do colonialismo norte-americano que instala uma desigualdade aviltante entre um lado e outro. É a fronteira que demarca o saque, a violação, a violência contra os povos indígenas; também é a fronteira que os mexicanos imigrantes tentam atravessar, sendo caçados do lado americano, humilhados pela polícia migratória, quando surpreendidos, ou explorados por empregadores que tiram proveito da sua condição de imigrante irregular. Ou seja, não é fronteira apenas simbólica ou metafórica: é a fronteira física transformada em espaço controlado e vigiado. Contudo, a fronteira que marca esse “Outro” imigrante e chicano é também um lugar para falar sobre a constituição da diferença necessariamente entrelaçada em termos de raça, gênero e sexualidades e dos processos de marginalização que aí se dão. O seguinte trecho de Anzaldúa ilustra bem essa passagem de um registro a outro:

“La frontera entre Estados Unidos y México es una herida abierta donde el Tercer Mundo se araña contra el primero y sangra. Y antes de que se forme costra, vuelvela hemorragia, la savia vital de dos mundos que se funde para formar untercer país, una cultura de frontera. Las fronteras están diseñadas para definir los lugares que son seguros y los que no loson, para distinguir elus (nosotros) delthem (ellos). Una frontera es una línea divisoria, una fina raya a lo largo de un borde empinado. Um territorio fronterizo es un lugar vago e indefinido creado por el residuo emocional de una linde contra natura. Está enun estado constante de transición. Sus habitantes son los prohibidos y los baneados. Ahí viven los atravesados: los bizcos, los perversos, los queer, los problemáticos, los chuchos callejeros, los mulatos, los de raza mezclada, los medio muertos; em resumen, quienes cruzan, quienes pasan por encima o atraviesan los confines de lo‘normal’” (Anzaldúa, 2016: 42ANZALDÚA, Gloria. 2016 [1987]. Borderlands/La Frontera. The New Mestiza. Traducción Carmen Valle. Madrid: Capitán Swing Libros S.L.).

A atuação política e a teoria de Anzaldúa constroem-se elas mesmas habilmente nesse entre-lugar subjetivo entre gênero, raça, nação, sexualidade, classe social. É justamente pelo adensamento analítico que confere a esse entre-lugar que sua obra reverbera com força tanto nas discussões sobre migrações e sexualidade, bem como no debate feminista e queer, nos quais tem ocupado lugar de destaque. Quando Anzaldúa ouviu de uma de suas alunas que homofobia era o medo de voltar para casa, pareceu-lhe uma interpretação apropriada. Segundo a autora, para a mujer lesbiana de color a rebelião última que pode haver contra sua “cultura de origem” está num comportamento sexual que desafia duplamente as proibições morais da sexualidade e da homossexualidade. Yo elegí ser queer, diz a escritora, sinalizando dessa forma um estado fronteiriço em que se está ao mesmo tempo dentro e fora de “casa”. Escreve: “Aunque el ‘hogar’ permea cada tendón y cada cartílago de mi cuerpo, a mi también me dá miedo de ir a casa (Anzaldúa, 2016: 63ANZALDÚA, Gloria. 2016 [1987]. Borderlands/La Frontera. The New Mestiza. Traducción Carmen Valle. Madrid: Capitán Swing Libros S.L.)”.

A ambivalência de um lar que, ao mesmo tempo que constitui o sujeito, revela-se como aquele ao qual se tem medo ou ao qual não se pode regressar completamente é interpelada de forma central por essa literatura que trata de deslocamento, exílio e (homos)sexualidade. No caso de Anzaldúa, ainda é válido destacar que a sua escolha queer, e com isso, uma postura crítica à fixidez das identidades, não significa desistir do conceito de casa. Apesar das incisivas recusas de pertencimento por parte de sua comunidade, família ou nação, a pensadora chicana tece uma afiliação queer do lar, o que seria sua versão positivada, a “nova consciência mestiça” do sexílio, abraçando uma forma radical de pertencimento múltiplo às fronteiras.

Na próxima seção aprofundaremos as condições da possibilidade de um retorno às “origens”. Através da obra de Didier Eribon, exploramos as dificuldades e dores causadas pelas fronteiras de classe. Aqui, também, o sexílio não se refere à migração entre diferentes países, mas ao exílio desde dentro. Ao contrário de AnzaldúaANZALDÚA, Gloria. 1987. Borderlands/La Frontera: The New Mestiza. San Francisco: Aunt Lute., para Eribon as fronteiras não se apresentam como horizonte de possibilidade, mas atuam continuamente como uma espécie de vergonha e traição no sujeito do sexílio.

Eribon e as angústias de classe

Como sugerido em outro lugar (Wasser, 2019WASSER, Nicolas. 2019. Nas rotas da vergonha. Periódicus, Salvador BA, n. 12, v. 1, nov. 2019-abr. 2020, p. 130-142. ), a experiência do sexílio pode evocar sentimentos de vergonha que estão intimamente relacionados com as questões do lar e os desafios de se viver entre mundos divididos não apenas pela geografia, mas também pela distância social e cultural que co-atua na articulação das (homo)sexualidades. Quem explora isso com impressionante agudeza é Didier Eribon em seu livro autobiográfico Retorno a Reims (2020ERIBON, Didier. 2020. Retorno a Reims. Belo Horizonte e Veneza: Editora Âyiné.). O retorno de Eribon, que se doutorou em Paris e assumiu uma cátedra de Sociologia em Amiens (2009, 2017), anunciado já no título da obra, refere-se ao reencontro com a sua família e sua cidade natal após o falecimento do seu pai. Trata-se de uma revisitação de caráter emocional que lança luz para “o mal-estar produzido pelo pertencimento a dois mundos diferentes, separados um do outro por tamanha distância que parecem inconciliáveis, embora coexistam em tudo que somos” (Eribon, 2020: 15ERIBON, Didier. 2020. Retorno a Reims. Belo Horizonte e Veneza: Editora Âyiné.). Procurando explicações para tanta distância entre sie a sua origem, Eribon não se contenta em relatar seu processo de assumir-se homossexual, o qual iria posteriormente afastá-lo do mundo dos seus pais. O retorno a Reims é um esforço do autor em multiplicar essa narrativa, chamando igual atenção para a tensão permanente que lhe causou a sua descendência social da classe trabalhadora interiorana, um mundo diretamente oposto ao da cultura letrada, burguesa de Paris que lhe tinha proporcionado a entrada à subjetivação gay.

Refletindo sobre diferentes marcas na sua trajetória irredutivelmente interseccionada por um tornar-se intelectual e um tornar-se homossexual, Eribon consegue abrir pistas para uma crítica a certas formulações de Pierre Bourdieu. Compartilhando com ele de uma origem não-burguesa, o sociólogo foi seu antigo mentor. Insistindo, na sua crítica a Bourdieu quanto ao uso e papel idiossincráticos da “cultura gay” para com a questão da distinção, Eribon exacerba a sensação de desequilíbrio moral e de incompatibilidade de suas personalidades como um tipo de exílio:

“o tipo de relação consigo que a cultura escolar impõe se revelava incompatível com o que éramos na minha casa, e a realização escolar instalou em mim, como uma de suas condições de possibilidade, uma ruptura, até um exílio, cada vez mais marcados, me separando aos poucos do mundo de onde eu vinha e onde eu ainda vivia.” (Eribon, 2020: 199ERIBON, Didier. 2020. Retorno a Reims. Belo Horizonte e Veneza: Editora Âyiné.)

No livro, Eribon dá ênfase ao que chama de exílio social para pensar as tensões recorrentes de sexualidade e origem social. Ao fazer isso, ele se inspira explicitamente na escritora francesa Annie Ernaux, que se tornou famosa por suas introspecções biográficas. No romance La Place (1983ERNAUX, Annie. 1983. La Place. Paris: Gallimard.), por exemplo, Ernaux apresenta a história de vida do seu pai que, sendo obrigado a deixar a escola cedo, tornou-se fazendeiro e depois proprietário de uma pequena mercearia na Normandia. Trata da história de mobilidade social de seus pais e do medo simultâneo de, em algum momento, poder deslizar socialmente e voltar à pobreza. O fato da filha frequentar uma escola superior deixava seu pai orgulhoso, mas isso não podia evitar que os dois se afastassem. Dessa maneira, a narrativa de Ernaux, que costuma ver-se como uma “trânsfuga de classe” (Suhrkamp, 2018SUHRKAMP. 2018. Annie Ernaux über ihr Schreiben und ihr Buch Der Platz. Ein Gespräch mit Kathrin Hondl. Berlin, Suhrkamp. Disponível em Disponível em https://www.suhrkamp. de/mediathek/annie_ernaux_ueber_ihr_schreiben_und_ihr_buch_der_platz_1516. html acessos em 10 mar. 2021.
https://www.suhrkamp. de/mediathek/annie...
), tematiza a questão da traição em relação a seus pais, às pessoas humildes e ao meio em que ela cresceu.

Parte dos sentimentos que Eribon explora para entender o exílio social se devem a esta influência de Ernaux, um aspecto que também contextualiza a diferença para Anzaldúa. Antes de descrever uma habilidade, as sensações de habitar entre mundos diferentes aqui são criadoras de fissuras no sujeito. Eribon inicia o seu retorno a Reims com uma pergunta retórica, atravessada por uma certa melancolia: é possível superar o mal-estar causado por um “habitus clivé” (Eribon, 2020: 15ERIBON, Didier. 2020. Retorno a Reims. Belo Horizonte e Veneza: Editora Âyiné.)? Pois não somente seu exílio sexual, mas também seu exílio social fez dele, de certa forma, um trânsfuga de classe. No reencontro com a sua interiorana família, seus antigos esforços para se distanciar o dividem entre pertencimento e afastamento. Eribon relata no livro que, quando era estudante em Paris, houve um momento em que sua mãe, de forma inesperada, atravessou a rua à sua frente. Por medo de que os seus colegas da faculdade pudessem descobrir a sua origem de classe trabalhadora, ele fingiu não ter visto sua mãe naquele momento. É por esta memória que Eribon se coloca o problema da vergonha de ter tido vergonha, um tema - a articulação entre homossexualidade e vergonha sexual -que permeia sua obra como sociólogo. Contudo, é apenas neste livro que o autor busca compreensão sobre por que sempre negou ou escondeu esta vergonha social - ao contrário da vergonha de ser homossexual. Uma trajetória, como escreve Eribon, nada natural, pois

“não seria exagero afirmar que minha saída do armário sexual, o desejo de assumir e afirmar a minha homossexualidade, coincidiu na minha trajetória pessoal com a entrada no que eu poderia descrever como um armário social, isto é, nas restrições impostas por outra forma de dissimulação, outro tipo de personalidade dissociada ou de dupla consciência” (Eribon, 2020: 25ERIBON, Didier. 2020. Retorno a Reims. Belo Horizonte e Veneza: Editora Âyiné.)

Neste sentido, o retorno à Reims é uma tentativa de Eribon de corrigir e multiplicar a narrativa que tecera quando escolheu ver o seu passado e sua história de deslocamento pela lente da homossexualidade. Causa espanto ao próprio autor que os seus estudos sobre inferiorização e normatividades sexuais não o tivessem conduzido antes para a problematização simultânea das relações e dominação de classe.

O entrelaçamento de (homos)sexualidade e classe social na formação do sujeito, como descrito em Retorno a Reims, é revelador para a ideia de exílio sexual. Eribon já passou um longo tempo examinando a importância da “cultura gay” para o fortalecimento e distinção de jovens “exilados” pela família devido à homossexualidade (ver Eribon, 2008ERIBON, Didier. 2008. Reflexões sobre a questão gay. Rio de Janeiro: Companhia de Freud.). E continuam ressoando nos estudos sobre sexualidade e migração (Rezende, 2018REZENDE, Lucas Felicetti. 2018. Sexílio, alteridade e reconhecimento: Uma análiseteórica sobre o refúgio de LGBTs. O Social em Questão, Ano XXI, n. 41, mai- ago 2018.; Costa, 2020COSTA, Antonio Carlos Gomes da. 2020. Migrações e deslocamentos de LGBTQI+: refúgios motivados pela identidade de gênero e ou práticas afetivo sexuais. Trabalho apresentado na 32a Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 30 de outubro e 06 de novembro de 2020.), estas reflexões sobre como as leituras de Jean Genet, as áreas de cruising e, finalmente, o deslocamento geográfico do interior para a metrópole desdobravam a subjetivação gay. Mas são apenas as reflexões tardias do autor sobre o eterno retorno à origem de classe e aos vínculos de família que questionam e desafiam a narrativa que equipara a migração à emancipação. O Retorno a Reims deixa bem claro que o momento da partida de casa pode coincidir com o processo de “sair do armário”, mas também que a invenção do novo lar dificilmente pode significar a anulação da origem. Em certo paralelo à reflexão de Anzaldúa, Eribon evidencia um mal-estar na própria cultura, instigado pela homossexualidade e pelas contradições de classe, e que se manifesta independentemente da localização geográfica. Esta percepção é importante, já que não apenas examina a narrativa única da emancipação sexual propiciada pela metrópole, mas também desafia a noção do (novo) lar enquanto processo concluído ou refúgio livre de contradições.

Sexílio e o problema da diáspora

Num esforço mais ou menos paralelo às discussões sobre sexílio, os estudos queer anglo-saxões têm investido, há mais de duas décadas, em relacionar suas críticas da identidade e da normatividade à noção de diáspora (Gopinath, 1997GOPINATH, Gayatri. 1997. Nostalgia, Desire, Diaspora: South Asian Sexualities in Motion. Positions, Durham NC, v. 5, n. 2, p. 467-489. ; Puar, 1998PUAR, Jasbir. Transnational sexualities. 1998. South Asian (Trans)nation(alism)s and queer diasporas. In ENG, David & HOM, Alice.Q & A: Queer in Asian America. Philadelphia, PA: Temple University Press, p. 405-22.; Ahmed, 2000AHMED, Sara. 2000. Strange Encounters: Embodied Others in Postcoloniality, London e Nova York: Routledge.; Fortier, 2002FORTIER, Anne-Marie. 2002. Queer Diaspora. In RICHARDSON, Diane & SEIDMAN, Steve (eds.). Handbook of Lesbian and Gay Studies. London, Thousand Oaks and New Delhi: SAGE, p. 183-199.; Ahmed, Castañeda, Fortier, 2004AHMED, Sara; CASTAÑEDA, Claudia; FORTIER, Anne-Marie; SHELLER, Mimi. (eds.). 2004. Uprootings/Regroundings: Questions of Home and Migration. Oxford e Nova York: Berg.). Uma grande parte destes estudos se vêem como uma alternativa às teorias da globalização, a que não apenas antecipam processos de homogeneização cultural, mas também tendem a reproduzir narrativas heteronormativas da nação, de progresso e superioridade do Norte Global nos termos de uma “liberdade” conjugada a partir de identidades sexuais ocidentais6 6 Utilizamos aqui a categoria de Norte Global em momentos pontuais deste artigo, como neste caso em que referimos à categoria comum na bibliografia indicada, cientes das limitações de uma divisão Norte-Sul Global ao situar num mesmo conjunto países com diferentes posições em relação ao capitalismo global. De toda forma, consideramos essas categorias como úteis para indicar relações de poder que atravessam as fronteiras nacionais e que se constituem em dinâmicas globais. . Assim, o estudo de Gopinath sobre as sexualidades sul asiáticas na diáspora (1997GOPINATH, Gayatri. 1997. Nostalgia, Desire, Diaspora: South Asian Sexualities in Motion. Positions, Durham NC, v. 5, n. 2, p. 467-489. ) desafia tanto as compreensões restritas do queer enquanto algo do ocidente (e alheio da nação indiana) quanto as configurações heterossexuais da diáspora. Nas narrativas de meninos que usam sári, traje tradicional feminino, e do homoerotismo entre mulheres dentro do “tradicional” espaço doméstico, a autora faz a provocação de que os sujeitos diaspóricos queer não seguem sempre a receita de “sair do armário”. Antes, suas práticas remetem para formas de habitar e (homos)sexualizar o espaço privado que contestam os ideários do nacionalismo dominante.

Outras vozes neste debate já são críticas a certos pressupostos teóricos da diáspora queer. Para Wesling (2008WESLING, Meg. 2008. Why Queer Diaspora? Feminist Review, London, v. 90, p. 30-47. ), a noção de diáspora queer pode unir de forma idealizada “o queer com o diaspórico em uma relação privilegiada de transgressão” (2008: 33WESLING, Meg. 2008. Why Queer Diaspora? Feminist Review, London, v. 90, p. 30-47. ). Sinalizando reservas sobre esta ideia, lembra da importância de não produzir “ontologias migrantes”, ou seja, necessariamente correspondentes a um modo de existência que contraria estruturas hegemônicas. Estas reservas em relação à teorização sobre a mobilidade e a sexualidade são seguidas pela questão de até que ponto a diáspora queer não antecipa certos ideais de uma comunidade de dissidentes sexuais mundo afora, sem substanciá-la empiricamente. A este respeito, Fortier (2001FORTIER, Anne-Marie. 2001. ’Coming home’ Queer migrations and multiple evocations of home. European Journal of Cultural Studies, London, v. 4, n. 4, p. 405-424.) problematiza que, em muitos casos, os teóricos queer podem estar mobilizando imaginações que pressupõem tanto uma cultura queer transnacional, quanto uma forma particular de comunidade.

Do nosso ponto de vista, o problema não reside na ideia de que o queer, como categoria guarda-chuva para as sexualidades dissidentes, desdobra necessariamente um efeito colonial7 7 De acordo com Pereira (2019), seria preciso enfrentar o entendimento dominante, mesmo dentro dos estudos queer, que aloca certas pessoas em meras fornecedoras de experiência (comumente do Sul Global) enquanto entende outras como representadoras e exportadoras de teorias (normalmente do Norte Global). Umaabertura para essas “outras histórias” da experiência permitiria ao queer aliar-se à crítica decolonial pensando a partir e com o Sul Global. . Consideramos muito mais problemático, com base em Fortier (2001FORTIER, Anne-Marie. 2001. ’Coming home’ Queer migrations and multiple evocations of home. European Journal of Cultural Studies, London, v. 4, n. 4, p. 405-424.), que a diáspora queer projete realmente uma noção de comunidade de dissidentes sexuais e de gênero no local de recepção, que é difícil de ser encontrada empiricamente e nem é sequer sempre procurada por pessoas LGBTQI+ em situação de deslocamento ou migração, mesmo quando a mobilidade está norteada por questões relacionadas à identidade sexual e/ou expressão de gênero. Como demonstram França e Fontgaland (2020FRANÇA, Isadora Lins; FONTGALAND, Arthur. 2020. Gênero, sexualidades e deslocamentos: notas etnográficas sobre imigrantes e “refugiados LGBTI” no Norte do Brasil. REMHU, Rev. Interdiscip. Mobil. Hum., Brasília, v. 28, n. 59, p. 49-68, Aug. 2020. ) em recentes estudos sobre migrantes “refugiados LGBTI” na região Norte do Brasil, por exemplo, fica evidente que uma comunidade transnacional de pessoas LGBTI não é algo preexistente, e sim um efeito de invenções mais recentes no contexto de um aparato humanitário internacional. Assim como aparece também em Sousa (2020FRANÇA, Isadora Lins; FONTGALAND, Arthur. 2020. Gênero, sexualidades e deslocamentos: notas etnográficas sobre imigrantes e “refugiados LGBTI” no Norte do Brasil. REMHU, Rev. Interdiscip. Mobil. Hum., Brasília, v. 28, n. 59, p. 49-68, Aug. 2020. ), os autores descrevem uma enorme diversidade nas trajetórias de enfrentamento da homofobia e de precariedade da condição migratória que não raro passa inclusive por uma recusa à identificação com qualquer das letras do acrônimo LGBTI por parte de alguns interlocutores da pesquisa,

Comparando a ideia de diáspora queer com a de sexílio, nos parece que esta última é mais frutífera para a análise das sexualidades relocadas por processos de mobilidade, até porque não projeta a priori uma rede estabelecida ou cultura internacional da dissidência sexual. Ao invés disso, o sexílio visa a compreender processos de ruptura na constituição das identidades sexuais que desafiam a heterossexualidade, questionando os laços familiares, de origem e do lar sem fazer da migração para outro país ou para a metrópole uma condição sine qua non. Se formos além da conotação original de sexílio, conforme aparece em Guzman e Fountain-Stokes, podemos captar, em um sentido mais geral, as diferentes experiências no sujeito, nas quais a dissidência sexual entrelaçada com a mobilidade entra em conflito com as normas e expectativas sociais que remontam à nacionalidade, origem, raça, etnia, classe e gênero. Nossa principal reserva aqui diz respeito ao fato de que o conceito de diáspora queer, ao recorrer aos fluxos e redes transnacionais revela frequentemente uma aspiração ontológica que, ao mesmo tempo, tende a idealizar a noção de comunidade na diáspora. Efeito, em parte, da pouquíssima atenção dedicada às rotas Sul-Sul ou Norte-Sul no que concerne às relações entre sexualidades e trânsitos internacionais, essa tendência pode implicar oposições simplistas entre Norte Global e Sul Global, invisibilizando experiências de migração e mobilidades envolvendo identidades sexuais dissidentes para além de um vetor Sul-Norte. Por outro lado, vale lembrar que, em larga medida, a noção de sexílio se consolida informada por experiências latino-americanas, o que tende a torná-la mais plural.

Conclusão

Ao longo deste artigo, nos debruçamos sobre as reflexões em torno da construção de pertencimentos múltiplos, para o que tomamos a literatura sobre a noção de sexílio como objeto de reflexão (Guzmán, 1997GUZMÁN, Manuel. 1997. “Pa’ La Escuelita con MuchoCuida’o y por la O rillita”: A Journey through the Contested Terrains of the Nation and Sexual Orientation. In NEGRÓN-MUNTANER, Frances; GROSFOGUEL, Ramón (Orgs.): Puerto Rican Jam. Rethinking Colonialism and Nationalism. Minneapolis, University of Minnesota Press, p. 209-230. ; La Fountain-Stokes, 2004LA FOUNTAIN-STOKES, Lawrence. 2004. De sexilio(s) y diáspora(s) homosexual(es) latina(s): El caso de la cultura puertorriqueña y nuyoricanqueer. Debate feminista, v. 15, p. 138-157.; Mogrovejo 2015MOGROVEJO, Norma. 2015. Del Sexilioal Matrimonio. Ciudadanía Sexual enla era del Consumo Neoliberal. Universidad Autónoma de la Ciudad de México, México D.F.).O propósito foi realizar a partir dela uma leitura crítica capaz de aprofundar sua força conceitual. Nessa empreitada, esforçamo-nos por ultrapassar concepções mais literais sobre (homo)sexualidades e exílio, necessariamente territoriais ou restritas a determinadas formas e vetores migratórios. Como Mogrovejo (2005) deixa claro, o exílio sexual às vezes já se refere à experiência de não se sentir em casa na homossexualidade e na cultura de origem, seja rural ou urbana.

Daí decorre quase inevitavelmente uma visão diferente de origem e de cultura, com todas as regras e convenções que as acompanham.

O sexílio, nesse sentido, oferece entradas interessantes para o debate sobre pertencimento nos moldes de uma “nova consciência da mestiça” de AnzaldúaANZALDÚA, Gloria; WEILAND, Christine. 2000. Within the crossroads - an interview with Christine Weiland (1983). In KEATING, AnaLouise. Gloria Anzaldúa: interviews/entrevistas. Nova York: Routledge, p. 71-128., assim como na direção das elaborações de Eribon sobre a vergonha de classe social, oferecendo contribuições importantes para uma reflexão sobre como a lente da (homos)sexualidade desloca ao mesmo tempo a percepção da diferença e de origem. Assim, nos propusemos a colocar em diálogo as discussões sobre sexílio com as contribuições de Anzaldúa e Eribon, de modo a abordar a noção de fronteira como um (não) lugar subjetivo e as ambivalências de um retorno ao lar no entrecruzamento entre gênero, sexualidade, classe social e raça.

Por fim, destacamos os estudos sobre a diáspora queer (Gopinath, 1997GOPINATH, Gayatri. 1997. Nostalgia, Desire, Diaspora: South Asian Sexualities in Motion. Positions, Durham NC, v. 5, n. 2, p. 467-489. ; Fortier, 2001FORTIER, Anne-Marie. 2001. ’Coming home’ Queer migrations and multiple evocations of home. European Journal of Cultural Studies, London, v. 4, n. 4, p. 405-424.) que se apoiam sobre outros trabalhos nos quais a experiência do sujeito diaspórico permite questionar concepções mais normativas de cultura, identidade e cidadania (Hall 1990HALL, Stuart. 1990. Cultural Identity and Diaspora. In RUTHERFORD, Jonathan (ed.): Identity: Community, Culture, Difference. London: Lawrence &Wishart, p. 222-237.; Brah 1996BRAH, Avtar. 1996. CartographiesofDiaspora: ContestingIdentities. London e Nova York: Routledge .; Gilroy, 2000GILROY, Paul. 2000. Between Campus: Nations, Cultures and the Allure of Race. London: The Penguin Press.). Entretanto, como observamos, a ideia de diáspora queer produz certo incômodo pela sua tendência a estabelecer “ontologias migrantes” (Wesling, 2008WESLING, Meg. 2008. Why Queer Diaspora? Feminist Review, London, v. 90, p. 30-47. ), apoiadas nas ideias de comunidades queer transnacionais. Além disso, a diáspora queer é predominantemente estudada em representações literárias, cinematográficas e artísticas, enquanto a noção de sexílio nos parece promissora para lançar luz sobre a história das relações entre diversidade sexual e de gênero e mobilidade territorial, principalmente para estudos empíricos nas Ciências Sociais. Nessa direção, consideramos que o conceito de sexílio pode oferecer uma perspectiva analítica interessante na medida em que se debruça sobre narrativas migrantes e sobre os processos de subjetivação, escapando de perspectivas macro sociológicas ou relativas às relações internacionais, conduzindo na direção de uma reflexão mais centrada nas questões relacionadas à diferença, lar e pertencimento.

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  • 1
    Cabe uma pequena advertência sobre categorias e sujeitos: optamos, neste texto, por utilizar termos tão diversos como (homo)sexualidades, homossexualidades, dissidências e dissidentes sexuais, LGBTQI+, LGBTI, queer, diversidade sexual e de gênero, que indicam a dispersão mesmo das categorias para referir a identidades sexuais e de gênero no conjunto de estudos com os quais trabalhamos, inscritos em épocas e tradições teóricas diferentes. Ao invés de padronizar as categorias, mantivemos uma indefinição que indica inclusive certa natureza “cambiante” e “contestada” do campo de estudos um dia recoberto pela noção de “homossexualidade” (Simões; Carrara, 2014SIMÕES, Júlio Assis; CARRARA, Sérgio. 2014. O campo de estudos socioantropológicos sobre diversidade sexual e de gênero no Brasil: ensaio sobre sujeitos, temas e abordagens. CadernosPagu, n. 42, p. 75-98.). Alertamos, assim, que essas categorias não descrevem empiricamente os sujeitos das reflexões que aqui abordamos. Juntas, contudo, elas desempenham o papel de circunscrever um conjunto de temas e preocupações que emergem da bibliografia com a qual escolhemos trabalhar neste artigo.
  • 2
    A emergência da categoria de “refugiado LGBTI” e como ela interpela as experiências de deslocamento dos sujeitos que são reconhecidos a partir dessa categoria tem sido objeto dos trabalhos mais recentes de Isadora França (França 2017FRANÇA, Isadora Lins. 2017. “Refugiados LGBTI”: direitos e narrativas entrecruzando gênero, sexualidade e violência. Cad. Pagu, Campinas, n. 50, e17506.; 2020FRANÇA, Isadora Lins; FONTGALAND, Arthur. 2020. Gênero, sexualidades e deslocamentos: notas etnográficas sobre imigrantes e “refugiados LGBTI” no Norte do Brasil. REMHU, Rev. Interdiscip. Mobil. Hum., Brasília, v. 28, n. 59, p. 49-68, Aug. 2020. ; França; Oliveira, 2016FRANÇA, Isadora Lins; OLIVEIRA, M. P. “Refugiados LGBTI”: gênero e sexualidade na articulação com refúgio no contexto internacional de direitos, 12/2016, Travessia, v. 29, n. 79, p. 33-50, 2016.).A experiência de mobilidade nacional e internacional na constituição de subjetividades sexuais e de gênero, que têm sido foco das preocupações de Nicolas Wasser (Wasser, 2019WASSER, Nicolas. 2019. Nas rotas da vergonha. Periódicus, Salvador BA, n. 12, v. 1, nov. 2019-abr. 2020, p. 130-142. ; 2020WASSER, Nicolas. 2020. O movimento musical LGBT e seus contramovimentos. Revista Brasileira de Sociologia, v. 8, n. 20, p. 50-77, set./dez. 2020. ).
  • 3
    O autor deixa claro que não trabalha com uma compreensão fechada desta cultura, senão refere-se a suas expressões e articulações variadas e muitas vezes em uma relação de rivalidade (La Fountain-Stokes, 2004: 139LA FOUNTAIN-STOKES, Lawrence. 2004. De sexilio(s) y diáspora(s) homosexual(es) latina(s): El caso de la cultura puertorriqueña y nuyoricanqueer. Debate feminista, v. 15, p. 138-157.).
  • 4
    Sobre as práticas de linguagem em Anzaldúa, ver Lívia Baptista (2019BAPTISTA, Lívia Márcia Tiba Rádis. 2019. (De)Colonialidade da linguagem, lócus enunciativo e constituição identitária em Gloria Anzaldúa: uma “new mestiza”. Polifonia, Cuiabá: PPGEL/UFMT, v. 26, n. 44, p. 123-145, out./dez. 2019.).Não temos a pretensão de esgotar as possibilidades de leitura da obra de Anzaldúa, uma escritora sobre a qual não faltam análises críticas e investimentos biográficos. Trata-se, antes, de uma leitura interessada, voltada para os argumentos e categorias que guiam nossa investigação das relações entre mobilidades e sexualidades. Para contribuições sobre Anzaldúa publicadas no Brasil, ver Costa & Ávila (2005COSTA, Claudia de Lima; AVILA, Eliana. 2005. Gloria Anzaldúa, a consciência mestiça e o “feminismo da diferença”. Rev. Estud. Fem., Florianópolis, v. 13, n. 3, p. 691703, dez. 2005. ), Torres(2005TORRES, Sonia. 2005. La conciencia de lamestiza /towards a new consciousness: uma conversação inter-americana com Gloria Anzaldúa. Rev. Estud. Fem. , Florianópolis, v. 13, n. 3, p. 720-737, dez. 2005.), Costa (2004COSTA, Claudia de Lima. 2004. Gloria Evangelina Anzaldúa. Rev. Estud. Fem., Florianópolis, v. 12, n. 1, p. 13-14, abr. 2004. ), Belausteguigoitia Rius (2009BELAUSTEGUIGOITIA RIUS, Marisa. 2009. Límites y fronteras: lapedagogíadelcruce y latransdisciplinaenla obra de Gloria Anzaldúa. Rev. Estud. Fem., Florianópolis, v. 17, n. 3, p. 755-767, dez. 2009.), Baptista(2019BAPTISTA, Lívia Márcia Tiba Rádis. 2019. (De)Colonialidade da linguagem, lócus enunciativo e constituição identitária em Gloria Anzaldúa: uma “new mestiza”. Polifonia, Cuiabá: PPGEL/UFMT, v. 26, n. 44, p. 123-145, out./dez. 2019.), Saraiva Palmeira(2020). Em língua inglesa, há uma coletânea voltada para a obra de Anzaldúa, organizada por Ana Louise Keating (Keating, 2005), que também organizou uma antologia com escritos diversos da autora (Keating, 2009).
  • 5
    O termo é alusão à categoria Marimacha, que poderia ser traduzido como “mulher-macho”, de modo a indicar mulheres assertivas e também as bolleras, sapatões, queers. Em entrevista a Karin Ikis (Anzaldúa, 2016ANZALDÚA, Gloria. 2016 [1987]. Borderlands/La Frontera. The New Mestiza. Traducción Carmen Valle. Madrid: Capitán Swing Libros S.L.), Anzaldúa comenta que passa a chamar assim o Movimento Chicano por Direitos Civis quando,nos anos 1980,os homens deixam de ocupar o seu centro, abrindo-se espaço para as vozes de mulheres ativistas, escritoras e artistas chicanas, como Moraga e a própria Anzaldúa. Assim, as ativistas mulheres chicanas se posicionaram no interior do Movimento Chicano para que as questões das mulheres fossem também consideradas e sua voz ouvida.
  • 6
    Utilizamos aqui a categoria de Norte Global em momentos pontuais deste artigo, como neste caso em que referimos à categoria comum na bibliografia indicada, cientes das limitações de uma divisão Norte-Sul Global ao situar num mesmo conjunto países com diferentes posições em relação ao capitalismo global. De toda forma, consideramos essas categorias como úteis para indicar relações de poder que atravessam as fronteiras nacionais e que se constituem em dinâmicas globais.
  • 7
    De acordo com Pereira (2019PEREIRA, Pedro Paulo Gomes. 2019. Reflecting on Decolonial Queer. GLQ: A Journal of Lesbian and Gay Studies, vol. 25, n. 3, p. 403-29. ), seria preciso enfrentar o entendimento dominante, mesmo dentro dos estudos queer, que aloca certas pessoas em meras fornecedoras de experiência (comumente do Sul Global) enquanto entende outras como representadoras e exportadoras de teorias (normalmente do Norte Global). Umaabertura para essas “outras histórias” da experiência permitiria ao queer aliar-se à crítica decolonial pensando a partir e com o Sul Global.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    04 Maio 2021
  • Aceito
    30 Ago 2021
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